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LEANDRO TAVARES DE OLIVEIRA

A (NÃO) ESPECIFICIDADE DA CLÍNICA PSICANALÍTICA


COM CRIANÇAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como


exigência parcial para a obtenção do título de especialista
em Psicologia clínica: uma abordagem psicanalítica no
Curso de Especialização lato sensu do Centro
Universitário Salesiano.
Orientadora: Profa. Ms. Maria Cristiane Nali

Campinas

2019
LEANDRO TAVARES DE OLIVEIRA

A ESPECIFICIDADE DA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM


CRIANÇAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como exigência parcial para a obtenção do
grau de especialista em Psicologia Clínica:
uma abordagem psicanalítica no Centro
Universitário Salesiano de São Paulo.
Orientadora: Profa. Ms. Maria Cristiane Nali

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em __.__.____pela comissão


julgadora:

_________________________________________________________
Profa. Me. Maria Cristiane Nali – Centro Univ. Salesiano de São Paulo

___________________________________________________________
Profa. Me. Veridiana Fátima Marucio – Centro Univ.Salesiano de São Paulo
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Profa. Me. Maria Cristiane Nali pela orientação dada, a qual a
disponibilidade e a objetividade nas considerações contribuíram significativamente para a
conclusão do trabalho. Agradeço a Profa. Me. Veridiana Fátima por aceitar o meu convite e
fazer parte da comissão julgadora. A todos os professores que contribuíram no percurso de
busca de conhecimento deixo as minhas estimáveis considerações e, agradeço especialmente, a
Valeria Simões Lobado, que esteve junto comigo em toda essa busca de conhecimento e
certamente me fortaleceu com a sua presença e a sua amizade.
RESUMO

O presente trabalho trata de uma pesquisa bibliográfica que tem como objetivo o
questionamento se há especificidade na clínica psicanalítica com crianças. Como ponto de
partida foram discutidas as determinações históricas sobre o conceito de infância e o quanto as
transformações sociais afetam a forma como tratamos e compreendemos a criança. Dentro do
campo teórico e clínico da psicanálise cabe o questionamento se essas transformações também
nortearam os saberes constituídos sobre a criança na psicanálise e se o alicerce da clínica sofre
mudança devido a própria condição da criança. Com base em autores que discutiram o tema e
artigos científicos retirados da base de dados da Scielo e PePSIC, chegamos à conclusão de que
a clínica psicanalítica trabalha com o infantil e na construção da fantasia primordial, o que não
pressupõe a fixação no tempo cronológico, mas na montagem efetuada pelo sujeito a partir de
sua entrada no campo da linguagem.

Palavras-chave: Psicanálise com crianças. Constituição subjetiva. Fantasia primordial.


ABSTRACT

The present work is a bibliographic research which questioning if there is specificity in


the child psychoanalytic clinic. It was initially discussed the historical determinations about the
concept of childhood and how much the social transformations affect the way we treat and
understand the child. Taking into account psychoanalytic theory and clinical practice it was
questioned whether these transformations also guided the knowledge about the child in
psychoanalysis and whether the foundation of the clinic undergoes change due to the child's
own condition. Based on authors who discussed the topic and scientific articles taken from the
Scielo and PePSIC database, we conclude the psychoanalytic clinic works with the child and in
the construction of primordial fantasy, which does not presuppose the fixation in chronological
time, but in the assembly made by the subject from his entry in the language field.

Keywords: Child psychoanalysis. Subjective constitution. Primal fantasy


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................7
2 DO TEMPO DA INFÂNCIA..............................................................................11
2.1 ENTRE INFÂNCIA E INFANTIL.......................................................................16
2.2 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA ÓTICA LACANIANA.........................19
2.3 O REAL, SIMBÓLICO, IMAGINÁRIO E A ESTRUTURA..............................21
2.4 A ÊNFASE NO IMAGINÁRIO..........................................................................22
2.5 A ÊNFASE NO SIMBÓLICO..............................................................................27
2.6 A ÊNFASE NO REAL.........................................................................................34
2.7 A CLÍNICA DA FANTASIA: POLÍTICA, TÁTICA E ESTRATÉGIA.............37
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................41
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................43
8

1 INTRODUÇÃO

Com base em trabalhos já consagrados na literatura, podemos vislumbrar a complexidade do


conceito de infância. Seja na acepção de Philippe Ariès (1986) quando demarca o momento que
se inicia o sentimento de infância, ou na concepção de desaparecimento da infância proposto
por Postman (2006). Para além de uma concepção social, podemos entender de um ponto de
vista mais biologizante a ideia de infância como fase do desenvolvimento, ou seja, algo que
ainda não atingiu sua maturidade e que precisa de recursos e apoio para o seu pleno curso
evolutivo. Na esteira disso, também temos o aparato legal e político que se estabelecem no
Brasil com a criação da lei 8069/1990 que determinam os direitos da criança e do adolescente.
O fato é que a ideia de criança e de infância que temos, se transforma ao longo do tempo e
depende da sociedade em que vivemos, é quase inquestionável o quanto as transformações
tecnológicas e as novas composições familiares também impactam na forma como tratamos
nossas crianças e a posição que elas ocupam em nossa sociedade.
Na psicanálise também presenciamos um mesmo questionamento frente às crianças, algo que
remonta a própria criação da psicanálise, quando Freud (1896/1996), debruçado sobre a questão
da etiologia da histeria entende, com base nos casos atendidos por ele, tratar-se de um trauma
sexual ocorrido na infância. Lembremos do texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
(1905/1996), que em seu segundo ensaio desmonta a ideia então vigente de uma sexualidade
que desaflora na puberdade ou do caso Hans (1909/1996) emblemático na sua posição inaugural
de um possível tratamento psicanalítico de crianças. Observemos também o desenvolvimento
teórico freudiano com passagem do foco da infância para a construção da fantasia infantil.
(PACHECO, 2012).
Esse último aspecto merece ser desdobrado aqui uma vez que está ligado ao tema
desenvolvido no trabalho, na verdade, todos os pontos aqui citados da obra de Freud fazem parte
desse desenvolvimento. Por exemplo, no texto “A etiologia da histeria” (FREUD, 1886/1996),
o que é desenvolvido é que a base da enfermidade neurótica está na atividade sexual precoce,
geralmente praticada por um adulto em uma criança, ou de uma criança para outra, mas nesse
último caso, Freud (1886/1996) postula que, a criança que tem papel ativo na relação com outra
criança, geralmente também passou por esse mesmo processo passivamente, nesse caso por um
adulto. Outro fator importante é a ideia de “conflito psíquico” que consiste na passagem de uma
representação incompatível nas defesas do ego, obrigando o psiquismo a jogar essa
representação para o inconsciente e criar um sintoma em sua substituição. Aqui fica nítido que
o autor sublinha a experiência concreta na infância como fator determinante para a formação do
9

sintoma neurótico. Essa teoria sofrerá transformações posteriormente, ao constatar que a


sexualidade infantil se manifesta independente da sedução do adulto, como teorizado nos “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1996). Há na criança uma busca de saber
que se manifesta nos questionamentos frente a diferença dos sexos e do nascimento dos bebês,
o que acarreta uma construção fantasmática criada para dar conta dessas questões. (FREUD,
1908/1996). Esse aspecto pode muito bem ser ilustrado no caso do “pequeno Hans” (FREUD,
1909/1996), em que acompanhamos o percurso construído pelo garoto para elaborar temas
relacionados à diferença dos sexos e da origem dos bebês, ali motivado pelo nascimento de sua
irmãzinha. Se abordarmos o lado fóbico de Hans, constataremos que o caso apresenta uma
criança que próximo à idade de cinco anos contrai uma fobia de cavalos que o impede de sair
de casa e o quanto essa construção nos serve para a ilustrar o “complexo de castração”. Podemos
entender esse complexo como “o sentimento inconsciente de ameaça experimentado pela
criança, quando ela constata a diferença anatômica entre os sexos”. (ROUDINESCO & PLON,
1998, p.105). Até esse momento a criança tende a atribuir um pênis a todos os seres, animados
ou inanimados.
Em um texto intitulado “A organização genital infantil” (FREUD, 1923/1996) fez um
acréscimo ao já desenvolvido teoricamente nos textos anteriores, a propósito do “complexo de
castração”, que será relacionado ao “Complexo de Édipo” e incluído nos processos do
desenvolvimento sexual a partir da inclusão da fase fálica. (ROUDINESCO & PLON, 1998). O
autor refere que:
Não é irrelevante manter em mente quais as transformações sofridas, durante
o desenvolvimento sexual da infância, pela polaridade de sexo com que
estamos familiarizados. Uma primeira antítese é introduzida com a escolha de
objeto, a qual, naturalmente, pressupõe um sujeito e um objeto. No estágio da
organização pré-genital sádico-anal não existe ainda questão de masculino e
feminino; a antítese entre ativo e passivo é a dominante. No estádio seguinte
da organização genital infantil, sobre o qual agora temos conhecimento, existe
masculinidade, mas não feminilidade. A antítese aqui é entre possuir um órgão
genital masculino e ser castrado. Somente após o desenvolvimento haver
atingido seu completamento, na puberdade, que a polaridade sexual coincide
com masculino e feminino. A masculinidade combina [os fatores de] sujeito,
atividade e posse do pênis; a feminilidade encampa [os de] objeto e
passividade. (FREUD, 1923/1996, p.161).

Agora devemos abordar o Complexo de Édipo e sua relação com o Complexo de Castração,
já que este está ligado a saída daquele. A partir do momento da passagem pelo Complexo de
Castração é que, como vimos na citação de Freud, possibilitará para a criança a posição
masculina ou castrada, para depois, na puberdade essas duas posições serem relacionadas a
masculinidade e feminilidade, posição ativa ou passiva. Segundo Roudinesco e Plon (1998)
10

Freud usa da tragédia grega de Sófocles, Édipo, para ilustrar algo que acontece com todas as
crianças em certa fase de seu desenvolvimento. Essa teoria surge conjuntamente com o
abandono da teoria da sedução e pretende marcar o momento em que a criança na fase fálica
começa a sentir desejos de possuir a mãe e toma o pai como um rival, por outro lado, podemos
dizer que essa fase também tem a sua face negativa, chamada de “Édipo Invertido” e que toma
o pai como objeto de amor e destina sentimentos hostis para a mãe. São essas duas faces do
“Complexo de Édipo” que caracterizam essa passagem que terá a sua dissolução com o
“Complexo de Castração”, no caso do menino, que por ver o pai como uma barreira de seu
desejo e por medo de perder o falo, abre mão da mãe para identificar-se a ele. Essa mudança de
identificação para uma pessoa do mesmo sexo, garante uma outra escolha de objeto e novas
identificações posteriores. O “Complexo de Castração” para o menino, caracteriza-se como a
resolução do impasse, já do lado da menina, descobre-se castrada e, na inveja do pênis (aqui
identificado como objeto fálico) deposita no desejo de ter um filho do pai a possibilidade de
uma compensação. Essa passagem esta pautada nas construções da criança frente ao enigma do
desejo do outro e da diferença sexual. O que se extrai daqui é a passagem da importância do
vivido na infância para a construção de linguagem que o sujeito faz para elaborar a travessia do
“Complexo de Édipo”.
Longe de se limitar a Freud, que em sua clínica apresentou apenas um único caso de
psicanálise de criança, “Análise de uma fobia e um menino de cinco anos” (1909/1996), o
chamado caso Hans, que – a propósito - não foi conduzido por ele, mas pelo pai do garoto sobre
a orientação do pai da psicanálise, divergências entre os pós-freudianos foram também
apresentadas, que levavam em conta a especificidade da criança e seu momento no
desenvolvimento, tal como vistos nos pontos de vistas de Melanie Klein e Anna Freud.
Da filha de Freud, percebemos que pelo seu referencial pedagógico de base, a criança
foi abordada mais pelo seu aspecto comportamental e desenvolvimentista, com um forte
conteúdo de cunho adaptativo da criança ao social. (CALZAVARA, 2013). A técnica na
verdade buscava uma adaptação da clínica do adulto para a de crianças, que para tal era
necessário um período de adequação, de treinamento que o levaria a condição de paciente
analisável, essa condição tinha como referência um paciente adulto ideal. “Três requisitos que
Anna Freud considerava necessários para o desenvolvimento de uma análise: (a) a consciência
da doença, (b) a confiança na análise e no analista e (c) a decisão interior de se analisar; a todos
eles a criança respondia negativamente”. (CORSO,1998). Na abordagem Kleiniana, portadora
de divergências explícitas as concepções de Anna Freud, o pressuposto era de que a criança já
tinha conteúdos analisáveis, sendo sua diferença principal um maior governo de seus conteúdos
11

pelo inconsciente devido a um eu ainda não desenvolvido plenamente. O que deveria ser na
verdade pensado era a necessidade de se fazer ou não uma análise de crianças. A premissa
divergente entre as duas era que para colocar a criança em uma situação de analisável, uma certa
constituição psíquica que não fizesse só dos pais reais os representantes do que estão em jogo
na família era necessária. Se a criança produzia sintomas era justamente por haver algo
estrutural (construção interna) na constituição subjetiva, que não se limitava à relação dos pais
reais. Em oposição clara à abordagem de Anna Freud que visava desenvolvimento e
comportamento, Klein retoma o eixo inconsciente da análise e possibilita o acesso da criança a
esse método de tratamento.
A transferência na infância tornasse possível para Melanie porque para ela os
pais são figuras introjetadas desde sempre, não há qualquer outra relação
possível com a criança que não seja transferência, a própria relação com os
pais reais é transferência. Neste sentido, a análise de uma criança não difere
muito de outros cenários de sua vida. Todo seu cotidiano visará modular sua
relação com as fantasias que constituiriam sua verdadeira essência. (CORSO,
1998, p. 112)

Aqui vemos uma ilustração clara nas figuras de Klein e Anna Freud do quanto as concepções
de base sobre a criança podem modular as atuações. Nesse sentido é que procuraremos
questionar a especificidade da psicanálise de criança à luz da teoria lacaniana, para tanto, não
será necessário percorrer as divergências clínicas no campo psicanalítico, mas fazer um percurso
que leve em consideração a matriz de constituição do sujeito que Lacan constrói a partir de sua
proposta de retorno às bases conceituais de Freud. O que visamos buscar é uma clínica pautada
no sujeito, que possa se basear no sujeito do inconsciente e não no tempo cronológico do corpo.
Esta pesquisa tem a sua importância por demarcar o campo de atuação da psicanálise
com crianças nos mesmos alicerces da psicanálise de adultos. Para tanto faremos uma pesquisa
bibliográfica pautada em autores que abordaram a temática e artigos científicos retirados da
base de dados Scielo e PePSIC, passaremos pelo conceito de infância e suas implicações,
constituição do sujeito à luz da teoria lacaniana a partir dos registros simbólico, imaginário e
real e, como fechamento sustentaremos a clínica psicanalítica como a clínica do infantil, pautada
na ideia de construção da fantasia primordial.
12

2. DO TEMPO DA INFÂNCIA

As transformações sociais a partir dos acontecimentos históricos é um fato


praticamente incontestável, vide as mudanças que ocorreram em nossas vidas com o advento
dos computadores, da internet, dos smartphones, etc. A forma como tratamos nossas crianças
e sua representação dentro de uma sociedade também sofre transformações. Aqui, para
desenvolver nossa ideia, tomaremos como base a concepção moderna de infância como
consequência da ciência moderna e da Revolução Francesa, que cria uma nova definição de
indivíduo, de liberdade e de responsabilidade que possibilita a distinção entre adultos e
crianças (SAURET, 1998). Não que a criança não tenha tido o seu espaço ao longo da história,
como aponta Cirino (2001, p.20):
Não há dúvida de que o organismo humano sempre se desenvolveu,
desde a concepção até a idade adulta, atravessando um período inicial de
extraordinária prematuridade, que requer cuidados e proteção constante dos
adultos, a fim de assegurar a sobrevivência da espécie: a criança sempre foi
a cria do homem em todas as sociedades e culturas. No entanto, essa ideia
ou visão da criança e dos cuidados a ela dedicados não foram sempre os
mesmos, constituindo-se em produção relativamente recente.

Já Ariés (1986) aponta em seu livro “História social da criança e da família” como o
chamado “sentimento de infância” foi se construindo ao longo do tempo. De forma
pormenorizada e partindo da Idade Média, a obra ilustra como se passou de uma certa
indiferenciação entre crianças e adultos, para uma posição social da criança e da infância na
sociedade. Pacheco (2012) contribui quando aponta que a própria etimologia da palavra
infância, remete ao infante, ou seja, aquele que não fala. A ideia de criança estava mais ligada
à situação de dependência do que a fatores biológicos e, como não podiam fazer parte da vida
adulta, não eram levadas em consideração. Esse apagamento da infância na Idade Média pode
ser visto pela ausência da representação da criança nas obras de arte. Outro exemplo desse
não lugar social da infância é o apontado por Postman (2006) que escreve que em 1980 apenas
7% da população jovem ia para escolas secundárias, tendo os outros 93% de crianças e
adolescentes o destino do trabalho como os adultos.
Ariés (1986) data o ganho da representação social da criança do final do século XVII,
a partir de dois pontos, o primeiro é quando a escola passa ser a responsável pela
aprendizagem, ou seja, as crianças passam a ser retiradas do seio familiar para um período de
escolaridade retornando somente após a conclusão de sua educação escolar. Na esteira disso,
Postman (2006) postula que a invenção da prensa e a necessidade de obter a leitura como
instrumento para obtenção de informações, foi um dos pontos fundamentais para a separação
13

entre crianças e adultos. Em segundo lugar, a família passa a ser o lugar do afeto entre o casal
e seus filhos, o foco passou a ser as crianças, que saem de um lugar de anonimato para um
lugar central, tendo como consequência a diminuição da taxa de natalidade devido a um
melhor cuidado dos pais com suas crias. Nesse mesmo entendimento, Cirino (2001) aponta
que a partir dessa nova perspectiva a criança passa a ser olhada como o “homem de amanhã”
e será objeto de diversas áreas do conhecimento, tanto educacionais como científicas. Esse
alicerce possibilitará em momentos distintos o desenvolvimento da “pedagogia, da pediatria,
da puericultura, da psicologia do desenvolvimento, e uma série de ‘especialistas’, que
legitimados por uma posição de autoridade pelo saber científico, falarão e, de fato, construirão
a infância”. (CIRINO, 2001, p. 22).
Dentro dos eixos familiar, jurídico, médico, psicológico e pedagógico podemos ver a
construção do ideal de infância. No plano familiar podemos, junto com Freud (1914 apud
CIRINO, 2001) em “Introdução ao narcisismo”, entender a criança como uma aposta futura
daquilo que não foi possível se concretizar na vida dos pais, como aquela que poderá assumir
o ideal de não se submeter às restrições e limitações impostas pela vida. No âmbito jurídico,
toda a construção que visa assegurar os direitos da criança, e sua posição particular na
sociedade pode ser ilustrado em nossa lei 8069/1990 que introduz a garantia de direitos a todas
as crianças e adolescentes em âmbito nacional. Todo esse movimento, acompanha as decisões
internacionais da ONU (Organização das Nações Unidas) que cria a Declaração Universal dos
Direitos da Criança em (1959). Esse momento no Brasil, marca a passagem da doutrina da
“situação irregular” para a doutrina da “proteção integral”. Essa mudança tira a criança tanto
do âmbito repressivo e da caridade, para um sujeito pleno de direitos. Antes as crianças e
adolescentes em situação irregular, diziam respeito tanto as crianças que passavam por
dificuldades e sofriam violência, como as infratoras, que por sua situação irregular, estavam
submetidas a intervenção do estado. (CIRINO, 2001).
Pacheco (2012) sinaliza que as visões cultural e jurídica estão marcadas por uma
concepção biologizante do desenvolvimento infantil. Ela ressalta que tanto na definição do
dicionário como do ECA, os termos fase e período estão ligados à maturação sexual, sendo a
puberdade esse marco de passagem. Também aponta que essa mesma concepção é a que
embasou boa parte das teorizações psicanalíticas com crianças em seus primórdios,
discutiremos este ponto quando buscarmos fazer a distinção entre a infância e o infantil na
estrutura. O que cabe ressaltar aqui, é que a concepção de criança de determinado momento
histórico rege e demarca sua condição e mobiliza as práticas e saberes que se estabelecem
para ela.
14

Os saberes que se estabeleceram podem ser divididos em três eixos; médico,


psicológico e pedagógico - todos marcados pelo ideal de cientificidade. A pedagogia como a
possibilidade de criar métodos mais eficazes para a educação e enquadramento da criança no
ideal de sociedade, já a psiquiatria e a psicologia como campos que podem contribuir para o
diagnóstico a partir de recursos psicométricos e do mapeamento de padrões que vão balizar o
normal e o patológico. Na busca de nomear esse mal-estar que não encontra sua base biológica
clara, as definições passam a se basear em critérios clínicos. (VORCARO, 2004).
Nesta lacuna o diagnóstico psiquiátrico-psicológico assume função
de instrumento esclarecedor de processos patológicos invulneráveis à
classificação etiológica e nosográfica, que sustentam o conhecimento
médico sobre o funcionamento orgânico, ou ainda de manifestações que
atestam resistência, seja ao padrão de adaptação escolar, seja à aprendizagem
previstos pela pedagogia. Em última instância, o diagnóstico psiquiátrico-
psicológico propõe descrever e compreender a realização insistente do que
é, na criança, irreconhecível pelo ideal parental e, mais ainda, indicar
terapêuticas que, reconduzindo-a à normalidade ou adaptando-a, possam
aliviar o mal-estar que a infância produz para o projeto social e , assim,
sustenta-lo. Na polimetria que o seu narcisismo singulariza, enquanto
portadores dos ideais sociais, incide o domínio da previsibilidade, como
garantia de potencialidade, em suas versões dadas pela medicina e pela
pedagogia: a promoção da saúde e da inteligência é sinonímia de realização
plena, ou seja, fazem-se fiadores da sustentação do ideal do qual um filho é
promessa. (VORCARO, 2004. p.36).

Um pouco além dessa criação da infância, acreditamos que podemos levar a discussão
para outro polo que o livro de Postman (2006) pretende representar já em seu título “O
desaparecimento da infância”. No livro ele faz uma discussão de como a velocidade das
informações e a sua difusão através da eletricidade foi fundamental para abalar a estrutura que
até então separava o mundo da criança e do adulto. O livro demarca a TV como grande
causador do que ele chama de desaparecimento da infância, a base da tese de Postman é que
se passou de um sistema de símbolos escritos que precisavam de um período de escolarização,
ou seja, só os alfabetizados tinham acesso às informações, para uma era onde as imagens e as
performances eram mais importantes e democráticas, visto que todos tinham acesso a ela.
Cirino (2001) também faz a sua contribuição ao trazer a leitura da atualidade a partir da ótica
do capitalismo, a chamada “sociedade do consumo” perverte a lógica da produção para a do
mercado, nessa mudança o imperativo da compra e o consumo rege a subjetividade de cada
um. As novas composições familiares se mostram transformadoras dos laços sociais, as
conquistas das mulheres, a maior liberdade sexual, também trazem suas marcas na criança da
atualidade. Nessa sociedade do consumo o que se vê é o imperativo do gozo, posto no
semblante dos produtos e se deslocando sempre que alcançado, quando se obtém um, surge
15

um novo com a promessa da felicidade. Esse modelo é o que faz Lacan (1967 apud Cirino,
2001) cunhar a expressão “infância generalizada” para ilustrar a posição de objeto que
ocupamos frente aos discursos da ciência e do capitalismo. (Cirino,2001).
Pacheco (2012) faz uma crítica à concepção de Postman (2006), visto não alcançar a
complexidade do fenômeno quando se limita a questão da invenção da prensa e do destaque
da escrita como principal meio de comunicação para justificar a invenção da infância, bem
como da expansão da mídia televisiva como causa do seu desaparecimento, já que muda o
paradigma de transmissão do sistema da escrita simbólica, com características de maior tempo
de preparo para atingir a capacidade de leitura, o que limita o seu acesso, para um sistema de
imagens, que preza o imediatismo e a democratização da informação para o maior número de
pessoas. Tendendo mais para a afirmação lacaniana de “infância generalizada”, defende que
para além da discussão da subtração do direito de infância que a atualidade opera, a direção é
a de entender como o “dispositivo da infantilidade”1 afeta os indivíduos e qual seria a sua face
na atualidade. Nessa visada, esse “dispositivo da infantilidade” tem como função não marcar
uma etapa a ser superada, mas a de situar o indivíduo contemporâneo em um local bem
definido, ou seja, uma estratégia de dominação. Em tese o primado é o da sujeição como
transformação do homem moderno, como conclusão podemos postular “não existe gente
grande”.
Calligaris (2000) sugere uma nova direção no desejo do adulto, mesmo sendo o tempo
da infância o portador da fantasia de um tempo de alegria, longe das preocupações e
responsabilidades que surgem em idade posterior, segundo o autor, o adulto de hoje não quer
retornar à infância, sendo a adolescência o ponto chave para assumir uma adultice
despreocupada com o ideário de felicidade já abandonado pelo adulto. Cada vez mais vemos
crianças ouvindo músicas e se vestindo como adolescentes, adultos e velhos que lutam com
todas as suas forças para resgatar a virilidade e o ideal de liberdade irresponsável do
adolescente, esquecendo-se dos impasses que essa etapa comporta.
A complexidade da atualidade não nos ancora para a tomada de posição se há um
desaparecimento da infância ou uma infância generalizada, os argumentos são nitidamente
favoráveis as duas condições, visto que se perde uma posição de criança devido a uma
generalização dessa posição, ou seja, uma infantilização da sociedade que reflete na sujeição
e, por outro lado, uma identificação com o tempo da adolescência como linha divisória entre

1
Expressão cunhada por (CORAZZA, 2000 apud PACHECO, 2012) para falar sobre uma estratégia de
dominação contemporânea que vai além do discurso sobre a infância.
16

as duas, nem um nem outro, talvez essa seja a marca da nossa sociedade atual.(CIRINO,2001).
O que temos que nos ater e que será a discussão para o próximo capitulo é que para a
psicanálise se caracteriza um risco a sobreposição da infância ao infantil, seja no âmbito
teórico que perverte a proposta freudiana e a leitura que Lacan dará posteriormente a essa
obra, seja no âmbito clínico, que pode reduzir a clínica com crianças a uma mera
pedagogização da sexualidade. (PACHECO, 2012).
17

2.1 ENTRE INFÂNCIA E INFANTIL

Comecemos por uma afirmação: A psicanálise é a clínica do infantil. Para elaborar


melhor essa afirmação, cabe o enveredamento nas noções inaugurais de Freud de neurose
infantil, sexualidade infantil e do infantil no adulto, sendo necessária para nos situarmos a
ideia de constituição psíquica proposta por Lacan com base em sua leitura da obra freudiana.
Falar da clínica do infantil também é mudar o foco do tempo cronológico que uma
determinada pessoa vive, infância, adolescência, vida adulta, velhice, para a noção de sujeito
do desejo2. A psicanálise se debruça no sujeito e em sua economia de gozo, algo que produz
a não especificidade do tempo cronológico, mas uma escuta pautada na ética da psicanálise e
no desejo do analista. Por isso o título de (não) especificidade, visto que por um lado, temos
uma psicanálise que está para além do tempo cronológico do corpo e por outro o manejo
clínico que implicam particularidades, mas que não invalidam a ideia de que há um sujeito
marcado pelo seu desejo e que o trabalho do analista é escutá-lo.
Pacheco (2012) discorre sobre as diferentes abordagens psicanalíticas e suas
divergências que implicam em visões distintas de sujeito, muitas vezes referenciadas às
concepções biologizante. Também perpassam por uma concepção social e legal da criança,
que marca na puberdade o período de passagem, concepção muito afeita à ideia de
desenvolvimento, já tratada em nosso texto. Nesse viés é que cabe o questionamento se é dessa
criança que a psicanálise se ocupa, retomar a passagem da teoria do trauma para a teoria da
sedução proposta por Freud nos ajuda a encontrar uma resposta. Nessa lacuna que se
estabelece entre o corpo biológico da criança e a sua constituição como um sujeito é que a
psicanálise não deixará de buscar compreender as determinações de um ser que está desde
muito cedo marcado pela linguagem, sobredeterminado por ela numa posição de
assujeitamento ao Outro, ponto que trataremos quando falarmos de constituição psíquica a
partir dos três registros propostos por Lacan.
Sigmund Freud em carta a seu amigo Fliess (carta 69) escreve: “não acredito mais em minha
neurótica” (MASSON, 1986, p. 265) essa afirmação representa o abandono da teoria do

2
A concepção psicanalítica de desejo aqui refere-se a conceituação de Lacan que segundo Roudinesco
e Plon (1998, p. 742) : “Em psicanálise, Sigmund Freud empregou o termo, mas somente Jacques Lacan,
entre 1950 e 1965, conceituou a noção lógica e filosófica do sujeito no âmbito de sua teoria do
significante, transformando o sujeito da consciência num sujeito do inconsciente, da ciência e do desejo.
Foi em 1960, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, que Lacan,
apoiando-se na teoria saussuriana do signo linguístico, enunciou sua concepção da relação do sujeito
com o significante: “Um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante.” Esse
sujeito, segundo Lacan, está submetido ao processo freudiano da clivagem (do eu).”
18

trauma, que pressupunha a etiologia da neurose numa sedução de base sexual feita por um
adulto a uma criança. Nesse texto Freud argumenta alguns fatores que o fizeram abandonar
essa teoria pois, “na totalidade dos casos, o pai, sem excluir o meu, tinha que ser acusado de
pervertido”. (MASSON, 1986, 265) e os casos de perversão contra a criança deveriam ser
muito maiores do que os já numerosos casos de histeria, já que “a doença só ocorre quando
há um acúmulo de acontecimentos e um fator contributivo que enfraqueça a defesa”
(MASSON, 1986, p. 265). Entende que por não haver a distinção entre verdade e ficção no
inconsciente a causa estaria ligada a uma ligação da fantasia sexual à figura dos pais, fato este
que justifica o grande número de relatos dos neuróticos em relação a abusos na infância.
Na teoria do trauma Freud (1896/1996) irá dar seguimento ao pensamento de sua época
quando pressupõe uma inocência da criança que seria assexuada e que, por sofrer uma ação
perversa do adulto, teria seu efeito traumático reativado na adolescência. Já no texto “Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1996) o segundo ensaio vai abordar as questões
relacionadas à sexualidade infantil e sua base perversa e polimorfa, ou seja, perversa no
sentido que perverte a lógica natural do coito e polimorfa pois tem sua cede de prazer em
diversos pontos do corpo. Teoriza também sobre zonas erógenas que tem predominância em
determinado período da constituição psíquica, divididos em oral, anal, genital e fálica, o que
também pode-se dividir em um primeiro momento da sexualidade infantil e um outro
momento que após um período de latência definiria a sexualidade do sujeito em sua escolha
de objeto. Diferentemente de sua concepção teórica de trauma, há aqui uma sexualidade que
não se limita à puberdade, mas que tem o seu lugar desde muito cedo, daí a ideia de
sexualidade infantil. Mas se não se trata de um trauma e nem de um abuso real, outras
concepções devem tomar corpo na elaboração freudiana. Surge então o infantil apreendido
nos textos não mais como um adjetivo que qualificaria alguns temas elaborados por ele, tal
como, “sexualidade infantil”, mas como um substantivo que marca uma estrutura, passa de
um período da infância, para um momento estruturante do sujeito. Em linhas gerais, se desloca
da realidade material para a realidade psíquica, nessa passagem o entendimento é de que
fantasias eram criadas para dar conta desse período da sexualidade infantil autoerótica.
Nessa acepção, podemos ver que a sexualidade infantil não é uma experiência pura de
gozo, mas a tratativa de linguagem que o sujeito dá posteriormente para esse período vivido,
justamente por isso é que a descoberta de Freud se dá na análise dos adultos e não na
observação direta das crianças. (CIRINO, 2001)
Podemos nesse capítulo concluir então que o infantil no adulto é essa construção feita
só depois do encontro traumático com o sexual e sob os efeitos do recalque, tendo no sintoma
19

neurótico uma de suas representações. Cabe-nos agora entender essa articulação a partir do
ensino de Lacan com os conceitos de fantasia e objeto a, para isso iremos fazer um breve
percurso sobre a constituição subjetiva.
20

2.2 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA ÓTICA LACANIANA

Quando se dá a apreensão da criança de que ela é uma pessoa? Quando ela pode
reconhecer-se em seu próprio corpo, reconhecer-se quando chamada pelo seu nome? De um
bebê com uma atividade limitada e totalmente dependente do outro, há de se instaurar algo
que dê conta de fazer contorno e diferenciar o interno do externo, o eu do outro. Na perspectiva
lacaniana essa possibilidade não é intrínseca ao desenvolvimento neurológico e corpóreo, em
paralelo ao processo maturacional do organismo há uma constituição psíquica de caráter
estruturante. O bebê vem ao mundo com um inacabamento biológico e psíquico, o que o faz
dependente de um outro que cuide e de suporte a ele. Geralmente representado pela mãe em
nossa cultura, esse outro também faz a função de ser o suporte do primeiro grande Outro da
linguagem. (CATÃO, 2009). Cabe lembrar, junto com Lacan no texto “Duas notas sobre a
criança”:
A função de resíduo que sustenta (e ao mesmo tempo mantém) a família
conjugal na evolução das sociedades, coloca como valor irredutível de uma
transmissão - que é outra ordem que aquela da vida segundo as satisfações
das necessidades, mas que é de uma constituição subjetiva, implicando a
relação com um desejo que não seja anônimo. (LACAN, 1969, p.369).

O que Lacan nos aponta nesse trecho é que não basta ser um cuidado que leve em
consideração as satisfações das necessidades do sujeito, mas que comporte uma transmissão
relacionada a um desejo que não seja anônimo. “Essa dependência do outro (Outro) é
estrutural e estruturante para o sujeito. Por essa razão, investigar a fundação da realidade
psíquica é investigar as condições de estabelecimento do laço com o Outro primordial”.
(CATÃO, 2009, p.20). A ideia de realidade aqui parte do pressuposto lacaniano de que real e
realidade são coisas distintas, já que a última é sempre realidade psíquica daquilo que se
constrói do que se consegue apreender do real a partir da linguagem. (CATÃO, 2009).
Nessa mesma lógica é que Pacheco (2012) aponta que para além da transmissão genética, algo
de não natural se transmite e que só se sustenta na medida em que pode ser transmitido através
das gerações. Isso que chamamos de cultura é considerado como herança simbólica que só
pode reafirmar a importância da linguagem, sendo esta última a marca específica dos seres
humanos. Na esteira disso que podemos retomar duas grandes influências de Lacan que
delineiam questões importantes, uma é Lévi-Strauss “a respeito das estruturas elementares de
parentesco, onde também se esclarece a função do sobrenome no sentido de marcar um lugar
simbólico e sexual na estrutura familiar e social” (PACHECO, 2012, p.144) e por outro lado,
21

Sassure3 na sua distinção entre língua e fala, sendo a primeira a marca que o sujeito recebe ao
nascer e a fala como a possibilidade de particularizar a transmissão. A fala sempre afeta e
transforma a estrutura da língua e faz essa ligação entre o universal e o particular, marca de
forma indiscutível a possibilidade do sujeito operar sobre a marca simbólica que o constituiu.
(PACHECO, 2012).
Chegado esse ponto, podemos retirar algumas conclusões que nos auxiliarão para a
compreensão da constituição do sujeito, que será mais bem discutida nos próximos capítulos
dentro da tripartição Real, Simbólico e imaginário. A primeira é a de que não há acesso ao
real, somente à realidade como construção daquilo que foi apreendido do real a partir da
linguagem, que o sujeito só se constitui a partir de algo além da satisfação das necessidades e
que algo de uma transmissão que não seja anônima deve dar um lugar e um contorno aquele
corpo. Dentro dessa lógica tanto a linguagem e a família se mostram pontos irredutíveis para
essa configuração. Cabe ressaltar que o termo família aqui exposto não comporta somente a
família nuclear feita por papai, mamãe e filhinho, mas representa as possibilidades de laço e
de transmissão simbólica que deem um lugar ao sujeito. Isso ficará mais claro quando o ponto
de vista estrutural lacaniano for elucidado nos capítulos a seguir.

3
S/D. A sigla S/D (Sem Data) será usada todas as vezes em que o autor consultado não citar o ano da
obra do autor citado por ele.
22

2.3 O REAL, SIMBÓLICO, IMAGINÁRIO E A ESTRUTURA

Lacan abordará desde o início da sua proposta de “retorno a Freud” em 1953 uma
tripartição fundamental entre Real- Simbólico e Imaginário, inclusive o próprio título da
conferência de abertura da Sociedade Francesa de Psicanálise é “O simbólico, o imaginário e
o real”. Essa lógica acompanhará toda a sua obra, tendo dado ênfase em um determinado
registro em cada momento.
Pode-se observar, ao longo do ensino de Lacan, um deslocamento da ênfase
que é posta em cada um dos registros, caminhando de início do imaginário
para o simbólico e, finalmente, desembocando no real. Assim, em “O estádio
do espelho”, é o registro do imaginário que é elaborado enquanto tal, ao
passo que em “Função e campo” e “Instância da letra” trata-se da
tematização aprofundada do simbólico. Já o real, pode-se ver o interesse
crescente que nele é posto por Lacan a partir da introdução do objeto a no
seminário sobre O desejo e sua interpretação. O que não impede que já se
tenha, desde “O estádio do espelho”, elementos embrionários que servirão
para a elaboração do simbólico e do real. (JORGE, 2005, p.95).

Essa tripartição é fundamental para nós, pois aponta para a estruturação do sujeito a
partir dos três registros. Tal como Vorcaro (2004) nos esclarece que a busca da topologia
lacaniana é dar conta da constituição do sujeito e que, para situar a criança em sua
complexidade que excede o plano biológico é necessário levar em consideração o suporte do
nó borromeano. Nesse ponto é que vamos percorrer a teorização lacaniana tentando demarcar
os três registros e a sua implicação na constituição subjetiva, tendo como horizonte uma
fundamentação que sustente a psicanálise como a clínica do sujeito, independentemente do
tempo cronológico que essa pessoa que nos procura tenha.
23

2.4 A ÊNFASE NO IMAGINÁRIO

Alguns textos são fundamentais para a compreensão que pretendemos aqui, ou seja, a de
ilustrar a constituição subjetiva a partir do viés imaginário. O primeiro ponto a ser destacado é
que o real e o simbólico também estão implicados nesses esquemas, não podemos perder de
vista que somente uma ênfase é colocada no imaginário. (JORGE, 2005).
Uma comunicação de Lacan feita ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise em
Zurique no ano de 1949 dá origem ao texto “O estádio do espelho como formador da função do
eu” trata de um momento específico entre os seis e os dezoito meses onde o bebê, muito antes
de adquirir seu completo controle motor, tem um comportamento de júbilo diante de sua própria
imagem no espelho. Trata-se de uma forma de identificação primordial em que o eu se precipita,
aquilo que em termos freudianos pode ser denominada como eu-ideal. Trata-se de um momento
de passagem da insuficiência para antecipação, que se sustenta muito mais em termos de Gestalt.
(LACAN, 1949).
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da
insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no
engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma
imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que
chamaremos de ortopédica -e para a armadura enfim assumida de uma
identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu
desenvolvimento mental. (LACAN, 1949, p. 100).

Segundo Lacan a conclusão deste estádio é o início do fenômeno de identificação, bem


ilustrado pelo ciúme primordial. A partir deste momento, onde o eu está vinculado a situações
sociais mais elaboradas, necessitará cada vez mais da mediação da cultura para a regulação de
sua maturação. Como conclusão vemos no texto uma crítica ao modelo que centra o eu somente
no sistema percepção-consciência, postulando que partir da função de desconhecimento é mais
afeito a essa formação.
Nesse ponto de junção da natureza com a cultura, que a antropologia de nossa
época perscruta obstinadamente, apenas a psicanálise reconhece esse nó de
servidão imaginária que o amor sempre tem que redesfazer ou deslindar. Para
tal tarefa, não há no sentimento altruísta nenhuma promessa para nós, que
expomos à luz a agressividade subjacente à ação do filantropo, do idealista, do
pedagogo ou do reformador. No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito,
a psicanálise pode acompanhar o paciente até o limite extático do "Tu és isto"
em que se revela, para ele, a cifra de seu destino mortal, mas não está só em
nosso poder de praticantes levá-lo a esse momento em que começa a
verdadeira viagem. (LACAN, 1949, p.103).

Outra concepção importante que toma de empréstimo de uma teoria da ótica para sua
teorização é o “experimento do buquê invertido”. Nesse esquema Lacan se baseia no “Esquema
de Bouasse” para explicar como a constituição imaginária do eu acontece. (imagem a seguir).
24

Para explicar o que ocorre nesse experimento, temos que fazer uma distinção em ótica
dos reflexos que os espelhos produzem. O espelho plano, por exemplo, produz uma imagem
virtual que é projetada para trás do espelho. Vejam:

Já no espelho côncavo, o que nos interessa aqui, a imagem é projetada para frente. Ao
colocar um vaso vazio e um buque invertido dentro da caixa, o efeito do reflexo do buque
invertido que está na caixa dará a impressão, para quem olha, de que há realmente um buquê
em cima do vaso. A esse tipo de imagem se dá o nome de “imagem real” em contraponto à
imagem que se produz no espelho plano que se dá o nome de “imagem virtual”.
25

Com profunda relação ao estádio do espelho, Lacan busca ilustrar que antes que a
criança atinja a maturação biológica para o domínio de suas funções motoras, há uma operação
psíquica que irá antecipar essa imagem, que posteriormente será a base para o domínio motor
efetivo. “É a aventura original através da qual pela primeira vez, o homem passa pela
experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo – dimensão
essencial do humano, que estrutura toda a sua vida de fantasia”. (LACAN,[1953-1954] 1979 .
p. 96).
Retornando ao esquema, Lacan fará a junção do real e do imaginário, não sem levar em
consideração o simbólico como aquele que dá a função de síntese entre os dois. A partir do
corpo real, que podemos ilustrar aqui como o vaso, todos os instintos e desejos, aqui
representados pelo buquê, são articulados dando uma imagem de totalidade para a criança,
momento do surgimento do eu. Nesse ponto vemos o real e o imaginário se articular sobre o
simbólico. Lacan discorre:
Quer dizer que, na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo
tal como ela resulta disso, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do
sujeito - vocês devem sabê-lo desde que lhes repito - é essencialmente
caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no
mundo da palavra. É desse lugar que depende o fato de que tenha direito ou
defesa de se chamar Pedro. Segundo um caso ou outro, ele· está no campo do
cone ou não está. (LACAN,[1953-1954] 1979 p.97).

Estar ou não estar no campo do cone diz respeito a estar na posição certa ou não para
poder ver essa junção entre objeto vaso e imagem real se transformarem em uma coisa só, dando
a impressão de ser um único objeto “vaso de flores”.
Ainda no intuito de ilustrar a incidência do simbólico no ser humano, Lacan propõe um
outro esquema chamado de esquema dos dois espelhos. Ao contrário dos outros animais o
humano não tem o seu ciclo sexual dominado pelo imaginário. No primeiro esquema trata-se da
possibilidade de fazer as imagens reais e os objetos reais coincidirem, até mesmo podemos
extrair que o campo das imagens reorganizarem todas as coisas imaginariamente. No campo
animal é esse processo que regula, que direciona o animal para o seu objeto. No ser humano,
esse processo encontra-se desorganizado, o processo imaginário por si só não é capaz de dar
conta de levar o sujeito em direção ao objeto, mesmo se definíssemos a priori um objeto para a
sexualidade humana.
26

Essa adequação ao esquema se trata “senão de ver qual é a função do outro, do outro
humano, na adequação do imaginário e do real”. (LACAN,[1953-1954] 1979, p.163). Nesse
esquema Lacan desloca a posição do olho para trás do espelho côncavo e posiciona um espelho
plano para refletir o conjunto de objeto real (buquê de flores) e imagem real (vaso), formando
assim, uma imagem virtual daquilo que foi criado no primeiro esquema. Lacan postula então:
O que é que resulta disso? Uma simetria muito particular. Com efeito, o sujeito
virtual, reflexo do olho mítico, quer dizer, o outro que somos, está lá onde
vimos inicialmente nosso ego fora de nós, na forma humana. Essa forma está
fora de nós, não enquanto feita para captar um comportamento sexual, mas
enquanto fundamentalmente ligada à impotência primitiva do ser humano. O
ser humano não vê sua forma realizada, total, a miragem de si mesmo, a não
ser fora de si. (LACAN,[1953-1954] 1979, p. 164).

O que o sujeito vê depende muito do posicionamento do espelho, só se pode ver


nitidamente no interior do cone, ou seja, bem posicionado no primeiro esquema, que representa
para nós o eu-ideal. Nesse segundo esquema o sujeito depende da voz do outro, as inclinações
desse espelho plano são comandadas pelo outro a partir da relação simbólica. É uma lei
simbólica que irá determinar nossas posições em relação aos outros e aos nossos diferentes eus.
Essa relação varia dependendo de com quem nos comunicamos e de qual lugar pronunciamos
nossa comunicação, será diferente uma relação de trabalho de uma relação pessoal, a relação
com os amigos ou com os pais e etc.
Em outros termos, é a relação simbólica que define a posição do sujeito como
aquele que vê. É a palavra, a função simbólica que define o maior ou menor
grau de perfeição, de completude, de aproximação, do imaginário. A distinção
é feita nessa representação entre o Ideal-I c h e o I c h-Ideal, entre o eu-ideal e
27

o ideal do eu. O ideal do eu comanda o jogo de relações de que depende toda


a relação a outrem. E dessa relação a outrem depende o caráter mais ou menos
satisfatório da estruturação imaginária. (LACAN,[1953-1954] 1979 p.165).

Nesse ponto, imaginário e real estão no mesmo nível, sendo que o real as vezes coincide
com certas imagens. “O próprio da imagem é o investimento pela libido. Chama-se investimento
libidinal aquilo através de que um objeto se torna desejável, quer dizer, aquilo através de que se
confunde com essa imagem que levamos em nós, diversamente e mais ou menos estruturada”.
(LACAN,[1953-1954] 1979 p.165).
Como síntese do aqui exposto, vimos que Lacan busca ilustrar com o primeiro esquema
o processo de constituição do eu-ideal, uma imago que dá totalidade ao corpo da criança, algo
que vai regular o corpo e a relação com os outros. Porém há um segundo momento, proposto
pelo segundo esquema, que inclui o ideal do eu como a instância simbólica que regulará a
relação entre a imagem e o real. A ênfase aqui dada ao simbólico será melhor trabalhada
posteriormente, mas podemos entender que a única possibilidade de articulação entre
imaginário e real para o ser humano é por meio do simbólico e das trocas com o outros.
Qual é o meu desejo? Qual é a minha posição na estruturação imaginária? Esta
posição não é concebível a não ser que um guia se encontre para além do
imaginário, ao nível do plano simbólico, da troca legal que só pode se encarnar
pela troca verbal entre os seres humanos. Esse guia que comanda o sujeito é o
ideal do eu. (LACAN,[1953-1954] 1979 , p. 166).
28

2.5 A ÊNFASE NO SIMBÓLICO

Como já retratado anteriormente, Lacan, mesmo fazendo dois esquemas para exemplificar
o processo de estruturação do sujeito, não deixa de evidenciar a importância do simbólico para
os seres humanos, fazendo ainda a distinção entre este e os outros animais, que tem sua
regulação baseada quase integralmente pelos instintos e pelo imaginário.
Quando Lacan vai tratar do simbólico no processo de estruturação, retoma da obra freudiana
o complexo de édipo e o divide em três tempos. Essa leitura do complexo de Édipo vai na
contramão da abordagem desenvolvimentista que vinha sendo empregada em sua época. A
compreensão das zonas erógenas como fase e a meta final com a genitalidade estava cada vez
mais em voga pelos psicanalistas. Lacan retoma a ideia de complexo de castração e de falo, para
aborda-lo como um operador estruturante da entrada na linguagem. Para Lacan o falo é o
significante privilegiado para dar conta da sexualidade humana, seja para o homem ou para a
mulher. (PACHECO, 2012).
Lacan pegará a teorização freudiana do Complexo de Édipo e demonstrará que não se trata
de seu valor imaginário para a psicanálise, mas de seu valor simbólico e estrutural. Isso tem
como consequência não mais se ater as relações mamãe, papai e filhinho, visto que independente
da composição familiar há algo que orienta o desejo na dialética falo-castração. Essa marca
mostra que tudo que se ordena em relação ao sexual está ligado a transmissão de uma falta. Em
termos freudianos podemos dizer que a criança inicialmente está imersa no princípio de prazer
e em um vínculo incestuoso com a mãe, essa relação seria interrompida com o complexo de
castração e a interdição da lei. A leitura de Lacan será a da anterioridade do simbólico sobre a
criança, os recursos que a criança toma para dar conta de suas angústias já estavam ali dados
antes de seu nascimento, será nesse campo que a criança deverá se estruturar. Nessa
compreensão podemos entender que não se passa mais de uma proibição que se impõe a criança
em um dado momento de sua relação com sua mãe, mas de algo que se recebe de partida.
(FARIA, 2004). Logicamente que aqui está implicada a mãe na função do Outro, ou seja, aquela
que irá transmitir o tesouro do significante e a sua falta. A criança já entra em uma posição de
objeto privilegiado para a mãe, justamente essa posição que permite toda a constituição do eu,
posto que como já vimos, a ordem simbólica está atravessando o campo da constituição
imaginária, poderíamos até mesmo dizer reordenando esse campo. Lacan ([1954 –55] 1985) em
seu seminário 2 constrói o esquema L que ilustra a interposição da relação sujeito - Outro com
a relação sujeito-objeto. (PACHECO, 2012).
29

A relação sujeito-objeto, como já vimos, se dá a partir da constituição do eu que


possibilita o reconhecimento da sua própria imagem e a do seu semelhante em um processo de
identificação. Aqui esse processo está ilustrado na linha da relação imaginária a – a’. O que
Lacan interpõe aí é o chamado muro da linguagem. É a partir da determinação do muro da
linguagem que os objetos ganham a sua definição, uma falsa realidade. “Quando o sujeito fala
com seus semelhantes, fala na linguagem comum, que considera os eus imaginários como coisas
não unicamente ex-sistentes, porém reais”. (LACAN, [1954 –55] 1985, p.331). Lacan postula
então que há uma fala verdadeira, para além dessa imaginária a-a’, porém, sempre que me dirijo
ao grande Outro esbarro em a’, tendo que se contentar com a sombra do sujeito verdadeiro. Esta
é uma distinção possível entre fala e linguagem:
Se a fala se fundamenta na existência do Outro, o verdadeiro, a linguagem é
feita para remetermos de volta ao outro objetivado, ao outro com o qual
podemos fazer tudo o que quisermos, inclusive pensar que é um objeto, ou
seja, que ele não sabe o que diz. Quando fazemos uso da linguagem, nossa
relação com o outro funciona o tempo todo nesta ambiguidade. Em outros
termos, a linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos
impedir radicalmente de entendê-lo. E é justamente disto que se trata na
experiência analítica. (LACAN, [1954 –55] 1985, p.331).

O que podemos extrair daqui é que a chamada relação objetal só se sustenta no suporte
da linguagem, não tendo, portanto, um objeto privilegiado. O que ocorre é que o
desenvolvimento infantil quando toma como erógenos objetos pré-genitais, eles são sempre
objetos que foram remodelados pelo significante. “Assim, Lacan critica duramente as ideias de
um objeto ideal, adequado e complementar ao sujeito. Eis seu postulado: não existe objeto
harmonioso; ao contrário, a mola da relação do sujeito com o mundo é justamente a falta de
objeto”. (PACHECO, p. 162).
O conceito de pulsão aqui também é central, pois é justamente na distinção entre instinto
30

e pulsão que podemos entender melhor a constituição psíquica e o papel da sexualidade nesse
campo, resgate bem demarcado também por Lacan4. Nesse conceito Freud5 compreende que a
sexualidade humana diverge da vida animal, que é regulada pela função biológica, genética,
instintiva e comportamental (etológica). (JORGE, 2010). Freud postulará então quatro
características da pulsão: fonte somática, ou seja, um processo excitatório que ocorre no próprio
corpo; pressão, que provem do corpo devido a excitação; finalidade, ligada a manter essa tensão
em um nível baixo, veja que aqui não está ligado a um objeto; e por último, objeto, que tem a
característica de ser contingente, sendo necessário simplesmente a condição de oferecer a
redução da tensão. Nessa ordenação do campo pulsional pela experiência de satisfação certas
partes se tornam privilegiadas em determinados momento, sendo a boca, inicialmente vinculado
ao processo de amamentação, o anus, quando a questão dos controles esfincterianos ganha
destaque na educação, e os genitais com o início da atividade masturbatória da criança. No
momento em que os órgãos genitais ganham a importância central para a criança é que o Édipo
entra como um organizador do desenvolvimento sexual infantil. (FARIA, 2004).
Retornando a compreensão lacaniana do complexo de édipo, podemos postular que
justamente por a sexualidade humana ser sem objeto é que o falo enquanto significante ganha a
função de regular a atividade sexual do sujeito após o declínio do complexo de édipo, isso no
caso dos neurótico. Vale frisar que não se trata dos objetos ou do órgão pênis, mas da
possibilidade desses objetos ganharem ou não a consistência de objeto fálico.
Faremos agora então um percurso que busca refletir o drama vivido pela criança até que
desemboque na solução edípica e na significação do falo a partir da metáfora paterna. Partindo
do questionamento do que leva uma mulher a desejar ter um filho, já podemos postular que se
a regulação humana não se pauta no instinto, algo diferente deve responder a essa questão. A
criança para a mãe aparece como possível compensação daquilo que lhe falta, ou seja, a criança
para a mãe, ganha nesse momento um valor fálico. Nessa relação que aparentemente se dá a
dois, o falo já está implicado do lado da mãe e a criança surge como uma referência no desejo
da mãe. (FARIA, 2016).
Desse ponto retornamos as “Duas notas sobre a criança” de Lacan (1969), para apontar
o que ele sustenta da função paterna e materna. “É segundo tal necessidade que se julgam as
funções da mãe e do pai. Da mãe: enquanto seus cuidados portam a marca de um interesse
particularizado, fosse ele pela via de suas próprias faltas. Do pai: enquanto seu nome é o vetor
de uma encarnação da Lei no desejo”. (LACAN, 1969, p.369). Nos três tempo do Édipo, Lacan

4
S/D
5
S/D
31

busca demonstrar esse processo do Nome do Pai como vetor da lei do desejo.
TEMPO 1:
A criança se encontra em total dependência dos cuidados do Outro, que tem como
objetivo traduzir o choro da criança em uma demanda endereçada a ela, cabe notar que nesses
cuidados o que é transmitido a criança vai além da satisfação das necessidades, há uma função
também de atribuição de sentido ao grito da criança. Por outro lado, do ponto de vista da
criança, a marca deixada é da onipotência materna, visto ser ela que assume a posição de
satisfazer as necessidades da criança. Nesse momento a criança toma como objeto o dom
materno, ou seja, aquilo que ela pode dar ou não. Portanto, na dialética da frustração, quando a
criança não tem acesso a seu objeto de satisfação, o que fica evidente para ela é a recusa do dom
por parte da mãe. “Vale ressaltar que estamos considerando a frustração tal como ela é vivida
originalmente, como afirma Lacan no Seminário 4. Seu objeto sendo menos um objeto já
constituído – ‘na medida em que ela ainda está afastada do simbólico’ – que o dom”. (FARIA,
2004, p. 58).
Ao longo desse jogo aparentemente dual entre a criança e a mãe, algo se passa.
Lacan questiona sobre o momento de abertura para os elementos introdutórios
de uma dialética na relação mãe-criança. A própria condição estrutural de
presença-ausência articula para a criança o registro do apelo, que já é o começo
da ordem simbólica. Mas o que ocorre se, ao apelo do sujeito, a mãe não
reponde mais (ou só responde a seu critério)? Aqui ocorre uma mudança
fundamental que se articula á constituição do outro: a mãe torna-se potência.
Mais do que isso, ela é suposta onipotente, e o acesso aos objetos depende da
mãe. Estes objetos, até então objetos de satisfação, tornam-se, deste modo,
objetos do dom. Assim, tudo que vem da mãe com respondendo ao apelo é
dom, isto é, algo além do objeto. O dom é, então, signo do amor. A partir daí,
Lacan enuncia a famosa frase: amar é dar o que não se tem. Pois o eixo do
amor não está no objeto, mas naquilo que o objeto não tem. (PACHECO, 2012,
p. 165).

Podemos nos questionar aonde fica o pai nessa história. Nesse momento para a criança
somente a mãe está em posição de destaque, o pai aparece aqui como suporte para a mãe e no
discurso desta. Cabe aqui entender que o pai já está presente no desejo materno e será isso que
possibilitará a transmissão de um nome, teorizado por Lacan como “Nome do pai”. (FARIA,
2004).

TEMPO 2:
A mãe no primeiro tempo é fálica por ser possuidora do falo, do lado da criança é ela
que assume essa posição fálica para a mãe no primeiro tempo. No segundo tempo, quando
constata as ausências da mãe, uma dupla constatação ocorre, a primeira de que a mãe não é
32

fálica, portanto, a segunda é que ela, a criança, não é o falo. A entrada no segundo tempo do
édipo é a constatação de que a mãe algo falta, que a criança na posição de falo não supri todos
os seus desejos, dupla incidência da castração, posto que revela a falta na mãe e destitui a criança
da posição de falo. Cabe ressaltar que essa falta na mãe já está implicada em sua subjetividade,
o que ocorre aqui é a constatação da criança. Esse processo se dá pelas ausências da mãe, não
as eventuais, mas as que marcam o desejo da mãe para além da criança. Essas ausências
possibilitarão a criança buscar recursos de lidar com a presença na ausência, ou seja, de buscar
recursos simbólicos que deem conta dessa ausência. Simbolizar a mãe como algo primordial,
mas que não depende mais da sua presença efetiva, a mãe passa então a ser um ser primordial
que pode faltar. (FARIA, 2004).
Esse segundo tempo, é o de passagem da frustração para a privação. A constatação de
uma falta real, de um objeto simbólico que é o falo, é o que constitui a privação.
(PACHECO.2012). Ao contrário da frustração que situava a dialética na recusa do dom, a
privação é a constatação de algo que falta no Outro, dando a possibilidade da compreensão de
que então esse objeto possa estar em outro lugar, num enigma x. “Na privação, a falta é real. A
mãe, como um dado da realidade da criança, falta. Entretanto, Lacan (1956-1957 apud FARIA,
2004) afirma que essa falta incide sobre um objeto simbólico. Por quê? Porque o objeto sobre o
qual incide essa falta não é a mãe, e sim a criança na posição de falo materno”. (FARIA, 2004,
p.75).
O pai, aqui, aparece como o privador da mãe, aquele que castra, não só no sentido da
proibição do incesto, endereçando uma mensagem a criança, mas também apontando a
impossibilidade do retorno a posição de falo no desejo da mãe. O pai aqui faz a função de uma
instancia superior, aonde a criança pode endereçar o seus dramas vividos em relação ao x que
foi aberto com a constatação da ausência materna. Nesse sentido, o pai é o representante na
medida em que a criança o coloca nesse lugar. “Trata-se de uma lógica na qual a castração
materna é a condição da entrada do pai, e não o contrário”. (FARIA, 2004, p. 79). Nesse ponto
é que vemos que essa passagem está muito mais colocada do lado da criança do que na posição
dos pais. Não é o pai que marcará esse fim na relação da criança com a mãe, será a constatação
da falta na mãe que colocará a criança em um impasse. O pai fará a função de se situar aonde a
criança deveria se confrontar com x do desejo materno.
Cabe aqui uma última observação, que o pai nessa posição de proibidor está perpassado
pelo discurso da mãe, já que a sua mensagem só ganha peso se sancionado pelo discurso da
mãe. (FARIA, 2004).
33

TEMPO 3:
O terceiro tempo é o momento de passagem, a lei que está no mundo agora será
internalizada pelo sujeito. Por esse motivo que Lacan utiliza o termo “metáfora paterna” pois,
ali onde está o desejo da mãe o nome do pai virá no lugar para substituir. Nesse momento o pai
muda de estatuto, daquele privador e castrador passa a ser potente e portador de algo que pode
ser dado a mãe. Lacan fara um esquema que pretende ilustrar esse processo metafórico.
(PACHECO, 2012).

Esse esquema mostra como a partir do enigma do desejo da mãe: DM/X a criança irá
significar o nome do pai em seu lugar após a passagem pelo complexo de Édipo, aqui
representado por: NP/DM. Daquilo que foi construído com a mãe, o pai vem assumir o lugar do
desejo da mãe em substituição, o pai entra aonde a criança se desvincula do desejo materno, e
o que se produz nessa operação é a significação do falo (A)/ ϕ. “É somente nesse ponto que o
falo deixa de ser o significado do desejo materno e toma seu lugar como uma significação
inacessível ao sujeito, que permanece sob a barra do recalque”. (FARIA, 2004, p. 89).
FARIA (2004) ainda sinaliza que algo deve explicar a passagem do segundo ao terceiro
tempo, visto que o pai no segundo tempo do Édipo já é um pai fálico. O que diferencia os dois
momentos é justamente que o pai no segundo tempo está investido imaginariamente como
onipotente, no terceiro tempo ocorre uma mudança no estatuto do pai e do objeto, o falo ganha
estatuto simbólico e pode transitar pelas pessoas, pode ser dado a mãe, mas também pode ser
dado a criança, nesse sentido a criança também pode possuí-lo. Podemos também entender esse
processo como a passagem do ser ao ter, já que a criança abre mão da condição de ser o falo
pela possibilidade de possuí-lo um dia. Cabe ressaltar o papel da presença da mãe nesse
esquema, pois da mesma forma que ela se ausenta, ela também volta, o que acaba por não situar
o desejo da mãe em um único lugar, mas sim algo que circula e se mantém vivo. Essa operação
coloca o sujeito na promessa de um dia poder ter o falo, na medida em que se identifica com o
pai, conforme encontramos em Lacan (1957-8):
Leiam no artigo de Freud sobre o declínio do complexo, Der Un.tergang des
Ôdipuskomplex, de 1924, a explicação que ele fornece sobre a identificação
terminal que constitui sua solução. É na medida em que o pai é amado que o
34

sujeito se identifica com ele, e que encontra a solução terminal do Édipo numa
composição do recalque amnésico com a aquisição, nele mesmo, do termo
ideal graças ao qual ele se transforma no pai. Não estou dizendo que desde
logo e imediatamente ele seja um pequeno macho, mas ele pode tornar-se
alguém, já está com seus títulos de propriedade no bolso, com a coisa
guardada, e, quando chegar o momento, se tudo correr bem, se o gato não
come-lo, no momento da puberdade, ele terá seu pênis prontinho, junto com
seu certificado - Aí está papai que no momento certo o conferiu a mim.
(LACAN, [1957 –58] 1999, p.176).

Cabe aqui uma distinção entre a saída do Édipo do menino e da menina, visto que nesse
ponto há uma certa equivalência entre a teorização freudiana e a lacaniana. Para a saída
masculina há a identificação com o falo, na saída feminina pressupõe-se que, por não ter, irá
buscar do lado do pai. Cabe aqui levar em conta a importância anatômica, mas não se restringir
a ela, visto que a apreensão simbólica é o que fará o estabelecimento da identidade sexual, que
pode não necessariamente estar ligada ao sexo6 do sujeito. (FARIA, 2004).
O Édipo consiste no percurso necessário a esse domínio do simbólico
que depende do falo como elemento ordenador, produto da metáfora paterna.
Esse percurso tem como consequência o estabelecimento da identidade sexual,
no qual as saídas feminina do lado da busca pelo falo que não tem, e masculina,
do lado da suposição de tê-lo como o pai, não consistem senão em formas de
apreensão desse campo simbólico, que permitem dar significação ao real da
pulsão inscrita no corpo. (FARIA, 2004, p. 92).

Fica claro aqui que Lacan faz uma leitura simbólica do Complexo de Édipo, relacionando
sua importância estrutural com a significação fálica. Esse novo estatuto do Complexo de Édipo
desloca a ênfase imaginária pautada na relação incestuosa entre a mãe e a criança para situá-lo
em uma condição de passagem, de entrada no campo da linguagem. Agora, iremos abordar o
enfoque real dado por Lacan dessa mesma estrutura e sua construção do conceito de “objeto a”.

6
Segundo (FARIA, 2004) A anatomia é importante, mas não é determinante, por isso que
podem ter meninos na posição feminina e meninas na posição masculina.
35

2.6 A ÊNFASE NO REAL

No percurso lacaniano o conceito de “objeto a” é central em sua teorização, chegando a ser


definido pelo próprio Lacan como sua única criação no campo da psicanálise. Com a ênfase no
Real a constituição do sujeito é retomada com referência à topologia, seu enfoque se dá na
relação com o Outro a partir das operações de alienação e separação. Segundo Jorge (2010) a
questão da falta de objeto foi resgatada de Freud, passando então a ser nomeada como “objeto
a”, que ganha um estatuto Real por estar fora do registro simbólico. Ao contrário de Melanie
Klein 7que situa na mãe esse objeto, Lacan8 situa a mãe como aquela que ocupa esse lugar, mas
que não se confunde ao objeto. O que cabe assinalar aqui é o seu caráter faltoso, cujo reencontro
sempre remete o sujeito novamente ao mesmo ponto, a falta de objeto. “O núcleo do
inconsciente é constituído por essa falta originária de objeto e é em torno desse furo que o
inconsciente se estrutura enquanto linguagem. “Tem-se assim designados dois aspectos diversos
do inconsciente: um real, o furo; o outro simbólico a linguagem”. (JORGE,2010, p.142).
Seguindo nesse raciocínio Jorge (2010) faz a ligação entre inconsciente e pulsão como tendo
um núcleo comum constituído pelo real. No real a fórmula S(A) representa a falta no simbólico
(no inconsciente) de um significante que representaria a diferença sexual. Já na sexualidade
(pulsão) podemos nomear “objeto a” como a falta no imaginário do objeto do desejo.

Lacan (1964) no Seminário 11 irá teorizar sobre a alienação utilizando os diagramas de


Euler para exemplificar o processo de constituição do sujeito. Entre o ser e o sentido algo fica
encoberto no processo de alienação, o que é denominado por vel. Nesse primeiro processo o
recurso da reunião de conjuntos é o destaque.
Ilustremos isto pelo que nos interessa, o ser do sujeito, aquele que está ali sob
o sentido. Escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não
senso- escolhemos o sentido, e o sentido só subsiste decepado dessa parte de
não-senso que é, falando propriamente, o que constitui na realização do
sujeito, o inconsciente. Em outros termos, é da natureza desse sentido, tal como

7
S/D
8
S/D
36

ele vem a emergir no campo do Outro, ser, numa grande parte de seu campo,
eclipsado pelo desaparecimento do ser induzido pela função mesma do
significante. (Lacan, 1964, p. 206).

Uma forma interessante de ilustrar o exposto, que também está no Seminário 11


(LACAN, 1964) é a escolha – a bolsa ou a vida! – se eu escolher a bolsa e perder a vida, fico
sem as duas, se escolho a vida, fico sem uma parte, no caso a bolsa. Essa ilustração nos conduz
a pensar que o processo de subjetivação se dá a partir de uma escolha forçada, posto que não há
como ter a completude. Há um resto que não é articulável no processo de alienação. Esse resto
que podemos entender como simbolizado como falta tanto no campo do imaginário como no
campo do simbólico.
No segundo processo, o de separação, Lacan (1964) utiliza como modelo a interseção
de dois conjuntos. Demonstra como esse vel que foi proposto no primeiro modelo da alienação
se faz pelo reconhecimento de duas faltas. Uma delas identificada no discurso do Outro, que
permite a criança se questionar o que o Outro quer dela para além do que ele diz.
O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas
do discurso do Outro, e todos por-quês? Da criança testemunham menos de
uma avidez da razão das coisas do que constituem uma colocação em prova do
adulto, um por que será que você me diz isso? Sempre re-suscitado de seu
fundo, que é o enigma do desejo do adulto. (LACAN, 1964, p.209).

A segunda falta, a criança coloca intimamente ligada a primeira, pois nessa falta que
antecede a sua existência ela se coloca como objeto na questão – pode ele me perder? Vista
comumente na fantasia de morte que as crianças colocam no meio da relação de amor com os
pais. (LACAN, 1964).
Pacheco (2012) situa o “objeto a” como objeto da castração, lá onde falha a significação
o “objeto a” possibilita ordenar e constituir o mundo objetal.
37

Essa relação do sujeito do inconsciente com o objeto do desejo será, então,


sustentada pela fantasia fundamental, definida como a ‘fórmula da
organização subjetiva’, já que é a partir dessa ligação paradoxal entre $ e a em
função do corte estrutural que se pode constituir a realidade. (PACHECO,
2012, p. 191).
A partir de agora, podemos começar a estruturar o conhecimento até aqui desenvolvido
para chegarmos à sustentação da clínica psicanalítica como clínica da fantasia. Na apreensão
real da constituição subjetiva o “objeto a” surge como um resto do real que não é passível de
significação, essa sobra não simbolizável é o que articulará real simbólico e imaginário. Pacheco
(2012) coloca que essa teorização produz uma modificação na teoria da constituição do sujeito,
postulando que o corte do sujeito não se dá a partir de uma determinação subjetiva, mas do
objeto, ou seja, é o objeto a que como “objeto causa de desejo” produz o furo no simbólico.
Como já abordado na discussão entre ser e sentido, quando o sujeito entra no campo do sentido,
no campo do Outro, algo fica de fora como non-sense, essa parte que resta é o “objeto a”.
Na fórmula da fantasia Lacan (1964/2008) cria a fórmula $ ◊ a (S barrado punção de a) para
ilustrar esses dois processos constitutivos do sujeito. O losango tem como função mostrar em
sua parte inferior a função do vel a partir do processo de simbolização e a parte superior o non-
sense. Em outros termos o processo de alienação e de separação respectivamente. Agora que já
percorremos um pouco pelo campo da constituição psíquica e sua relação com o Real, podemos
avançar para a compreensão da clínica psicanalítica como clínica da fantasia.
38

2.7 A CLÍNICA DA FANTASIA: POLÍTICA, TÁTICA E ESTRATÉGIA

Em nosso percurso foi possível compreender como Freud passa da teoria do trauma para a
da fantasia, também vimos que no percurso lacaniano de retorno a Freud, há também uma busca
de construir uma teorização que possibilite uma melhor apreensão dessa fantasia como
estrutural, como fantasia fundamental. Também conseguimos ver a constituição psíquica com
base nos três registros e o quanto aquilo que chamamos de realidade se distingue do real, posto
que a realidade se dá a partir da articulação entre simbólico, imaginário e real. Por último,
teorizamos sobre a estruturação do sujeito e o resto que se produz no processo de
alienação/separação nomeado como “objeto a”.
A lógica da fantasia é o que possibilita para o sujeito a construção de uma ficção sobre
a causa do seu desejo. Segundo Jorge (2010) isso se dá pela perda do saber instintual na espécie
humana, o inconsciente surge para dar suplência a essa falta de saber instintual. Porém há um
ponto de não saber no inconsciente que é representado pelo Real, “resta sempre a não inscrição
da diferença sexual, o que Lacan traduziu como a falta do significante do Outro sexo e escreveu
com o matema S(A), considerado por ele uma verdadeira matriz da estrutura” (JORGE, 2010,
p. 65). Podemos então retirar daqui que a fantasia é uma montagem do imaginário pelo
simbólico, uma construção de linguagem que tenta dar conta de responder a falta do Outro. “Lá
onde não há referência na realidade, lá onde falta o saber sobre o que não há, o sujeito cria o
objeto, positivando a falta que o constitui”. (PACHECO, 2012, p.242).
Podemos usar um modelo proposto por Jorge (2010) que ilustra bem a relação entre
estrutura do sujeito e clínica psicanalítica, nele se faz a separação entre - inconsciente, real e
pulsão de um lado – (primeiro nível da imagem) como pontos teóricos importantes e, no outro
- transferência, sintoma e repetição – (segundo nível da imagem) como categorias clínicas.
39

O psicanalista só tem acesso ao primeiro nível desse esquema por meio do segundo nível
da imagem. O saber inconsciente se transmite através da transferência na psicanálise. A
transferência tem como motor trazer à tona a realidade do inconsciente pela via do amor ao
saber, aquilo que se dirige ao analista não é respondido pela cegueira da paixão, o que sustentaria
o não saber pela via da ignorância.
Foi nessa direção que Lacan nomeou a transferência como o sujeito suposto
saber, isto é, a suposição de saber no analista é o que permite a emergência do
saber inconsciente, a transferência do saber inconsciente e, portanto, o
surgimento dessa forma particular de saber – o saber associado à verdade.
(JORGE, 2010, p.68).

Já no campo da repetição, podemos ver a face pulsional se apresentar na clínica, visto


que a repetição representa a tentativa da pulsão de atingir uma satisfação absoluta. A fantasia
entra como um grande meio para a satisfação da pulsão. Tanto que Freud (1908 apud
PACHECO, 2012) chega a fazer uma equivalência entre a estrutura dos jogos e dos devaneios
infantis, sendo o primeiro substituo do segundo na vida adulta. Essa substituição muitas vezes
se dá pela vergonha assumida pelo adulto com relação aos seus devaneios, baseado em muitos
casos nas exigências sociais de seriedade e coerência. (PACHECO, 2012).
Retornando ao tema da pulsão, Lacan9 irá usar a noção de pulsão de morte em sua
radicalidade, postulando que toda pulsão é pulsão de morte, porque mesmo quando ela está
velada pela pulsão sexual, sua busca não é a do objeto sexual, mas a do objeto impossível.
A entrada na análise se dá pela via do sintoma e a análise do sintoma revela
sempre, como nos mostrou Freud, a fantasia a ele subjacente. Se a análise
opera, por si mesma, a travessia da fantasia, ela desemboca no real que sustenta
a estrutura psíquica, não-toda estruturada como uma linguagem pelo
simbólico. Essa é também uma das maneiras de se entender a castração
simbólica, a revelação da falta real no Outro. (JORGE, 2010, p. 70).

É nesse sentido que podemos situar a direção do tratamento em psicanálise não a partir
da idade cronológica do sujeito, mas a partir dessa lógica estrutural que faz com que o infantil
esteja presente tanto no adulto quanto na criança, o que varia aqui é a posição que o sujeito
ocupa frente a essa construção. Cabe aqui então apontarmos que nesse processo de estruturação
podemos ter saídas possíveis para dar conta desse Real impossível, que pode ser abordado pela
via do diagnóstico estrutural e pelo seus possíveis caminhos: neurose, psicose, perversão. Não
abordaremos aqui a questão do diagnóstico estrutural e da particularidade de cada estrutura,
visto não ser o objetivo do trabalho. Nos limitaremos a fazer uma teorização que permita retirar

9
S/D
40

totalmente a psicanálise do campo desenvolvimentista e, por outro lado, apontar para uma não
especificidade da clínica psicanalítica com crianças. Independentemente da idade daquele que
nos procura a escuta analítica deve pautar-se no diagnóstico estrutura e na possibilidade, no caso
da neurose, de uma travessia da fantasia pelo sujeito. Essa travessia não está pronta a priori, a
ser desvendada pelo analista, mas a ser construída via relação transferencial visada pelo ato
analítico.
A fantasia, assim, constitui-se como a referência do sujeito, lá onde não há
referência- já que a linguagem não tem referência na realidade. Nesse sentido
embora seja essa a lógica que sustenta o sujeito neurótico, enquanto
montagem, a fantasia é construída na análise, pois a entrada em análise supõe
a passagem da linguagem comum a uma linguagem artificial que marca a
singularidade da construção fantasmática sob transferência”. (PACHECCO,
2012, p. 252).

À guisa de conclusão podemos apontar a distinção que Pacheco (2012) faz em relação aos
campos tático, estratégico e político na psicanálise. O plano tático trata das intervenções do
analista, tendo como único limite a concepção prévia que o analista dirige o tratamento e não o
sujeito. A estratégia, diz do planejamento com a visada de que o dispositivo analítico possa
operar. Por último o plano político é o que domina a estratégia e a tática, que “sustentada pelo
desejo do psicanalista, permite ao sujeito lidar com a impossibilidade - estrutural - do saber
alcançar a verdade toda”. (PACHECO, 2012, p. 260). Nesse ponto é que podemos dizer que, a
posição do analista se opõe à posição do mestre, quando abstêm de saberes prévios, para poder
pautar a sua intervenção na escuta analítica e na aposta de um saber inconsciente que se
evidenciará sob a transferência.
O papel da transferência na análise está ligado à posição que o analisante coloca o
analista no momento da entrada em análise. Nesse momento há uma atribuição de um saber no
sintoma e a figura do analista assume a condição de “suposto saber”, esse ponto é que a partir
da não resposta às demandas do analisante algo poderá ser construído em análise (travessia da
fantasia). O analista não responde às demandas por não visar ser o pivô de uma identificação,
mas suporte de um trabalho que possibilite um deslocamento, uma travessia. (CASTRO &
FERRARI, 2013). Justamente por não responder à demanda é que a neutralidade possibilita por
parte do analista receber aquilo que vem do analisante sem julgamento prévio.
Porém, essa neutralidade ou indiferença não pode ser confundida com desinteresse. “A
indiferença de que se trata não é desinteressada. Ao contrário, coloca-se como disponibilidade
ao interesse, como interesse desconfigurado, na esteira da atenção que Freud inventa na sua
clínica, aquela dita flutuante, ou uniformemente suspensa”. (SOUSA & COELHO, 2012, p.96).
41

Cabe lembrarmos também que a transferência tem duas faces, aquela que possibilita o trabalho
através da suposição do saber no sintoma e do endereçamento desse saber ao analista. Outra que
pela via do amor ganha a face de resistência quando o analisante busca fazer-se amar pelo
analista. (CASTRO & FERRARI, 2013). Esse é o campo de atuação do psicanalista que, na
contramão do objeto científico que tenta limpar as variáveis para chegar a um dado concreto,
usa desse recurso como motor de trabalho e aposta no deslocamento simbólico como forma de
ressignificação do sintoma. (SOUSA & COELHO, 2012).
Em se tratando de uma psicanálise com crianças a transferência ganha uma
especificidade, pois ela, muitas vezes está “atravessada” pelos pais. Tal aspecto não será
desdobrado aqui, por não ser objeto do nosso estudo, porém consideramos imprescindível ao
menos indicar o importante papel da transferência.
42

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com os textos selecionados para trabalhar a pergunta de pesquisa, se há ou não


uma especificidade na clínica psicanalítica com crianças, consideramos que no plano político,
no sentido apresentado por Pacheco (2012), não há especificidade na psicanálise de crianças.
Isso se dá pelo fato de não ser o tempo cronológico que regula a clínica psicanalítica, posto que
não se ancora por características desenvolvimentistas que marcam determinado período da vida,
mas que se sustenta na construção efetuada pelo sujeito para dar conta do Real a partir da entrada
no campo da linguagem. Há um impossível de ser significado nesse campo que a lógica da
fantasia buscará fazer suplência. Para chegarmos a esse ponto, foi que passamos pelos conceitos
de constituição psíquica nos três eixos propostos por Lacan: Simbólico, Imaginário e Real.
Assim foi possível compreender que somente a partir da articulação desses três registros pela
significação do falo é que o sujeito será capaz de constituir o seu campo de realidade que se
difere do Real.
A psicanálise trabalha com essa noção e na possibilidade de ressignificação desse campo a
partir do Simbólico, já que toda a apreensão do Imaginário sofre a incidência simbólica que tem
como estrutura a possibilidade de deslocamento, ou seja, de reordenamento. Por isso é que
podemos postular que toda neurose é infantil, já que trata dessa estrutura que possibilitará a
travessia da fantasia construída em análise a partir da repetição e da relação transferencial.
Também podemos elucidar que isso não impede que, ainda na perspectiva de Pacheco
(2012), nos campos tático e estratégico, a clínica com crianças apresente as suas
particularidades, por exemplo, quando pensamos no papel dos pais, no manejo clínico da
transferência, nos recursos utilizados, enfim, no que norteará a condução do tratamento, nunca
da criança. O que nos limitamos aqui foi no entendimento de que a psicanálise está desvinculada
do plano do desenvolvimento e das construções sociais sobre a criança, mesmo que muitas vezes
isso incida sobre ela.
O presente trabalho privilegiou somente o viés clínico, uma vez que a psicanálise em
extensão pode e deve se posicionar e discutir as questões da atualidade, o que não há de se
perder de vista é que a escuta clínica pressupõe a singularidade de cada um como motor do
tratamento, não os saberes que buscam enquadrar a criança em sua posição estática.
Na esteira dessa problemática é que vimos o quanto a concepção de criança em detrimento
da concepção de sujeito pode distorcer e alterar o modo de atuação clínica, trazendo determinada
especificidade que dificulta o acesso da criança ao tratamento psicanalítico.
Emblemático desse tema nesse trabalho foi a posição de Anna Freud com a sua concepção
43

de que na criança haveria particularidades desenvolvimentistas que dificultariam a sua entrada


em análise. Esse exemplo nos possibilitou ver a facilidade de cairmos nas amarras dos discursos
sociais em detrimento da escuta clínica, no caso de Anna Freud isso se evidenciou na sua relação
com o saber pedagógico. Klein faz o resgate da clínica pautada no inconsciente, mas também
foi suscintamente marcado uma divergência entre as concepções dela e de Jacques Lacan, que
em sua leitura de Freud fez um recorte estrutural das neuroses o que permite uma demarcação
clara do campo da psicanálise.
Como conclusão entendemos que o presente trabalho conseguiu responder à questão
levantada, porém outras indagações importantes foram construídas, tais como a questão do
diagnóstico estrutural entre neurose, psicose e perversão na clínica com crianças e as
especificidades nos eixos estratégicos e táticos na clínica com crianças, assim como sobre a
complexidade da transferência e escuta analítica. Tais aspectos poderão ser retomados
oportunamente a fim de contribuir para as reflexões em torno da especificidade da clínica
psicanalítica com crianças.
44

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on 31 Mar. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S1984-02922012000100007.
VORCARO, Angela Maria Rezende. A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro:
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