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X nquanto
desabrochavam,
as flores
os
primeiros raios de sol foram surgindo
no horizonte, interrompendo a brisa
fria e suave da madrugada e
novamente despertando a cidade para
um novo amanhecer. Toda aquela
região era cercada por colinas. Bem lá
no alto, na mais alta delas, morava
uma velha senhora chamada Sofia.

W ona Sofia era


professora aposentada
uma

que durante toda a vida se dedicara a ensinar. Ela conhecia os segredos, os sonhos,
as sensações e as emoções que as palavras dos poetas despertam no coração de
cada um. Agora, cultivava flores em seu jardim, para serem vendidas na cidade,
garantindo assim algum dinheiro, além do que recebia de sua fraca aposentadoria.
Sentia-se feliz lidando com as flores, e mais ainda quando abria um livro e
mergulhava em suas letras. Lia romances, contos, crônicas e, principalmente,
poesias.

Sua casa era diferente de todas as outras. Tinha paredes decoradas de cima a
baixo com... poesias. Dona Sofia, com sua linda caligrafia, escrevia poesias por
todos os cantos da casa. Havia versos na sala, no quarto, na cozinha, no banheiro e
em todos os lugares onde pudesse deixar vivo um pedacinho de emoção.
b s anos foram passando e um belo dia Dona Sofia percebeu que não
havia mais espaço para escrever. O que faria, então? Não queria deixar
as poesias escondidas nos livros... Se ela pudesse oferecer um verso como quem
oferece uma flor a cada morador da cidade... Sim! Era isso! Dona Sofia decidiu fazer
cartões poéticos decorados com flores cultivadas por ela mesma.

Assim, passou a fazer cartões


coloridos, de diversas texturas e
decorados com flores prensadas, onde
escrevia, com letra caprichada, versos
dos seus poetas preferidos. Dona Sofia
resgatava dos livros ou da memória os
versos que tanto lhe diziam e que
iriam, como sementes ao vento,
desabrochar em outros corações.
Preparava vários cartões e depois
chamava Seu Ananias, que os
entregava aos moradores da cidade.

f eu Ananias era o único carteiro existente por ali. Ele conhecia todos os
moradores e cuidava da correspondência local. Em casa, ano após ano,
as pessoas esperavam atentas o sinal de alerta:

Cooooooooorrreeeeiiiiiiiooooooooooo!

E lá vinha ele trazendo notícias, saudades e sonhos.

Nas horas vagas, Seu Ananias passou a ajudar Dona Sofia cultivando e
transportando flores. Fazia tudo de livre e espontânea vontade, pois adorava lidar
com plantas. Gostava de observar a delicadeza das flores brotando e respirar o
aroma da relva quando era agitada pelo vento.

E sentia-se muito bem na companhia de Dona Sofia, sempre doce e bondosa.


Cheiro de terra

Há versos que são como um jardim depois da chuva:


deixam em nós a sensação de água caindo,
caindo em bolhas trémulas da ponta das folhas,

escorrendo da pele macia das pétalas,


pingando dos galhos lavados, gota a gota,
pingando no ar...

Versos que cheiram a terra molhada,


versos que são como um jardim depois da chuva...

~Ronald de Carvalho

Oh! Bendito o que semeia


Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

~Castro Alves
A poesia
tem tudo a ver
com tua dor e alegrias,
com as cores, as formas, os cheiros,
os sabores e a música do mundo.

A poesia
tem tudo a ver
com a plumagem, o voo,
e o canto dos pássaros,
a veloz acrobacia dos peixes,
as cores todas do arco-íris,
o ritmo dos rios e cachoeiras,
o brilho da lua, do sol e das estrelas,
a explosão em verde, em flores e frutos.

A poesia
— é só abrir os olhos e ver —
tem tudo a ver
com tudo.
~Elias José
as Seu Ananias não media esforços. Quase todos os dias montava em
` sua bicicleta e percorria aquele caminho íngreme e tortuoso. Subia e
descia a colina quantas vezes fosse necessário. Lá o tempo passava rapidamente,
enquanto seus olhos assistiam ao fantástico poder da natureza. Poucos lugares no
mundo possuíam tamanho esplendor: o colorido das flores se esparramando por
toda a colina, em uma paisagem ondulada e verdejante em todas as direções.

Beleza e diversão, contudo, estavam mesmo dentro da casa de Dona Sofia,


adornada por todos os lugares com aquela bela caligrafia que, inevitavelmente, ele
comparava com a sua. Seu Ananias tinha uma letra horrível, que por vezes nem ele
mesmo conseguia entender.

erto dia, quando estava na cidade entregando correspondência, ele


V achou no meio dos cartões de Dona Sofia um envelope com o seu nome
e endereço. Seu sorriso abriu logo de emoção.

“Quem já viu? Escrever uma carta para o próprio carteiro!” — pensou.


Depois de ler o poema várias vezes, Seu Ananias guardou-o com muito carinho.
No outro dia, comentou com Dona Sofia:

Oh que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

~Casimiro de Abreu

— Muito obrigado pelo cartão, Dona Sofia. Até agora só tinha entregado cartas,
nunca havia recebido uma!

— Ah! Você gostou? — perguntou ela, satisfeita. — E o que achou da poesia?

— É linda. Dona Sofia, quem é Casimiro de Abreu?

— Um grande poeta, Seu Ananias. Como todos os outros que estão espalhados
pela casa.

Dona Sofia percebeu a alegria e o interesse nos olhos de Seu Ananias, pois
naquele dia por várias vezes o encontrou procurando pelas paredes, no sofá, na
geladeira e nas cortinas poesias de Casimiro de Abreu.
om o tempo ela foi-lhe mandando outros cartões, mas com verbos de
V outros poetas. Aos poucos ele foi conhecendo cada um deles. Sentia-se
emocionado toda vez que recebia um cartão e desvendava os mistérios de suas
palavras.

Dona Sofia ficava contente com o interesse de Seu Ananias. A toda hora o
encontrava pelos cantos da casa procurando, lendo, pesquisando. Onde houvesse
escrito uma poesia, lá estava Seu Ananias.

De tanto escutar elogios sobre sua letra tem desenhada, ela resolveu presenteá-
-lo com um caderno de caligrafia. Ele ficou tão feliz, mas logo foi assaltado por uma
porção de dúvidas:

— Dona Sofia, qual é o segredo para escrever bonito?

— Olhe, é preciso praticar bastante, mas além de uma letra bonita, o mais
importante é compreender o sentido do que escrevemos. Aí fica fácil. Quando
queremos, Seu Ananias, podemos criar coisas lindas, de que nem imaginávamos ser
capazes!

Quando a noite cair, fica à janela,


E contempla o infinito firmamento!
Vê que planície fulgurante e bela!
Vê que deslumbramento!

Olha a primeira estrela que aparece


Além, naquele ponto do horizonte...
Brilha, trêmula e vívida... Parece
Um farol sobre o píncaro do monte.

~Olavo Bilac
X le prestava atenção, deliciando-se com o primor existente em toda
aquela casa. Nela havia uma vida inteira de dedicação.

Certo dia, finalmente tomou coragem e fez uma pergunta, presa em sua
garganta:

— Dona Sofia, por que a senhora escreveu poesias por todos os cantos da casa?

— Já li tantos livros... — disse ela, contemplando sua arte. — Tenho medo de


esquecer os versos mais bonitos ou aqueles importantes para mim. Então eu os
escrevi por todos os lugares. Assim estão sempre comigo, basta lançar um olhar... É
sempre bom lê-los novamente, estão repletos de sabedoria.

Dona Sofia sorridente, foi relembrando sua juventude, os tempos em que dava
aulas. Via o interesse nos olhos de Seu Ananias, brilhando como estrelas no céu. Ele
tinha a impressão de estar ouvindo sua primeira professora, que lhe dera a conhecer
as primeiras histórias escritas.

ada dia Dona Sofia lhe contava alguma coisa interessante. Certa
V ocasião ela lhe falou sobre a importância da escrita para a evolução do
homem, que em vez de se comunicar apenas por sons e gestos passou a elaborar
mensagens mais complexas. Por vezes, Dona Sofia lhe mostrava poemas de estilos
direrentes e falava da época em que haviam sido escritos. E de quebra falava sobre
a vida de algum autor ou contava histórias acontecidas naquele tempo.

Olha a vida primeiro, longamente, enternecidamente,


Como quem a quer adivinhar...

Olha a vida, rindo ou chorando, frente a frente,


Depois deixa o coração falar.
~Ronald de Carvalho

casa de Dona Sofia havia se tornado para Seu Ananias um território de


T deslumbramento e aventura, uma passagem escancarada para um
mundo de mistério e sabedoria.

Pensando nisso, num dia de serviço, Seu Ananias escutou Seu Gilberto
recitando alguns versos na praça da cidade; no quintal de sua casa, Seu Manuel
cochilava com um livro de poemas no colo. Viu tamtém as irmãs Lia, Lea e Cléa
mostrando os belos cartões recebidos de Dona Sofia. Naquele momento, os
pensamentos de Seu Ananias se iluminaram, tudo clareou em sua mente. Na rua, na
praça, em casa, todos liam poesias!

Tentando organizar a grande concentração de ideias em sua cabeça, ele deu


meia-volta e foi direto à casa de Dona Sofia. A velocidade quebrava o silêncio da
subida. Pouco depois estavam conversando no jardim.

— Dona Sofia, a senhora sabia que todos os moradores da cidade gostam de


poesias?
— Que notícia boa! Mas como o senhor ficou sabendo disso? — perguntou,
surpresa com a novidade.

— Porque eu vi várias pessoas lendo poesias. E ouvi outras recitando. E outras


ainda comentando! E olhe, Dona Sofia, que não foi a primeira vez — explicou
radiante. — Acho que a senhora, com seus cartões, encheu de poesia o coração de
todos.

A noite
Meu livro é um jardim na doçura do Outono
foi embora
E que a sombra amacia
lá do fundo
De carinho e de afago
Da luz serena do final do dia
do quintal
esqueceu
~Mário Pederneiras
a lua cheia
pendurada
no varal.
e ealmente as poesias tinham
encantado a cidade. Todos ficavam
felizes em receber e ler versos que lavavam a
~Sérgio Capparelli
alma. Alguns liam mais, outros menos. Mas Dona
Sofia não tinha palavras para
expressar sua alegria ao saber que
todos liam os poemas, voltavam a ler,
mostravam para parentes e amigos.
Alguns relembravam versos que
haviam decorado na juventude,
muitos reliam livros esquecidos nas
prateleiras, outros ensaiavam colocar
no papel seus sentimentos mais
profundos.

— Engraçado, estive pensando... A


senhora sempre manda vários cartões,
mas eu não me lembro de lhe trazer uma única correspondência... Aliás, só trago
contas.

— Realmente, já faz muito tempo que recebi uma carta.

— E por que continua mandando cartões?

— Eu faço isso porque gosto, Seu Ananias. Não espero respostas.

— E nunca se cansa de escrever?

— Não, nunca me canso. Principalmente agora, sabendo que todos os


moradores passaram a gostar de poesias tenho de continuar, pois sei que em
alguma casa vai ter alguém esperando um versinho. Essa sua notícia foi uma ótima
correspondência.

ntes que as sombras das montanhas caíssem sobre a cidade no fim de


T mais um dia de sol, Seu Ananias se despediu, montou em sua bicicleta
e respirou fundo, como alguém que vê antecipadamente o que teria de fazer.

Mais uma vez, quando o alvor da aurora surgiu no céu, Seu Ananias começou a
percorrer a cidade de casa em casa. Mas não entregava cartas. A cada morador ele
contava o quanto tinha aprendido com Dona Sofia e como aquela senhora havia
mudado aos poucos a vida da pequena cidade, sem ninguém perceber. Um por um,
todos foram tomando consciência do grande presente que haviam recebido.

X desde aquele dia, a alegria tomou conta de Dona Sofia, pois Seu
Ananias, além das contas, passou a levar cartas de muitos moradores
da cidade; alguns passaram a visitá-la lá em cima, no alto da colina.

Algo também havia mudado em Seu Ananias. Ele melhorou a caligrafia e hoje,
quem diria, escreve poesias... para o mundo, para a vida, para Dona Sofia.

No vaso a flor sorri,


Cortinas dançam,
Tudo é vida na sala.

Só o abajur se cala,
Imóvel e sisudo.

Mas quando acaba o dia


E a sala silencia,
O abajur vira flor.

E faz da noite
Uma explosão de cor.

~Maria Dinorah
André Neves
A caligrafia de D. Sofia
São Paulo (SP) : Paulinas, 2019

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