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Antônio Márcio Campos Neves1

A “INCONSTITUCIONALIDADE”2 DA SÚMULA VINCULANTE Nº 11 DO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A SUA REPERCUÇÃO NO SEIO
POLICIAL

A capacidade intelectual e técnica dos Ministros do Supremo Tribunal


Federal é algo que hodiernamente ninguém questiona. Realmente, e nos referimos a
todos eles, o requisito constitucional do notável saber jurídico, previsto na cabeça do
artigo 101 da Constituição Federal, foi devidamente respeitado para a nomeação de cada
um daqueles que compoem o STF atualmente.

Entretanto, isso não quer dizer que tais magistrados não se equivoquem.
Muito pelo contrário, pois como afirma o professor René Ariel Dotti em suas palestras,
“o Supremo Tribunal Federal também erra, só que erra por último!”

A questão que queremos comentar no presente artigo causou grande


repercussão no seio policial3 e diz respeito ao uso das algemas em pessoas detidas. Sem
pretensão de esgotar o assunto, queremos mostrar de forma sucinta o erro técnico
cometido pelo pretório excelso e sua conseqüente repercussão no seio policial.

Referimo-nos especificamente ao teor do verbete da Súmula Vinculante


nº 11, editada no dia 13 de agosto de 2008 e publicada no Diário Oficial do dia 22 do
mesmo mês, momento em que passou a ter força vinculante perante os demais órgãos
do poder judiciário e administração pública (leia-se: instituições policiais).

Segundo a indigitada súmula,

“Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado


receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por
parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por
escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do
agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a
que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

1
O autor é Delegado de Polícia no Estado de Santa Catarina, Pós-graduado em Direito Penal pelo
Instituto Processus de Cultura e Atualização Jurídica, Brasília/DF.
2
A título de esclarecimento, parte da doutrina entende que não é possível argüir a inconstitucionalidade
das súmulas vinculantes por meio do controle abstrato de normas (ADI). Argumentam que a própria
constituição fixou a forma de rever o enunciado, ou seja, a lei previu a forma específica de revisão e
cancelamento das súmulas vinculantes, nos moldes do artigo 103-A, parte final.
3
Em razão disso, o Sindicato dos Agentes de Policia Federal impetrou um Hábeas Corpus preventivo
com o fim evitar possível coação ilegal na liberdade dos policiais que utilizarem algemas no
cumprimento de mandado de prisão. Cf. HC nº. 96.238.
Tal “ato normativo” foi editado após a análise do Hábeas Corpus nº
91.952/SP (Rel. Min. Marco Aurélio) pelo Supremo Tribunal Federal, o qual declarou a
nulidade do julgamento que condenou o réu a 13 anos de prisão, sob o argumento de
que o uso das algemas perante o corpo de jurados do Tribunal do Júri fere a dignidade
da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CRFB).

Antes de analisar o aspecto técnico da referida súmula (art. 103-A,


CRFB), vale ressaltar que tal “decisão” destoou completamente da realidade vivida
pelos profissionais que trabalham no sistema penal, mormente policiais (federais, civis e
militares) e agentes penitenciários.

Na verdade, não é de se estranhar tal conduta por parte dos ministros,


haja vista que nenhum deles tem contato com réus presos no dia-a-dia de seus trabalhos,
desconhecem as necessidades dos profissionais de segurança pública e ignoram as
regras de segurança ensinadas nas Academias de Polícia. Isso se dá porque ficam
“presos” aos manuais teóricos e muitas vezes esquecem (para não dizer que se negam)
de consultar os profissionais que trabalham na ponta do sistema repressor.

O artigo 103-A, caput e §1º, da Constituição, com a redação dada pela


EC nº. 45/07, estabelece alguns requisitos que o STF deverá observar para aprovar uma
súmula vinculante. Tal norma, assim como qualquer outra prevista na lei maior4, não
pode ser desrespeitada, sob pena de o ato normativo ser considerado inconstitucional
(supremacia da Constituição).

Tal artigo estipula que

“O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação,


mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas
decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir
de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração
pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem
como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida
em lei.” (grifamos)

Seu §1º diz ainda que

4
Vale lembrar que independentemente da natureza jurídica do comando normativo previsto na
constituição, se principiológica (comando de otimização) ou de regramento (lógica do “tudo ou nada”),
todo dispositivo constitucional possui força normativa e deve ser respeitado. Segundo a doutrina mais
abalizada, preconizada por Ronald Dworkin nos Estados Unidos e Vezio Crizafulli na Itália, não
existem na constituição meros conselhos, palpites ou apontamentos. Todos os dispositivos possuem
força para mudar a realidade. Apud HOLTE, Leo Van. Curso de Direito Constitucional. 4.ed.
Salvador: Jus Podvum, p. 87.
“A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia
de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual
entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública
que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação
de processos sobre questão idêntica.” (grifos nosso)

De uma forma bem superficial, percebe-se claramente que o Supremo


deve observar pelo menos quatro requisitos para aprovar uma súmula vinculante. São
eles:
1. Reiteradas decisões sobre matéria constitucional;
2. Validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas;
3. Controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a
administração pública; e
4. Fatos que acarretem grave insegurança jurídica e relevante
multiplicação de processos sobre questão idêntica.

O primeiro ponto que se questiona e que foi desrespeitado pelo STF foi o
fato de não ter havido reiteradas decisões sobre a matéria em análise. O que houve foi
um único julgamento (Hábeas Corpus nº 89.429-1/RO, 22/08/06), no qual a Min.
Carmem Lucia elencou, talvez monocraticamente, alguns requisitos para o uso de
algemas. Segundo ela, a “matéria não é tratada, específica e expressamente, nos códigos
Penal e de Processo Penal vigentes.” (Informativo 437, do STF).

Outro requisito que não foi observado diz respeito à “validade, a


interpretação e a eficácia de normas determinadas”. Ora, a própria Min. Carmem
Lúcia afirmou que a matéria não é tratada “específica e expressamente” na legislação
brasileira, muito embora haja menção nos artigos 199, da Lei de Execução Penal, 234, §
1º, do Código de Processo Penal Militar e 474, §3º, do Código de Processo Penal (sendo
que este não estava em vigor à época em que a súmula foi editada). Se não existem
“normas determinadas”, a edição de súmula vinculante fica inviabilizada.

De igual sorte, não se verifica a “controvérsia atual entre órgãos


judiciários ou entre esses e a administração pública”. A questão é simples, pois apesar
da menção contida na Lei de Execução Penal (que é de 1984), desde então tais fatos não
eram objeto de debate perante o poder judiciário. Todos sabem que somente com o
episódio Daniel Dantas tal discussão veio à tona, demonstrando, destarte, que o pau que
bate em Chico, não bate em Francisco.

Como conseqüência lógica, os fatos discutidos numa relação processual


para dar azo à aprovação da súmula devem causar “grave insegurança jurídica e
relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. Efetivamente não é o
caso. Não há grave insegurança jurídica nos processos que discutem a utilização de
algemas (até porque essa não é a questão principal), muito menos relevante
multiplicação sobre questão idêntica, como acontece, v.g, com os processos que
envolvem o Sistema Financeiro de Habitação-SFH (Caixa Econômica Federal x
Mutuários)5 ou planos econômicos (Bresser, Collor).

Além desses aspectos, verifica-se que nosso tribunal maior extrapolou o


papel reservado a ele na constituição, pois estipulou, ao arrepio da lei, a necessidade da
fundamentação por escrito por parte do agente público que determinou a prisão. Isso
porque somente a lei pode inovar o ordenamento jurídico e impor ao administrador
público uma obrigação, principalmente sobre a forma pela qual o ato administrativo
deva ser praticado (escrita, verbal, fundamentada etc.), nos termos do que preconiza o
art. 22, da Lei nº. 9.784/996.

A súmula também fixa responsabilidade penal e administrativa aos


servidores que desrespeitarem tal enunciado. Como sabemos, para que alguém seja
responsabilizado criminalmente, é preciso que haja previsão expressa na lei penal, o que
de fato não há. Enquadrar o funcionário que desrespeitou a súmula no crime de abuso de
autoridade ou constrangimento ilegal é, por vezes, forçar a barra. O abuso ou o
constrangimento no manuseio de tal instrumento demanda uma elementar específica no
tipo penal para atendermos o princípio mais importante do direito penal, qual seja:
legalidade. De igual sorte, para se responsabilizar um servidor por falta disciplinar, se
faz necessária previsão nos respectivos estatutos (da Polícia ou Lei Orgânica da
Magistratura).

A pior parte o STF deixou para a parte final do enunciado da Súmula


vinculante n.º 11. Ele determinou que haverá nulidade da prisão ou do ato processual
caso a ela seja desrespeitada. Todos policiais sabem (e o contribuinte precisa saber) do
investimento feito pelo estado, do tempo e do trabalho que demanda uma investigação
criminal até culminar na expedição e no cumprimento de um mandado de prisão.
Declarar nula uma prisão, relaxar e colocar um indivíduo em liberdade após toda
movimentação da máquina estatal somente pelo uso “desnecessário” ou
“constrangedor” das algemas (que via de regra se dá apenas no trajeto entre o local da
prisão e a delegacia), pode trazer conseqüencias inimagináveis para o processo7, além
de desacreditar a justiça e a polícia brasileiras. Isso sim é ferir os princípios da
razoabilidade (tão utilizado pelo STF em seus julgamentos) e do prejuízo (um dos mais
importantes princípios da teoria geral das nulidades), o qual estipula que “nenhum ato
será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a
defesa” (art. 563, CPP).

Na Inglaterra, como regra geral, todo e qualquer cidadão detido deve ser
algemado, até mesmo para evitar tratamento desigual no momento da prisão. O STF, ao
editar a súmula vinculante nº. 11, asseverou que no Brasil essa regra não encontra

5
Os processos envolvendo o Sistema Financeiro de Habitação-SFH em trâmite na Justiça Federal, v.g.,
são idênticos. Na elaboração das petições iniciais, como regra, os advogados alteram apenas a
qualificação dos mutuários.
6
Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei
expressamente a exigir.
7
Veja, por exemplo, o caso do banqueiro Salvatore Cacciola, o qual após ser libertado fugiu
imediatamente do país com o fim de se furtar à aplicação da lei penal brasileira.
respaldo. Concordamos com o STF neste ponto, pois sabemos que não são todas as
pessoas que necessitam serem algemadas. Há casos e casos.

Entretanto, uma observação deve ser feita: quem deve fazer a análise
sobre a necessidade ou não do uso das algemas são os policiais que estão atendendo a
ocorrência ou efetuando o cumprimento do mandado de prisão. São estes profissionais
que estão correndo o risco de vida e são eles que devem analisar, no caso concreto, a
necessidade ou não do uso de tal expediente.

Chegamos à conclusão que a súmula é formal e materialmente


inconstitucional, pois viola o devido processo legal e o princípio da razoabilidade. A lei
(e somente ela) deve fixar os requisitos para a utilização ou não das algemas. Não cabe
ao Supremo Tribunal Federal, que não tem competência legislativa (princípio elementar
da separação dos poderes - art. 2º, CRFB), fixar tais requisitos.

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