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Andreia Scapin
Doutora em Direito Tributário pela USP. Mestre em Direito Penal pela USP. Especialista
em Direito Tributário pela USP. Professora convidada da pós-graduação em Direito
Tributário da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora do Núcleo de Estudos
em Constitucionalismo, Internacionalização e Cooperação (CONSTINTER) e Centro
Didático Euro-Americano sobre Políticas Constitucionais (CEDEUAM) da Università del
Salento, Lecce, Itália/FURB, Blumenau, Brasil. Advogada. andreiascapin@vslaw.com.br
1 Introdução
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O propósito deste trabalho é trazer à luz as problemáticas inerentes ao ressarcimento
dos danos suportados pelo sujeito passivo da relação tributária (contribuinte ou
responsável) como consequência das condutas comissivas ou omissivas praticadas pelo
agente público no exercício da função fiscal, que se refere à prática de atos de
fiscalização, constituição, inscrição e cobrança do crédito tributário.
Para maior clareza expositiva e sem a pretensão de esgotar o tema numa única vez, o
núcleo da investigação consiste em responder à pergunta: o Direito brasileiro vigente
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
A afinidade do Direito brasileiro com o Direito italiano resulta da existência de uma sólida
base romanística comum e da profunda difusão do modelo científico italiano na América
Latina, mormente no Brasil, dado os problemas que surgiram a partir das duas guerras
mundiais que ensejaram a emigração de muitos italianos em países latino-americanos,
inclusive de juristas que passaram a ensinar em Universidades, tal como Tullio Ascarelli,
que atuou como professor da Faculdade de Direito da USP na década de 1940,
contribuindo para a consolidação do Direito brasileiro, inclusive no setor tributário.
Dentre seus alunos é possível mencionar: Ruy Barbosa Nogueira e Rubens Gomes de
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Sousa.
2 Corte de Cassação, Seções Unidas, acórdão 722, de 15 de outubro de 1999.
A Suprema Corte afirmou que, devido aos princípios de legalidade, imparcialidade e boa
administração estabelecidos no art. 97 da Constituição italiana, a Administração
Tributária submete-se às consequências do art. 2.043 do CC, sendo a jurisdição
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
A norma neminem laedere consta do Digesto (Pandectas), que é uma das partes do
Corpus Juris Civilis, Código Justinianeu, do Imperador Justiniano, de 526 d.C. Trata-se
de uma das três normas descritas por Ulpiano: viver honestamente, não lesar ninguém e
dar a cada um o que lhe é devido – iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, neminem
laedere e suum cuique tribuere. Por seu conteúdo, é considerada atual e importante até
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os dias de hoje.
Tal como na Itália, também no Brasil foi positivada uma norma primária dispositiva que
prescreve “deve ser não causar dano a outrem” – neminem laedere –; e, tal norma se
aplica ao Estado no exercício da função pública, inclusive no setor fiscal, o que possibilita
utilizar um raciocínio semelhante ao da Corte de Cassação italiana para determinar a
responsabilidade do Estado por dano tributário no Brasil.
3 A positivação da norma neminem laedere no Direito brasileiro e sua aplicação ao
Estado
Para demonstrar que a norma neminem laedere (deve ser não causar dano a outrem)
exerce função normativa no ordenamento jurídico brasileiro, será efetuada uma breve
incursão no estudo da estrutura da norma jurídica e no raciocínio lógico proposto por
Hans Kelsen, que se baseia na noção de sanção, da qual decorrem o ilícito e o dever
jurídico.
3.1 Norma jurídica completa: norma primária e secundária
Conforme Paulo de Barros Carvalho, em sentido estrito, entende-se por norma jurídica a
composição articulada das significações que produz mensagens com sentido
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
Eurico Marcos Diniz de Santi propõe um modelo cognoscitivo, segundo o qual a norma
jurídica completa é composta por: norma primária dispositiva, norma primária
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sancionadora e norma secundária.
A norma primária dispositiva estabelece um dever a ser cumprido (não causar dano a
outrem) e a norma primária sancionadora descreve em seu antecedente um ilícito por
conectar a ele, em seu consequente, uma sanção, referindo-se ao descumprimento de
tal dever (se causar dano a outrem, deve ser o ressarcimento do dano causado).
Ao aplicar esse modelo cognoscitivo a este estudo, nota-se que a norma neminem
laedere (não causar dano a outrem) foi positivada no Direito brasileiro,
caracterizando-se como norma primária dispositiva.
Para chegar a tal conclusão, faz-se uma breve incursão nos ensinamentos de Hans
Kelsen, em Teoria Pura do Direito, em que considera juridicamente prescrita uma
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conduta pelo fato da ordem jurídica conectar à conduta oposta uma sanção.
Para o jurista e filósofo, o ilícito é ação ou omissão determinada pela ordem jurídica que
forma a condição ou o pressuposto dum ato de coerção imposto pela mesma ordem
jurídica, sendo a sanção o ato de coação estatuído como sua consequência, isto é, o
resultado do ilícito.
Afirma que não há outro critério de ilícito que não o fato de que um comportamento
específico é condição de uma sanção, por isso: o dever jurídico é a conduta que evita a
aplicação da sanção, isto é, a conduta inversa àquela prevista como antecedente da
regra sancionadora.
Logo, uma das formas de identificar que a ordem jurídica prescreveu uma conduta ou
que o sujeito está juridicamente obrigado a determinada conduta, é verificar se foi
estipulada uma sanção para a conduta oposta. Isso porque, ao impor uma sanção a
certa conduta, a conduta condicionante da sanção é a “conduta proibida” e a conduta
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oposta a “conduta prescrita”.
Parte-se da estrutura deôntica: “se o fato F (H), então deve ser que Sa está obrigado,
proibido ou permitido a praticar a conduta C (C) ante o sujeito Sp” . Preenchendo-a da
seguinte forma: “se Sa causar um dano a Sp (fato F), então deve ser o fato de Sa estar
obrigado a ressarcir o dano causado a Sp (C)”. Nesse caso, F é um ilícito por estar
conectado à sanção C que equivale à obrigação de ressarcir o dano causado; e, a
conduta oposta à F é automaticamente considerada um dever jurídico, o qual se
praticado evita a aplicação da sanção, podendo ser assim redigido: “deve ser não causar
dano a outrem”, isto é: neminem laedere.
É possível afirmar que: no caput do art. 37, ao vincular a atuação administrativa aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência,
prescreveu-se a norma primária dispositiva: “se o exercício da função administrativa,
então deve ser a proibição do agente, nessa qualidade, causar danos ao administrado”;
ao passo que, no § 6º do art. 37, está previsto a norma primária sancionadora, a qual
conecta o descumprimento de tal dever jurídico a uma sanção: “se no exercício da
função administrativa o agente, nessa qualidade, causar dano a outrem, então deve ser
que o Estado deve ressarcir o dano causado”.
Ao transportar a ideia para o cenário das relações tributárias, o agente que causou o
dano é um credenciado da Administração Tributária federal, estadual ou municipal; e, o
lesado é o contribuinte ou o responsável, nos termos do art. 121 do CTN (LGL\1966\26).
Isso porque, ao introduzir na Constituição Federal de 1988 uma seção para tratar das
“Limitações ao Poder de Tributar” (art. 150 a 152 da CF (LGL\1988\3)), o legislador
brasileiro demonstrou ter reconhecido o alto potencial destrutivo da imposição tributária
e a necessidade de estipular garantias constitucionais para a proteção do contribuinte, já
que os fatos tributáveis se atrelam a comportamentos que se conectam às liberdades
fundamentais, atingindo obrigatoriamente a propriedade e a liberdade, de modo que são
suscetíveis de causar lesão a direitos subjetivos do sujeito passivo da obrigação
tributária se exercidos fora dos parâmetros legais estabelecidos por meio de princípios e
regras que constituem o limite para o exercício da atividade fiscal.
Algum tempo atrás, o sistema brasileiro de responsabilidade civil era mais simples do
que é atualmente, já que se resumia na cláusula geral do art. 159 do CC/16
(LGL\1916\1) que prescrevia a responsabilidade civil subjetiva, que exigia a
comprovação da culpa (lato sensu) do sujeito que praticou a conduta causadora do
dano, sendo raros os casos de responsabilidade objetiva.
Para a teoria subjetiva, são pressupostos da responsabilidade civil: i) dano, ii) culpa lato
sensu e contrariedade ao Direito e iii) nexo de causalidade entre a conduta e o dano.
Chega-se a essa conclusão por meio da interpretação dos arts. 186, 187 e 927 do CC.
Entretanto, pouco a pouco, a culpa (lato sensu) deixou de ter a mesma importância, pois
tornou-se insuficiente, perdendo cada vez mais espaço na responsabilidade civil,
sobretudo porque a responsabilidade objetiva passou a ser considerada uma exigência
social e de justiça.
de dolo ou culpa”.
Dessa forma, o dano tornou-se o pressuposto fundamental elegido pelo Direito para
deflagrar a responsabilidade civil em grande parte das situações, conforme dispõe o
parágrafo único do art. 927 do CC que impõe a responsabilidade objetiva nas hipóteses
estipuladas em lei, como se dá com a responsabilidade do Estado disciplinada no art. 37,
§ 6º da CF (LGL\1988\3), e se a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar
riscos para os direitos de outrem.
Esse resultado danoso decorre de uma conduta que, na maioria das vezes, é ilícita dado
o descumprimento de um dever jurídico preexistente, mas não necessariamente, pois
pode resultar também da conduta lícita, caso em que a ilicitude que enseja a
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responsabilidade está no próprio dano e não na conduta.
A esse respeito, Fernando Dias Menezes de Almeida afirma: “o dano já traz implícito o
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significado de resultado ilícito”.
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
No âmbito do Direito, o termo dano não possui a mesma extensão utilizada no senso
comum. Na vida cotidiana, várias situações são experimentadas pelos indivíduos como
danosas, contudo, nem todas se amoldam na noção jurídica de dano.
A noção jurídica de dano possui um sentido mais restrito que abarca exclusivamente o
prejuízo relevante e tutelável pelo Direito, ou seja, o dano qualificado pela
antijuridicidade – o dano ilícito – denominado “dano injusto” pelo legislador italiano por
considerar que nem todo prejuízo em sentido econômico pode ser considerado um
prejuízo em sentido jurídico.
Embora seja um fenômeno unitário, o dano possui dois aspectos que se referem aos dois
momentos de sua ocorrência: i) dano-evento: que corresponde à lesão de direitos
subjetivos ou interesses jurídicos relevantes, a exemplo da lesão de direitos invioláveis
da pessoa humana, tais como honra, imagem, propriedade e liberdade em razão da
penhora de bens e equipamentos de trabalho no escritório do contribuinte na presença
de clientes e funcionários por cobrança de tributo declarado indevido; e, ii)
dano-consequência: que corresponde ao prejuízo econômico efetivamente suportado,
que servirá como referência para a quantificação do ressarcimento.
Os atos comissivos revelam-se por uma ação, ou seja, por um movimento corpóreo ou
comportamento positivo, constituindo a forma mais comum de exteriorização da
conduta, já que todos estão obrigados a deixar de praticar atos que possam causar lesão
à esfera jurídica de terceiros, segundo prescreve o princípio neminem laedere.
O lançamento tributário pode ensejar a prática de outros atos que caracterizam uma
ameaça concreta ao patrimônio do contribuinte, como: a inscrição do débito em dívida
ativa, o indeferimento de certidões negativas de débito fiscal, a inscrição de seu nome
no CADIN, a indisponibilidade de bens e direitos, o ajuizamento da execução fiscal, a
penhora de bens etc. Esses atos impedem a participação do contribuinte em
procedimentos licitatórios, o acesso ao crédito junto às instituições financeiras e a
prática de atos importantes para o desenvolvimento da atividade empresarial, podendo
gerar gastos, danos à imagem e o encerramento da empresa.
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
Os atos omissivos constituem um non facere relevante para o Direito por atingir um bem
juridicamente tutelado. Ensejará a responsabilidade do Estado se houver violação do
dever do agente público de intervir em determinada situação para evitar o dano. Sua
essência está em não se ter agido num determinado modo quando a ação era
necessária. Portanto, requer a efetiva potencialidade de agir associada ao dever jurídico
de fazê-lo, tal como deixar de anular um ato visivelmente contrário à lei, restaurando a
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legalidade violada e impedindo que o contribuinte sofra prejuízos.
Há várias teorias que buscam explicar o nexo causal, sendo as mais utilizadas pela
jurisprudência brasileira a teoria da causalidade adequada bem como a teoria dos danos
diretos e imediatos, também denominada teoria da interrupção do nexo causal.
A primeira teoria parte de juízos hipotéticos para determinar qual a causa adequada para
a produção do dano. Diante da pluralidade de causas que podem concorrer para o
resultado danoso, será considerada causa efetiva aquela que, por um juízo abstrato de
probabilidade, se mostrar hábil a produzi-lo segundo os dados de experiência e o curso
normal de acontecimentos, sendo esse o critério aplicado para a aferição da adequação
da causa.
Trata-se da teoria adotada, na Itália, pela Corte de Cassação, que aplica um critério de
probabilidade científica baseado na regra “mais provável que não” – più probabile che
non, de acordo com a qual não é a certeza dos efeitos da conduta, mas a sua
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probabilidade, ou seja, a idoneidade da conduta a produzir determinado prejuízo.
Tem assumido maior relevância no Brasil, a teoria dos danos diretos e imediatos, que
possibilita pleitear o ressarcimento apenas em face dos prejuízos efetivos e lucros
cessantes por efeito direto e imediato da inexecução do devedor por se defender que
nem todo fator que desemboca no evento danoso é necessariamente causa do dano, de
modo que deve ser traçado um liame lógico-jurídico para tal verificação. Noutros termos,
uma condição próxima ou remota será considerada causa do dano se estiver diretamente
ligada a ele. É causa necessária desse dano, já que a ele se filia, inevitavelmente; é
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causa exclusiva, porque opera por si, dispensadas outras causas.
É importante ressaltar que, no Brasil, a doutrina reconheceu que a solução dada pela
jurisprudência ao estabelecimento do nexo causal é tópica, varia não só de tribunal para
tribunal, mas de caso a caso, o que serve como estímulo para aqueles que buscam uma
solução única.
5 Hipóteses de aplicação da responsabilidade do Estado por dano tributário
Nos próximos parágrafos, serão analisadas três hipóteses padrão, que se relacionam à
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
O propósito da análise dessas hipóteses é justamente definir um critério jurídico que seja
determinante da responsabilidade do Estado por dano tributário, o qual servirá como
padrão a ser aplicado em cada caso concreto, já que é impossível analisar todas as
situações que podem ser experimentadas pelo contribuinte (ou responsável) em seu dia
a dia.
5.1 Primeira hipótese: conduta lícita com resultado danoso lícito
Isso porque, para que não haja dever do Estado de ressarcir o dano, não basta que a
conduta causadora do dano seja reputada lícita, é necessário que o dano seja
igualmente lícito, isto é, que se justifique pelas normas da ordem jurídica, de modo que
não caracterize a lesão de direitos subjetivos. Dessa forma, admite-se a existência de
condutas lícitas danosas que impõem o ressarcimento do dano causado nos casos em
que o referido dano é considerado ilícito.
Há casos em que a conduta lícita do agente público não determina o dever jurídico de
ressarcimento. Isso acontece em duas situações: i) a conduta não gerou consequência
danosa, ou seja, não houve dano; ou, ii) o dano não pode ser incluído no âmbito da
antijuridicidade, que é o aspecto objetivo do ilícito, justificando-se por se tratar do
cumprimento de um dever jurídico imposto ao sujeito.
É lícito ao Fisco constituir o crédito tributário por meio do lançamento sempre que o
contribuinte praticar o fato gerador do tributo. É igualmente lícito perseguir o pagamento
não efetuado no prazo legal, aplicando medidas autorizadas em lei dadas as
prerrogativas conferidas à Administração Pública voltadas a atender o interesse público,
tais como: emissão de certidão de dívida ativa, indeferimento da certidão negativa de
débito fiscal ou da certidão positiva com efeitos de negativa, ajuizamento da execução
fiscal, penhora de bens e faturamento da empresa, penhora on-line, restrição à
alienação de bens, inscrição no CADIN etc.
Trata-se duma consequência lógica por força da imputação deôntica, de modo que: “se o
sujeito passivo da relação tributária (Sp) deixar de pagar o tributo devido no prazo legal,
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
então deve ser a obrigação do Estado (Sa) de aplicar a penalidade a (Sp), impondo
deveres de fazer ou não-fazer sob o mesmo pretexto”, o que se refere à norma primária
sancionadora, além da norma secundária, que prescreve a atuação do Poder Judiciário,
mediante o ajuizamento de ação de execução fiscal, para que, por meio de atos
coativos, atue sobre o patrimônio do devedor com a execução forçada de bens.
Os danos que resultam de tais práticas são igualmente lícitos e se justificam nessa
situação, já que cada membro da sociedade está obrigado por lei a contribuir para o
custeio das despesas públicas e para a melhor distribuição da riqueza.
Para que haja o dever de ressarcir o dano que é consequência de uma conduta lícita, o
elemento “ilícito” deve forçosamente estar presente no resultado danoso. Aliás,
conforme já afirmado, não se trata do dano a partir da ótica do sujeito, mas do Direito,
em sentido jurídico, que corresponde à lesão de direitos subjetivos do sujeito passivo da
relação tributária.
Conforme dispõe o art. 186 do CC, o ordenamento jurídico brasileiro estabelece que a
conduta ilícita é formada por um elemento objetivo que se revela pela contrariedade ao
Direito (antijuridicidade) e por um elemento subjetivo que é identificado na culpa lato
sensu. Portanto, será lícita a conduta praticada em consonância com o Direito e sem o
descumprimento do dever de diligência característico das condutas culposas, vale dizer,
sem dolo ou culpa.
Ressalte-se a existência de uma presunção (iuris tantum) posta pelo Direito de que todo
o processo de realização do ato administrativo se deu nos moldes das normas jurídicas
que o regulam até que se prove e se constitua o contrário, pois se trabalha com o
controle de validade dos atos a posteriori, o que contribui para o caráter lícito da
conduta do agente, já que permite a adoção das medidas de constrição do patrimônio do
contribuinte para a satisfação do crédito tributário, o que pode gerar consequências
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extremamente gravosas e até irreversíveis.
não mera locação de bens móveis, deixando de aplicar a Súmula Vinculante 31, tal como
no caso em que há locação de escavadeira com o respectivo operador.
Além disso, dada a presunção de legitimidade, que torna o ato válido e eficaz, não é
possível falar em contrariedade ao Direito até que se prove o contrário, de modo que o
Fisco poderá buscar a satisfação do crédito tributário com a inscrição do débito em dívida
ativa e o ajuizamento da execução fiscal, isto é, com a prática de atos voltados à
constrição do patrimônio do devedor, como penhoras e bloqueios de bens, inscrição do
nome no CADIN e indeferimento de certidões negativas de débito.
Se inexiste dever jurídico de pagar tributo, o dano é ilícito, ou seja, lesivo a direitos
subjetivos, pois a ablação do patrimônio do cidadão e a execução forçada de bens, que
resulta da relativização de direitos fundamentais imposta pela lei, é permitida apenas se
houver o dever jurídico de pagar o tributo e o respectivo descumprimento, caso contrário
há nítida violação de direitos. Logo, a ausência da dívida caracteriza a ilicitude do dano,
ensejando a responsabilidade do Estado, apesar da conduta do agente público ser
considerada lícita.
Haverá resultado danoso “ilícito” como consequência da conduta lícita sempre que as
medidas estabelecidas em lei que se dirigem à satisfação do crédito tributário forem
aplicadas pelo Fisco em acordo com as normas jurídicas e sem culpa lato sensu do
agente público, porém sem a presença do dever jurídico de pagar o tributo (ou
penalidade)
sua anulação, que produz efeitos retroativos à data em que o ato foi emitido, ou seja, ex
tunc. Significa dizer, utilizando as palavras de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello:
“anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado em que se achavam, e, não sendo
possível restituí-las, serão indenizadas pelo equivalente”, que corresponde à redação do
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art. 182 do CC com a substituição da palavra ato por negócio jurídico.
Não é diversa a posição de Hely Lopes Meirelles, para quem os efeitos da anulação dos
atos administrativos retroagem à sua origem, invalidando as consequências passadas,
presentes e futuras do ato anulado, de modo que o pronunciamento de invalidade opera
ex tunc, desfazendo todos os vínculos entre as partes e obrigando-as à reposição das
coisas ao status quo ante, como uma consequência natural e lógica da decisão
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anulatória.
Portanto, além das considerações acima efetuadas, diante da anulação do ato ilegal, não
basta a repetição do indébito, é necessário recompor a situação tal como era antes,
como se o ato não tivesse sido praticado, já que a responsabilidade do Estado é um
desdobramento da legalidade que atesta a postura de proteção do legislador no que se
refere às previsões contidas na lei e à segurança nas relações jurídicas, tendo em vista a
sua capacidade de reverter a situação e de recompô-la ao estado em que as coisas se
encontravam antes da ocorrência da violação.
É possível imaginar outra situação em que a hipótese “conduta lícita com resultado
danoso ilícito” pode ocorrer, mas, nesse caso, o tributo é efetivamente devido pelo
contribuinte, tendo inclusive transcorrido in albis o prazo para o adimplemento. Em
outros termos: a conduta é legítima e não é possível afirmar a culpa lato sensu do
agente público, já que os atos praticados estão sob o amparo da lei e o contribuinte
motivou a ativação dos instrumentos para a satisfação do crédito tributário, pois figura
verdadeiramente como inadimplente.
Entretanto, o dano pode ser ilícito e, portanto, passível de ressarcimento pelo Estado em
virtude da lesão à proporcionalidade devido aos efeitos excessivamente gravosos
resultantes das medidas adotadas pelo agente público destinadas à satisfação do crédito
tributário.
Danos que resultam de conduta praticada sob a escora de uma norma jurídica, mas que
poderiam ser evitados, por isso caracterizam a lesão de direitos subjetivos à
propriedade, à liberdade e à livre iniciativa; bem como, ao direito à eficiência (boa
administração) no exercício da função pública, que é um dever da Administração Pública
de caráter vinculante.
No entanto, defende-se neste artigo que esse preceito deve ser sopesado com outro
igualmente presente no ordenamento jurídico brasileiro, o qual estabelece que a
execução deve ser procedida da forma menos gravosa para o devedor a fim de alcançar
a finalidade do processo de execução, qual seja: a satisfação do crédito com o menor
sacrifício do devedor, o que atende, inclusive, ao princípio da eficiência expressamente
previsto na Constituição Federal de 1988.
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
Logo, foge da lógica pensar que, ao chegar na fase executiva, apenas a perseguição “a
qualquer custo” dos interesses do credor será relevante, deixando de ser necessário
preservar os direitos do devedor com a escolha dum caminho que lhe oferece menor
sacrifício, o qual, ao mesmo tempo, é capaz de satisfazer os interesses do Estado.
Segundo a tradução ofertada por Celso Antonio Bandeira de Mello: “a norma só quer a
solução excelente”, que certamente não é a satisfação do crédito tributário com a ruína
do devedor, mas com o menor sacrifício. Desse modo, se houver meios que sejam
menos gravosos ao devedor e, ao mesmo tempo, eficazes para a satisfação do crédito
da Administração Pública, é essa a solução excelente, em acordo com a eficiência, isto é,
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a boa administração.
Nesse sentido, a Fazenda Pública não está obrigada a aceitar o bem oferecido pelo
contribuinte em substituição, sendo essa conduta lícita, mas essa decisão não pode ser
arbitrária, isto é, desprovida de uma justificativa plausível. É necessário adotá-la com
prudência e atenção aos princípios de razoabilidade, de proporcionalidade e aos demais
princípios que regulam o modus operandi da ação administrativa sob pena da atuação
ineficiente caracterizar a ilicitude do dano, tornando-o passível de ressarcimento.
Logo, em tal caso, o dano suportado pelo devedor é ilícito, sobretudo em razão da lesão
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
Para que seja possível considerar ilícito o dano em virtude da falta de eficiência na
realização de atos voltados à satisfação do crédito tributário, é necessário que haja
outros meios eficazes para garantir a dívida e que isso seja de conhecimento da Fazenda
Pública, de maneira que a escolha de um determinado bem, embora legítima, pois
amparada por uma norma jurídica, pode ser desproporcional devido aos efeitos gravosos
que poderiam ser evitados com a adoção de uma solução mais moderada.
Ilícita é a conduta contrária ao Direito, isto é, resultante dum ato ilegítimo praticado pelo
agente público no exercício da função fiscal, ao qual se acresce a culpa lato sensu, que
se caracteriza pela ação voluntária (dolo) ou pelo descumprimento do dever de
diligência, que se vislumbra na negligência, imprudência ou imperícia, e na violação dos
princípios que regulam o modus operandi da Administração Tributária, cujo papel
também é conferir os delineamentos do que se deve considerar como atuação correta e
diligente sob a ótica do legislador.
Na hipótese resultado danoso ilícito como consequência de conduta ilícita, há dois ilícitos
a serem analisados: o primeiro se encontra na conduta e o segundo, no dano. A ilicitude
da conduta refere-se ao descumprimento dum dever preexistente, tal como a violação
da norma jurídica que impõe a suspensão da exigibilidade do crédito tributário se
efetuado o depósito do valor do montante integral, nos termos do inciso II do art. 151
do CTN (LGL\1966\26), ao promover a execução fiscal para cobrar crédito tributário cuja
exigibilidade estava suspensa. Ou seja: a ilicitude da conduta não se refere à produção
do dano propriamente dita, o qual surgirá somente como uma eventual consequência.
A conduta ilícita poderá ser fato gerador do dano que irá ensejar a responsabilidade, pois
a ilicitude da conduta macula o dano, tornando-o automaticamente ilícito. Noutros
termos, não é possível que um dano resultante de uma conduta ilícita seja um dano
lícito. Pelo contrário, configurará sempre uma lesão a direitos subjetivos, sendo,
portanto, igualmente ilícito.
o cumprimento dos contratos firmados com os clientes, visto que o contribuinte passa a
ser considerado insolvente, desprovido de recursos necessários para satisfazer os
compromissos assumidos.
Como exemplo de condutas ilícitas que produzem dano ilícito é possível mencionar as
exigências flagrantemente ilegais: i) agente público que não regulariza os cadastros do
Fisco deixando de alterar o CPF/MF do proprietário do veículo automotor nos cadastros
do DETRAN após a transferência do veículo e a regular comunicação efetuada na época
da venda, ensejando a cobrança de IPVA ao antigo proprietário, o protesto da CDA e a
inserção de nome no CADIN; ii) ajuizamento de execução fiscal para cobrança de IPTU
em face de pessoa física referente a imóvel cuja propriedade era do próprio Município
exequente e IPTU de imóvel que foi objeto de desapropriação pelo Município há mais de
10 anos; iii) execução fiscal promovida em face de um homônimo do contribuinte sem
conferência do CPF/MF ou CNPJ etc.
Segundo James Marins, a Receita Federal do Brasil e seus órgãos vinculados não podem
divergir do posicionamento das Cortes em tais casos, por isso, devem: i) deixar de
promover o lançamento de créditos tributários que apresentem discussão judicial
favorável aos contribuintes; ii) anular cobranças formalizadas; e, iii) promover a
restituição ou a compensação por cobranças reconhecidas como indevidas pelo Poder
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Judiciário.
(art. 5º, inciso XXXV, art. 37, caput e § 6º, e art. 150), no Código Tributário Nacional
(art. 97) e no Código Civil (LGL\2002\400) (art. 927), imputar a responsabilidade ao
Estado pelos danos suportados pelo sujeito passivo da relação tributária (contribuinte ou
responsável) em virtude dos atos praticados pelo agente público no exercício da função
fiscal, que compreende a fiscalização, a constituição, a inscrição e a cobrança do crédito
tributário.
Para que seja imputada a responsabilidade ao Estado, o elemento “ilícito” deve estar
presente tanto na conduta quando no resultado danoso, sendo ambos ilícitos, ou
somente no resultado danoso; caso contrário, não há dever de ressarcimento do dano
causado pelo agente público. Logo, apenas haverá responsabilidade do Estado nas
hipóteses: conduta ilícita com resultado danoso ilícito e conduta lícita com resultado
danoso ilícito.
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Controle da
Administração Pública e Responsabilidade do Estado. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella
(Coord.) Tratado de Direito Administrativo. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 32 ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2015.
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012.
CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito. 2. ed. São Paulo:
Noeses, 2010.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 3. ed. São Paulo:
Noeses, 2009.
DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros,
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PETIT, Eugène. Tratado elementar de Direito Romano. Trad. Jorge Luís Custódio Porto.
Campinas: Russel, 2003.
1 O artigo foi redigido com base na tese de doutorado defendida pela autora na
Faculdade de Direito da USP em março de 2017 sob orientação do Professor Associado
Paulo Ayres Barreto com pesquisa realizada na Università degli Studi di Roma La
Sapienza no ano de 2015 pelo programa CAPES.
1999.
5 PETIT, Eugène. Tratado elementar de Direito Romano. Trad. Jorge Luís Custódio Porto.
Campinas: Russel, 2003, p. 87-88;
7 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, linguagem e método. 3. ed. São Paulo:
Noeses, 2009, p. 138.
8 DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad,
2001, p. 43.
9 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 26.
10 Idem.
11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas,
2012, p. 398.
12 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Controle
da Administração Pública e Responsabilidade do Estado. In: DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella (Coord.) Tratado de Direito Administrativo. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014, p. 243.
14 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; CARVALHO FILHO, José dos Santos. op.cit., p.
397.
15 MARQUES, Frederico. Tratado de Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, v. 2,
p. 40-41.
18 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012, p. 30.
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Responsabilidade do Estado por dano tributário
22 A combinação conduta ilícita com resultado danoso lícito não será tratada, pois
entende-se que não é possível em matéria de responsabilidade civil um resultado danoso
lícito como consequência de uma conduta ilícita.
23 CARVALHO, Aurora Tomazini. Curso de Teoria Geral do Direito. 2. ed. São Paulo:
Noeses, 2010, p. 712.
24 Apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 39. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 200.
25 Idem.
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