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O Humanismo Através Da Arte.
O Humanismo Através Da Arte.
SCHAEFFER
RESUMO
Partindo da premissa defendida por Marin (2009) em que a obra de arte pode ser lida
como texto, e que tal afirmação se inscreve em uma longa tradição, percebemos as
possibilidades de desvelar certas reminiscências do passado sugeridas por Francis
Schaeffer em suas leituras da arte renascentista como ruptura com o passado ou o
pensamento bizantino. O autor relaciona as origens do pensamento humanista ao século
XIII, mais precisamente à Tomás de Aquino, cuja reflexão filosófica acabaria por
influenciar seu tempo, de modo que, a primeira grande ruptura com o pensamento
bizantino ocorreria na autonomização do intelecto em relação à fé, processo que
culminaria na dicotomização entre racionalismo e fideísmo, o que segundo o autor, a
partir dessa conjuntura, a natureza acabou digerindo a graça.
Introdução
1
Graduado em História pela PUC-Goiás. Pós-Graduando em Teologia Sistemática pela FASSEB.
fabiosousaneto@gmail.com
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2
BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: O caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra. São
Paulo: Cia. das Letras, 1998.
3
Cf. BRAUDEL, Fernand. La méditerranée: et le monde méditerranéen à l'époque de Philippe II. Paris:
A. Colin, 1990. A primeira edição foi de 1949; Idem. História e Ciências sociais. A Longa Duração. In:
Ibidem. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992, pp. 41-77. A primeira edição desse artigo
foi, em 1958, na revista dos Annales E.S.C..
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Trata-se do livro, O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição
(1976).
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Aqui nos referimos principalmente à Emile Durkheim em; As formas elementares da vida religiosa: o
sistema totêmico na Austrália (1912), e à Max Weber em; A ética protestante e o espírito do capitalismo
(1904). Parece que neste último, a racionalidade é inerente ao protestantismo, não o racionalismo.
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In CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
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Antiguidade ao século XVIII, no ocidente, [cuja principal premissa era] “ler no quadro a
narração que este teve a intenção de traduzir em imagem visual” (MARIN, 2009:119),
portanto, o autor se debruça sobre um problema histórico aventado sob uma prática de
leitura, especificamente, a leitura da arte pictórica.
Para Marin, tal tradição afirmaria uma leitura a priori de um texto por parte do
pintor como preâmbulo estruturante da narrativa visual a se realizar, ou seja, o quadro
seria um referente do texto, e para entender o quadro, esse, deveria ser lido como se fosse
um texto. O autor parece sugerir na forma de perguntas retóricas que todos os problemas,
– digamos, recentes – em relação à leitura de um quadro, se inscreveriam como respostas
à essa tradição, “sublinhando os desvios, as distâncias, as rupturas em relação a ela”
(MARIN, 2009:119). “Essa tradição”, esse espírito da época não poderia ser ignorado,
caso contrário, a arte perderia seu significado histórico, como afirmou Moraes (2018) na
introdução à 7Filosofia e Estética de Rookmaaker (2018:11), “resta ainda o fato de que
todo artista é um indivíduo concreto inserido num meio, tempo e ambiente cultural
determinados, os quais evidentemente exercem, voluntária ou involuntariamente, impacto
em sua vida e pensamento”.
O próprio estilo do artista se inscreveria numa perspectiva histórica, pois seria “uma
resposta à questão de como as normas estéticas sãos formadas em certo período”
(ROOKMAAKER, 2018:58), de outro modo, as referências da arte como; bizantina,
romântica, barroca, renascentista, se tornam vazias de significado, além disso, o estilo se
associa com outra dimensão, a técnica, que em grego clássico Τέχνη – techné, possui o
significado de arte. Por exemplo, a arte bizantina poderia ser definida sob o motivo mestre,
o religioso, contudo, a técnica e o estilo, também aparecem como fator distintivo, no caso
bizantino, as preferências pelo mosaico em detrimento dos painéis e afrescos, a
representação icônica bidimensional e desproporcional, a utilização de um fundo dourado,
mesmo nos trabalhos em painéis, ou nas iluminuras, isso seria também um fator de
identificação do estilo, que se insinua inclusive coletivo. Voltando ao motivo religioso,
algo que poderia causar estranhamento é que na percepção de Runciman (1961) essa arte
não seria necessariamente cristã, pois;
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Rookmaaker parece ser um ilustre desconhecido na academia brasileira, a obra citada encontra-se aqui
em sua primeira edição.
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Na Idade Média, toda Europa estava permeada pelo ideal de uma igreja
que abarcava todas as esferas da vida e de uma vida que era centrada
em Deus. Isso encontra sua expressão no estilo. Pense por exemplo, nas
igrejas góticas com seu verticalismo, em que virtualmente todo edifício
da igreja é um símbolo da posição central da igreja, e Cristo exaltado
no coração do povo numa visão teocêntrica da vida e do mundo. A
glória da igreja é expressa nos edifícios da igreja barroca da
Contrarreforma (ROOKMAAKER, 2018:59).
Essa dinâmica cultural no medievo também fora verificada por C. S. Lewis (2015)
quando afirma “o caráter predominantemente livresco ou clerical da cultura medieval”,
com essa afirmação a arte parece estar nas mãos do clero, senão, patrocinada por ele, e
muito embora, nem todos terem acesso aos livros e a própria raridade da alfabetização,
esse período de autoridade não só da igreja, mas do auctour, conferia uma importância
autoritativa à literatura medieval. Na perspectiva do professor de literatura medieval da
Universidade de Oxford, a literatura medieval seria resultado de uma síntese, que poderia
ser rastreada “seguindo até sua fonte por um rio que passava diante de nossa porta”
(LEWIS, 2015:27), tal síntese era o resultado das incorporações progressivas de vários
autores, latinos, gregos – e no caso inglês, também de celtas e germânicos.
Os sentidos do parágrafo acima, são entendidos na aproximação com Runciman e
mesmo, Le Goff, no que se referem à dinâmica do ambiente cultural do medievo que seria
resultado de sínteses, contudo, há algo muito interessante em Lewis em relação à literatura
e consequentemente à língua. Segundo ele,
8
A lenda narrada por Spalding (1993) reza que após ter recepcionado amigavelmente
Saturno, Jano recebeu da divindade a faculdade de enxergar concomitantemente, passado
e futuro. Suas faces podem ser encontradas em moedas antigas, representadas por uma
figura de dois rostos ligados entre si, mas, em direção oposta. Passado e presente ali são
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irreconciliáveis, havendo sempre uma ruptura no plano temporal. Jano seria uma
divindade ambígua por excelência, mesmo entrevendo ao mesmo tempo, passado e
futuro, suas faces nunca trocam olhares. De certa forma, ele se organiza na fronteira
desses dois instantes, o pretérito e o porvir, portanto, se situa no plano presente, em sua
temporalidade. Aqui, é nosso tempo que importa, o Kairós benjaminiano, o agora que nos
redime do passado em todas as tensões nele inscritas e articuladas no tempo presente.
Seria nesse sentido que Francis Schaeffer vasculha essas reminiscências do passado,
a partir de uma preocupação do presente, qual seja, para romper com o abismo
comunicacional de seu tempo, marcado por profundas mudanças ocorridas nas formas de
pensamento, seria preciso empreender um inventário do pensamento ocidental. O
presente está ameaçado, parece se tornar irreconhecível, o abismo geracional é marcado
pela falência com as propostas da modernidade, o mundo se apresenta do ponto de vista
teórico, como incognoscível, mas para ele, isso nem sempre fora assim, e a arte traria
consigo alguns vestígios do passado, permitindo possibilidades interpretativas sobre
tempos idos e irrecuperáveis.
Contudo, essa revisitação do passado parece não objetivar recuperá-lo, não há
insinuação essencialista, entretanto, há uma percepção valorativa, a concepção de história
de Schaeffer talvez não seja a história como mestra da vida, pois muito embora, o
importante seja o presente vivido e o agora, a história parece contribuir no afã de dar
respostas aos problemas de seu tempo. Certeau (2011) já dissera que o percurso
historiográfico leva sempre consigo o presente, e que “é necessário lembrar que uma
leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre
dirigida por uma leitura do presente (CERTEAU, 2011:8).
Benjamin (1987) havia dito que esse escrutínio estaria carregado de um apelo, e que
era “objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um
tempo saturado de agoras” (BENJAMIN, 1987:229). Rüsen (2001) considera que haveria
uma necessidade humana intrínseca de orientação temporal, isso se daria na articulação
entre a experiência do passado, o presente vivido e o futuro desejado, onde a História
seria;
A noção de tempo para Schaeffer é decididamente cristã, por isso sua abordagem
histórica está orientada pela visão cristã reformada da realidade, com ênfase no 8Mandato
Cultural, onde “o tempo já não é a imagem móvel da eternidade. A história é vista como
um itinerário, uma marcha da humanidade para a sua realização, para o encontro da
Jerusalém terrestre com a Jerusalém celeste" (BOURDÉ; MARTIN, 1983:13), assim
como em Benjamim, a história cumpre um papel, se inscreve num compromisso por
demais humano, a grande diferença é que em Schaeffer não há dicotomização entre o
mundo tangível e o imaterial como no materialismo histórico. Assim, seu compromisso
seria tanto com a cultura quanto com a espiritualidade, nele, de certa forma, as duas
cidades agostinianas, a cidade de Deus e a cidade dos homens não são tão díspares assim.
O tempo em que Schaeffer escreve, são segundo Hobsbawm (1995) os
“desvairados” anos de 1960, tempos caracterizados pela polarização ideológica
encabeçada pelas potências vencedoras da segunda grande guerra, pela contracultura, por
questionamentos em relação à proposta otimista da história assentada nos pressupostos
do Iluminismo e do cientificismo do século XIX, aliás, Schaeffer já avalia Michel
Foucault e sua abordagem sobre a loucura como algo representativo de um período
precocemente denominado de pós-moderno, tempos instáveis, incertos e irracionais.
Portanto, ao contrário do que afirmavam as novas teorias que apontavam naquele
horizonte, para ele, o mundo ainda era cognoscível, era possível compreendê-lo, nesse
sentido, a história prestaria um grande serviço.
Um lócus escolhido para essas inferências fora a arte. Para Schaeffer, ela estaria
carregada de significados, permitindo leituras sobre o modo como o pensamento humano
se consubstanciava em dada temporalidade, o estético seria guiado pelo filosófico, senão,
campos sobrepostos, daí seu ponto de inflexão partir dos tempos de Tomás de Aquino,
ou seja, o século XIII. Para ele, esses tempos foram decisivos em termos de um marco da
lenta e contínua ruptura que desembocou em sua própria temporalidade, uma sequência
cujo ápice produziu a pós modernidade.
Como isso ocorreu? Schaeffer arrisca dizer que tudo começou com a dicotomização
entre os motivos medievais de graça e natureza, sobretudo, na autonomização do intelecto
8
Schaeffer está em diálogo com a filosofia reformacional holandesa. Nessa tradição, há forte ênfase no
Mandato Cultural; uma interpretação de Gn 1:26-30 onde à humanidade como portadora da Imago Dei,
cabe o domínio sobre a criação como herança divina. Implica no reconhecimento da soberania de Cristo na
cultura, portanto, não há dualidade entre as coisas da natureza e do espírito.
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em Tomás de Aquino, dessa forma, “ele permitiu que o motivo grego da forma-matéria
sobrepujasse o motivo da criação da religião cristã [...] ele dividiu a ordem da criação em
um âmbito natural e outro sobrenatural. E sua concepção da ‘ordem natural’ vinha de
Aristóteles” (DOOYEWEERD, 2015: 139). A filosofia tomista em sua leitura aristotélica
daria a tônica a partir de então do crescente naturalismo, a síntese no pensamento tomista
torna-se paradigmática, uma vez que sua influência possibilita o humanismo. Essa
assertiva encontra ecos em Le Goff (1993), principalmente quando coloca os humanistas
em suspeição em razão das afirmações de ruptura e oposição no final da Idade Média,
negando inclusive, as contribuições da escolástica.
Para o autor de Os Intelectuais da Idade Média (1993), novas abordagens
historiográficas apontam para um humanismo insider, de dentro da escolástica, além
disso, para além das ideias pré-concebidas sobre ela, “a oposição escolástica/humanismo
está sendo revista” (LE GOFF, 1993:15). Daí, não ser gratuita a sugestão do autor de um
balizamento histórico por ele denominado de 9“uma longa Idade Média”, talvez sugerindo
mais continuidades do que rupturas, ou uma dinâmica própria, paulatina, cujos resquícios
vão até o século XIX.
Uma leitura da arte por Francis Schaeffer; quando a natureza devorou a graça
9
Essa sugestão do autor é uma interpolação, já que a obra citada é sua segunda publicação datada de 1957.
O conceito de longa Idade Média parece ser gregário da noção presente nos pais Annalistes de longa duração,
extrapolando-a, portanto. A partir de 1970 os limites cronológicos do período são questionados, culminando
na afirmação do conceito na década de 1980 e publicação do livro “Uma longa Idade Média” em 1998.
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as portas definitivamente para a natureza. Sobre isso escreve Baxandall (1991) ao afirmar
o artista do Quatrocento como um imitador da natureza;
Outros dois artistas e suas obras são ainda analisados, Filippo Lippi (1406-1469) e
Fouquet (1416-1480). A Madona do primeiro não seria mais um símbolo distante do real,
mas uma belíssima jovem cuja modelo segundo Schaeffer, fora amante do pintor. A
especificidade dessa obra consistiria no fato de que nunca antes alguém ousou representar
Maria dessa forma, para o autor, isso significava que “a graça estava morrendo”. Quanto
à obra do segundo, tratava-se do corolário dessa prática ousada em que Maria fora
representada a partir de uma referência incomum, a amante do rei, além disso, enquanto
nas obras anteriores Maria poderia ser representada amamentando, agora surge com um
dos seios a mostra, agora sim, “a graça estava morta”. O problema aqui, parece não ser
simplesmente o caráter subversivo da arte, mas da natureza, essa, como algo autônomo
em relação à Deus.
Nosso autor não vê problema na representação e valorização da natureza, pelo
contrário, admite a grandeza do pensamento no período pela nova posição que a natureza
assume, para ele, a questão fundamental, é a ruptura, ou o germe da tensão que se
desdobrará nos séculos seguintes entre o naturalismo e o fideísmo. Esse será o mote nas
tentativas de conciliação entre esses dois campos, que a partir de então são autônomos,
hierarquizados e mesmo negados em ambas as filiações. As impressões positivas sobre o
naturalismo, e negativas na arte simbólica dos bizantinos, se observam em outras
reflexões de Schaeffer (2013). Aqui ele percebe à guisa de Runciman, a tensão histórica
entre o naturalismo e o simbólico na arte medieval, o que registra do seguinte modo;
pintadas não como pessoas reais, mas como símbolos. [...] O retrato da
natureza foi largamente abandonado e, por uma infelicidade ainda
maior, o elemento humano vivo foi removido (SCHAEFFER, 2013:14-
15).
Conclusões
Percebemos então, que Schaeffer procurou dar respostas aos problemas de seu
tempo, a partir de um mergulho histórico. Seu objeto fora as formas do pensamento em
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Algo semelhante fora abordado por Max Weber (2004), ao analisar o fenômeno que denominou de
desencantamento do mundo. Na mesma esteira, seguiram Adorno e Horkheimer ao descreverem o
fenômeno do esclarecimento tendo como objetivo o desencantamento do mundo. Para maiores informações
vide as obras, WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento.
Tradução de Guido Antônio de Almeida, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985.
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dada temporalidade, sobretudo, os tempos dos humanistas. Assim, ele entende que esse
espírito da época, seria de certo modo, o pano de fundo das artes, de outro modo, as visões
de mundo seriam uma forma de moldura da arte pictórica. Desse modo, o passado só
estaria disponível em suas representações ou reminiscências, talvez aqui o termo cultura
em seu sentido antropológico assuma grande importância para o autor. De fato, não há
contradição nessa assertiva, porquanto, Schaeffer por seu lugar social e de fala, exalta a
cultura como campo legítimo de atuação humana – sobretudo, cristã – como resposta ao
Mandato Cultural. A cultura, portanto, teria muito a dizer, a arte fora o lócus privilegiado
para sua investigação e estaria articulada com todas as formas e dimensões da vida,
inclusive o pensamento, a ciência e mesmo a fé.
Outros autores aqui citados, também compartilham em certa medida de suas ideias,
em Runciman a arte Bizantina seria resultado de um espírito da época, de uma síntese
como expressão máxima de um tempo. Clive Staples Lewis sugere a articulação entre a
arte, a literatura e o pensamento, onde o pano de fundo da cultura na idade média seria
cosmogônico, cuja compreensão astronômica seria um modelo monumental para todas as
formas de produção humana. Em Rookmaaker a arte se associa à experiência humana em
todas as dimensões da vida, inclusive a esfera pística, por isso mesmo, haveria um desejo
em Schaeffer de reconciliação entre natureza e graça, algo para ele possível pela
recuperação dos motivos cristãos, onde o engajamento do fiel na cultura se tornaria
axiomático, uma resposta positiva ao Mandato Cultural.
BIBLIOGRAFIA