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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

A construção de representações por meio do jornalismo – um olhar a partir da


complexidade1

Janaíne Kronbauer dos Santos2


Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Discutir a maneira como o jornalismo enuncia e constrói representações em torno dos


acontecimentos constitui-se no objetivo central deste artigo. A partir do contato com um
evento noticioso específico se procurou fazer a intersecção entre conceitos como
acontecimento jornalístico e representação social, à luz de referencial teórico que
mobiliza o olhar em torno da complexidade de Edgar Morin. A partir da análise crítica
proposta, articulada à revisão de literatura, foram identificadas lacunas de grave impacto
para a conformação do jornalismo enquanto prática profissional responsável e humana.

PALAVRAS-CHAVE:
Jornalismo; Complexidade; Acontecimento jornalístico; Representações sociais.

Jornalismo em perspectiva
O ato de observar a sociedade permite que ela seja visualizada como uma espécie
de colcha de retalhos, com variados tons e matizes. Esses, reunidos por diferentes tipos
de linhas e pontos, cosem sua tessitura. Nas primeiras páginas de A arte de tecer o
presente, Medina (2003) trata da elaboração dessa trama ao relatar um gesto de abertura
às narrativas do cotidiano e o papel que pode ser desempenhado pelo jornalismo. Para a
autora, ao promover a integração entre o que se encontra disperso no tecido social, o
jornalismo tem a possibilidade de fazer a conexão, dar aderência a esses variados entes.
É a partir dessa perspectiva que se visualiza aqui o papel que a prática do
jornalismo assume e a responsabilidade que lhe é inerente, considerando também os ideais
iluminadores que o forjaram, ainda no século XX. Entendemos o jornalismo como uma
forma social de produção e compartilhamento de conhecimento que desempenha um
papel de relevância acentuada para a própria construção da realidade na qual é erigida a
vida dos indivíduos, em maior ou menor proporção (MEDISTSCH, 2010).

1 Trabalho apresentado no GP Teorias do Jornalismo, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação,
evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Jornalista. Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS). Doutoranda em Jornalismo no PPGJOR-UFSC (bolsista
CAPES), e-mail: sjanaines@gmail.com.

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Esse é o cenário a partir do qual entendemos o horizonte jornalístico. Intrínseco a


ele, ainda que de modo indireto, identifica-se também a possibilidade efetiva da
conformação de uma prática profissional que, ao levar informação e conhecimento ao
ambiente social, igualmente promove e dá corpo a valores sociais e preceitos éticos a
serem ou não perpetuados ou, até mesmo, vilanizados. Nesse ponto, o jornalismo assume
um compromisso cuja envergadura transcende a esfera social e vai estabelecer diálogo,
inclusive, com aquilo que toca ao humano, o comportamento particular de cada indivíduo.
Ao se apresentar como voz estruturadora do real (BENETTI, 2007) e determinar o que se
constitui em regra e/ou desvio, o jornalismo – e suas práticas, por consequência – torna-
se normativo, determinando aquilo que se espera e aquilo que se repudia na esfera social.
Com a intenção de refletir sobre a constituição do jornalismo, as características
que lhe cortam verticalmente e seus efeitos sobre a realidade, mobilizamos aqui um
conjunto de elementos de análise que pretendem visualizar com mais clareza o exercício
do jornalismo na atualidade e identificar algumas das lacunas a ele adscritas. Aspira-se a
que, a partir da conjugação desses elementos, seja possível observar o jornalismo a partir
de um panorama mais generoso e saudável do que aquele em que hoje o seu exercício se
efetiva. Nesse sentido, além de pensar no jornalismo como uma forma de construção
social com potencial para a produção e o compartilhamento de conhecimentos, o
integramos à dimensão complexa do pensamento de Edgar Morin e, de modo
complementar, à perspectiva da enunciação e seus efeitos de sentido.
As ponderações aqui apresentadas surgiram a partir da observação daquilo que é
o produto jornalístico efetivamente colocado à disposição do público em um momento
usual, corriqueiro, por assim dizer. No entendimento de Morin é este justamente o cenário
em que a dimensão complexa deve ser mobilizada: “Deve-se buscar a complexidade lá
onde ela aparece em geral ausente, como, por exemplo, na vida cotidiana” (MORIN,
2006, p. 57), daí a escolha desse evento noticioso em específico. O exemplo ao qual se
faz referência ao longo do texto (apesar de uma dada particularidade a ele inerente)
poderia ilustrar uma cobertura não tão incomum como se pode pensar inicialmente. A
seguir o evento noticioso que incitou esse conjunto de reflexões é apresentado.

O acontecimento
Tudo parecia transcorrer normalmente na manhã de sexta-feira, 20 de outubro de
2017, no Colégio Goyazes, na cidade de Goiânia (GO). Em poucos instantes, porém, a

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tranquilidade da escola particular, localizada em um bairro de classe média da capital do


estado goiano, transformou-se em assombro e pânico. Um dos alunos da instituição de
ensino, de 14 anos de idade, integrante do 8º ano do ensino fundamental, sacou uma
pistola de propriedade de sua mãe (policial militar, assim como o pai do adolescente) e
vitimou fatalmente dois colegas de classe, além de ferir outros quatro estudantes.
Ao tomar conhecimento do fato, a imprensa passou a cobrir o ocorrido e suas
repercussões. Da cobertura jornalística sobre aquele acontecimento, o que se repetiu nos
diferentes veículos foi a informação de que, assim que os tiros foram disparados na sala
de aula, a agitação e a correria na escola tiveram início. Alunos fugiam da sala enquanto
outros procuravam proteção diante do ruído dos disparos deflagrados. Conforme relatou-
se através das narrativas dos veículos jornalísticos, a coordenadora da escola foi quem
tomou a iniciativa de aproximar-se do aluno, conseguindo, após um processo de
negociação e diálogo, tomar-lhe a arma e impedir que mais vítimas fossem feitas.
A partir daquele momento, a situação de trauma já estava estabelecida, com duas
vidas tendo sido ceifadas e a possibilidade de que o mesmo viesse a ocorrer com outras
quatro pessoas igualmente atingidas. Felizmente isso não se confirmou, pois ao longo dos
dias os demais feridos, internados em hospitais de Goiás, foram se recuperando e
recebendo alta médica. O caso mais grave acabou sendo o de uma estudante que, atingida
por três tiros, ficou paraplégica.
Após aquela sexta-feira, o assunto ganhou destaque na programação de todo o
final de semana na imprensa nacional. No domingo, 22 de outubro, o programa
Fantástico3, da TV Globo, foi aberto com uma reportagem feita pelo jornalista Marcelo
Canellas sobre o trágico evento. Para a produção do material jornalístico, além de ir ao
local e ouvir alunos da escola e um psicólogo, o repórter também conversou com os pais
de um dos meninos assassinados4. Após a veiculação da reportagem televisiva, também
foi ao ar, na sequência do programa, uma entrevista exclusiva, realizada por Canellas,
com a coordenadora da escola, que deteve o menor e conseguiu que ele lhe entregasse a
arma.

3 Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6236069/programa/>. Acesso em: 08 mai. 2018.


4 Os pais de um dos meninos vitimados fatalmente afirmaram ter perdoado o adolescente que tirou a vida de seu filho
(que era amigo próximo do menor que atirou com a arma), o que causa, no mínimo, um sentimento de estranheza
devido ao pouco tempo transcorrido entre o trágico evento e a entrevista concedida.

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Entrevista concedida ao programa Fantástico, da TV Globo, pela coordenadora do Colégio Goyazes, que
conteve o aluno que efetuou os disparos

Logo após o fatídico incidente, o jovem estudante que efetuou os disparos foi
levado para a Delegacia de Atos Infracionais (Depai) de Goiânia, onde foi ouvido pelo
delegado que assumiu o caso. Em seu depoimento, o adolescente alegou ter sofrido
bullying na escola e se inspirado em eventos semelhantes5 ocorridos no Brasil e nos
Estados Unidos. É interessante lembrar que a data em que ocorreu o infortúnio
(20/10/2017) é considerada, justamente, o dia de combate ao bullying em âmbito mundial.
Após seu depoimento, o estudante ficou detido por 45 dias, até que o julgamento
fosse realizado. Em 28 de novembro de 2017, após audiência do Juizado da Infância e
Juventude, o adolescente foi condenado a uma pena de três anos de detenção. Essa é a
pena máxima permitida como medida socioeducativa para menores infratores. A
advogada da família afirmou que não recorreria da sentença. Ainda em relação ao
cumprimento da pena, a cada seis meses o jovem deve ser submetido a uma avaliação
psicológica quanto a seu comportamento e as condições gerais do tratamento ao qual está
sendo submetido. A mãe do estudante, que ficou em estado de choque após o ocorrido,
responde agora a um inquérito militar sobre o crime cometido pelo filho com sua arma.
A repercussão sobre a penalidade determinada para o adolescente cumprir também
foi ampla por parte dos veículos jornalísticos. A seguir, estão algumas das imagens de
sites de veículos noticiosos sobre a sentença.

5 Em escolas do Realengo (Rio de Janeiro, Brasil) e de Columbine (Colorado, Estados Unidos) houve episódios
semelhantes ao da escola Goyazes, de Goiânia. Enquadrados como “massacres” pela imprensa, o crime no Brasil
ocorreu em 07 de abril de 2011, com 13 vítimas fatais; nos Estados Unidos, foi em 20 de abril de 1999, com 15
estudantes mortos. O crime de Realengo é analisado por Ijuim (2014) que evidencia o modo como ao enunciar, o
jornalismo produzido pela revista Veja categoriza o assassinato e seu protagonista pelo viés do fato singular em
detrimento do contexto. Uma abordagem diferente desta poderia ampliar a visão em torno do ocorrido e não apenas
explorar sua singularidade a partir da espetacularização.

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Matéria da editoria “Cotidiano” do site do jornal Folha de S. Paulo em 28/11/20176

Matéria da editoria “Polícia” do site do A Tribuna em 29/11/20177

Como observou-se ao longo da cobertura do evento e também no decorrer dos dias


que passaram até o julgamento do caso e a condenação do jovem estudante, os veículos
jornalísticos desenvolveram seu trabalho de modo a atender vários dos predicados
exigidos para a prática do chamado jornalismo de qualidade ou de referência, como
proposto por Amaral (2004).
Para isso, foram considerados como valores-notícia o impacto do fato ocorrido, a
sua raridade e a tragédia/drama a que esse acontecimento se vinculava – elementos
presentes na “tabela de valores-notícia para operacionalizar análises de acontecimentos

6 Matéria disponível no site da Folha de S. Paulo: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1938992-atirador-


de-colegio-em-goiania-ficara-tres-anos-internado-decide-justica.shtml>. A notícia é assinada por uma jornalista do
portal UOL. Acesso em: 08. mai. 2018.
7 Matéria disponível no site de A Tribuna: <http://www.atribuna.com.br/noticias/noticias-detalhe/policia/atirador-de-

escola-de-goiania-ficara-3-anos-internado/?cHash=62d051ab59a43c5ce24d2e9c3935222e>. Na assinatura da notícia


informa-se “Da Estadão Conteúdo”. Acesso em: 08 mai. 2018.

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noticiáveis/noticiados”, proposta por Silva (2005). Isso posto, é possível afirmar que o
trabalho jornalístico foi cumprido, atendendo, ainda que de modo parcial, às demandas
suscitadas pelo evento noticioso.

A representação construída
Até aqui, o fato jornalístico que mobilizou nossa atenção naquele dia 20 de
outubro de 2017, foi apresentado. Também foram destacadas algumas das reportagens e
recursos utilizados pela imprensa para realizar seu trabalho. Ainda que com alguns
equívocos, entende-se que o trabalho foi cumprido e atendeu ao propósito a que se dispõe
o jornalismo. É preciso, no entanto, avançar, e é a partir dessa perspectiva que se faz
referência a outro ponto que pode ter passado despercebido por parte da audiência: a
construção da imagem em torno do adolescente que cometeu os crimes.
É importante deixar claro que a questão que motiva essa reflexão não é o ato em
si, cuja anormalidade justifica sua abordagem noticiosa, pois o jornalismo deve dar conta
de eventos desse tipo (cruéis, perversos e de contundente gravidade do ponto de vista
social e humano), que extrapolam convenções e a própria ordem do esperado. O que se
questiona, no entanto, é a maneira como o jornalismo se apropriou desse evento para
enunciar, sem qualquer resquício de dúvida, um rótulo condenatório, um pronto
julgamento sobre o ocorrido. Essa representação8 em torno do aluno protagonista da ação
tende, a partir da veiculação das coberturas jornalísticas realizadas, a ser perpetuada, sem
qualquer perspectiva de relativismo.
No entendimento de Fausto Neto (2011, p. 43), “as mídias jornalísticas” ocupam
um lugar a partir do qual “detêm as condições em torno das quais realizam os processos
de representação das realidades”. Esse processo de construção não lhes é único ou
exclusivo, mas, ainda que signifique apenas uma parte do todo que estrutura a vida social,
acaba sendo responsável por “apresentar a realidade por sua própria conta, talvez
desconhecendo que este processo se dá em meio a feixes de relações”. No caso do evento
noticioso objeto desta reflexão, o ato que primeiramente vem à tona se refere – além do
impacto social por ele causado – à maneira como rapidamente o adolescente que
protagonizou a ação é enquadrado: “atirador”.

8 Em se tratando de representações construídas pelos veículos jornalísticos, outro evento noticioso recente e que
igualmente se aproxima dessa perspectiva se refere ao reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier do Olivo, a sua
vinculação com a operação Ouvidos Moucos, da Polícia Federal, seu posterior suicídio e a imagem negativa que tende
a ficar fixada na memória coletiva.

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Veja-se que, ainda que o estudante da escola Goyazes seja menor de idade (14
anos) e, portanto, esteja amparado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que lhe
resguarda a identidade e a própria imagem, os veículos jornalísticos não hesitaram em
determinar sua culpa (independentemente do contexto) ao referir-se a ele como o uso
deste termo. Quando se faz referência a um “atirador”, habitualmente se tem o perfil de
uma pessoa com idade superior a 18 anos de idade, ciente das responsabilidades a ela
imputadas quando do cometimento de crimes dessa natureza. Assim, mesmo que esse seja
um entendimento estereotipado, coloca-se o adolescente no mesmo patamar daqueles que
cometem crimes semelhantes e, por causa disso, veem ser mantida em torno de si, como
consequência, uma chancela de reprovação social. Além disso, ao fazer referência ao
aluno simplesmente como um atirador, em uma leitura que se atenha apenas às manchetes,
o leitor pode entender que quem protagonizou a ação foi alguém externo ao próprio
ambiente do Colégio.
A informação de que o jovem estudante talvez estivesse sendo vítima de bullying
somente é mencionada a partir de reportagens posteriores, que passam a ouvir como
fontes um psicólogo, estudantes da escola e os próprios policiais envolvidos no caso (em
seu depoimento o estudante alegou ter sido vítima desse tipo de agressão). Ao serem
procurados, membros da direção do colégio revelaram desconhecer qualquer espécie de
prática de bullying dentro de sua instituição de ensino ou, em específico, sobre o aluno.
É possível perceber que o jornalismo, a partir de suas práticas cotidianas, assume
um “modo de enunciar” que “passa também por complexas mediações”. No caso aqui
apresentado, “se tecem e se cristalizam representações” (FAUSTO NETO, 2011, p. 43)
que estarão fixadas no horizonte, não somente dos protagonistas da ação, mas igualmente
no próprio imaginário social. Seus efeitos encontram reverberação em eventos similares
e que igualmente tiveram desfechos nefastos para as pessoas neles diretamente
envolvidas.

A dimensão da complexidade aplicada ao caso


Refletir sobre o cotidiano da prática profissional do jornalismo permite levar em
consideração uma série de questões e, no caso a que se faz referência aqui, desde o
princípio de sua cobertura, um dos aspectos passíveis de observação foi a maneira como
foram sendo estruturadas as notícias e os sentidos nelas contidos.

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Entende-se que o fato de um jovem estudante vitimar seus próprios colegas dentro
do ambiente escolar seja um acontecimento de manifesto valor jornalístico. No entanto,
para além do fato em si, é necessário considerar as circunstâncias que o envolveram.
Nesse sentido, olhar o entorno a partir da complexidade, conforme proposto por Edgar
Morin (2006, p. 13), grifo do autor), assume relevância singular.

[...] a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido junto) de


constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o
paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momento, a
complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações,
interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso
mundo fenomênico.

Em um mundo em que a ótica binária e fatalista entre o bem e o mal ainda


prevalece, considerar caminhos alternativos é necessário. Enquanto sujeitos, nossa
constituição é intricada e transcende, portanto, a mera soma das partes. Até hoje a
perspectiva positivista prevalece nas diferentes instâncias da sociedade, algo que é
facilmente perceptível no âmbito do jornalismo. Para Medina (2008), as marcas
epistemológicas do Discurso sobre o espírito positivo9 nas práticas jornalísticas existem
até hoje, inclusive pelo caráter prescritivo e de norma que o jornalismo assume. Esse
entendimento igualmente se aplica ao caso do estudante goiano que cometeu os crimes.
A partir da simplificação com que se tratou o caso por parte da imprensa,
identifica-se a busca pela categorização do ato, como se isso fosse o suficiente para
explicar de modo integral aquilo que esse mesmo ato, em si, representou, seja para o
adolescente, para os alunos vitimados, suas famílias, a instituição de ensino e a própria
comunidade escolar. A racionalização – em contraposição à racionalidade – de que trata
Morin (2006) é justamente essa busca incessante por organizar o caos, ordená-lo, mesmo
que ele escape a essa lógica.

A inteligência fragmentada, mecanista, disjuntiva e reducionista rompe


o complexo do mundo em fragmentos soltos, fraciona os problemas,
separa o que está ligado [...] ela destrói no ovo todas as possibilidades
de compreensão e de reflexão, eliminando assim todas as chances de
um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo (MORIN, 2005,
p. 157).

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Obra filosófica de autoria de Isidore Auguste Marie François Xavier Comte, considerado o fundador da Sociologia e
do Positivismo.

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Nesse sentido, o jornalismo mantém suas práticas atreladas aos ideais da


modernidade, vinculando-se à patologia da razão, a qual, por sua vez, é delineada a partir
da falta de entendimento de que parte do real é simplesmente irracionalizável, não
podendo ser encaixada e/ou classificada conforme aquilo que prescreve uma ordem linear
e unidimensional em torno da realidade social, algo que, para a visão cartesiana em torno
mundo, seria plenamente desejável. Pensar em termos do que significa a racionalidade é
uma prática mais propositiva frente àquilo que propõe a racionalização.

A verdadeira racionalidade conhece os limites da lógica, do


determinismo, do mecanismo [...]. Ela negocia com o obscuro, o
irracionalizado, o irracionalizável. Deve lutar contra a racionalização
que bebe nas mesmas fontes que ela e, no entanto, contém apenas, em
seu sistema coerente que se quer exaustivo, fragmentos da realidade.
Ela é não apenas crítica, mas autocrítica. Reconhecemos a verdadeira
racionalidade na capacidade de reconhecer suas insuficiências
(MORIN, 2005, p. 157-158).

Para Pena-Veja, Almeida e Petraglia (2001, p. 133), é perceptível o “aumento


considerável dos meios de comunicação [neste caso, de perfil jornalístico] que provoca
pouca comunicação (no sentido de ‘compreensão’)” em torno dos acontecimentos
reportados. A ética da compreensão supõe, para Morin, uma visão multidimensional e
considera a complexidade em torno de eventos/acontecimentos, suplantando a ética da
explicação, ponto no qual se concentram as práticas jornalísticas consideradas em torno
do caso aqui descrito.

[A explicação] utiliza os métodos adequados para conhecer os objetos


enquanto objetos. E tende sempre a desumanizar o conhecimento dos
comportamentos sociais e políticos; a compreensão permite conhecer o
sujeito enquanto sujeito e tende sempre a rehumanizar o conhecimento
político (MORIN, 1998, p. 73).

É essa a realidade que se apresenta no caso do evento ocorrido na escola Goyazes,


uma vez que, ao se tratar inegavelmente de uma ocorrência grave, os veículos de
informação restringiram sua cobertura a aspectos estritamente factuais, buscando explicar
o que havia acontecido, mas desconsiderando o contexto e demais elementos que fazem
parte do mosaico em que se situa esse mesmo acontecimento. Ijuim (2014, p 13) nos ajuda
a decifrar o que ocorreu em relação a esse acontecimento e o relaciona a desumanização
a qual o jornalismo tem incorrido de modo contumaz:

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Alberto Dines já dizia, nos anos 1970, que não há boa ou má imprensa.
Há uma imprensa que atua em determinado tempo e lugar, porque esta
“é reflexo e segmento da própria sociedade que a serve” (DINES, 2008,
p. 73). Como uma fatia do mesmo bolo social, os meios de comunicação
têm reproduzido as heranças dessa atitude moderna. Assim, assume
uma postura que privilegia o fato em detrimento da circunstância,
valoriza as consequências e menos as causas, o espetáculo e menos as
dores e os sofrimentos humanos. Por essas razões, este tratamento
informativo desumaniza as reportagens e, acima de tudo, desqualifica
grupos sociais.

Outro aspecto presente na cobertura jornalística sobre o evento se refere ao


excesso de singularidade com que se tratou o fato noticioso – aspecto que, no
entendimento de Genro Filho (1987), pode acabar por configurar uma abordagem
sensacionalista e, mesmo, espetacularizante em torno dele.
Para todo e qualquer fenômeno social, do mais corriqueiro ao mais implacável, é
preciso considerar sua multidimensionalidade e as variadas nuances que podem auxiliar
na sua decodificação. Em se tratando do episódio que se sucedeu na escola de Goiânia,
para além do fato em si, seria preciso considerar aspectos não manifestos de modo
evidente e que poderiam estar associados ao cometimento do crime e sua compreensão –
a partir de um ponto de vista não valorativo da ação em si, mas no sentido do que esse ato
se reveste e o que ele significa.
Ao lançar essa apreciação sobre o acontecido, é possível, até mesmo, estabelecer
uma espécie de paralelismo entre o caso do adolescente “atirador” de Goiânia e a leitura
feita por Hannah Arendt (1906-1975), apresentada no filme homônimo de 2012, acerca
de Adolph Eichmann, colaborador do regime nazista condenado à morte em tribunal
israelense 15 anos após a II Guerra Mundial. No filme, a filósofa alemã de origem judaica
acompanha o julgamento para a revista The New Yorker e tenta compreender o lugar
ocupado pelo acusado, bem como a omissão de outros judeus durante o holocausto.
A película evidencia que a repercussão da leitura de Arendt foi mal acolhida pela
sociedade. No entanto, é preciso observar que o que ela fez não foi considerar que os atos
praticados por Eichmann em si tenham deixado de ser maus, mas que, isoladamente, o
contexto em que os crimes ocorreram também necessitava ser considerado, pois
constituía-se em uma teia complexa e vinculada a fatores não apenas de ordem ética e

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moral, mas também psicológica10. Após o julgamento, Arendt publicou o livro Eichmann
em Jerusalém, no qual expõe suas reflexões acerca do julgamento e também apresenta o
conceito de “banalidade do mal”, que corta sua trajetória de modo vertical a partir de
então. O exercício de compreensão que Arendt realizou não eximiu Adolph Eichmann de
sua culpa, no entanto, considerou os diversos fatores, de natureza complexa, que
interviram para a consecução dos atos por ele praticados.
Em se tratando do caso aqui tomado como objeto de análise, dentre as ações que
poderiam ter sido tomadas pelos jornalistas no sentido de se buscar atender à
multidimensionalidade de perspectivas em torno do fato ocorrido, estão informações
complementares às já existentes e que poderiam ter sido levantadas. Além disso,
estiveram ausentes, por exemplo, indicações sobre o contexto em que o estudante estava
inserido, a presença ou não de parâmetros éticos em sua vida, possíveis pressões
colocadas sobre o estudante, sua relação familiar, sua convivência na escola, o
relacionamento com os colegas, o perfil psicológico do estudante e a sua tendência
potencial (ou não) a ações violentas, a existência de sentimentos de baixa autoestima,
depressão, vingança, etc. Em apenas uma matéria foi possível visualizar algo nesse
sentido: a revista Veja indicou que o estudante teria simpatia pelo nazismo11. Além da
reduzida importância conferida a esses aspectos, na cobertura jornalística foi dada pouca
relevância ao próprio relato sobre como teria ocorrido a cronologia da tragédia.
De modo definitivo, uma infinidade de aspectos corta esse episódio noticioso.
Nesse contexto, porém, vale considerar que pensar a partir da perspectiva complexa
significa abrir mão de toda a forma de pensamento redutor, que procura
enquadrar/categoriazar acontecimentos noticiosos e ignorar aquilo que não se insere
dentro das diretrizes e/ou normas estabelecidos pelas convenções sociais.
O jogo da complexidade, como afirma Morin (1999, p. 191), “é um jogo de claro-
escuro” em que é necessário ter abertura para o diálogo, flexibilidade para acolher ou,
pelo menos, entender perspectivas diferentes, inusitadas ou, até, improváveis em torno da
realidade estabelecida. Associado a isso, conforme Pena-Veja, Almeida e Petraglia (2001,
p. 133) indicam, avançar no caminho da compreensão constitui-se em “um grave desafio

10 Outra referência interessante para pensar na relação das pessoas e seus pressupostos éticos e morais encontra-se no
filme Experimenter, de 2015. O filme retrata a vida do psicólogo social norte-americano Stanley Milgram que realizou
testes, na década de 1960, na Universidade Yale (EUA), com diversas pessoas e verificou sua acentuada tendência a
obedecer à autoridade mesmo que isso implicasse em um dilema moral para com sua própria consciência.
11
Matéria disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/as-conversas-do-atirador-de-goiania-com-um-amigo/#>.
Acesso em: 08 mai. 2018.

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a ser vencido para que, eventualmente, consigamos sair da barbárie da comunicação


humana”.

Considerações finais
Acompanhar a cobertura jornalística acerca de um evento noticioso com alguma
distância permite que se possa visualizar a trajetória dos fatos com um pouco mais de
cautela. Ainda assim, a partir da dimensão humana que toca a todos, é inegável o impacto
decorrente dos fatos noticiados. Considerando essa perspectiva, nossa pretensão, ao
propor a reflexão sobre o caso da escola Goyazes, foi a de fazer pensar sobre as práticas
que o jornalismo tem levado a efeito no dia a dia contemporâneo, as quais, estão
majoritariamente aquém daquilo que é tomado como seu compromisso primordial: levar
informações verídicas ao público e, a partir disso, fomentar a reflexão crítica em torno
desses mesmos acontecimentos, considerando as nuances que naturalmente se fazem
presentes nesse cenário.
Nesse sentido, cabe fazer alusão ao “salto civilizatório” ao qual Morin (1999) se
refere quando propõe a complexidade como uma direção a ser seguida pela humanidade
rumo ao encontro do caminho do meio. Levando em consideração, ainda, o que propõe
Fausto Neto (2011, p. 43), a produção de sentidos a partir do jornalismo é um processo
complexo, com elementos heterogêneos e atravessados por realidades e “discursos de
outros campos sociais”.
Nesse sentido, a enunciação jornalística não deve ser sobreposta às demais formas
de enunciação, mas buscar contemplar a diversidade de aspectos que entrecortam fatos e
acontecimentos, ainda que isso possa, à primeira vista, parecer um contrassenso.
Voltando à analogia da colcha de retalhos, pode-se entender que a integralidade do texto
jornalístico, por mais bem-acabada que se queira apresentar, ainda assim será parcial e
passível de olhares não uniformes.

Referências

AMARAL, Marcia Franz. Lugares de fala do leitor no Diário Gaúcho. 2004. 273 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/6253>. Acesso em: 09 jul. 2018.

BENETTI, Marcia. A Ironia como estratégia discursiva da revista Veja. Líbero. N.20, São Paulo,
Faculdade Cásper Líbero, 2007.

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41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

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