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Afinal, a monja disse que “malgré tout” ainda respirava. Essa respiração expelida no ar branco,
desenhou-se em linhas mais ou menos paralelas, entreactos de respiração fixados na parede.
A loucura exótica do pensamento poético gerou figuras hieráticas cuja luz dobro e desdobrou
– espécie de arquivadores de memórias – o tempo em mais tempo. A duração cativou cores
geométricas embarcadas em quadrados humanos e infinitos que desafiam a linearidade do
mundo. Assim, se unem 5 actos de redenção, exclusão e remissão – lúcidos e ambíguos
quanto nos baste.
Prudência:
“O olho, a que chamam a janela da alma, é a via principal por onde, o
centro dos sentidos ou senso comum pode contemplar mais
amplamente as infinitas e magníficas obras da natureza; a orelha é o
segundo sentido, o qual se enobrece escutando o relato das coisas que
os olhos viram.”1
As considerações sobre o olhar podem ser um dos denominadores comuns que organizam as
obras apresentadas pelos artistas na iconografia ocidental. Através dos olhos visíveis e
externos se adentrou a intencionalidade do artista. Pela alma (e razão) individuada de cada um
dos dois, assegurando um espectro de expansividade intersubjetiva que a radical exigência
amorosa configurou em moldes quase míticos.
Sob égide de tantos tormentos estéticos, quanto ontológicos, que a volúpia talvez tenha
confundido… nas mentes de gerações de leitores, eis como as Lettres d’une religieuse
portugaise2 de Soror Mariana de Alcoforado galgaram o tempo.
A artista fixou esses olhares, que sejam janela da alma em incontáveis esmeraldas de
olhar vítreo e inflexível, tanto quanto o tormento e o desejo possuíram a monja para
gáudio de seu cavaleiro francês. Diz-se que as pessoas olham, somente dirigem seu olhar
para alguém e atingem-nos – ato simples, decidido e incontornável. É a intencionalidade
de olhar, selecionado por um sujeito, sendo aquele que é olhado, cativo dessa mirada.
Quem é olhado deve aguentar a intensidade, a circunstância e a (sem) razão de ser olhado.
Guarda em si o questionamento mudo do olhar, sendo atingido, congratulando-se e
aceitando. Ato simples, esse de olhar e ser olhado, todavia tão complexo e cheio de
sentidos oposicionais, por vezes. Deixar-se olhar, dispondo o rosto a ser alcançado.
Quando sou olhada, posso tomar um caminho: deixo-me invadir pela dúvida, rio-me ou
escuso-me a devolver o olhar. Quero esses olhares que me abandonaram e nunca vão
regressar. Que a saudade faz aumentar cada dia mais, até um desespero que a inteligência
deserda.
1
Leonardo da Vinci, Aforismos (326), Madrid, Espasa Calpe, p.64
2
Cartas publicadas por Claude Barbin em Paris – 1669. Leia-se na tradução de Eugénio de Andrade,
publicada na Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.
Cláudia Melo:
“Lugar de convocação como um poema muito antigo.
Lugar de aparição. Diálogo do visual e da visão.
Onde do visível emerge a aparição. (…)”3
Jorge Coimbra
A realidade abstrata era mais real do que a natural, assim argumentava Mondrian nos diálogos
desenvolvidos num pequeno mas emblemático livro.4 No decurso de um passeio pelo
perímetro de uma qualquer cidade, dois pintores enfrentavam-se, questionando qual a
realidade que auferia de primazia na pintura/arte. O pintor naturalista, convocando a
reprodutibilidade, a mimesis do percebido em termos visuais: procurando plasmar tais
imagens para o reconhecimento de referentes e atribuição de sentidos óbvios. Por outro lado,
o pintor abstrato que sabia concentrar nas formas inócuas da geometricidade, a essência da
sua acuidade visual, quanto conceitual. Assim, o genuíno artista ascendia à suspensão
polissémica – baseada /balizada por significações atributivas, para expandir seus propósitos
mediante a redução fenomenológica (eidós)… seguindo os pressupostos da fenomenologia
husserliana.
Pela intuição – preenchimento dotado de intencionalidade, enquanto percepção ou
apercepção – o artista “traz” em si o objecto; acede às coisas em si, no desejo de
“presentando” ou “representando” captar o eidós. Esta via de “pureza” exigida na sua
3
Sophia de Mello-Breyner Andresen, “Landgrave ou Maria Helena Vieira da Silva”, Ilhas (1989),
Lisboa, Caminho, 2005, p.68
4
Piet Mondrian, Realidad natural y realidad abstracta,
apreensão tornava-se mais rigorosa para o artista do que para outro indivíduo a quem não
urgisse a criação artística.5
Parece-me que se aplica à série presentificada por Jorge Coimbra, em sintonia com a
enunciação refletida por Mondrian, relativamente ao que designou por “nova imagem da
pintura”. Esta apresenta-se como real, pois que nela se desvelam quer o conteúdo, quer a
aparência das coisas. O conteúdo, porque se expressando em concreto e a aparência, pois
nascendo do natural, preservando seu núcleo. Será, certamente, o caminho inevitável que a
arte deverá atingir, desde a sua primitiva elaboração, empreendendo uma “marcha
permanente desde o natural: o crescimento para o abstracto.”6 Pois, me parece, existe, nestas
telas quadradas, uma densidade cromática que concretiza variações quase infinitas de tons e
espessuras, texturas e velaturas: para convergir na substância primeira que é a opacidade
singular da cor, a exaurir-se em si mesma – sem necessidade de referente semântico,
acessório atributo, talvez.
Acordes: fale-se da transposição para ritmos cromáticas do que se poderia converter em
sonoridades; desenhos de sons, ruídos e demais estímulos que são organizados mediante uma
lógica, não necessariamente, regida pela harmonia, nem pela proclamação do melódico. As
linhas direcionam-se em movimentos laterais ou longitudinais, permitindo que olhando as 63
telas como todo, se anunciem leituras abertas.
Susana Lopes
A soma dos arquivadores concretiza-se no arquivo finalizado. elaborando uma detalhista
condição da memória em continuum que replica a ação de corte.
Xai
“Nunca chega à janela da alma.”7
5
Cf. Maria de Fátima Lambert, “Arte e Fenomenologia: até à Arte Real/Abstrata, seguindo a “redução
fenomonológica” de Husserl”, Revista Portuguesa de Filosofia, vol.67, fasc. 3 (2011), p.474
6
Piet Mondrian, La nueva imagen de la pintura, CCECA, Murcia, 1983, p.61
7
Leonardo da Vinci, Aforismos (326), Madrid, Espasa Calpe, p.64
8
Jan Fabre, Umbraculum, Paris, Actes du Sud, 2001