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CASO nº 24: A é médico e o único especialista em doenças dos rins na região. Na noite de Fim de
Ano, cerca da uma hora, A foi chamado de urgência por D, sua doente, que vem sendo submetida a
diálises periódicas. Dado o estado da paciente, A sabia que na ausência de cuidados imediatos a vida de
D correria perigo. Por isso, e porque tinha ingerido uma boa quantidade de álcool (como médico sabia
que a taxa de álcool no sangue deveria andar por 1,4 g/l, como efectivamente acontecia), chamou um
táxi. Foi em vão: não havia táxis disponíveis àquela hora. Contrariado, acabou por se pôr ao volante do
seu próprio carro, a caminho da casa de D. Quando, porém, seguia por uma das ruas da localidade, de
repente, sem que nada o fizesse prever, apareceu-lhe na frente do carro H, que saíra alegremente de uma
festa ali ao lado e por breves instantes tinha estado parado atrás de um muro, à beira da rua, sem que o
condutor o pudesse ter visto antes. Foi-lhe impossível evitar embater no peão, não obstante seguir a
velocidade que não era superior à velocidade regulamentar de 50 km/h. A vítima sofreu ferimentos
graves e caiu, inconsciente, no chão. A parou, saiu do carro, mas viu logo que para salvar a vida de H
tinha que o transportar imediatamente ao hospital. E assim fez, pelo caminho mais rápido, sabendo
muito bem que punha em jogo a vida da sua doente renal. Logo que deixou H no hospital, A dirigiu-se
imediatamente para casa da doente. Mal chegou, apercebeu-se da morte desta, ocorrida poucos minutos
antes. Se A tivesse chegado uns minutos mais cedo, D, muito provavelmente teria sido salva. A deu
conhecimento do atropelamento à polícia. Cf. M. Aselmann e Ralf Krack, Jura 1999, p. 254 e ss., cuja
proposta de solução serviu de apoio a estas notas. Cf., igualmente, Bockelmann / Volk, AT, p. 99, e Otto,
AT, p. 131.
Punibilidade de A ?
1. O atropelamento de H.
Do acidente resultaram ofensas corporais graves na pessoa de H, pelo que A pode estar
comprometido com o disposto no artigo 148º, nº 1.
"Podemos conceber situações em que há uma violação do dever objectivo de cuidado e, todavia, em
termos de imputação objectiva, o resultado não poder ou não dever ser imputado ao agente. Basta para
isso pensar em um qualquer caso que a jurisprudência e a doutrina alemãs já sedimentaram,
transformando-os em exemplos de escola. Enunciemo-los: a) o caso do ciclista embriagado (A) que é
ultrapassado por um camião que ao desrespeitar as regras de trânsito o atropela mortalmente com o
rodado anterior; b) a hipótese do farmacêutico que não cumprindo a receita médica avia, várias vezes, a
pedido da mãe, doses de fósforo para uma criança que vem a morrer por intoxicação; c) o caso do
director de uma fábrica que, não cumprindo as disposições legais, não desinfecta os pelos de cabra,
importado da China, provocando, assim, a morte de quatro trabalhadores; d) a hipótese do médico que
anestesia com cocaína, não cumprindo as leges artis, já que o indicado na situação seria a aplicação de
novocaína, o que provoca a morte do paciente. (...). Uma tal enunciação e o seu tratamento pela doutrina
alemã permite-nos ter imediata consciência de que, para uma parte da doutrina, alguns daqueles casos,
conquanto haja em todos violação de dever objectivo de cuidado, se radicalizam em uma ausência de
imputação objectiva do facto ao agente. Daí que, se a violação do dever objectivo de cuidado é condição
necessária para que o facto nas acções negligentes possa ser objectivamente imputado ao agente, é
também certo que a não imputação do facto passa necessariamente pela ausência de violação do dever
objectivo de cuidado. Por outras palavras: as acções negligentes de resultado pressupõem uma estrutura
limitadora da responsabilidade que se perfila de forma dúplice: de um lado, a violação de um dever
objectivo de cuidado (...), valorado também pelo critério individual e geral, e de outro, a exigência de um
especial nexo, no "sentido de uma conexão de condições entre a violação do dever e o resultado". Prof.
Faria Costa, O perigo em direito penal, p. 487.
mínima possibilidade de travar ou de se desviar para não embater na vítima. Ora, uma
vez que temos como apurado que o comportamento lícito alternativo provocaria
igualmente o resultado danoso, este não deverá ser imputado ao condutor. Não obstante
a elevada taxa de álcool no sangue (TAS) do condutor, não se pode concluir que os
perigos daí advindos se tivessem concretizado no resultado típico, i. e. nas ofensas à
integridade física graves sofridas pelo atropelado. A doutrina do aumento do risco
chegaria aqui a idênticos resultados, porquanto a alcoolémia do condutor não aumentou
o risco de embater no peão. Observe-se, por outro lado, que, de acordo com os critérios
correntes do princípio da confiança, "ninguém terá em princípio de responder por faltas
de cuidado de outrem, antes se pode confiar em que as outras pessoas observarão os
deveres que lhes incumbem" (Figueiredo Dias, Direito penal, sumários e notas, Coimbra,
1976, p. 73). Quem actua de acordo com as normas de trânsito pode pois contar com
idêntico comportamento por banda dos demais utentes da via e A podia confiar em que
ninguém, de repente, sairia de detrás do muro nas apontadas circunstâncias. O condutor
só pode confiar que, pelo facto de agir segundo o direito, não pode ser penalmente
responsabilizado por factos que não pode evitar. No caso, o condutor não podia evitar o
que aconteceu, porque, para além do mais, não previu — nem tinha que prever — o
resultado. Falta também aqui, como se vê, um elemento essencial à imputação por
negligência, que é a previsibilidade. Podemos assim concluir que A não cometeu o crime
de ofensas à integridade física por negligência do artigo 148º, nº 1.
"Há quem entenda — quanto a nós bem, adiante-se — que o interagir motivado pelo tráfego rodoviário
só tem sentido se for compreendido através do princípio geral da confiança. Mais do que o cumprimento
das regras de cuidado, o que importa ter presente é que, objectivamente, vigora a ideia de que qualquer
utente da via tem de confiar nos sinais, nas comunicações, dos outros utentes e tem, sobretudo, de
confiar, em uma óptica de total reciprocidade, na perícia, na atenção e no cuidado de todos os outros
utilizadores da via pública." Prof. Faria Costa, O Perigo, p. 488.
para a vida ou para a integridade física de outrem. Trata-se, portanto, de crime de perigo
concreto: o perigo é elemento típico do crime. Para haver crime, seria então necessário
demonstrar que no caso o resultado de perigo teve origem na condução em estado de
embriaguez de A. Como logo se vê, houve um perigo que se concretizou, chegou a
ocorrer uma situação de dano para a integridade física do atropelado, de que essa
situação de perigo concreto foi um estádio intermédio. Todavia, não foi o perigo
decorrente da condução em estado de embriaguez que cristalizou no evento danoso — a
condução não ultrapassou o risco permitido na correspondente actividade. Na verdade,
só a conduta inadequada de H pode explicar a realização do risco que ficou
caracterizado. A não cometeu este crime.
A conduzia com uma TAS (taxa de álcool no sangue) superior a 1,2 g/l. Fazia-o, como já
se disse, por ser médico, com suficiente conhecimento de que a taxa andaria por esse
valor, e consequentemente com dolo eventual, na medida em que igualmente se
conformou com a condução nessas circunstâncias (artigo 14º, nº 3). Ainda assim, e
porque a taxa estava muito perto do seu valor mínimo, sempre se poderia afirmar, pelo
menos, a negligência do condutor, sendo certo que a norma prevê igualmente a punição
desta forma de culpa.
Existe uma situação de conflito de deveres quando o agente se encontra pelo menos
perante dois deveres jurídicos, com a consequência inevitável de só poder satisfazer um à
custa do outro. Em geral, distinguem-se três grupos de hipóteses. Ou o agente tem de
obedecer a dois comandos (deveres de acção), por ex., se um médico em caso de
acidente presta os primeiros socorros apenas a uma das vítimas, embora se lhe impusesse
o dever de acudir a todas. Ou pode haver colisão entre uma acção e uma omissão
(conflito entre um dever de acção e um dever de omissão), "questão que, como é sabido,
foi abundantemente tratada após (e em consequência das ordens criminosas dadas pelos
"superiores" nazis) a segunda grande guerra — é, hoje, maioritariamente, entendido que
No caso que nos ocupa, A, por um lado, tinha o dever de omitir a condução em situação
de alcoolémia (dever de omissão), por outro, era seu dever prestar em tempo útil os
cuidados de que a sua paciente estava tão necessitada (dever de acção).
De acordo com o artigo 34º, não é ilícito o facto praticado como meio adequado para
afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos de terceiro.
Ponto é que se verifiquem os requisitos das três alíneas seguintes. No caso concreto,
existia um perigo actual para a vida da paciente, existia, portanto, uma situação de
necessidade. Conduzir em estado de alcoolémia até à casa da doente (acção em estado
de necessidade) deveria ser —e era, objectivamente—, a maneira necessária de afastar o
perigo, coberta, subjectivamente, pela vontade de salvar a vida da doente. A procurou
em noite de Fim de Ano um táxi, consciente de que não podia conduzir a sua própria
viatura, mas sem êxito. Por outro lado, A não estava em posição de chamar um colega
que fizesse o seu trabalho, pois era o único especialista da região e o único que podia
acudir à paciente. De forma que se não descortina um meio menos gravoso, rodeado de
menores custos, de afastar o perigo. Além disso, A actuou com conhecimento da
situação de necessidade. Finalmente, pode muito bem garantir-se que o interesse a
salvaguardar era sensivelmente superior ao interesse a sacrificar. Havia claramente um
perigo concreto para a vida da doente renal em contraposição com um perigo
abstracto que era a segurança do trânsito rodoviário. Os bens jurídicos protegidos num
caso e no outro serão idênticos, mas a segurança do trânsito tem a ver, de forma
abstracta, com a protecção da vida dos que andam nas ruas e estradas. O que é decisivo
é a proximidade e a probabilidade de se verificar o perigo. No crime de perigo abstracto
que é o do artigo 292º ocorre simplesmente a possibilidade, a eventualidade, de pôr em
perigo a vida de uma qualquer pessoa, é uma situação de perigo presumido. O que
estabelece a diferença com o artigo 291º é que aqui se exige a concretização de um
perigo para a vida de uma ou mais pessoas. E assim, concretizado o perigo, a pessoa
cuja vida correu perigo é A — ou A e B —, e já não simplesmente A ou B ou C ou D,
etc. Basta atentar nas penas cominadas para os dois tipos de crime para se concluir que o
peso recai mais intensamente no crime de perigo concreto. Pode por isso dizer-se que a
protecção da vida da doente, que estava em risco de morrer e morreu mesmo, representa
um interesse sensivelmente superior aos que têm a ver com a segurança abstracta dos
participantes no trânsito rodoviário. Com isto, podemos concluir que a conduta de A está
justificada por aplicação dos artigos 31º, nºs 1, e 34º.
Todavia, e como se deixou dito, a solução poderá já ocorrer no domínio do artigo 36º, no âmbito do
conflito de deveres, com a vantagem de não ser necessário assentar na sensível superioridade do
interesse a salvaguardar, já que, no caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos, não é ilícito o
facto de quem satisfizer dever de valor igual ou superior ao do dever que sacrificar. Contentando-se a lei
com um dever de valor igual, a tarefa do intérprete ficará muito mais facilitada.
Uma vez que A não prestou o auxílio médico à sua paciente e esta morreu, A pode ter
cometido o crime em referência.
Deu-se o resultado mortal e isso pode ser imputado a A, já que este, com uma
probabilidade quase a raiar a certeza, o podia ter evitado.
"Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida. "
Como a doente estava a ser tratada por A, este encontrava-se em posição de garante
por vias do contrato estabelecido entre ambos (critério tradicional) ou por assunção do
dever de protecção e auxílio (critério doutrinal mais recente). A conhecia a sua posição
de garante, sabia que havia a possibilidade de salvar a vida da doente e que esta podia
morrer — houve, por isso, dolo da sua parte. Não intervém o artigo 34º porque falta a
sensível superioridade do interesse a salvaguardar, que é requisito da alínea b). A conduta
poderá todavia analisar-se no âmbito da colisão de deveres. É certo que A tinha o dever
de garante perante a sua doente renal e não o tinha relativamente ao atropelado — neste
caso, a ingerência não vem acompanhada da culpa do condutor, nem o acidente lhe pode
ser ilicitamente atribuído. O responsável pelo acidente foi sem dúvida nenhuma o peão.
O dever de acudir à paciente renal seria valorativamente mais elevado do que o de ajudar
o peão atropelado. Há-de notar-se contudo que no artigo 36º se não faz uma valoração
deste tipo, o bem jurídico da vida não é mensurável em função da idade ou de privilégios
sociais, nem em função de critérios exteriores como aqueles que vinham sendo
apontados. A estava em posição de apenas poder salvar uma das vidas —e foi isso que
fez. A conduta não é portanto ilícita.
“Autêntico conflito de deveres susceptível de conduzir à justificação existe apenas quando na situação
colidem distintos deveres de acção, dos quais só um pode ser cumprido”. Figueiredo Dias, Textos, p. 239.
O direito de necessidade é uma causa de justificação que tem a ver com a ponderação
de interesses. O direito de necessidade (estado de necessidade justificante) aproxima-
se da legítima defesa: desde logo, a "agressão" é uma manifestação de "perigo" para a
Dá-se uma situação de necessidade quando um perigo actual para um bem jurídico só for removível
através de uma acção típica que lesa ou põe em perigo um outro bem jurídico. Bockelmann / Volk, AT, p.
96. São numerosas as situações de necessidade em que existe um bem ou um interesse jurídico em
perigo, cujo afastamento se faz à custa de outro bem ou interesse jurídico. Um desses casos é a situação
de legítima defesa — o agressor cria um perigo que vai ser afastado à sua própria custa, mas podem
configurar-se muitas outras variantes. A fonte do perigo pode, por ex., ser uma coisa (ataques de
animais, o fogo numa mata), ou pode empregar-se coisa alheia para afastar o perigo, e então teremos o
afastamento do perigo à custa de terceiro. Cf. Haf, p. 87.
O direito de necessidade do artigo 34º supõe desde logo um "perigo" que ameaça
interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro. Há situações a que, face às
circunstâncias concretas, provavelmente se seguirá um evento lesivo — são situações de
perigo. Perigo é portanto a probabilidade séria de dano, é o dano em potência. Do
conceito de dano e do conceito de probabilidade chega-se assim ao de perigo.
respeito ao passado, ou ao presente. Jamais ao futuro. Provável, ao contrário, é aquilo que ainda não se
efectivou. É um processo causal in fieri (que está sendo feito), em estado embrionário. Projecta-se rumo
ao futuro. Quando aquilo que pode acontecer se realiza, a probabilidade se transmuda em certeza.
Probabilidade, porém, ainda não é certeza. É atitude potencial, é possibilidade relevante de vir a ser.
Paulo José da Costa Jr., Direito Penal Objetivo, p. 24.
Mas é ainda de perigo a situação em que se encontra um bem jurídico cuja lesão já se
iniciou e pode ser continuada, pois o perigo não acaba necessariamente com o começo
da lesão. O dano não é um aliud, mas um plus, relativamente ao perigo. No exemplo de
Mitsch, quando as chamas que lavram numa casa começam a "lamber" a casa do vizinho,
esta fica em perigo. Do mesmo modo, num edifício em chamas, há o perigo de o fogo
alastrar e danificar outras partes do mesmo edifício. Só quando se extingue o fogo ou a
casa ardeu completamente é que o perigo desaparece. A situação de perigo distingue-se
de uma situação não perigosa pela existência de elementos que tornam provável a
imediata produção de um dano (Lenckner, S/S). Quando no interior de uma casa de
lavoura se deita um cigarro aceso para um molho de palha, torna-se provável, num juízo
de prognose ex ante, o desencadear de um incêndio. Portanto: um cigarro aceso deitado
para um molho de palha corresponde à criação de uma situação de perigo. Se não se
ateia o fogo, mesmo assim a situação não deixou de ser perigosa. Ainda que sem dano, o
perigo verificou-se. Há coisas que, por vezes, ameaçam produzir danos — animais,
explosões, emissões tóxicas, queda de edifícios, ou fenómenos naturais, como as
tempestades, tremores de terra, avalanches, inundações, furacões (Mitsch, p. 329). No
artigo 34º, a lei renova a expressão, vinda já do artigo 32º, "interesses juridicamente
protegidos do agente ou de terceiro" como sendo o objecto do perigo — e aí reside
uma diferença importante relativamente ao estado de necessidade desculpante, onde se
limita a ameaça à vida, à integridade física, à honra ou à liberdade. Neste contexto, uma
greve de fome, voluntariamente assumida, ou uma tentativa de suicídio não representam
uma situação de perigo, mas se alguém é encontrado inconsciente na via pública, em
estado que faz perigar a vida, justifica-se o uso não autorizado de um carro alheio para o
transporte ao hospital.
O perigo deve ser actual, simultâneo ao facto. O perigo é actual se a qualquer momento
puder conduzir ao dano. Se no momento da prática do facto já existe uma lesão do
interesse protegido, o perigo é obviamente actual — aliás, o que é decisivo não é
propriamente a actualidade do perigo mas a situação de constrangimento.
A situação de necessidade pode concretizar-se num perigo para o agente ou para terceiro
(repare na expressão correspondente do artigo 32º: interesses juridicamente protegidos
do agente ou de terceiro). Exemplos: A causa lesões corporais em B para salvar a
própria vida. A causa lesões corporais em B para salvar a vida de C. O pai, na casa em
chamas, atira pela janela o filho que quer salvar, mas à custa de ferimentos na criança.
Neste caso, a vida do terceiro é salvaguardada à custa da integridade física do mesmo
terceiro, havendo portanto identidade entre o portador do interesse a salvaguardar e o
portador do interesse sacrificado.
A actuação (“o facto praticado”) deverá ser adequada para afastar o perigo, de modo
que não se justificam aquelas medidas que à partida não oferecem a mínima possibilidade
de eficácia. Podem existir diferentes modos de afastar o perigo e se uma dessas
modalidades produz menor dano, se é a menos gravosa, corresponderá então ao meio
adequado. O facto de esse meio coactivo não ser substituível por outra medida menos
gravosa torna-o necessário.
"Même dans la destruction, il y a un ordre, il y a des limites" (A. Camus, Les Justes).
Se houver outras variantes tão danosas como a considerada, então o perigo não será
removível de outro modo. A fuga e o afastar-se alguém perante o perigo são modalidades
que em situação de necessidade devem ser assumidas — ao contrário do que se passa
com a legítima defesa, em estado de necessidade, a fuga não é desonra nem covardia.
Tudo isso corresponde, aliás, à natureza subsidiária do estado de necessidade: não é
caso de invocá-lo se o agente puder conjurar o perigo de outro modo, sem ofender o
direito de outrem. Se o perigo só puder ser afastado mediante uma certa e determinada
actuação, então passa esta a assumir-se, automaticamente, como necessária.
A acção de necessidade configura-se como uma actio duplex, por ter dois lados: "uma vertente de lesão
de um bem jurídico e uma dimensão de salvaguarda de bens jurídicos" (Küpper JuS 1987, p. 81, e Costa
Andrade, p. 164).
Imposição coactiva da doação de sangue? Pode acontecer que, por causa da raridade do seu grupo
sanguíneo, a vida de uma pessoa gravemente ferida só possa ser salva à custa da transfusão de outra
pessoa que, porém, se recusa a dar o seu sangue. Quid juris? A doutrina maioritária sustenta que a
imposição coactiva da doação de sangue transcende a eficácia justificativa do direito de necessidade —
descontadas as hipóteses de subsistência de particulares deveres de garante. E isto pese embora a
particular e evidente natureza do conflito: de um lado o valor da vida, do outro uma agressão
relativamente inócua à integridade física. Só que a imposição coactiva da doação contraria pura e
simplesmente o princípio da liberdade e da dignidade humana. Em tais casos, a expressão da
solidariedade só poderá ter sentido se constituir um acto de liberdade ética. O homem não deverá em
qualquer caso ser utilizado como meio. Cf. Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, p.
239; e Bockelmann / Volk, p. 99.
Muito conhecido é o caso Mignonette, de 1884, em que uns náufragos, à míngua de alimentos,
sacrificaram o companheiro mais novo para conseguirem sobreviver. O tribunal condenou-os à morte,
mas os réus foram depois agraciados e a pena substituída por seis meses de cárcere. O caso seria hoje
tratado no âmbito do estado de necessidade desculpante (cf., a seguir, a tábua de Carnêades). O tribunal
inglês, como nota Roxin, não tinha outra alternativa — o direito insular tinha que rejeitar, logicamente,
a causa de justificação, sendo certo que ali se não conhecia uma isenção da responsabilidade
independente da justificação. A sentença, ainda assim, não fugiu a manifestar "a mais sentida expressão
de compaixão pelos sofrimentos dos acusados", e a Coroa, lançando mão do indulto, comutou a pena,
como já se disse, para seis meses de privação da liberdade "sem trabalhos pesados". E Roxin comenta:
alcançou-se assim, por vias travessas ao estrito plano do Direito positivo, uma solução próxima da que o
direito continental oferece com a solução diferenciada entre ilícito e culpabilidade.
Excerto da sentença do caso Mignonette. Queens Bench Division 1884 (14 QBD, 273), apud J.
Verhaegen, L'humainement inacceptable en droit de la justification, RICPT, 1981, p. 269: "Não é
correcto dizer-se que existe uma necessidade absoluta e sem reservas de alguém preservar a sua própria
vida (...). Não é necessário sublinhar o grande perigo que decorre da circunstância de se admitir o
princípio que aqui foi discutido. Qual o critério valorativo que permite comparar as vidas? Será o de se
ser forte ou inteligente? (...) No caso que nos ocupa, foi escolhido o mais fraco, o mais jovem, o menos
capaz. Haveria uma maior necessidade de o matar e não os adultos? A resposta deverá ser "não". Não se
contesta, neste caso particular, que os factos eram "diabólicos", mas também é evidente que uma vez
admitido tal princípio o mesmo poderá constituir o manto legal para que se passem a praticar crimes
horríveis ...".
A ideia do efeito justificante da situação de necessidade entronca na teoria da colisão de Hegel, cujo
cerne reside numa ponderação de interesses — do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse a
sacrificar. O facto estará justificado perante a sensível superioridade do primeiro. "O problema, posto
com a maior largueza por Hegel a propósito da colisão entre a vida e a propriedade, conduziu a admitir
neste caso um verdadeiro direito (não, pois, equidade ou mero "ius aequivocum"), um direito de
necessidade: para conservação do bem jurídico da vida, quando em perigo, pode sacrificar-se a este o
bem jurídico da propriedade de outrem. É a esta luz, como nota Bockelmann, que se considera legítima a
manutenção daquele bem cuja destruição representaria a maior violação jurídica. O que, posto em
linguagem moderna, significa considerar lícita a realização de um interesse superior àquele que se
sacrifica" (Eduardo Correia, Direito Criminal II, p. 81). A ideia do efeito desculpante da situação de
necessidade identifica-se com a teoria da adequação de Kant: quem actua em estado de necessidade age e
permanece em situação de ilicitude, mas porque lhe não é exigível outra conduta deverá ser desculpado.
Cf. Haft; e F. Palma, A Justificação, p. 327 e ss., igualmente com considerações a propósito do caso
Mignonette.
Os ingleses quando falam neste estado de necessidade, causa de justificação ou causa de exclusão da
ilicitude, utilizam a expressão correspondente a necessidade, ou seja necessity; aí é mesmo uma situação
de necessidade objectiva. Quando estão a falar na outra situação, da pessoa que age em estado de
necessidade, mas no sentido de coacção moral ou situação de medo, usam a expressão duress. É mais
fácil, assim discutir a contraposição de situações. Cf. Teresa P. Beleza, p. 290. Veja-se, a propósito, o
título dos trabalhos publicados in S. H. Kadish, Encyclopedia of Crime and Justice, 1983,
nomeadamente, Morawetz, “Justification, Necessity”, e Levine, “Excuse, Duress”. E veja-se ainda B.
Schünemann, La función de delimitación de injusto y culpabilidad, in Fundamentos de un sistema
europeo de Derecho Penal, Libro-Homenaje a Claus Roxin, 1995.
CASO nº 24-A: Após um acidente com várias vítimas, imediatamente compareceu uma ambulância,
vislumbrando-se a possibilidade de salvar algumas vidas. Todavia, todos os presentes reconheceram
desde logo que A, o motorista, estava fortemente embriagado, não havendo ninguém em condições de o
substituir. O motorista conduziu a viatura até ao hospital em velocidade adequada e com respeito de
todas as regras de trânsito.
CASO nº 24-B: Um bombeiro pode salvar uma criança, mas só atirando-a, lá bem do alto do edifício
em chamas, para os colegas que improvisaram uma tela amortecedora na base do prédio. Existe o perigo
de a criança cair mal e partir a base do crânio. O perigo que assim ameaçava a criança realizou-se e a
morte, infelizmente, veio a ocorrer .
A acção do bombeiro encontra-se coberta pelo artigo 34º. Só havia uma alternativa à
morte da criança pelas chamas. Quando o bombeiro se decidiu por atirar a criança do
alto do prédio em chamas escolheu pôr em perigo um bem jurídico para evitar a lesão
certa do bem jurídico. A situação reporta-se ao mesmo bem jurídico mas isso não obsta à
aplicação do artigo 34º. Trata-se de um caso de ponderação de riscos. Cf. Otto, p. 131.
CASO nº 24-C: Um médico, que tem que proceder a uma transfusão de sangue no local de um
acidente para salvar uma vida, dirige-se para onde se deu o sinistro, a curta distância da sua residência,
durante a noite, por uma estrada bem iluminada mas a velocidade bem superior à legalmente permitida .
Como no caso nº 24, um perigo abstracto e remoto confronta-se com uma situação de
perigo concreto para a vida da vítima do sinistro. A conduta do médico está justificada
por direito de necessidade.
CASO nº 24-D: A, médico, obriga P, um doente internado no hospital onde presta serviço, a dar
sangue a B, que sem ele teria morrido. P, todavia, tinha-se recusado a dar sangue voluntariamente .
Estão aqui, frente e frente, a preservação da vida de B, e uma ofensa à integridade física
de P, bem como a sua liberdade de decisão. A mais disso, está em causa o sentimento de
segurança de todos os outros doentes internados naquele estabelecimento hospitalar. A
doutrina maioritária sustenta que a imposição coactiva da doação de sangue transcende a
eficácia justificativa do direito de necessidade — descontadas as hipóteses de
subsistência de particulares deveres de garante. E isto pese embora a particular e
evidente natureza do conflito: de um lado o valor da vida, do outro uma agressão
relativamente inócua à integridade física. Só que a imposição coactiva da doação
contraria pura e simplesmente o princípio da liberdade e da dignidade humana. Em tais
casos, a expressão da solidariedade só poderá ter sentido se constituir um acto de
liberdade ética. O homem não deverá em qualquer caso ser utilizado como meio. (Cf.
Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, p. 239, e os diversos autores
aí citados).
Os autores (vd., por ex., Eduardo Correia, Direito Criminal II, p. 70) ocupam-se não só das hipóteses em
que os interesses a defender e os que se torna para tal necessário sacrificar são de igual valor, como
aqueles em que eles são de valor superior ou de valor menor, uns relativamente aos outros. "A história,
a jurisprudência e os autores fornecem-nos os mais variados exemplos destes diversos tipos": o da
"tabula unius capax", em que os interesses em conflito são de valor equivalente: vida contra vida; "ou
quando, para salvar uma vida é necessário fazer outrem cair de um andaime, causando-lhe graves
ferimentos; quando, para evitar um naufrágio, o capitão tem de lançar ao mar parte da carga; quando,
para vencer uma doença grave ou mortal, é necessário utilizar remédios pertencentes a outrem; quando,
para debelar um incêndio, importa utilizar ou danificar coisas pertencentes a outrem, v. g. utilizando
para as mangueiras água de um poço alheio ou arrombando a porta de um vizinho, etc. E é ainda
possível que alguém, como único meio de v. g. evitar uma grave ofensa corporal, não resista a sacrificar
a vida alheia (p. ex. para evitar a perda de um braço ou da vista não resista a atirar sobre outrem,
causando-lhe a morte, a bomba que vai explodir nas suas mãos) — caso em que, seguramente, o
interesse a defender é de valor inferior ao do interesse sacrificado".
encontra quase a ceder e que por isso suporta apenas um deles. O da frente decide cortá-
la, deixando despenhar-se no abismo o companheiro, pendurado a seguir. A crítica que se
faz a esta posição tem a ver com a necessidade de uma clara distinção entre a
antijuridicidade (que autoriza alguém a defender-se) e a conformidade ao direito (que
gera um dever de tolerar). Por sua vez, a teoria do efeito justificante do estado de
necessidade tem as suas raízes na teoria da colisão de Hegel. A ideia chave é a seguinte:
entre o bem a salvaguardar e o bem a sacrificar para sua protecção deverá interceder
uma ponderação de bens e interesses. Resultando dessa ponderação a predominância do
bem ou do interesse a salvaguardar, o agente estará justificado. Por ex.: A parte os
vidros da janela de um terceiro porque esse é o único meio de ventilar uma habitação
cheia de gás onde A está prestes a morrer asfixiado. A doutrina do efeito desculpante do
estado de necessidade tem o seu fundamento na teoria da adequação de Kant. A ideia
base é a seguinte: aquilo que o autor faz ao actuar em estado de necessidade é e
permanece ilícito. Mas porque lhe não era exigível outra conduta deverá ser desculpado.
Ex.: A mata outra pessoa para salvar a própria vida. A doutrina alemã distingue a
salvaguarda de interesses próprios ou alheios realmente (wesentlich) preponderantes
sobre outros em conflito como causa de justificação; e como causa de desculpação a
salvaguarda de interesses próprios e fundamentais, como a vida, a integridade física e a
liberdade, face a outros iguais ou mesmo superiores. Cf. os §§ 34 e 35 do StGB:
Lackner, p. 257 e ss. Partindo desta ideia diferenciada, o Código Penal português
acolheu o estado de necessidade justificante no artigo 34º: se o interesse salvaguardado
for de valor sensivelmente superior ao sacrificado, o facto estará justificado por direito
de necessidade. E acolheu no artigo 35º o estado de necessidade desculpante: se o
interesse salvaguardado não for de valor sensivelmente superior ao sacrificado o facto é
ilícito, mas o agente poderá ver a sua culpa excluída.
Umas vezes o estado de necessidade exclui a ilicitude: casos de sacrifício de valores menores para
salvar valores maiores. Outras vezes exclui a culpa: casos de sacrifício de valores iguais aos que se
salvam, ou mesmo de valores maiores, quando ao agente não era exigível outro comportamento.
preferência do direito inclina-se, logicamente, para eles e valora positivamente a acção. E quando os
interesses em conflito são equivalentes, então, ante a indiferença do direito por qualquer resultado, por
não ser além disso a sanção jurídica o meio mais adequado para resolver o conflito e impor o sacrifício
próprio ou a simpatia ou conveniência por interesses alheios, e sobretudo para permitir o máximo de
liberdade aos cidadãos — o direito não quer exigir a ninguém que se abstenha de actuar. Por outro lado,
a inexigibilidade geral em determinadas situações ou, ao contrário, a exigibilidade específica ou superior
por certos motivos são factores que também intervêm na ponderação de interesses. Deste modo,
ponderação de interesses e inexigibilidade estão estreitamente relacionados". Cf. Luzón Peña, Curso de
Derecho Penal, PG I 1996, p. 622.
"O Autor do Projecto começou por, sumariamente, expor a teoria do chamado estado de necessidade.
Referiu as três posições possíveis que sobre ele podem ser e têm sido defendidas: a que o vê sempre
como causa de exclusão da ilicitude; a que o vê sempre como causa de exclusão da culpa; e a dita "teoria
diferenciada", que o considera como obstáculo à ilicitude quando o interesse protegido é sensivelmente
superior ao sacrificado e como obstáculo à culpa nas outras hipóteses. (…) E acrescentou: numa visão
puramente individualista do direito e dos bens jurídicos que aquele protege não se compreende que seja
lícita a intervenção de alguém na esfera jurídica alheia; mas à medida que nos aproximamos de uma
visão mais social do direito e dos bens jurídicos, tal intervenção começa a ser progressivamente admitida
e, nesta medida, pode falar-se de um verdadeiro direito de necessidade ou, o que é o mesmo, de um
estado de necessidade que exclui a ilicitude do facto". Acta da 15ª Sessão, Actas, p. 234.
Alguns dos problemas que rodeiam a figura do estado de necessidade têm a ver com
formulações "pouco precisas" com que a norma aparece dotada: "meio adequado",
"sensível superioridade do interesse a salvaguardar", "ser razoável impor ao lesado", etc.
Por outro lado, e ao contrário do que acontece na legítima defesa, em que o agente
responde a uma agressão ilícita, aquele que age em estado de necessidade envolve um
terceiro "inocente" no afastamento da situação de necessidade — o que, como se viu já,
induz um outro sentido para a justificação.
A aponta para B com intenção homicida uma pistola carregada — nesse momento, a vida de B está em
perigo, ainda que o tiro não acerte. Mas não haverá perigo para a vida se nas mesmas condições a pistola
não estiver carregada .
CASO nº 24-E: Na madrugada de 15 de Abril de 1970, quando A seguia conduzindo o seu veículo
automóvel pelo troço da então chamada auto-estrada dos Carvalhos, nas proximidades do Porto,
fazendo-o de acordo com as pertinentes regras de direito rodoviário, viu, a uns cinco ou seis metros de
distância, que um vulto humano se lançava em correria para atravessar a faixa de rodagem. A ainda se
esforçou por travar e desviar a trajectória do seu carro mas, atenta a curta distância e o inopinado da
situação, não conseguiu evitar o embate, que foi violento, ficando o peão estendido no chão, sem dar
acordo de si. A ia a sair do carro para se inteirar do real estado da pessoa atropelada e providenciar
socorros, mas deu-se conta de que uma chusma de indivíduos armados de paus e em berreiro
desenfreado, gritando que o iam matar, se aproximava do local do acidente. Temendo não poder explicar
o sucedido nem deter a multidão, que manifestamente se preparava para fazer "justiça" por sua conta, A,
ainda que consciente de que abandonava a vítima do atropelamento e que o "abandono de sinistrado" era
punido pela lei, voltou a entrar no carro, que acelerou, indo entregar-se à polícia, em Vila Nova de Gaia,
onde fez um relato circunstanciado de tudo o que acontecera .
jurídicos alheios. De qualquer modo, sempre haverá que ter em conta a ressalva da
última parte da alínea a) do artigo 34º quando se trata de proteger interesses alheios.
A acção de necessidade
CASO nº 24-F: A apresentou queixa contra B, seu antigo empregado, por factos que em seu entender
integram a prática de vários crimes de abuso de confiança. No decorrer das diligências em sede de
inquérito apurou-se que uma das letras em causa foi apresentada a desconto no Banco ARP, tendo sido o
respectivo produto líquido do desconto creditado na conta de depósitos à ordem com o nº
0001.222222.001. Para aquilatar da responsabilidade criminal do arguido entendeu-se ser necessário
apurar quem são os titulares da conta onde foi efectuado o referido movimento, e bem assim quem
procedeu ao desconto, para o que se contactou o Banco ARP que, todavia, se escusou a prestar tais
informações, invocando sigilo bancário: artigo 78º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Instituições de
Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro
No Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, o crime de violação de segredo
profissional vem previsto no artigo 195º, excluindo-se apenas do seu âmbito de aplicação a revelação de
segredo profissional com consentimento. Ao invés, na redacção do Código Penal de 1982, o artigo 184º
excluía desse mesmo âmbito de aplicação a revelação de segredo com justa causa ou com consentimento
de quem de direito, estabelecendo o artigo 185º do mesmo Código os pressupostos da exclusão da
ilicitude da violação do segredo profissional e que servia de fundamento à quebra desse segredo, preceito
este que não tem correspondência no Código Penal actualmente em vigor. Em resultado dessa revisão,
em que foi eliminada a referida cláusula da exclusão da ilicitude constante da versão originária do
Código Penal, o Código de Processo Penal aprovado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, no artigo 135º,
nº 2, dispõe que “havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária
perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir
pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento”,
preceituando o nº 3, que “o tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado
(…) pode decidir da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional sempre que esta se
mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio
da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a
requerimento. Do exposto resulta que a intervenção do tribunal superior na resolução do incidente
previsto no artigo 135º, nº 3, do Código de Processo Penal, surge se o tribunal considerar que a escusa é
legítima mas, mesmo assim, entende que no caso concreto a quebra do sigilo profissional se mostra
justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da
prevalência do interesse preponderante (vd. acórdão da Relação de Lisboa de 4 de Dezembro de 1996, in
CJ 1996, tomo V, p. 154).
"Onde estas regulamentações [artigo 339º do CC, artigos 195º do CP e 135º do CPP e outras diversas
regulamentações dos actos de autoridades, nomeadamente policiais] se revelem mais estritas do que o
art. 34º não pode recorrer-se a este para cobrir uma situação como capa da justificação. Mas, por outro
lado, o art. 34º contém concretizações, v. g. na exigência de adequação do meio, que podem reflectir-se
na interpretação de especiais causas de justificação baseadas também na ideia da prevalência, em
situação conflitual, de interesses mais valiosos, valendo em tais questões o art. 34º como lex generalis na
matéria." Figueiredo Dias, Textos, p. 214.
CASO nº 24-G: A tábua de Carneades (Cícero, De Re Publica, II, 15). Carneades, filósofo que
viveu no século II antes de Cristo, conta que, após o naufrágio de um navio, os dois marinheiros
sobreviventes, A e B, agarraram-se a um tábua que só chegava para um (tabula unius capax). Para salvar
a vida, A afastou B da tábua e este morreu afogado. Põe-se o problema de saber se A pode ser condenado
por homicídio. Só os problemas jurídicos é que estão aqui em causa — e nomeadamente a aplicação dos
artigos 34º e 35º do Código Penal. Trata-se de um dilema jurídico, duma situação coactiva em que uma
pessoa tem que escolher entre dois males. A só podia tentar salvar a vida afastando o outro da tábua,
afogando-se este. B podia tentar salvar a vida actuando do mesmo modo contra A. Matar ou ser morto,
eis o dilema dos marinheiros. H. Koriath (JA 1998, p. 250) propõe quatro variantes da situação, mas
insiste numa delas, que é a seguinte:
Nos termos do artigo 131º é autor de um homicídio quem matar outra pessoa, i. e, quem
causar (produzir) a morte de outrem. O problema, agora, está em saber se A
efectivamente matou B. Como estamos a referir-nos a um resultado concreto, a acção de
A deverá ter sido condição necessária dessa morte, pois, se assim não fosse, a morte de
B não se teria dado naquela altura e nas apontadas circunstâncias. A provocou a morte
de B e esta pode-lhe ser imputada, de acordo com os critérios da imputação objectiva.
Por outro lado, A previu a morte de B e conformou-se com ela. Agiu pelo menos com
dolo eventual. A actuação de A é ilícita, a menos que se encontre coberta por uma causa
de justificação.
A sensível superioridade a que se refere o artigo 34º, alínea b), não significa uma especial superioridade
(quantitativa ou qualitativa) de um dos interesses. Antes designa o processo que permite concluir pela
superioridade de um dos interesses: uma “normal sensibilidade aos valores (“cultural e socialmente
determinada)”. Cf. Fernanda Palma, O estado de necessidade justificante; cf., ainda, Casos e materiais,
p. 374.
Vejamos agora se A pode ser desculpado nos termos do artigo 35º, nº 1, uma vez que
age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não
removível de outro modo, que ameace a vida ...
CASO nº 24-H: O cão de estimação de A é um animal de raça e muito valioso, com vários prémios já
ganhos, mas que tem uma especial embirração pelo pequeno cão do vizinho, um pacífico cachorro,
rafeiro, igualmente estimado por B, seu dono. Em dado momento, um ataque, fulminante, fazia
adivinhar que o pequeno cachorro, inevitavelmente, sairia morto das investidas do inimigo. B, para o
salvar, pegou no taco de golfe que tinha à mão e deu com ele no cão de raça, que ficou sem um olho.
Sem essa sua enérgica actuação, o cão de B teria sido morto.
Variante: O cão de estimação de A é um animal de raça e muito valioso, com vários prémios já ganhos,
que foi à cozinha do vizinho, B, donde tirou um par das suas salsichas preferidas. B, dando-se conta do
acontecido, pretendendo recuperar as suas salsichas, dá uma pancada no animal com o taco de golfe que
tem ali à mão. O cão, com a violência da pancada, acabou por ficar sem um olho. A pancada com o taco
era a única maneira possível de evitar que o cão comesse as salsichas ou as levasse consigo. Na verdade,
B recuperou as suas salsichas. Eb. Schmidhäuser, StrafR AT Studienbuch, p. 144; J. Hruschka, StrafR, p.
100.
Punibilidade de B?
"Como crime contra a vida intra-uterina, o aborto resiste quase incólume à lógica justificadora da Parte
Geral do Código Penal. Causas de exclusão da ilicitude como a legítima defesa, o direito de necessidade
e o consentimento do ofendido são-lhe inaplicáveis. A invalidade da justificação por legítima defesa
resulta da ausência de um pressuposto definido no artigo 32° do Código Penal: a agressão ilícita e
actual. O feto não pode, com efeito, praticar uma agressão, em nenhuma acepção juridicamente
relevante. É, em todos os sentidos, um ser inocente. Tão pouco o direito de necessidade previsto no
artigo 34° do Código Penal pode justificar o aborto. Em primeiro lugar, porque a vida (embora intra-
uterina) assume um valor tal que se torna difícil afirmar, relativamente a ela, a "sensível superioridade"
de qualquer outro bem jurídico (incluindo mesmo a vida autónoma), nos termos do disposto na alínea b)
do artigo 34º. Em segundo lugar, porque tomando o nascituro como lesado não se pode concluir pela
razoabilidade da imposição do sacrifício da sua própria vida, como seria exigível por força do disposto
na alínea c) do artigo 34º. Por fim, o feto não pode prestar o seu consentimento na lesão. E se o pudesse
fazer, o consentimento não excluiria a ilicitude do aborto, por não estar em causa um interesse jurídico
livremente disponível (artigo 38º, nº 1). Apenas o conflito de deveres pode ser seriamente encarado
como causa de justificação do aborto. Porém, não são nítidos os limites deste instituto, quando aplicáveis
a tal crime. Indiscutível é apenas que a salvação da vida da mãe à custa da vida do feto é lícita, ante o
disposto no nº 1 do artigo 36º. A vida da mãe representa um valor pelo menos igual ao da vida do
nascituro. Pode mesmo afirmar-se uma relação de superioridade, que se manifesta, nomeadamente, na
inferior penalidade cominada para o aborto e na impunidade do aborto negligente. Já é duvidoso,
contudo, que o aborto possa ser directamente provocado, através de uma conduta activa, para obter como
efeito a salvação da vida da mãe. Se se admitir uma tendencial igualdade dos bens jurídicos
conflituantes, a violação do dever de omitir uma actuação lesiva assume maior gravidade do que a
violação do dever de empreender uma actuação salvadora. Não é justificável, por exemplo, a conduta do
médico que retirar a um doente uma máquina de reanimação para a colocar ao serviço de outro doente,
quando ambos requeiram idênticos cuidados. E igualmente problemática será a justificação do aborto por
conflito de deveres quando a morte do feto vise assegurar não já a sobrevivência da mãe mas a
preservação da sua saúde. É certo que uma grave lesão no corpo ou na saúde é mais gravemente
sancionada, no Código Penal, do que um aborto: para as ofensas corporais graves comina-se uma
penalidade de 1 a 5 anos e para o aborto consentido uma penalidade até 3 anos de prisão. Estes
raciocínios quantitativos não são, porém, decisivos. Na escala constitucional de bens jurídicos, dá-se
primazia à vida relativamente a integridade pessoal (artigos 24° e 25° da Constituição) e no Código
Penal respeita-se essa ordem (artigos 131° e ss. e 142° e ss.). O facto de a um homicídio poder caber
penalidade menos gravosa do que a um crime de ofensas corporais (cfr. os artigos 134° e 143°) não
subverte aquela ordem axiológica; deve-se, exclusivamente, à necessidade de graduar a responsabilidade
em função da gravidade do crime e da culpabilidade do agente, que não dependem só da relevância do
bem jurídico tutelado. De todo o modo, a possibilidade de justificar através de uma causa de exclusão da
ilicitude tradicional o aborto terapêutico implicará que tenha sido apenas este que, cautelosamente,
Eduardo Correia pretendeu despenalizar no artigo 152° do Anteprojecto da parte Especial do Código
Penal, seguindo uma via que Melo Freire preconizara em 1786, no seu Projecto de Código Penal . Na
discussão travada no âmbito da Comissão Revisora, Eduardo Correia pronunciou-se pela inevitabilidade
da justificação do aborto terapêutico, invocando as leis penais de outros países e advertiu que, na falta
de consagração expressa, a jurisprudência acabaria por criar - com o risco de abusos - uma causa de
exclusão da ilicitude supralegal. A verdade, contudo, é que o Código Penal de 1982 não contemplaria,
Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal. Doutrina geral do crime. Lições ao 3º ano da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, elaboradas com a colaboração de Nuno Brandão.
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José António Veloso, "Sortes", Separata de Estudos Cavaleiro de Ferreira, RFDL, 1995.
José Cerezo Mir, Curso de Derecho Penal Español, PG II, Teoría Jurídica del delito/2, 1990; 2ª ed.,
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Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 109.
Maria Fernanda Palma, O estado de necessidade justificante no Código Penal de 1982, in BFD,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, III, 1984. Publicado igualmente in Casos e
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Rui Carlos Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995.
Teresa P. Beleza, Direito Penal, 2º vol., AAFDL.
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Vaz Serra, Causas justificativas do facto danoso, BMJ-85.