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Ah, se não fosse McLuhan!...

Irene Machado
Universidade de São Paulo

Resumo
Exame das possibilidades interpretativas do pensamento de Marshall McLuhan no sentido de propor uma
semiótica das mediações. Embora tenha analisado os meios no interior da cultura e dos seus instrumentos de
produção de signos e da significação, McLuhan não operou diretamente com o instrumental teórico da
semiótica. No entanto, sua concepção de linguagem e de código, como sínteses estruturais de efeitos,
reconfigura processos e ambientes em semioses sociais e histórico-culturais.
Palavras chave semiose, mediações, entretenimento, efeitos, códigos, linguagem

INTRODUÇÃO

A noção de extensão, articulada às noções de meios como tradutores e meio como


mensagem, constituem a tríade a partir da qual se constituiu a matriz conceitual das
polêmicas teses de Marshall McLuhan (1911-1980). É para ela que se voltam aqueles que
estão comprometidos com o movimento de revisitação das teses revolucionárias do mestre
canadense. A justificativa dessa retomada não é uma causa menos nobre: trata-se da
necessidade de acompanhar a redefinição dos meios de comunicação face às radicais
transformações da tecnocultura, particularmente no que se refere à desarticulação das
«massas» e às transformações no processo de gestão do conhecimento. McLuhan escreve
um importante capítulo na história dos meios de comunicação na cultura humana ao
empreender, sobretudo, duas ações: (1) considerar as transformações do alfabeto fonético e
a conseqüente modificação da cultura oral, audiotátil, em ambiente sensorial de contatos
audiovisuais; (2) entender o potencial transformador da eletricidade em códigos de sínteses
estruturais, geradores de linguagem e efeitos de sentido.
A hipótese elementar de seus estudos – a idéia de que os meios de comunicação,
cada um dentro nos limites de suas codificações, operam modificações no modo de
perceber o mundo e, por conseguinte, de produzir linguagem – conjuga histórias
transversalizadas da cultura e, ao fazê-lo, cria ambientes. Quer dizer, o mundo das
transformações elétricas elabora codificações que levam a uma configuração cultural áudio-
tátil próxima dos códigos culturais da oralidade distanciados, portanto, dos códigos da

1
visualidade alfabética, da imprensa, do livro e da leitura. A história dos meios, radicalmente
comprometida com as transformações culturais a partir da interação entre-meios, nos levou
a reconhecer as descobertas de McLuhan como fundamentais para a compreensão da
semiose em contexto cultural. Nesta história, os grandes eventos são encontros dialógicos
de transformação que resultam na produção de informação nova. Um novo meio surge
como conteúdo para o outro e modifica o ambiente onde a transformação acontece. Esta é a
história ambiental das mensagens que interessa para a história da cultura. Nela o meio em si
não é o agente da transformação, mas sim a interação dialógica provocado pela semiose dos
códigos culturais. É o que se pode ler nas palavras de McLuhan: “o fato de uma coisa
seguir-se a outra não significa nada. A simples sucessão não conduz a nada, a não ser à
mudança. Assim a eletricidade viria a causar a maior das revoluções, ao liqüidar a
seqüência e tornar as coisas simultâneas (McLuhan, 1971: 22-3). Alfabeto e eletricidade
são, pois, veículos das mudanças que introduziram transformações históricas da cultura.
Sem dúvida alguma a valorização de transformações culturais a partir do código de
sínteses e da linguagem é um ponto de partida fundamental para se pensar uma «semiótica
das mediações». A trajetória intelectual de McLuhan é igualmente significativa para isso.
Não só avançou a compreensão da história das transformações culturais pelos meios de
comunicação, graças aos estudos de seu mestre Harold Innis, como também buscou na
Retórica, desde Aristóteles, e na literatura, conhecimentos sobre configurações de
processos ou ações produtoras de efeitos nos indivíduos e seus ambientes culturais. Nesse
caso, a mediação que se qualifica aqui como semiótica se reporta a esta ação
transformadora pela linguagem. Em sua tese de doutorado de 1944, The Place of Thomas
Nashe in the Learning of His Time (O lugar de Thomas Nashe no ensino de seu tempo),
percorre a tradição dos escritores renascentistas, cujo estilo aforístico é precursor da poesia
metafísica seiscentista, e realiza um estudo comparado da evolução das três artes liberais:
gramática, dialética e retórica1. A concepção de linguagem mantém um vínculo com o
preceito retórico, como se pode ler na definição: “linguagem é metáfora no sentido que não
só armazena como transporta ou traduz a experiência de um modo para outro” (McLuhan,

1
Na tradição dos estudos medievais e renascentistas, as chamadas artes liberais eram constituídas por setes
disciplinas que procuravam, assim, cobrir todas as áreas do saber humano. Para isso, dividiam-se em dois
grupos. No Trivium situavam-se os estudos de Gramática, Retórica e Dialética (Lógica); no Quadrivium,
Aritmética, Música, Geometria e Astronomia.

2
1977: 22). Metáfora não se limita ao tropo poético, mas envolve o mecanismo de tradução
de um meio em outro. Com base neste mecanismo, o conceito de linguagem nos meios é
modificado em sua estrutura: em vez de articulação de dois domínios, passa-se a operar a
conjugação de elementos separados. A articulação orgânica passa a coexistir com a síntese
de processos diferenciados como, por exemplo, da tecnologia elétrica2.
Vale esclarecer, contudo, que, embora tenha analisado os meios no interior da
cultura e dos seus instrumentos de produção de signos e da significação – da chamada
cultura do entretenimento produzida por meios tecnológicos como a televisão e o cinema e
a publicidade, – McLuhan não operou diretamente com o instrumental teórico da semiótica.
Esta palavra não consta de seu vocabulário. E, no entanto, suas observações e análises são
fundamentais para a compreensão da semiose operada nas transformações culturais quando
da inserção e desenvolvimento dos meios de comunicação, um a partir do outro,
complementarmente. Esta é a mediação elementar. Acredito que as contribuições de
McLuhan se limitariam apenas à história da cultura se suas análises tivessem se restringido
às mudanças nos processos sociais; contudo, a sobrevalorização dos códigos culturais como
instância de mudanças ambientais no entendimento sobre o mundo, bem como de sua
expressão e conseqüente modificação, me levam a estender sua contribuição para a
semiótica das mediações. Entendo que as transformações observadas nos meios são de
natureza semiótica: variação de linguagem, constituição de códigos, processos de tradução
tecnológica e sensório-cognitiva, dinâmica cultural a partir das experiências com meios.
A mediação pela linguagem, aqui considerada em sua natureza semiótica, nos levou
não apenas à retórica enquanto procedimento discursivo como também ao encontro de uma
vertente fundamental dos estudos de McLuhan: o compromisso pedagógico – que é,
igualmente, uma premissa dos estudos antigos sobre a educação da linguagem. Ora,
McLuhan lança-se nos estudo dos meios com tanto afinco porque era, sobretudo, professor.
E, como tal, se sentiu desafiado a entender o ambiente cultural que seus alunos lhe traziam
por meio da linguagem. Sua história, interesse, inteligência o levou a juntar os pedaços do
quebra-cabeças que nos ofereceu sob a forma de uma história da cultura. A semiótica das
mediações pela linguagem, que derivamos da obra do mestre da Escola de Toronto, nos

2
O conceito lingüístico de linguagem diz respeito ao processo de dupla articulação, isto é, organização da
linguagem num conjunto integrado por dois domínios: um constituído por elementos destituídos de
significação (os fonemas); outro constituído pelas formas significativas (a morfologia e a sintaxe).

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coloca, contudo, diante do desafio: leitura do mundo pela linguagem dos meios de
comunicação. A tentativa de contribuição nesse sentido orienta-se pela compreensão da
semiose dos sistemas culturais e dos ambientes. No primeiro, trata-se de examinar a
linguagem elétrica dos meios; no segundo, da análise das transformações que a percepção
introduz na mente quando esta entra num estado de entretenimento. É o que se propõe
considerar neste artigo.
O ponto de vista semiótico elabora, pois, uma compreensão dos meios em suas
mediações, bem como de seus ambientes comunicacionais que incidem sobre processos
cognitivos. A compreensão dos ambientes leva a uma revisão das idéias de extensão,
tradução, hibridização, o que implica uma compreensão mais aprofundada do que McLuhan
entendia por extensão. Se extensão fosse simplesmente prolongamento de um único órgão,
como, então, entender ambiente como um «nicho ecológico» em que indivíduos,
submetidos aos estímulos dos signos em circulação em espaços, são levados às mais
diferentes formas de interação? Como entender a semiose da mediação entre meios
definidos pelos limites de suas codificações?
Quando McLuhan descobriu que os meios de comunicação eram formas de
entretenimento não muito diferentes das formas de conhecimento, suas formulações passam
a soar como nonsense, como provocação. Também como provocações foram classificados
seus textos, como se nada representassem retoricamente na história do discurso. Daqueles
que encerram a cultura nas formas enobrecidas da expressão cultural, McLuhan recebe
desprezo. De quem entende cultura como encontro dialógico de formas culturais no
ambiente natural da miscigenação das espécies, McLuhan tem merecido estudos cada vez
mais qualificados. Talvez seja desnecessário dizer para qual lado se encaminha este estudo.

ENTRETENIMENTO COMO MEDITAÇÃO PELO (COM) TATO

O professor de literatura inglesa Marshall McLuhan contava 52 anos e ensinava na


Universidade de Toronto no Canadá, onde nascera, quando começou a explorar o ambiente
tecnológico para compreender o funcionamento dos meios de comunicação na cultura. The
Mechanical Bride (A noiva mecânica) é seu primeiro livro. Lançado em 1961, tornou-se
uma publicação histórica ao reunir, com ineditismo, análises sobre os anúncios publicitários
a partir das observações sobre as mudanças de percepção trazidas pelas formas culturais

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introduzidas pela eletricidade na cultura. Tais leituras, McLuhan oferece ao leitor como
«entretenimento». Infeliz daquele que pensar que o livro é uma mera reunião de
comentários jocosos, soltos, mera distração ou veleidade sem compromisso teórico-
conceitual ou histórico-argumentativo. A noiva mecânica foi o livro que McLuhan ofereceu
aos leitores como forma de entretenimento, uma vez que nele apresentava suas explorações
conceituais sobre os anúncios impressos, de televisão, de rádio, enfim, do ambiente cultural
criado pelos meios de comunicação. Trata-se, pois, de um livro de descobertas, não de
conclusões (McLuhan & Zingrone 1998: 37). Na verdade, suas análises trazem à tona
posicionamentos esclarecedores sobre as pressões sociais e psicológicas que a imprensa, o
rádio, o filme e os anúncios geram nos indivíduos que interagem nos ambientes
constituídos por esses meios. Trata-se de um envolvimento tamanho que se torna
impossível manter-se imune.
O que McLuhan realiza é uma leitura atenta e inovadora dos produtos do
entretenimento. E aqui é urgente entender os termos desta equação que conjuga leitura e
entretenimento; percepção e ambiente; cognição e divertimento. Afinal, do que estamos
falando?
Ainda que seja, de fato, uma forma de distração e divertimento, McLuhan entende o
ato de entreter-se como uma elevação do espírito no auge da concentração. Este modo de
operação do pensamento McLuhan encontrou no conto de Edgard Allan Poe (Klanten &
Hellige, 2006: 163-187) «A Descent into the Maelstrom» («Uma descida no Maelstrom»).
Nele um pescador narra a um desconhecido a terrível experiência que vivera num dia em
que uma imprevisível tempestade despertou a fúria do redemoinho Strom, na costa da
Noruega, engolindo todos os barcos e navios que navegavam pela região. Em meio ao
pânico e necessidade de lutar para a sobrevivência, o pescador conseguiu substituir o
desespero pelo exame cuidadoso do fenômeno que estava prestes a transportá-lo do “tempo
para a eternidade” (sic)3.

3
Esta frase literária do conto de Poe talvez tenha sido inspiração para o título do livro Entre o tempo e a
eternidade, do Nobel de Química Iliá Prigogine em parceria com Isabelle Stengers. Trata-se de uma obra na
qual afirmam a necessidade de a ciência enfrentar o diálogo experimental entre natureza e cultura sem
dicotomias. Uma ciência que procura entender a irreversibilidade do tempo e, conseqüentemente, dos
processos dissipativos, das probabilidades, da incerteza.

5
As I felt the sickening sweep of the descend, I had instinctively tightened my hold upon the barrel,
and closed my eyes. For some seconds I dared not open them – while I expected instant destruction,
and wondered that I was not already in my death-struggles with the water. But moment after moment
elapsed. I still lived. The sense of falling had ceased; and the motion of the vessel seemed much as it
had been before, while in the belt of foam, with the exception that she now lay more along. I took
courage, and looked once again upon the scene.
Never shall I forget the sensations of awe, horror, and admiration with which I gazed about me. The
boat appeared to be hanging, as if by magic, midway down, upon the interior surface of a funnel vast
in circumference, prodigious in depth, and whose perfectly smooth sides might have been mistaken
for ebony, but for the bewildering rapidity with which they spun around, and for the gleaming and
ghastly radiance they shot forth, as the rays of the full moon, from that circular rift amid the clouds
which I have already described, streamed in a flood of golden glory along the black walls, and far
away down into the inmost recesses of the abyss.
(…)
The rays of the moon seemed to search the very bottom of the profound gulf; but still I could make
out nothing distinctly, on account of a thick mist in which everything there was enveloped, and over
which there hung a magnificent rainbow, like that narrow and tottering bridge which Mussulmen say
is the only pathway between Time and Eternity. This mist, or spray , was no doubt occasioned by the
clashing of the great walls of the funnel, as they all met together at the bottom – but the yell that
went up to the Heavens from out of that mist, I dare not attempt to describe.

Fuyuki apud Klanten & Hellige, 2006: 180

(…)
Looking about me upon the wise waste of liquid ebony on which we were thus borne, I perceived
that our boat was not the only object in the embrace of the whirl. Both above and below us were
visible fragments of vessels, large masses of building timber and trunks of trees, with many smaller
articles, such as pieces of house furniture, broken boxes, barrels and staves. I have already described
the unnatural curiosity which had taken the place of my original terrors. It appeared to grow upon me
as I drew nearer and nearer to my dreadful doom. I now began to watch, with a strange interest, the
numerous things that floated in our company. I must have been delirious – for I even sought

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amusement in speculating upon the relative velocities of their several descents toward the foam
below. ‘This fir tree’, I found myself at one time saying, ‘will certainly be the next thing that takes
the awful plunge and disappears’, - and then I disappointed to find that the wreck of a Dutch
merchant ship overtook it and went down before. At length, after making several guesses of this
nature, and being deceived in all – this fact – the fact of my invariable miscalculation – set me upon a
train of reflection that made my limbs again tremble, and my heart beat heavily once more.

Fuyuki apud Klanten & Hellige, 2006: 183

***

Enquanto sofria o efeito dolorosamente nauseante da descida, aferrara-me ao barril com mais
energia, e tinha fechado os olhos. Durante alguns segundos, não me atrevi a abri-los, aguardando
uma destruição instantânea e admirando-me por não estar já entregue às angústias supremas da
imersão. Os segundos, porém, escoavam-se; vivia ainda. A sensação de queda cessara, e o
movimento atual do navio parecia-me muito com o anterior quando nos encontrávamos na cintura de
espuma, à exceção de que agora nos inclinávamos mais. Recuperei a coragem e encarei mais uma
vez o quadro.
Jamais olvidarei as sensações de pavor, de horror e de admiração que senti ao lançar os olhos em
meu redor. O barco parecia suspenso como por magia, a meio caminho de sua queda, na superfície
interior de um funil de larga circunferência, de uma profundidade prodigiosa, e cujas paredes
admiravelmente poderiam ser confundidas com ébano, não fosse a velocidade estonteante com que
giravam e a claridade resplandecente e horrível que refletiam sob raios da lua cheia que, desse buraco
circular que já descrevi, brotavam num rio de ouro e de esplendor ao longo dos muros negros e
penetravam até as profundezas mais íntimas do abismo.
(...)
“Os raios da lua pareciam buscar o fundo estreito do abismo imenso; contudo, eu nada podia
distinguir nitidamente, devido a um nevoeiro espesso que envolvia todas as coisas, e sobre o qual
pairava um magnífico arco-íris semelhante àquele ponto estreito e vacilante que os muçulmanos
afirmam ser a única passagem entre o Tempo e a Eternidade. Esse nevoeiro ou essa espuma era, sem
dúvida, ocasionado pelo conflito das grandes paredes do funil, quando se encontravam e
despedaçavam no fundo; quanto ao bramido que subia do nevoeiro para o céu, não tentarei descrevê-
lo.
(...)
Olhei ao redor, para o imenso deserto de ébano que nos transportava, e vi que a nossa barcaça não
era o único objeto que caíra no abraço do turbilhão. Acima e abaixo de nós, viam-se destroços de

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navios, grandes pedaços de vigamento, troncos de árvores, assim como bom número de coisas
menores, tais como peças de mobiliário, baús partidos, barris e aduelas. Já descrevi a curiosidade
sobrenatural que havia substituído os meus terrores primitivos. Pareceu-me que aumentava à medida
que me aproximava do meu terrível destino. Comecei então a espiar com um interesse estranho os
numerosos objetos que flutuavam em nossa companhia. Eu devia estar delirando porque até
encontrava uma espécie de divertimento no calcular as velocidades relativas da descida deles para o
turbilhão de espuma. ‘Este abeto’, surpreendi-me a dizer uma vez, ‘será certamente a primeira coisa
a fazer o tremendo mergulho e a desaparecer’. E senti-me muito desapontado ao ver que uma
embarcação de comércio holandesa tomara a dianteira e fora a primeira a engolfar-se. Com o tempo,
depois de ter feito algumas conjecturas dessa natureza e de haver sempre errado, este fato, o fato do
meu engano invariável, lançou-se numa ordem de reflexões que voltaram a fazer tremer-me os
membros e bater o coração ainda mais pesadamente (Poe, 1978: 394-5).

Este é o cenário do divertimento (amusement) que ocupou a mente do personagem-


náufrago de um barco no meio do turbilhão. As conjecturas (guesses) que tomaram conta
de sua mente lhe pareceram instantâneos de um delírio assombroso: como, num momento
como esse, ele poderia encontrar diversão para seu pensamento tentando imaginar qual
seria a seqüência de descida dos escombros e barcos para o interior do torvelino?
(McLuhan & Zingrone 1998: 36). Como a tempestade levou-o a um estado de reflexão, em
que o entretenimento de sua mente o levou a ser um espectador de sua própria tragédia? O
certo é que a descarga elétrica convulsionou as águas e uma coisa foi levando a outra. Na
composição gráfica que ilustra o conto, a figura humana, as árvores, o barco, tudo se torna
fluido e conjugado num mesmo ambiente liqüido, dinâmico, contínuo.
Para McLuhan, a densidade e fluidez do movimento que tomou conta da paisagem,
do corpo e da mente do personagem revelou-lhe uma outra nascente do sentido de
entretenimento: forma diferenciada de raciocínio que especula sobre a experiência e a
transporta para o campo das probabilidades, das abduções e das descobertas. Trata-se de
uma “meditação pelo tato”, observada em outros estudos (McLuhan, 1977: 32), uma
meditação que nasce de efeitos em ambientes e neles se propagam. A informação envolve o
corpo e a mente por todos os sentidos e pelo conjunto das coordenadas espaciais e
temporais, daí sua tatilidade4. A meditação pelo tato resultante do entretenimento apresenta

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Há que se considerar, igualmente, dois conjuntos de relações na configuração do entretenimento como
conceito do divertimento. Em primeiro lugar, o divertimento é gênero discursivo de raízes retóricas que, no
teatro, equivalia ao entremez que era realizado entre os atos em peças de mistério. Em segundo, é peça
musical de movimentos rápidos e alegres. Os dois contextos contribuem para compreender o divertimento no
conto de Poe, sobretudo se se considerar que ele é narrado entre o turbilhão do redemoinho e a calmaria que
livrou o pescador da morte. É quase um entremez musical a agitar o espetáculo do pensamento com uma ação
corpórea complementar. Um teatro de agitação.

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uma visão do espaço não mais por coordenadas, mas pela dinâmica acústica da
circularidade de movimentos envolventes, espiralados, desenhados pelo próprio
redemoinho cujas linhas de força não forjam um ponto de fuga. Tanto assim, que
analisando as probabilidades que o movimento dimensionava, o pescador foi conduzindo
sua ação, deslocando-se do abismo que o levaria para a eternidade.

Os meios são as massagens (McLuhan & Fiore, 1969: 178-9).

Na montagem fotográfica elaborada para a tradução do conceito que McLuhan


deriva do conto de Poe, Quentin Fiore joga com uma metáfora visual em dois níveis: num,
a o mundo referencial da água; no outro, o mundo sígnico da figura humana sobre a
prancha de surf, de terno, gravata e pasta em punho, completamente deslocada naquele
ambiente aquático impulsionado pelo vento e, paradoxalmente, em composição com ele. É
exatamente este deslocamento aponta para um outro sentido, numa outra direção.
«Entretenimento» é assim um efeito de sentido que opera um modo cognitivo de
perceber as transformações da experiência podendo ser, por conseguinte, observado em
diferentes contextos. Poe observou nas situações cotidianas, na vida prosaica transformada

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em narrativa. McLuhan observou a vida da cultura dimensionada pelos meios de
comunicação, do alfabeto fonético às telecomunicações. Assim entendeu os meios de
comunicação como forma de entretenimento na cultura de meios. Para testar seu
entendimento, procurou observar os comportamentos culturais dos homens em contato com
formas cotidianas e prosaicas da era da eletricidade: anúncios, filmes, programas de tevê e
de rádio. Seu objetivo era refletir sobre o tipo de entretenimento que ocorre na mente das
pessoas em contato com as mensagens audiotáteis, audiovisuais e cinéticas de produções
que envolvem o homem, não pelo turbilhão do redemoinho de uma tempestade em alto
mar, mas pelo redemoinho da informação elétrica em imagens cinéticas e sonoras
projetadas em ambientes de telas e tubos. Em ambos os casos, a descarga elétrica cumpre
seu papel de mobilização sensorial de todo um ambiente.
Entretenimento é, igualmente, um modo de entender como os meios funcionam no
ambiente, isto é, como eles criam extensões dos sentidos corpóreos e os ampliam para que
possam interagir com eles. Nesse caso, os meios criam envolvimento e participação, não
envolvimento passivo, mas processos ativos que são invisíveis e fundamentais para a
compreensão dos meios, suas extensões e a semiose que estimula a percepção para o
conhecimento dos signos mobilizadores da cultura. Para McLuhan é impossível entender
qualquer mudança sócio-cultural sem conhecer o funcionamento dos meios, isto é, o modo
como eles atuam no ambiente. Para produzir «mensagem» o meio faz uma «massagem»
tátil nos modos perceptivos e nenhum ato comunicacional resulta de uma única emissão
sensorial. Por isso, o meio inclui qualquer tecnologia que cria extensões do corpo e dos
sentidos humanos, desde a roupa até o computador. O corpo é tanto espaço da
sensorialidade quanto do envolvimento tátil ambiental. A tatilidade do ambiente, contudo,
não é dimensionada pelas coordenadas espaciais, mas pela tradução do sensório. Graças à
tradução, o ambiente surge como variável relacional de um espaço dinâmico cujos agentes
são igualmente móveis. Em última análise, o ambiente é o operador de sínteses estruturais.
Enquanto modo de operação do raciocínio, o entretenimento produz significação.
Como se pode ler no conto de Poe, a mente torna-se espaço produtivo de idéias,
conjecturas, hipóteses cuja elaboração verbal se apresenta sob forma de um discurso
interior com possibilidade de se transformar num fluxo de consciência (stream of
consciousness, como entendera William James). Disperso, sim; gratuito, jamais. O discurso

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é analítico com relação à experiência que chega pelos olhos, ouvidos e pelo tato. Os
movimentos do redemoinho são traduzidos e transformados em elaboração mental. O
entretenimento assim concebido é uma percepção transformadora da experiência; a
tradução de um estado de coisas em outro. Esta fonte do conceito de entrenimento
dificilmente é considerada como ponto de vista epistemológico que McLuhan formula no
processo de compreensão das transformações dos meios elétricos de comunicação que
ocasionam redemoinhos imprevisíveis na cultura.
Deste modo, a tradução sensorial que entretem a mente de modo a modificar o
ponto de vista descortina um plano pluralista da experiência humana: um simples ato que
envolve um sentido se desdobra em outros domínios sensoriais. Aquilo que emana da voz
pode ser traduzido pelo som, pelos gestos, por expressões moduladas na face: o meio se
torna mensagem. Sobre isso Eric McLuhan e Frank Zingrone (1998: 13) afirmam:

a percepção da realidade depende da estrutura da informação. A forma de cada meio está associada
com uma disposição ou proporção diferente entre os sentidos que produz novas formas de
conhecimento. Tais transformações perceptivas e as novas formas de experimentar criadas pelos
meios individuais afetam o usuário independentemente do conteúdo do programa. Isto explica o
significado paradoxal de o meio é a mensagem.

A perspectiva estrutural apresenta a dimensão contextual e ambiental da tese


polêmica sobre “o meio como mensagem”. O conteúdo da mensagem é desviado para o
contexto em que a mensagem é produzida pelo meio e percebida pelo usuário que se torna,
assim, co-produtor. Os ambientes assim constituídos formam “nichos ecológicos” (Gastal,
2003: 51) em que a esfera íntima do espaço privado entra em interação com os signos em
circulação no espaço público. Não podemos esquecer que tudo isso é pensado no contexto
do entretenimento.
Esses são alguns aspectos do pensamento semiótico que McLuhan nos oferece a
partir de suas «explorações» sobre o «entretenimento», ou do envolvimento cognitivo
proporcionado pelos meios de comunicação.

OS EFEITOS COMO SÍNTESES ESTRUTURAIS EM AMBIENTES

O método comparativo de observar as transformações – uma coisa que leva a outra


– McLuhan explorou em seus estudos sobre a constelação de eventos que produziram

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transformações do mundo oral audiotátil, para o mundo alfabético e tipográfico da visão e
da leitura e deste para o mundo das sensorialidades eletrônicas. Acompanhou as
transformações que os instrumentos, criados com finalidades culturais, operam na mente.
Tudo porque a “exteriorização ou expressão de nossos sentidos, que é a linguagem e a fala,
é um instrumento que ‘tornou possível ao homem acumular experiência e conhecimento de
forma a ser fácil a sua transmissão e o máximo uso possível’” (McLuhan, 1977: 22).
Quando McLuhan formula o conceito de entretenimento como processo de
percepção, para o bem e para o mal, seu objetivo é preciso: abranger o conjunto da
sensorialidade que os meios introduzem na cultura. Para isso, centra suas análises no estudo
dos efeitos dos meios de comunicação na mente, da cultura e dos indivíduos. Longe de ser
um resultado final, o efeito é um gesto que depende do modo como acontecem as
transformações formatadas em mensagens. Sua tese «o meio é a mensagem» é, assim, “a
fonte básica dos efeitos” (McLuhan, 1971: 353). O estudo dos efeitos é uma forma de
tratar, conjuntamente, as transformações operadas pelos meios.
No entender de McLuhan, quando a sociedade passa a operar uma nova
tecnologia, não é a área de incisão desse meio aquela que sofre maior afetação, mas sim
todo o sistema onde ela está inserida. Ao considerar essa afetação, formula uma das mais
notáveis noções semióticas do efeito de sentido, sobretudo quando ele afirma: “qualquer
impacto altera a ratios de todos os sentidos” (idem, ibidem: 84), não é a sucessão o que
importa; esta em si não leva a nada. O que importa é o efeito de sentido que faz com que o
efeito do rádio, por exemplo, seja a visualidade ou o efeito da fotografia seja a audição: a
conjugação do som e da voz, num caso, e do enquadramento, em outro, é produzida de
maneira tal que o efeito surge como se fosse produzida pelos códigos que lhes são
específicos. Porque são ambientais, os efeitos operam sínteses estruturais e jamais podem
ser considerados isoladamente. Os meios audiovisuais ou auditáteis não podem ser
desmembrados sem o risco de decompor sua estrutura.
A palavra ambiente deriva “do grego perivello: golpear todos os lados ao mesmo
tempo”. Daí a processualidade ser fundamental para se caracterizar os efeitos em sua
ambiência. Ou, como afirma McLuhan, já em 1964 (apud McLuhan & Zingrone, 1995:
329).

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Uma característica primordial do ambiente é sua invisibilidade ou inconsciência. Parece um
envolvimento no processo de filogenia. Cada nova etapa de crescimento se converte em um ambiente
para todas as etapas precedentes. Porém, temos consciência tão somente das etapas precedentes ou
do conteúdo do ambiente.

Os meios não apenas criam ambientes, como também são ambientais. O som é
ambiental porque ele traduz a própria presença no espaço. A luz é ambiental porque ela
dimensiona continuidades. A eletricidade também é ambiental porque sem ela, os meios
simplesmente não existiriam. Graças à eletricidade, se desenvolveu a percepção sensorial
que envolve o conjunto do sensório, bem como tempo e espaço. Graças a ela, surgem os
meios frios, em oposição a meio quente da comunicação oral-aural-gestual e mesmo da
escrita alfabética. Os meios frios maximizam a percepção: aquilo que um meio não poder
dizer imediatamente desperta a ação de outro que o complementa. O ambiente assim
concebido é o lugar da semiose na cultura de meios onde os signos se desdobram num
continuum de complementaridade.
McLuhan concebeu a galáxia de Gutenberg para abarcar os eventos que envolveram
a transformação do mundo da cultura oral e a escrita alfabética que engloba ulterior
desdobramentos, seja na tipografia ou na imprensa. A eletricidade cria um outro ambiente
de transformações, assim como os meios informáticos de nossa contemporaneidade. À luz
dos efeitos considerados como instâncias ambientais, foi possível conceber as
transformações operadas pelos meios como estruturais.
A linha de raciocínio que parte da noção de entretenimento como efeito no sentido
para abarcar um conjunto de transformações ambientais e sensoriais surge como uma das
mais complexas contribuições de McLuhan para a semiótica das mediações. Sobretudo
porque, além da recuperação da filogenia que envolve a diversidade cultural, as
transformações abarcam de caráter ontogênico da própria linguagem mediada. Lembrando
que esta não se organiza pela dupla articulação de signos, mas pelos processos de síntese
tecnológica estruturados em efeitos contínuos e complementares. Posicionar esta linha de
raciocínio no contexto do que McLuhan formulou em seus estudos sobre televisão é um
exercício esclarecedor nesse sentido, sobretudo se se convocar para este horizonte de
reflexão a banalização dos conceitos de entretenimento e de imagem consagrados em
grande parte dos estudos sobre o meio.

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Porque considera os efeitos a dinâmica fundante dos processos culturais, bem como
das linguagens dos meios, McLuhan desenvolveu um instrumental de análise que não se
tornou fundamental apenas para a semiótica, mas também para a teoria dos meios. No
centro de suas formulações, situou os códigos culturais em duas classes que ele definiu
como quentes (de alta definição) e de frios (de baixa definição). Contrariamente aos meios
quentes como o livro, o cinema, a fotografia, os meios frios convidam a participação dos
seus interlocutores. A televisão é um meio frio e, como tal, “incentiva a criação de
estruturas em profundidade no mundo da arte e do entrenenimento criando ao mesmo
tempo um profundo envolvimento” (McLuhan, 1971: 350). O convite à participação torna o
espectador um participante ativo, “o espectador é a tela” (idem, ibidem: 351) e a tevê um
meio produtivo. O espectador precisa entreter sua mente ao completar a precariedade da
linguagem do meio, como se pode ler na formulação que se segue:

A imagem da TV, visualmente, apresenta baixo teor de informação. Ela não é uma tomada parada.
Não é fotografia em nenhum sentido – e sim o incessante contorno das coisas em formação delineado
pelo dedo perscrutador. O contorno plástico resulta da luz que atravessa e não da luz que ilumina,
formando uma imagem que tem a qualidade da escultura e do ícone, mais do que a da pintura. Três
milhões de pontos por segundo formam a imagem-chuveiro que o telespectador recebe. Destes, ele
capta algumas poucas dúzias, com as quais forma uma imagem (idem, ibidem: 351).

A noção de atravessamento dos pontos de luz, de incompletude, de mosaico plano,


bidimensional, sem a ilusão da profundidade tridimensional, cria o ambiente de
envolvimento que o espectador preenche de modo cinético e tátil (idem, ibidem: 352). A
imagem toca e aciona a interação de todos os sentidos. Aquilo que McLuhan entendeu
como tatilidade da imagem da TV é o que cria o ambiente ativo de efeitos sensoriais e
complementares, afinal, “o modo tátil de perceber é imediato, mas não é especializado”
(idem, ibidem: 376). Ao que McLuhan conclui (idem, ibidem: 378):

A televisão é menos um meio visual do que tátil-auditivo, que envolve todos os nossos sentidos em
profunda inter-relação. Para as pessoas há muito habituadas à experiência meramente visual da
tipografia e da fotografia, parece que é a sinestesia, ou profundidade tátil da experiência da TV, que
as desloca de suas atitudes correntes de passividade e desligamento.

A ambiência cultural assim concebida está longe de oferecer o meio como uma
única extensão. O que ocorre são prolongamentos e combinações de uns com os outros.
Estamos de volta ao entretenimento do pescador de Poe cujo estado de alheamento, de
mergulho nos sentidos ambientais, ilustra o que McLuhan chama de profundidade. Este é

14
um entendimento do funcionamento estrutural do meio na produção das mensagens a partir
dos códigos de sua linguagem. Este é o lugar do pensamento na abordagem que entende a
semiose como o manancial das linguagens da cultura, onde os meios desempenham papel
estruturador dos efeitos em ambientes. Os argumentos que julgam a linguagem da televisão
a partir do entretenimento, tomados como programas propulsores da passividade ideológica
dos comportamentos sociais, não tocam na questão de fundo da formulação de McLuhan.
Logo, não há porque confundir seu legado uma vez que dele ainda hoje estamos tirando
benefícios, sobretudo quando somos desafiados a operar com sínteses estruturais que não
mais nos chegam por outras telas e por outras redes.

HISTORICIDADE DOS SIGNOS: O EXEMPLO DA LINGUAGEM TELEVISUAL

1984 não é apenas o ano-título do romance de George Orwell. Via de regra, a obra
do escritor americano é lembrada como referência ao mundo comandado por este homem-
tela de que falava McLuhan. Todavia, há uma diferença fundamental entre o espectador-
tela e este homem: um é metáfora da sensorialidade ambiental; o outro, do poder de
controle opressor da vida num mundo de comandos centralizados. Enfrentar a ambivalência
da metáfora é tarefa da crítica competente sobre os meios para além do bem e do mal.
Coincidência ou não, 1984 é o ano em que surge, no Brasil, obras significativas
deste enfrentamento crítico sobre o pensamento de McLuhan e de seus desdobramentos
teóricos. Nelas a metáfora sensorial e a do controle foram dimensionadas em todas as suas
implicações.
No país da televisão, dois importantes livros são publicados sobre a televisão.
Diferentes perspectivas críticas compõem os pontos de vista de Muniz Sodré em O
monopólio da fala e Décio Pignatari em Signagem da televisão. Apesar do olhar implacável
sobre as formulações do teórico canadense, os críticos brasileiros reconhecem o papel de
McLuhan na construção da teoria e da história dos meios. E, a partir dele, desenvolvem
seus contra-argumentos. Seja como for, estes estudos discutiram as idéias de McLuhan,
contestando e completando, numa atitude responsiva que merece ser situada quando se trata
de rever criticamente uma teoria. Contudo, o ponto fundamental de meu interesse nos
estudos dos críticos brasileiros recai sobre as análises da linguagem da televisão e o

15
potencial comunicativo do meio. Ambos os estudos são marcados pelas descobertas de
McLuhan e por sua compreensão das transformações que a eletricidade trouxe, não apenas
para a constituição da linguagem televisual como também para as relações culturais.
Ambos são tocados pela linha de raciocínio de mudanças ambientais e pelas implicações
mútuas dos efeitos dos meios na percepção e na cultura. Cada um, por sua vez, avança na
definição da linguagem da televisão a partir da chave conceitual de seu ponto de vista
teórico: para Sodré, é a oralidade que define a linguagem da televisão como poder de
controle; para Pignatari, é o grafismo que conjuga o potencial semiótico. Fala e grafia são
signos reveladores da historicidade não apenas de um conceito antropológico de cultura,
mas da semiose que, a partir dos meios, vemos operar na linguagem.
Segue-se uma breve apresentação dos pontos de vista sobre a linguagem da
televisão a partir de McLuhan.
Não é de pronto que a dimensão oral da linguagem é apresentada no texto de Sodré.
Seu ponto de partida é a tatilidade da imagem de televisão, ainda que não se refira assim ao
processo de co-participação que o meio demanda do espectador. A necessidade de
compreender a operação técnica de composição da imagem, mostra-se fundamental para se
situar, na codificação eletrônica, a passagem da dimensão técnica para a linguagem, como
se pode ler no trecho que se segue.

Para o teórico canadense, a televisão é um medium independente (pensável em separado do jornal e


do rádio), cujo poder ou influência se explicaria por sua natureza eletromagnética. A imagem da tevê
é composta por feixes isolados, impulsos elétricos que partem descontinuamente de um emissor, de
forma semelhante a uma rede, ou a um mosaico. O impulso elétrico é o suporte material da imagem,
que se constitui no cérebro do espectador, depois que seu olho acompanha o deslocamento de um
ponto luminoso microscópico. Há cerca de três milhos desses pontos por segundo, mas apenas alguns
são captados pelo olhar. Quanto aos espaços vazios da rede, são preenchidos pela participação
sensorial do espectador. Pois bem, segundo McLuhan, a força do medium está não no que ele diz (o
conteúdo da programação) nem em seus impulsos elétricos, mas nos intervalos entre esses impulsos
– os vazios da rede (Sodré, 1984: 20).

Atribuir aos impulsos elétricos a produção de intervalos a serem preenchidos pela mente do
espectador, é uma forma de compreender o efeito gerador da dimensão tátil da linguagem.
Contudo, Sodré não se deixa convencer de que esta dimensão seja suficiente. Considera
uma obviedade a “falácia da argumentação de McLuhan”, uma vez que ele não considera a
“descontinuidade em todo o ato perceptivo” e só considera o “efeito tecnológico” sem o
conhecimento. Apesar da crítica, reconhece

16
...nas proposições de McLuhan elementos valiosos para uma verdadeira teoria da televisão. Quando
ele põe em segundo plano o conteúdo da programação e diz que a mensagem é o médium (ou seja, o
continente, a tevê em si mesma), indica um caminho fértil para o trabalho teórico. Efetivamente, o
que pode levar a um conceito de televisão é a forma de relações sociais a que ela induz a partir de sua
sistematicidade operacional” (idem, ibidem: 20-1).

Ao flagrar um caminho teórico, apesar do limite da formulação, Sodré nos leva a


afirmar que, mesmo quando erra, McLuhan acerta. Com isso, o teórico brasileiro avança na
concepção da linguagem, não só preenchendo as lacunas como também explicitando o
caráter oral do que entende por “monopólio da fala”.

A verdadeira vocação do medium televisivo é a síntese hegemônica dos discursos, das práticas
artísticas, das diferentes possibilidades de linguagem. Sua mais profunda natureza requer o silêncio
do ouvinte, do telespectador, condenado pelo estatuto da moderna produção monopolística a uma
relação social que o define como mero usuário (idem, ibidem: 13).

Para justificar este “controle social do diálogo” (idem, ibidem: 22), discorre sobre o
poder da informação sobre a comunicação, recorrendo à metáfora da teletela (idem, ibidem:
44) do romance de Orwell, aqui entendida como “poder panóptico”. A configuração da
linguagem, contudo, se afirma pela possibilidade de uma codificação tecnológica assumir o
controle discursivo fora do regime de dupla articulação do código lingüístico (idem,
ibidem: 54). A linguagem diz o que o meio permite, isto é, o que o código e tudo o que nele
está implicado põe em circulação.

Na verdade, o medium atua sobre os diversos sistemas de sinais (cores, sons, imagens, letras etc.) à
maneira de um operador sintático. A imposição de uma sintaxe, sem neutralidade, já que está
comprometida com a situação social em que se inscreve o medium (na maioria dos casos, é o
marketing ou a estratégia geral do consumo que orienta a sintaxe). A sintaxe televisiva, apoiada pela
tecnologia eletrônica, permite uma reprodução sintética das muitas possibilidades informativas
contidas no sistema dos mass-media. A linguagem (ou expressão) televisiva é uma ficção tecnológica
da relação de comunicação (idem, ibidem: 54-5).

O argumento mais significativo, portanto, é a concepção de linguagem da televisão


como modelo cognitivo cuja expressão encontra-se vinculada à codificação eletrônica que
não prescinde da participação do espectador, ainda que sob a égide do monopólio da fala. O
vazio intervalar referido anteriormente surge aqui e reforça a tatilidade. Apesar do discurso
monológico, a linguagem da televisão cria o contato estabelecido entre indivíduos, o que o
leva a afirmar ser “essencial à expressão televisiva a função lingüística de contato (função
fática, na terminologia implantada pelo lingüista Roman Jakobson), que visa a manter ou
sustentar a comunicação entre falante e ouvinte” (idem, ibidem: 56-7).

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A definição da linguagem da televisão a partir da explicitação de seu código e da
análise de todas as implicações, para o bem e para o mal, é o que gostaríamos de ressaltar
aqui como contribuição à historicidade do meio pela semiose de sua linguagem.

O argumento da semiose da linguagem televisual a partir de McLuhan recebeu de


Décio Pignatari, tradutor para o português de Understanding Media, um outro
direcionamento conceitual. Pignatari assumiu a tarefa de examinar e nomear as semioses
que McLuhan aponta genericamente como transformadoras das percepções, do sensório, da
cognição. Em suas análises sobre a linguagem da televisão, Pignatari realiza a leitura da
linguagem elétrica da tevê em sua ação transformadora de códigos visuais num diálogo
direto com as formulações de McLuhan.

A crer-se em Marshall McLuhan, um dos grandes mestres da comunicação, o conteúdo de um


veículo é o veículo anterior. (...) Trata-se de um problema de linguagem. Todo mundo acredita que
por trás de um signo está um significado, mas a verdade é que, quando a gente vai atrás do tal
significado, encontra sempre outros signos. Assim, quando queremos saber o significado de uma
palavra que desconhecemos, vamos ao dicionário. (...) E quando as palavras não bastam, temos de
socorrer-nos de outros signos: visuais, sonoros, táteis, olfativos, gustativos, gestuais, etc. Jogados
como uma peteca de signo para signo, formamos uma cadeia significante em nossas cabeças, à qual
McLuhan se refere (embora não o explique), quando diz, por exemplo, que o conteúdo da televisão é
o cinema (Pignatari, 1984: 11-2).

Pignatari começa por propor uma nova terminologia para a codificação da


linguagem televisual. Não se trata de polemizar com McLuhan, mas de pôr em prática o
ensinamento de Charles Sanders Peirce sobre a ética da terminologia: não usar nomes
velhos para denominar conceitos novos; não colocar nomes novos em conceitos velhos. Por
isso, em vez de linguagem, Pignatari emprega o neologismo «signagem5» para acolher a
semiose que, no meio televisual, resulta do concurso da variedade de signos. Este é um
precedente que me é caro na justificativa teórica sobre a natureza semiótica das
formulações de McLuhan.
«Signagem» é o correlativo teórico das transformações em que o conteúdo de um
meio se transforma em um outro ambiente. Pignatari reconhece, tal como o fizera

5
Signagem é o conceito que Décio Pignatari formula para o seu entendimento da semiose operada pela
linguagem da televisão. Explica: “Sei que o uso já consagrou expressões como «linguagem musical»,
«linguagem arquitetônica», «linguagem televisual», etc. Ms, na era da semiótica, ou teoria geral dos signos,
essa invasão do verbal pra cima do não-verbal, dos códigos verbais em relação aos códigos icônicos ou dos
códigos audiovisuais pode induzir a distorções. Por essa razão, utilizo «signagem» em lugar de linguagem”
(Pignatari, 1984: 8).

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McLuhan, que a linguagem de base da televisão é o cinema (entenda-se composição
sintática pela montagem). Qual é, então, a informação nova? De acordo com a signagem,
deve-se à semiose das formas gráficas, artes visuais, fotografia, cinema, animação,
fonografia radiofônica o constructo da informação nova. A televisão desenvolve uma
linguagem gráfica, que Pignatari examina, particularmente, num gênero típico da televisão:
as vinhetas. A «gráfica televisual» (Pignatari, 1984: 9 e segs.) pode ser considerada como a
forma dialógica que, além de articular toda uma grade diferenciada na programação
(auditório, filmes, anúncios, jornalismo, entrevistas etc.), explicita a natureza gráfica de sua
composição. Quer dizer, é nas vinhetas que a montagem do movimento gráfico e sonoro faz
emergir, com mais evidência e naturalidade, o grafismo das retículas luminosas e coloridas
conjugadas com a trilha sonora. Cria-se um diagrama em que o movimento rítmico das
imagens é traduzido em dança e em fala, dentro de num mesmo compasso, buscando a
participação do espectador. Neste diagrama Pignatari reconhece a semiose não de um meio,
mas de vários. Todos contribuindo para visibilidade do som e a tatilidade da imagem – o
que nos leva a entender no fonografismo da imagem televisual a informação semiótica
distinta do meio. Pignatari formula tal distinção definindo a imagem como emissão de
informação elétrica luminosa ou

...chuveiro de elétrons projetados num anteparo ou óculos do olho, que é o screen do cinescópio; a
imagem está se formando e sumindo em microssegundos: è cor-luz, realmente,; a eletricidade
colorida. Junte-se a retícula a esse faiscar eletrônico e teremos a tatilidade da imagem televisual, tele-
hapticovisual: cócegas de elétrons coloridos no olho. É isso o que McLuhan quer dizer – sem
explicar claramente – quando fala do mosaico tátil da televisão, lembrando os mosaicos bizantinos
(de Santo Apolinário, em Ravena, por exemplo) (Pignatari, 1984: 16).

Do ponto de vista do grafismo televisual, a signagem da televisão é articulada pela


semiose dos meios, ainda que o foco seja a tevê. Pignatari atacou, assim, o ponto central da
transformação que McLuhan observa na percepção gráfica como o modo de que nos
valemos para traduzir o espaço da cultura. Em oposição à arte da Renascença, que traduziu
o espaço em termos de um grafismo de coordenadas horizontais e verticais, as culturas pré-
alfabéticas traduzem o espaço de modo acústico, isto é, sem horizonte nem ponto de fuga,
uma visão em raio X. É o que McLuhan afirma no argumento gráfico que integra o livro
que publicou em parceria com Quentin Fiore.

19
Os meios são as massagens (McLuhan & Fiore, 1969: 82-3).

Do ponto de vista gráfico, o desenho dialoga com a cena do conto de Poe: o


espectador e seu campo visual em movimento: lá o redemoinho das águas; aqui o texto
posicionado em relação ao olho da figura humana e não do campo visual do leitor. Ao
folhear o livro, deparo-me com um texto invertido. O grafismo exige minha participação no
reposicionamento do campo gráfico-visual.
O que merece ser repetido, aqui, é a necessidade criada pelos meios com relação aos
códigos de sua construção tecnológica, vale dizer, a importância do meio na construção da
mensagem.

A leitura conjunta dos livros de Sodré e Pignatari no contexto das formulações de


McLuhan foi realizada aqui como constructo de um caminho rumo à semiose na cultura de
meios. Evidentemente, não se quer ocultar o caráter polêmico. Aliás, o próprio McLuhan se
tornou um polemista ao deslocar o foco de seu interesse para os meios de comunicação,
terreno tão virgem quanto selvagem para o professor de literatura. Iniciou, de modo
destemido, a atuação dos “intelectuais de mídia” (Gastal, 2003: 46), espécie quase

20
desconhecida até então. Ao discutir suas formulações sobre os meios de comunicação em
entrevistas para jornais e magazines, programas de televisão e rádio, fora, portanto, dos
muros da academia, suas idéias ganham o rótulo de provocações. Assim, os programas de
televisão, os magazines semanais, os anúncios, foram não apenas objetos de sua análise,
como também os lugares de debate de idéias, como a clássica entrevista para a revista
Playboy ou a série de programas que já foram reunidos em disco (vinil), vídeo, CD-ROM e
hoje inspiram documentários em DVD e conteúdos hipermídia disponíveis na rede.
Logo, a idéia de que o pensamento de McLuhan abriu caminho para uma semiótica
das mediações não tem apenas uma justificativa teórica, mas também é amparada por uma
prática de atuação nos veículos de sua paixão crítica. Não apenas as proposições, mas ele
próprio se oferecia ao entretenimento. Evidentemente nem todos seus espectadores ou
leitores dispunham de condições para compreender as armadilhas de seu raciocínio muitas
vezes enunciadas em metáforas conceituais e críticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tecnologia elétrica desperta a compreensão do homem para a sua maquinaria: o


homem entra em contato com seu cérebro, fora de seu crânio, e com seus nervos, fora de
sua pele. Entrar em contato aqui é se entreter, compreender suas extensões e os ambientes
que elas criam (isto é, conferem visibilidade). O ambiente torna-se lugar de interações: o
homem entra em contato com sua condição de signo que ele cria para controlá-lo. Essa é
uma visão cibernética da extensão provocada pelo ambiente (apud McLuhan & Zingrone
317). Quando se trata de compreender a ambiência em que os meios de comunicação
produzem mensagens, extensão é igualmente a transformação tradutória de uma energia, ou
transdução, que não deixa de ser um efeito de sentido. Meio é a mensagem significa na era
eletrônica que os meios criam um novo ambiente humano de percepção e transformação,
com um conteúdo totalmente novo. A própria cultura é considerada em termos ambientais.
Por isso, a história da cultura redimensiona suas tradições em termos dos códigos culturais
nela desenvolvidos. No âmbito desta investigação isso quer dizer que o fio condutor da
história dos meios são as mediações semióticas. Esse procedimento recupera um dos
aspectos fundamentais da semiose na cultura: a filogenia, vale dizer, as transformações dos

21
sistemas mobilizadas pela transmutação de energia e, conseqüentemente, pelas emergências
dela resultantes. É a partir daqui que podemos falar em gestão semiótica do conhecimento.
Adquirir conhecimento depende, portanto, da percepção das extensões dos homens
induzidas pelos meios e da habilidade de ver um ambiente novo. Caso contrário,
continuaremos a reproduzir uma “visão de espelho retrovisor”, quer dizer, não
conseguiremos alcançar o que há na paisagem que nos cerca e só veremos nela aquilo que
vem do passado. Como diz McLuhan “se entendemos as transformações revolucionárias
causadas pelos novos meios, poderemos antecipá-las e controlá-las; mas se continuarmos
em nosso transe subliminar autoinduzido, seremos seus escravos” (McLuhan & Zingrone
286). Os meios, nesse caso, são igualmente gestores de conhecimento e não veículos para
informação e “a tecnologia oferece, quem sabe pela primeira vez, um meio para tratar com
o ambiente em si como um instrumento direto de visão e conhecimento” (apud McLuhan &
Zingrone: 331). Visão e conhecimento estão relacionados ao estranhamento, não ao
reconhecimento:

Quando um novo ambiente se forma, vemos os velhos como se vivéssemos em um mundo deja vu.
Esta foi, por suposto, a teoria do conhecimento de Platão: conhecer é uma forma de reconhecimento
daquilo que havíamos conhecido em outra existência (1967) (apud McLuhan & Zingrone: 331).

É hora de completar o título desse artigo. Se não fosse McLuhan, a prosa do mundo
não seria comunicação, os meios que as veiculam não seriam mensagens, os ambientes não
seriam espaços semióticos historicizados pelas linguagens e jamais «entretenimento»
poderia ser um modo de ação do pensamento. Tampouco poderíamos alcançar a visão
ecológica da comunicação na cultura de mediações. Pelo visto, ainda temos muito que
aprender com este professor.

REFERÊNCIAS

KLANTEN, Robert & HELLIGE, Hendrick (2006). Poe. Illustrated Tales of Mystery and Imagination.
Berlin: Die Gestalten Verlag.
McLUHAN, Marshall (1971). Os meios de comunicação como extensões do homem (trad. Décio Pignatari).
São Paulo: Cultrix.
McLUHAN, Marshall & FIORE, Quentin (1967). The Medium is the Massage. An inventroy of Effects. New
York: Bantam Books.
McLUHAN, Eric & ZINGRONE, Frank (eds.) (1998). McLuhan: escritos essenciales (trad.J. Basaldúa e E.
Macías). Barcelona: Paidós.
PIGNATARI, Décio (1984). Signagem da televisão. São Paulo: Brasiliense.
POE, Edgar Allan (1978). Histórias extraordinárias. São Paulo: Círculo do Livro.

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PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle (1988). Entre o tempo e a eternidade (trad. F. Fernandes e J.C.
Fernandes). Lisboa: Gradiva.
SODRÉ, Muniz (1984). O monopólio da fala. Função e linguagem da televisão no Brasil. Petrópolis: Paz e
Terra.

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