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História da Cultura Jurídica

Resenha da obra “O Direito da Guerra e da Paz”, de Hugo Grotius, volume I

Mestranda Júlia Farah Scholz

A obra é uma construção moderna dos fundamentos jurídicos e políticos do


Direito Internacional Público, que, traduzida por Ciro Mioranza, em coedição das editoras
Unijui (Brasil) e Fondazione Cassamarca (Itália), inicia com a apresentação do Professor
Arno Dal Ri Júnior, da Universidade Federal de Santa Catarina, sendo seguida de uma
introdução do Professor Antonio Manuel Hespanha.
Hugo Grotius (1597-1645) foi, por muito tempo, considerado o pai do direito
internacional público, não obstante sua obra recorrer às fontes romanas e medievais, aos
estudos de S.Tomás de Aquino e de representantes da Segunda Escolástica. O pensamento
de Grotius teve destaque por contribuir na construção de um direito internacional
laicizado de caráter naturalista.
A visão cosmopolita de Hugo Grotius centraliza seus questionamentos e debater
em um ambiente humanista e racionalista da Escola de Direito Natural. Sua principal
preocupação, desde os prolegômenos, é a compreensão da guerra e da paz a partir do
pensamento de poetas, oradores, filósofos, e, principalmente, das divinas escrituras, tanto
velho quanto o novo testamento.
Grótius, nos prolegômenos da sua obra principal, introduz sua “hipótese
impiíssima”, fazendo uma breve introdução de todas as questões fundamentais que seriam
debatidas ao longo da obra e expondo a novidade e importância das matérias tratadas no
livro.
“O direito da guerra e da paz” é um tratado completo, uma espécie de manual,
escrito em 1625, que se dispõem àquela parte do direito que intervém nas relações de
muitos povos e chefes de Estado, ao qual poucos escritores se debruçaram. Grotius
defende as possibilidades da institucionalização de um direito das gentes estruturado pela
convivência entre Estados, a previsão do recurso à guerra desde que limitada a defesa
territorial e a resistência à agressão externa. Desse modo, Grotius via nos tratados uma
medida racional e jurídica de mediar e prevenir os conflitos entre os diversos Estados.
O direito das gentes, em Grotius, é o direito que existe entre as nações. Sob o
ponto de vista da utilidade, ele é bastante necessário, uma vez que não há nação forte o

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suficiente que não vá precisar do auxílio de outras, seja no comércio seja na formação de
alianças contra outras nações estrangeiras. O próprio Aristóteles já reconhecia a
impossibilidade de existir uma sociedade que se mantenha sem o direito, haja vista que
na associação entre os diversos povos há, entre si, a necessidade do direito.
No decorrer da obra, é perceptível que as guerras religiosas (as cruzadas, reforma
protestante, contrarreforma, Guerra dos Trinta Anos, etc) que atingiram a Europa naquele
momento histórico foram determinantes para a construção teórica do autor ao entorno dos
problemas teológicos. A tensão entre católicos e protestantes não se resumia ao aspecto
religioso, já que os conflitos agora se mostravam presentes entre Estados, e não mais entre
ideologias cristãs. As nações europeias haviam tomado partido quanto a defesa de
determinada religião, sendo que os Estado católicos e os Estados protestantes,
encontravam-se em constante oposição, momento em que muitas guerras religiosas foram
travadas entre Estados.
A hipótese impiíssima de Grotius, ao invés de utilizar o argumento divino,
apresenta uma espécie de teoria das fontes do direito numa perspectiva racional,
mostrando os diversos sentidos que a palavra jus pode ter e buscando definir o conceito
de direito natural.
A primeira parte do livro, que interessa a presente resenha, trata da origem do
direito a fim de se identificar se há alguma guerra que pode ser considerada justa, e, uma
vez respondida essa questão, são analisadas as diferenças entre a guerra pública e a guerra
privada. A contribuição de Grotius não se resume ao Direito Internacional Público, já que
o autor traz novas concepções de direito natural, direito divino, direito das gentes e direito
civil.
Para se falar em guerra, é preciso, primeiramente, saber o que é guerra e que
direito é este. Cícero já havia definido a guerra como sendo um debate que se resolve pela
força e, ao seguir essa perspectiva, a guerra seria o estado de indivíduos que resolvem
suas controvérsias pela força. Esse conceito é, contudo, geral e abrangente, já que não
distingue a guerra privada da guerra público. O intuito de Grotius, ao buscar uma
definição de direito da guerra, é verificar se há guerra justa e, em caso positiva, qual seria.
Num primeiro momento, a definição de direito apresenta-se como sinônimo
daquilo que é justo. Esse é um possível conceito. Outra definição de direito diz respeito
a qualidade moral ligada ao indivíduo para possuir ou fazer de modo justo alguma coisa.
Esse segundo conceito permite classificar o direito em duas modalidades: o direito
enquanto faculdade e o direito enquanto aptidão. Essa faculdade se apresenta de dois

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modos: popular (subsistindo face ao uso privado) ou superior (superior ao direito popular
e pertencente a comunidade). A faculdade popular, enquanto estabelecida para o âmbito
privado, está abaixo da faculdade superior, já que, por esse direito superior o rei exerce o
poder sob os indivíduos de certa hierarquia social, concedendo ao monarca, inclusive, o
direito de utilizar a propriedade de seus súditos sob a justificativa do bem comum. No
que concerne a aptidão, Aristóteles em Ética e Nicômaco, a chama de axia (valor), ou
seja, dignidade, o fato de uma pessoa ser merecedora de algo.
A faculdade é objeto da justiça expletiva, a qual Aristóteles relaciona como sendo
a justiça dos contratos e a denomina justiça corretiva, a qual segue uma proporção simples
(aritmética). A aptidão, por sua vez, é objeto da justiça atributiva que Aristóteles
denomina justiça distributiva e segue uma proporção comparativa (geométrica).
Em Aristoteles, a justiça corretiva tem por objetivo a reparação, de acordo com o
grau e extensão dos danos causados, “porquanto não faz diferença que um homem bom
tenha defraudado um homem mau ou vice-versa, nem se foi um homem bom ou mau que
cometeu adultério; a lei considera apenas o caráter distintivo do delito e trata as partes
como iguais, se uma comete e a outra sofre injustiça, se uma é autora e a outra é vítima
do delito1”. Já a justiça distributiva é aquela que distribui as honras de acordo com mérito:
se não são iguais, não receberão coisas iguais e as distribuições devem ser feitas em
consonância com o mérito.
A terceira definição de direito é aquela em que o direito é tido como sinônimo da
palavra lei, indicando uma regra de ações morais que obrigam o homem honesto.
Aristóteles divide o direito entendido como lei em direito natural e direito voluntário.
Há, para o filósofo grego, um direito natural e um direito voluntário (legítimo ou
estabelecido). Em Aristóteles2, o homem sem lei é considerado injusto, já aquele que
respeita a lei, é o justo. Seguindo essa lógica, todos os atos legítimos são atos justos
porque prescritos pela arte do legislador, uma vez que a lei ordena a prática as virtudes e
proíbe a prática dos vícios.
O direito natural, para Grotius, é ditado pela razão. Os atos do direito natural se
manifestam conforme são ordenados ou proibidos por Deus: esse direito se diferencia do
direito humano e do direito divino voluntário. Grotius explica que o direito natural,
entendido como aquilo que é justo, está fundado na sociabilidade, e não na utilidade.

1
ARISTÓTELES, Aristóteles. Ética a NICÓMACO. P.102.
2
ARISTÓTELES, Aristóteles. Ética a NICÓMACO.

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O direito natural não se refere tão somente aquelas coisas que estão além da
vontade humana, mas também àquelas que são consequência de um ato de vontade, como
por exemplo, a propriedade. A partir da introdução do conceito de “propriedade”, o direito
natural criminaliza o ato de se apoderar daquilo que é propriedade alheia.
No que tange a propriedade, anos mais tardes (1689-1690), John Locke irá
defender que a propriedade é um direito natural. O pensamento político de John Locke é
de que o poder politico nasce de um pacto entre os homens, sendo que antes desse pacto
os homens viviam em um Estado Natural de forma harmônica e pacífica. A necessidade
de formar o pacto social é, pois, de evitar o estado de guerra. Essa tese de estado natural
e pacto social também foi defendida por Thomas Hobbes, mas claro, com objetivos
diversos. A diferença entre Locke e Hobbes está na concepção da natureza do pacto social
e na estrutura do governo político. Em Locke, no estado natural os homens nascem livres
na mesma medida que nascem racionais. Os homens, assim, seriam iguais, independentes
e governos pela razão.
Dentre os direitos naturais defendidos por John Locke estaria a propriedade. A
propriedade é um direito natural anterior à sociedade civil. Já para Hobbes, a propriedade
não é um direito natural, mas sim um direito decorrente do estado civil (após o pacto
social). A origem da propriedade em Locke está na relação concreta entre homens e
coisas. No entanto, entre homens pode surgir a vontade de ter aquilo que pertence ao outro
ou dele se beneficiar. Então, para evitar essas ameaças, os homens precisam abandonar o
estado natural e criar a sociedade política por meio de um contrato entre homens livres.
O objetivo desse pacto é a preservação da vida, liberdade e propriedade e também reprimir
as violações ao direito natural. Os homens não renunciam aos seus próprios direitos. O
governante seria o agente e o executor da soberania do povo.
Retomando Grotius, o caráter imutável do direito natural justifica-se pelo fato de
que não pode ser alterado nem mesmo por Deus, eis que “Deus não poderia fazer com
que dois mais dois não fossem quatro, de igual modo que ele não pode impedir que aquilo
que é essencialmente mau não seja mau3”.
Para provar aquilo que é direito natural, Grotius sugere das maneiras: a priori
(abstrato) e a posteriori (popular). A comprovação a priori dá-se com a demonstração da
conveniência ou inconveniência de uma coisa com a natureza social e racional. Por outro

3
GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Editora Unijuí, 2004, p.81.

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lado, a comprovação a posteriori se dá com a conclusão bastante provável de que uma
coisa é direito natural porque é assim entendida em várias nações.
Platão, apesar de não utilizar a palavra direito natural, faz uma clara distinção
entre o mundo dos homens e o mundo das ideias, deixando implícito a que mundo dos
homens é um reflexo do mundo das ideias. Ao partir do pressuposto de que houve um
momento anterior, onde tudo era perfeito e que os seres humanos em algum momento se
dissociaram desse tempo, Platão entende que no mundo dos homens, os resquícios do
mundo das ideias são as intuições, comportamentos e, principalmente, os costumes, os
quais são repetidos sem se saber exatamente o porquê.
Haveria, desse modo, um direito no mundo das ideias, o qual é reproduzido no
mundo dos homens através dos costumes. Platão introduz, de certo modo, a ideia de
direito consuetudinário. Porém, em momento algum Platão faz referência a uma força
divina como fundamento do mundo das ideias (tampouco a um mundo dos deuses). O que
existe, para ele, é uma força natural.
Aristóteles, mencionado diversas vezes por Grotius no que tange a temática direito
natural, ao contrário de Platão, defendia a existência de um direito natural e de um direito
positivo. O Direito positivo existiria para detalhar o direito natural, dar certeza ao direito
natural onde há lacunas e omissões (o costume, por exemplo). Nesse sentido, o papel do
direito positivo é aperfeiçoar o direito natural. Em outras palavras, no que concerne a
punição, por exemplo, o direito natural pode estabelecer a proibição de não matar o seu
semelhante, porém não atribui uma punição para caso algum individuo o faça. Nesse caso,
a importância do direito positivo está em delimitar as punições.
De acordo com jusnaturalismo de Grotius, a natureza social e racional do homem
são fundamentos do direito natural, fazendo com que sejam necessárias regras mínimas
para a convivência em sociedade.
No que se refere ao direito voluntário, este pode ser humano ou divino. O direito
humano se divide em direito civil, direito mais amplo que o civil (jus gentium) e direito
mais restrito que o civil. O direito das gentes (ius gentium) é distinto do direito natural:
enquanto que o primeiro é variável, o segundo é imutável. A fonte do jus gentium é a
vontade humana, os pactos entre os Estados, e não fruto da reflexão racional sobre a
conformidade ou desconformidade com a natureza do homem, como ocorre com o direito
natural.
Para Grotius, todos os Estados estão sujeitos às regras do direito natural, e estas
vinculam todos os Estados a uma sociedade internacional. O direito internacional é, nesse

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sentido, fruto da vontade dos Estados e protegido pelo direito natural introduzido pelo
pacto. A função do direito natural é, nesse caso, orientar as normas de direito
internacional.
Em relação ao direito divino, este tem sua origem na vontade de Deus e é
exatamente o que o distingue do direito natural. Esse direito foi dado ao homem, por
Deus, em três momentos distintos: após a criação do homem, na renovação da espécie
humana após o dilúvio e, por fim, na reparação realizada por Cristo.
Por intermédio de Moisés, Deus deu novas leis ao povo de Israel (Êxodo 34,
Deuteronômio 10). A chamada Lei de Moisés Incluía os mandamentos e cerimônias de
cunho moral, ético, religioso e físico — inclusive sacrifícios (Levítico 1) — com a
finalidade de lembrar o povo sobre Deus e da obrigação que tinham com Ele (Moisés
capítulo 13, versículo 30). A fé, o arrependimento, o batismo na água e a remissão dos
pecados faziam parte da lei, bem como os Dez Mandamentos. No entanto, esse direito
pode ser dado a todos os seres humanos ou a determinado povo, como ocorreu com os
hebreus, ao qual Moisés s dirigiu em particular, sob o comando divino.
No que concerne à guerra, o próprio Aristóteles tem um livro denominado Os
direitos da Guerra , mas, como assevera Grotius, até mesmo o filófoso grego deixou de
abarcar diversas questões. Mesmo assim, Grotius serve-se com bastante frequência dos
ensinamentos de Aristóteles, recorrendo, ainda, a outros escritos gregos e romanos, e
principalmente novo testamento.
Uma vez vistas as fontes do direito, o debate sobre a existência de uma guerra
justa deve iniciar com a análise do ponto de vista do direito natural, o qual prescreve
certas condutas inerentes ao ser humano como animal primitivo: a busca pela conservação
de sua espécie. O homem, por um direito natural, utiliza-se da guerra para assegurar a
conservação de sua vida e corpo.
Ao se analisar, por exemplo, as escrituras sagradas, percebe-se que nem toda
guerra é contrária ao direito natural. Deus, por exemplo, estabeleceu regras para uma
guerra justa, como se observa em Deuteronômio 20, versículos 10 a 15: “Quando te
achegares a alguma cidade para combatê-la, apregoar-lhe-ás a paz. E será que, se te
responder em paz, e te abrir as portas, todo o povo que se achar nela te será tributário e te
servirá. Porém, se ela não fizer paz contigo, mas antes te fizer guerra, então a sitiarás. E
o Senhor teu Deus a dará na tua mão; e todo o homem que houver nela passarás ao fio da
espada. Porém, as mulheres, e as crianças, e os animais; e tudo o que houver na cidade,
todo o seu despojo, tomarás para ti; e comerás o despojo dos teus inimigos, que te deu o

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Senhor teu Deus. Assim farás a todas as cidades que estiverem mui longe de ti, que não
forem das cidades destas nações”.
A Bíblia, apesar de conter o mandamento “Não matarás”, previsto em Êxodo 20,
versículo 13, não proíbe a guerra. A interpretação desse mandamento como sinônimo de
proibição da guerra é equivocada, já que em diversas passagens a guerra já foi inclusive
ordenada por Deus. Mas, o que Deus de fato quis proibir, foi o assassinato intencional.
No que concerne a guerra, Deus ordenou que os israelitas fossem à guerra contra
outras nações, assim como previsto em 1 Samuel 15:3 (“Vai, pois, agora e fere a
Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde
o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e
desde os camelos até aos jumentos”) e em Josué 4:13 (“Uns quarenta mil homens de
guerra, armados, passaram diante do Senhor para batalha, às campinas de Jericó”).
A guerra, as vezes, é legítima e necessária, principalmente nas passagens bíblicas
em que Deus retrata o mundo cheio de pecadores em que a única solução para evitar que
pecadores causem dano ainda maior a pessoas inocentes é através da guerra (Romanos
3:10-18).
Em Efésios 6: 11-12, Deus assim ordenou: “Vistam toda a armadura de Deus, para
poderem ficar firmes contra as ciladas do Diabo, pois a nossa luta não é contra seres
humanos, mas contra os poderes e autoridades, contra os dominadores deste mundo de
trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais”.
Não obstante as passagens que demonstrem a ordem divina de guerra, observa-se
que, previamente a alternativa da guerra, está a busca pela paz, haja vista que a própria
guerra tem como fim último a paz: "Quando vocês avançarem para atacar uma cidade,
enviem-lhe primeiro uma proposta de paz (Deuteronômio 20:10).
Assim como no direito divino, o direito das gentes também não condena todo tipo
de guerra. Uma guerra pode ser considerada justa se a sua causa o é. Estaria equivocado
o pensamento de muitos autores que atestam que o direito natural e o direito voluntário
proíbem todo tipo de guerra. Para Grotius, o direito natural e o direito voluntário não
proíbem toda a guerra, sendo legítimo empreender uma guerra com o intuito de
restabelecer o fim natural do homem, e seus princípios.
Em relação a guerra, é preciso distingui-la entre guerra privada, guerra pública e
guerra mista. A primeira se refere àquela que se faz por uma autoridade de poder civil; a
segunda, é a mais antiga e se faz de um modo diverso; por fim, a guerra mista é em parte
pública, em parte privada.

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A guerra privada legitima-se no direito natural de rechaçar uma injúria, sendo que
muitos autores podem alegar que ela deixou de existir a partir da instituição dos tribunais
públicos. Contudo, a legitimidade da guerra privada sob o ponto de vista do direito
natural, está inclusive prevista nas sagradas escrituras, como se observa em Êxodo 22,
versículo 2: “Se o ladrão que for pego arrombando e for ferido e morrer, quem o feriu não
será culpado de homicídio”. Esse trecho e outros previstos na bíblia, podem ser alvo de
certa confusão por parte de algumas nações: se por um lado explica direito natural, pode
ser entendido como justificativa para a impunidade ou até mesmo para a ameaça e
violência deliberada sob o fundamento de uma equidade comum. A exemplo, bastaria ver
a lei de doze tabuas.
No que concerne a guerra pública, esta pode ser dividida em solene (conforme o
ius gentium) e não solene. A guerra pública solene é a guerra justa, e assim o é se seguidas
duas condições: aqueles que a fazem estejam investidos do poder soberano e, que sejam
observadas algumas formalidades. A guerra não solene, por sua vez, é aquela em que
faltam essas condições. A guerra pública solene pode ser compreendida como expressão
do formalismo jurídico que se sobrepor à justiça material da guerra.
Há uma questão referente a guerra pública que precisa ser discutida: quando a
guerra é promovida por uma autoridade que não possui o poder soberano. Se a guerra
pública é levantada por aquele que não é detentor da soberania, é preciso compreender,
primeiramente, o que seria a soberania para, posteriormente, discutir se essa guerra seria
solene ou não. De acordo com Grotius, o poder soberano é aquele que em os atos não
dependem da disposição de outrem, podendo ser comum ou próprio. O objeto comum da
soberania será o Estado, e o objeto próprio será uma pessoa única ou coletiva.
A soberania, contudo, não reside sempre no povo, devendo ser refutada a opinião
segundo a qual a soberania deva residir sempre no povo, sem exceção, podendo o povo
inclusive punir e reprimir os reis que fizeram o mau uso do poder. Aristóteles, por
exemplo, em A Politica defende que há homens naturalmente predispostos a escravidão,
sendo mais natural a estes a obediência do que o ato de governar. Aristoteles vê na
escravidão algo natural, não obstante alguns críticos entenderam que ela não é condição
natural dos homens, mas contrária a natureza porque todos os homens seriam livres em
sua natureza. Na visão do filósofo grego, há dois tipos de escravo: o escravo por lei e por
natureza. A existência de “escravos por natureza” é o que leva Aristóteles a afirmar que
alguns indivíduos, desde o nascimento, são destinados a comandar, enquanto outros se
destinam a serem comandados: “todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento,

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são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer4”.
A monarquia, em Aristóteles é o Estado em que o governo que visa a este interesse
comum pertence a um só: “Quando o monarca, a minoria, ou a maioria não buscam, uns
ou outros senão a felicidade geral, o governo é necessariamente justo5”. A monarquias
estariam entre “os grandes governos”. Além disso, há muitas nações que demonstraram
ser possível e válida a monarquia.
Um século depois, Montesquieu, após fazer uma análise das formas de governo,
deixa clara sua preferência pelo governo monárquico. Para o autor francês, os tempos
modernos pertencem à monarquia, sendo que a Antiguidade não teria conhecido a
verdadeira monarquia. Por seu princípio ser a honra, na monarquia tem-se as leis
fundamentais do reino, que são leis que fundamentam sua natureza. O rei governa com o
auxílio dessas leis e de poderes intermediários subordinados e independentes, como o
clero e a nobreza. E, claro, sem esquecer a principal de suas leis fundamentais: a sucessão
do trono. A estabilidade do governo seria garantida pelo corpo intermediário (nobreza,
evita que o rei se torne um déspota), pelo repositório das leis (povo, garante que as leis
serão conhecidas por todos) e pela divisão dos poderes (evita o despotismo).
Aparentemente, Grotius concorda com o absolutismo monárquico para o
estabelecimento do direito das gentes entre as nações. Talvez, por concordar com essa
figura do rei como soberano absoluto, não sendo possível a divisão da soberania com o
povo, Grotius tenha influenciado Thomas Hobbes. Contudo, há algumas nuances que
merecem ser destacadas: Grotius concorda, em parte com o que Aristóteles disse sobre o
homem ser manso em sua natureza; já Hobbes, defende que o homem é um ser mau por
natureza e que todos, antes do contrato social, estariam numa eterna guerra. A partir do
pacto, o homem se subjugaria ao soberano pelo medo. Grotius, ao contrário, não entende
que o medo seria o pressuposto para a união dos homens para a vida em sociedade e
submissão a um poder soberano.
No que tange ao direito de resistência, Grotius o refuta incisivamente: “Há outras
pessoas que acreditam que há uma espécie de dependência recíproca entre um rei e seus
súditos, de maneira que esses últimos deveriam obedecer a seu rei enquanto governasse
bem, mas que, se o rei viesse a governar mal, se tornaria dependente de seu povo. Se essas
pessoas dissessem que não se deve cumprir porque o rei ordenou um ato manifestamente
injusto, sua proposição seria verdadeira e conforme a aprovação de todos os homens de

4
ARISTÓTELES. A política. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.12.
5
ARISTÓTELES. A política. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.105.

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bem, mas isso não encera nenhum direito de coação ou de superioridade6”. Por outro lado,
Locke justificará o direito de resistência devido ao abuso de poder por parte das
autoridades: quando o governante se torna tirano, este se coloca em estado de guerra
contra o povo. Isto é, apesar de que a soberania não possa ser destituída, o soberano não
pode decidir contra a vontade ou interesse do povo. O soberano está vinculado, desse
modo, ao direito natural, ao direito civil e ao direito das gentes.
Percebe-se, por fim, que para Grotius, a guerra é um estado, e não uma ação, que
não é proibida nem pelo direito natural nem pelo direito divino. Ao longo da obra,
possível identificar três causas que legitimam uma guerra: a defesa contra uma injúria
(iminente ou uma ameaça); para a recuperação de algo devido a uma nação lesada; e, por
fim, para a punição daquela nação que deu causa a injúria. Como se observa, o direito de
guerra surgiria da violação do princípio de convivência pacífica entre os Estados.
A importância dada por Grotius a guerra se justifica pela frequente utilização
desse instituto pelos Estados com o intuito de dar fundamento as guerras religiosas da
época. Nesse viés, a proposta de Grotius recebe destaque por estabelecer regras de
convivência entre Estados, seja para manter a paz, seja para conduzir uma guerra justa.
Grotius, de modo geral, procura desvincular o direito da teologia a partir da formulação
de uma concepção de direito natural laico, ou seja, substituir a autoridade divina da
fundamentação do direito a guerra. Apesar de Grotius demonstrar certa tendência ao
calvinismo, é perceptível que um dos seus objetivos ao longo da obra é dar um
fundamento racional para o direito, o que o faz a partir de uma construção normativa
baseada em princípios racionais deduzidos da razão humana (um direito natural
racionalista).

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GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz. Editora Unijuí, 2004, p.189.

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