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Desde que a empresa taylorista e fordista foi suplantada pela liofilização toyotista e flexível, passamos a

presenciar o que Danièle Linhart [21] denominou desmedida empresarial. Contra a rigidez vigente nas fábricas
da era do automóvel, durante o longo século XX, nas últimas décadas os capitais vêm impondo sua trípode
destrutiva em relação ao trabalho: a terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram partes
inseparáveis do léxico da empresa corporativa.

Como o capital não se valoriza sem realizar alguma forma de interação entre trabalho vivo e trabalho morto,
ele procura aumentar a produtividade do trabalho, intensificando os mecanismos de extração do sobretrabalho,
com a expansão do trabalho morto corporificado no maquinário tecnológico científico-informacional [16] .
Nesse movimento, todos os espaços possíveis se tornam potencialmente geradores de mais-valor. As TICs,
presentes de modo cada vez mais amplo no mundo da produção material e imaterial e que tipificam também
os serviços privatizados e mercadorizados, configuram-se como um elemento novo e central para uma efetiva
compreensão dos novos mecanismos utilizados pelo capital em nossos dias.

Ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maquinário informacional-digital, estamos


presenciando o advento e a expansão monumental do novo proletariado da era digital, cujos trabalhos, mais
ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as TICs, que conectam, pelos
celulares, as mais distintas modalidades de trabalho. Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital,
estamos vivenciando o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços, uma variante global do que
se pode denominar escravidão digital. Em pleno século XXI.

[...]além de a terceirização ampliar espetacularmente a extração de mais-valor nos espaços privados, dentro e
fora das empresas contratantes, ela também inseriu abertamente a geração de mais-valor no interior do serviço
público, por meio do enorme processo que introduziu práticas privadas (as empresas terceirizadas e seus
assalariados terceirizados) no interior de atividades cuja finalidade original era produzir valores socialmente
úteis, como saúde, educação, previdência etc.

Como vivenciamos uma processualidade multitendencial, em paralelo à ampliação de grandes contingentes


que se precarizam intensamente ou perdem seu emprego, presenciamos também a expansão de novos modos
de extração do sobretrabalho, capazes de articular um maquinário altamente avançado – de que são exemplos
as tecnologias da informação e comunicação (TICs). A invasão dessas tecnologias no mundo das mercadorias,
assim como a exigência de atividades dotadas de maiores “qualificações” e “competências”, é fornecedora de
maior potencialidade intelectual (aqui entendida em seu restrito sentido dado pelo mercado) ao trabalho social,
complexo e combinado que efetivamente agrega valor.

[...] adentramos em uma nova era de precarização estrutural do trabalho, cujos exemplos destacamos: 1. a
erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX, e sua substituição pelas diversas
formas de trabalho atípico, precarizado e “voluntário”; 2. a criação das “falsas” cooperativas, visando dilapidar
ainda mais as condições de remuneração dos trabalhadores, solapando os seus direitos e aumentando os níveis
de exploração da sua força de trabalho; 3. o “empreendedorismo”, que cada vez mais se configura como forma
oculta de trabalho assalariado, fazendo proliferar as distintas formas de flexibilização salarial, de horário,
funcional ou organizativa; 4. a degradação ainda mais intensa do trabalho imigrante em escala global
Se o sistema taylorista-fordista tinha uma concepção na qual a gerência científica elaborava e o trabalhador
manual executava, o toyotismo e as formas da flexibilidade liofilizada incorporaram a ideia de que era preciso
deixar que o saber intelectual do trabalho florescesse e a subjetividade operária fosse também apropriada pelo
capital. É evidente que, desse processo que se expande e se complexifica nos setores de ponta do processo
produtivo (o que não pode ser generalizado em hipótese alguma hoje), resultam máquinas “mais inteligentes”,
que por sua vez precisam de trabalhadores mais “qualificados”, mais aptos a operá-las. E, na processualidade
desencadeada, novas máquinas, “mais inteligentes”, passam a executar atividades outrora feitas pela atividade
exclusivamente humana, desencadeando-se um processo de interação entre trabalho vivo diferenciado e
trabalho morto mais informatizado.

Desenha-se, então, uma nova forma de organização e controle do trabalho cuja finalidade central é, de fato, a
intensificação do processo laborativo, com ênfase também no envolvimento qualitativo dos trabalhadores e das
trabalhadoras, em sua dimensão cognitiva, procurando reduzir ou mesmo eliminar os espaços de trabalho
improdutivo, que não criam valor, sobretudo nas atividades de manutenção, acompanhamento, inspeção de
qualidade etc., funções que passaram a ser diretamente incorporadas ao trabalhador produtivo. Desse modo,
reengenharia, lean production, team work, eliminação de postos de trabalho, aumento da produtividade, qualidade
total, “metas”, “competências”, “parceiros” e “colaboradores” são partes constitutivas do ideário e da pragmática
cotidiana da “empresa moderna”.

Se, no apogeu do taylorismo-fordismo, a pujança de uma empresa estava representada pelo número de trabalhadores
que nela atuavam, pode-se afirmar, de modo contrário, que a empresa que tipifica a fase da flexibilidade liofilizadaé
aquela que aglutina o menor contingente de trabalho vivoe concentra o maior volume de trabalho morto,
corporificado no maquinário informacional-digital, o que lhe gera – potencialmente – maiores índices de
produtividade e de lucratividade na concorrência interempresas. Essas metamorfoses no processo de produção
tiveram – e ainda têm – consequências significativas no universo do trabalho: desregulamentação dos direitos sociais;
precarização e terceirização da força humana que trabalha; aumento da fragmentação e heterogeneização no interior
da classe trabalhadora; enfraquecimento do sindicalismo de classe e incentivo à sua conversão em um sindicalismo
mais negocial e de parceria, mais de cúpula e menos de base, mais parceiro e colaborador e menos confrontacionista.

Preserva-se um número mais reduzido de trabalhadores dentro das empresas matrizes, mais qualificados,
multifuncionaise envolvidos com o ideário dos “colaboradores”. Aumenta o universo dos terceirizados e temporários
dentro (e fora) das empresas, ampliando-se o fosso no interior da classe trabalhadora. De um lado, em escala
minoritária, o trabalhador polivalente e multifuncional da era informacional-digital, capaz de exercitar sua dimensão
mais intelectual com maior intensidade. De outro, uma massa de trabalhadores precarizados, terceirizados,
flexibilizados, informalizados, cada vez mais próximos do desemprego estrutural. A expansão do trabalho part time,
as formas como o capital se utiliza da divisão sexual do trabalho, a ampliação do trabalho dos imigrantes,
frequentemente ilegais, são outras marcas dessa processualidade potencialmente estranhada e reificada.

[...] se podemos considerar o trabalho como um momento fundante da sociabilidade humana‚ como ponto de partida
de seu processo de humanização, também é verdade que na sociedade capitalista o trabalho se torna assalariado,
assumindo a forma de trabalho alienado, fetichizado e abstrato. Ou seja, na medida em que ele é imprescindível para
criar riquezas para o capital, ele se transforma em objeto de sujeição, subordinação, estranhamento e reificação. O
trabalho se converte em mero meio de subsistência, tornando-se uma mercadoria especial, a força de trabalho, cuja
finalidade precípua é valorizar o capital.

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