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Oficina de poesia

carlito azevedo

fev/mar – 2023
Stanley Kunitz

Denise Levertov
Peter Handke

Shinjiro Kurahara
Alice Notley

Emily Dickinson
Alice Notley
(EUA, Arizona, 1945)

Culture of one
Maria construía coisas no barranco: ela construiu sua vida, com certeza, mais
do que praticamente qualquer outra pessoa o fez, e ela escrevia coisas em
papéis descartados no lixo, criava figuras na madeira, na pedra, em cordas, em
coisas queimadas e tudo o mais. As figuras realmente não se pareciam muito
com ninguém, talvez um pouco com ela, e os cachorros tinham a mesma cor
de tudo, com focinho de lobo, digo, coiote.
De vez em quando alguma criança colocava fogo em seu casebre, enquanto
ela saía para procurar por comida. Então suas obras, escritas ou esculpidas
em qualquer material, eram queimadas. Ela recomeçava tudo. Ela sempre se
lembrava de como fazer.
De onde vem a cultura? Vem dos materiais com que você faz algo.
Quando ela fez um tubarão de madeira podre, pensei que era apenas um peixe.
Uma carpa, provavelmente; mas ela o chamou de tubarão. Ela colocou uma
pequena mulher na boca do tubarão, mas não era ela; e não era eu, não importa
o que eu diga. Era a madeira gritando. E eu era só uma mulher, não, não era
nem uma mulher.
O que você vai fazer quando eles incendiarem novamente o seu barraco?
Não importa, ainda vai ser maravilhoso aqui.

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Stanley Kunitz
(EUA, Massachusetts, 1905-Nova York, 2006)

O retrato
A minha mãe nunca perdoou o meu pai
por ter se suicidado,
especialmente num momento tão inoportuno
e num parque público,
naquela primavera
em que me preparava para nascer.
Ela fechou o seu nome
no seu armário mais fundo
e não o quis deixar sair,
embora eu pudesse ouvi-lo a bater.
Quando desci do sótão
com o retrato a pastel na minha mão
daquele estranho de lábios grandes
com um intrépido bigode
e equilibrados olhos castanhos escuros,
ela rasgou-o em pedaços
sem dizer uma palavra
e esbofeteou-me com força.
Aos sessenta e quatro anos
ainda consigo sentir a minha bochecha
ardendo.

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Jennifer Hill
(EUA)

Entrevista
Ele pergunta:
Qual o estado
da poesia hoje?
Tenho vontade de dizer
– Utah.
Em vez, abro
as badaladas de minha voz
viva e crescente
como uma flor,
ou para ser mais precisa
como um vírus.

Ele pergunta:
do que trata sua poesia?
Tenho ganas de responder
de ursos – desses grandes
ursos cinzentos que pela noite
penetram pesados em tua cabana
enquanto dormes
sob tua úmida respiração...
Ursos que podem com um golpe
arrancar-te e comer-te
o coração.

Ele diz:
Parece que você é
uma poeta da natureza.
E eu digo que amo
os grandes espaços abertos,
mas não o verde.
Amo a desolação,
o vazio,
o som um instante antes
do som do sino.
Ele tartamudeia,
eu engasgo
repetindo sua pergunta –

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e vou me transformando em laminado
celofane
num buraco
uma janela.

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Denise Levertov
(EUA)

A terceira dimensão
Quem acreditaria em mim
se eu dissesse: “Eles me agarraram e

me abriram
do crânio à entreperna, e

ainda estou viva, e


passeio satisfeita com o

o sol e com toda


a generosidade do mundo.” A sinceridade

não é tão simples:


uma sinceridade simples

não passa de mentira.


Por acaso as árvores

não ocultam o vento


entre suas folhas e

murmuram?
A terceira dimensão

se esconde.
Se os trabalhadores da rua

partem as pedras,
as pedras são pedras:

mas a mim o amor


me partiu em duas

e estou
viva para

contar a história – mas não


sinceramente:

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as palavras
transformam a história. Que seja

– aqui sob o doce sol –


uma ficção, enquanto eu

respiro,
e mudo o ritmo.

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Peter Handke

Comparações
Não devemos descartar assim de cara que
o vigia do estacionamento possa ser
tão infeliz quanto o cantor da moda,
o professor da academia e o governante:
mas, pela regra geral, o cantor da moda
é mais infeliz que o vigia do estacionamento,
e o professor da academia é mais infeliz que o cantor da moda;
e a probabilidade de que o governante
seja o mais infeliz de todos raia a certeza.
Igualmente não se deve descartar totalmente
que a camisa de domingo do agricultor tenha manga curta,
bem como a camisa cotidiana do prefeito de Mississipi,
a camisa de passeio do cidadão da Rodésia,
e a camisa que veste ao sair do trabalho
o cara que matou alguém num linchamento,
mas parece certo que a camisa cotidiana do prefeito
terá as mangas mais curtas que a
camisa de domingo do agricultor,
e que a camisa de passeio do cidadão da
Rodésia terá as mangas mais curtas
que a camisa cotidiana do prefeito
e é indiscutível que a camisa que veste
ao sair do trabalho o cara que matou alguém
num linchamento tem as mangas mais curtas de todas.
E, igualmente, a cor dos veículos da empresa de correios é amarela,
como a cor dos veículos da central do leite,
e a cor dos veículos da Landstrasse aos domingos pela tarde
e a cor dos veículos nos filmes de Hitchcock:
mas em novecentos e noventa e nove casos a cada mil,
os veículos da central do leite são mais amarelos que os veículos da
empresa de correios, e os veículos da Landstrasse aos domingos pela tarde
são mais amarelos que os veículos da central do leite,
e mil entre mil casos, os veículos dos filmes de
Hitchcock apresentam o amarelo mais berrante de todos.
E, finalmente, sem dúvida os guias turísticos podem ter boa vontade,
mas os seguranças de um estádio de futebol têm, certamente, mais boa
vontade que os guias turísticos, e as partes contratantes
têm mais boa vontade que os guias turísticos,
e os pecadores arrependidos têm, apesar de tudo, mais boa vontade

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que as partes contratantes, e todos os mortos tinham, ao menos,
mais boa vontade que qualquer pecador arrependido;
mas aquele que anseia pelo poder tem, indubitavelmente,
mais boa vontade que todos.

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Tomas Tranströmer
(Suécia, Estocolmo, 15 abr. 1931 – Estocolmo, 26 mar. 2015)

Sem título
Também no estado do bem-estar
existe a mulher sozinha
que bate em seu apartamento
com o martelo de suas lágrimas.

E aninhado em seu casaco


um homem no café
que tritura e tritura
a mesma palavra no pilão de sua boca.

E os meninos do reformatório
que se tatuam mutuamente
para marcar
que pertencem a outra tribo.

A presença da beleza
pode ser perigosa.
A ausência da beleza
é mortal.

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Shinjiro Kurahara
(Japão, 4 set. 1899 – 16 mar. 1965)

Uma raposa
(uma raposa)

Quando cai a neve


sobre a espádua da raposa silvestre
ela se converte numa pálida sombra azul.
De noite sob essa tempestade de neve
tal sombra azul desce
veloz e sem desvios
da montanha,
dando volta aos cercos de uma aldeia congelada,
movendo-se ao redor dos sonhos laranja das pessoas.

Tal sombra azul, antes de que se dêem conta,


está sentada frente ao curral de galinhas.

Antes do amanhecer de fevereiro,


no esplendor de um manto damasco de neve
a raposa regressa às montanhas.
Está prenha.

(um raposo)

No crepúsculo do inverno na montanha silenciosa


um raposo solitário, semelhante a um fino naco de cortiça,
sobe
por uma árvore nua, trifurcada.

Paira no ar um forte cheiro a ferro,


que parece bastante com o invisível caçador
que sobe as escarpas.
Ele reconhece, também, o som de seus passos:
sujo desejo.

O raposo desce rápido da árvore,


e desaparece nas quatro dimensões da desolação,
onde a raposa cor-de-lua o espera.

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(uma raposa cor de crepúsculo)

Quando a raposa que desce da montanha


cruza uma ponte de argila numa aldeia
o ar todo ao redor se põe cor de raposa.
No crepúsculo da luminescência
a raposa adquire uma cor crepúsculo.
Os juncos sussurram.
O vento sopra desde a aldeia.
A raposa se converte numa fina tira de sombra,
visível ou invisível,
correndo ruma à aldeia.
Deste modo
a raposa mais uma vez captura uma galinha branca.

(a raposa)

A raposa sabe
que não há ninguém
apenas ela na ensolarada
terra seca

por isso
é uma parte e um todo
desse campo

sabe
que chega a ser vento
como capim seco
e até num raio de luz se pode
converter
como se fosse e não fosse
na terra seca cor de raposa
uma existência de sombra

Sabe
correr como o vento
mais rápido que a luz

Por isso
pensa que
é invisível
para todos

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algo incorpórea
enquanto pensa
se desloca
e apenas
o pensamento corre

Inadvertidamente
em pleno dia
a luz
se deixa ver
sobre a terra seca

(uma pegada)

Há muito tempo
uma raposa correu ao longo da margem argilosa de um rio.
Depois de um intervalo de dez mil anos
a pegada
tornada fóssil
permanece.
Olha e verás o que estava pensando a raposa enquanto
corria.

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Czeslaw Milosz
(Polônia)

Quando há lua
Quando há lua e as mulheres passeiam em seus vestidos floridos
me assombram seus olhos, suas pestanas e toda a engenharia do universo.
Parece-me que de tão grande e mútua inclinação
poderia surgir por fim a verdade definitiva.

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dois quartos, dois poemas
1. Wallace Stevens
(Pensilvânia, 2 out. 1879 — Hartford, 2 ago. 1955)

O quarto cinza
Embora você esteja nesse quarto que é cinza
Exceto pelo prata
Do papel-de-arroz
E roce
O vestido pálido branco;
Ou erga
Uma das pérolas verdes
De seu colar
Apenas para deixá-la cair;
Ou mire o leque
Estampado com os galhos vermelhos do salgueiro;
Ou ainda, com um dedo,
Mova a folha no vaso—
A folha que caiu dos galhos da forsítia
A seu lado...
O que é tudo isso?
Eu sei quão furioso bate seu coração.

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2. Emily Dickinson
(Amherst, 10 dez. 1830 – 15 mai. 1886)

O Elísio é tão longe quanto


Um quarto aqui ao lado,
Se um amigo nele espera –
Felicidade ou Mau Fado.

Que força possui a Alma


Que impávida suporta
O som de um passo que chega –
E o abrir de uma porta.

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oficina
Cleo Vaz

gado de cobre
polir o gado de cobre
olhar o sol batendo sobre
o casco artificial e brilhante
soprar forte lá dentro dos seus cornos
guerreiros
dar-lhe más notícias.
dá de ombros
come o esplendor da grama

ainda estamos em 1956


o tempo é de custoso suicídio
enquanto ela fica cada vez mais voraz
eu viro as páginas dos seus poemas
brilhantes que explodem a luz
adivinhando o seu destino de deusa

depois chegam as mulheres


de touca branca e asas
e as fabulosas estrelas menores
nos tornam reais
a terra é nossa caça
até que pela flexão de gêneros
a fêmea exiba a sua língua de boi morto

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Lorena Grisi

sabe aquele filme


em que as irmãs vestem blusas vermelhas
o pai general a mãe deprimida
a morte sempre à espreita
eu tenho fotos em que meus olhos
parecem muito os da protagonista
do meu ponto de vista
se dédalo não tivesse arquitetado um labirinto
nos subterrâneos
se o monstro ficasse visível
fariam mais sentido as histórias contadas de pai para filha
histórias sobre serpentes sobre cães devoradores
no filme
a mãe da menina pede que ela jogue fora
um veneno perigosíssimo
cuja dose poderia matar um elefante
a criança guarda o veneno
para quem sabe conseguir
matar o pai
em algum momento
é exatamente o que eu faria
uma mulher não pode se desfazer dos venenos
nem pode ser inábil em contorcionismo
depois é descrever o céu e
ler sobre a revolução das esferas celestes
a teoria não é a natureza
mas um cavalo pode girar incansavelmente
em torno de uma árvore
sem que eu me desestabilize
é assim que morrem os mitos
mil cavalos girando em torno de uma árvore
eu criança resoluta com uma lata sagrada de veneno
o que herdamos de nossos ancestrais
latinhas fotografias dívidas histórias
mal contadas péssimas lembranças o entendimento
as avós são violentas quando tristes
nunca tiveram cavalos
no filme
a menina herda do pai uma arma
calibre 38

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da mãe a lata de veneno
passei mais de uma hora e meia
confundindo geraldine chaplin com charlotte rampling
eu sou tão boa com os nomes com as datas
com os signos que não servem para nada
a memória é uma caixa de anéis de labradorita
num quarto muito escuro debaixo de um céu muito azul
com incontáveis esferas celestes
eu já conhecia a história de ana
antes de ver o filme
eu poderia ter escrito a história dela em qualquer papel
com qualquer caneta
as madrugadas sem sono descendo devagar as escadas
o mesmo cuidado em lavar e organizar os copos
descobrindo que para haver literatura
basta um corvo e um bode expiatório

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Maria Ignez Barbosa

o triangulo da tristeza apagou-se no botox


ficou o que antes a ruga prenunciava
o não saber dos caminhos percorridos
dentro ou fora de seu corpo
num desenho entre parênteses

sequer daquele
sempre o mesmo
sonho recorrente hoje se lembra
embora tente
em busca do que explique
o que a rota percorrida
prometeu
ou transformou
em bruta dura
outra realidade

teria atravessado corpo/mente


partido sem deixar atras de si qualquer alerta
algum aviso

pois hoje
um olho chora
o outro indaga
mas nenhum
mais se fecha
como antes
tentando filmar dormindo
as fantasias da criança

fev 2023

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Christina Autran

o sol volta a iluminar montanhas


aos treze anos
cega

coloca-se uma faca


na garganta
(eu diria)

aos poucos
a realidade
a rotina
o estudo
a pandemia
a bengala
o controle
temerário
do chão
o medo

expulsa do agora?

sou o Café
labrador preto
ano e meio de idade
nasci para
ser cão guia
conheci Maria
na instituição
muitos carinhos depois
ensino Maria
a mirar para o alto
e que não lhe sobre
temor sobre o cotidiano

Maria e Café
juntos
inseridos no rumor universal
Sílvia Saes

Rubro tambor
No céu borbulham vermelhas nuvens espessas
borbulham

A devastação do amor

O ódio explode em seu centro


O antes explode no depois

Deste vermelho motor


Neste vermelho vetor

Explode o último voo

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