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Anália Torres

CASAMENTO: tempos, centramento,

DOSSiÊ
gerações e gênero*

Anália Torres

Este artigo tem por objetivo dar conta de apenas aquele que diz respeito a dinâmicas, traje-
resultados de uma investigação que se centrou na tórias, formas de conjugalidade, geração e gênero.
análise dos processos de conjugalidade, no con- A análise do tema referente à relação entre
texto da qual se procurou perceber como se jogam conjugalidade e mudança social – um dos núcleos
e articulam diversas lógicas – sentimentos e afe- problemáticos e aquele em que se desenvolvem as
tos, gestão de recursos, identidades, realização interações entre vida conjugal e trabalho – não será
pessoal, projeções no futuro, expectativas – na vida aqui realizada.2

CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 42, p. 405-429, Set./Dez. 2004


conjugal.1 Depois de uma discussão teórica em que Faz sentido, desde já, identificar algumas
se propõe a definição de um conceito de das linhas gerais da investigação. Como foi referi-
conjugalidade e onde se procura explicar alguns do, as interrogações centrais construíram-se em
dos pressupostos de partida e dos elementos fun- torno da conjugalidade e da relação entre o casa-
damentais do modelo de análise, identificam-se e mento e a chamada questão feminina. O quadro
analisam-se as diferentes formas de conjugalidade, teórico e o modelo de análise beneficiaram-se dos
os tipos de centramento identitário e os tempos da debates travados a partir de Durkheim sobre essas
dinâmica conjugal e do ciclo de vida. duas temáticas, das contribuições e abordagens da
Limita-se este texto a aspectos parciais da sociologia, dos estudos sobre as mulheres e, em
pesquisa em causa. Tendo sido definidos três nú- particular, da sociologia da família.
cleos problemáticos da investigação, decidiu-se de- Cem anos depois de Durkheim ter afirmado
senvolver com mais profundidade, neste artigo, que “os indivíduos são mais importantes do que

1
TORRES, Anália (2002). Casamento em Portugal. Uma 2
Ver op. cit e Anália Torres (2004) Vida conjugal e traba-
análise sociológica. Oeiras: Celta Editora. lho. Oeiras: Celta Editora.

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CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

as coisas”, tendo subjacente a questão do de logo a procura de superação da dicotomia macro-


patrimônio no contexto da família e do casamento, micro. Mas também, na metodologia desenvolvi-
a afirmação tornou-se um lugar comum. Embora da, exploraram-se complementaridades entre o ex-
as questões patrimoniais continuem a se colocar tensivo e o intensivo, o quantitativo e o qualitati-
na transmissão familiar, o patrimônio a transmitir vo, através da informação disponibilizada pelos
e preservar só se constitui como preocupação cen- inquéritos por questionário realizados4 e pelas
tral quando se trata de grandes fortunas – o caso entrevistas.5 Assim, foi possível reconhecer, nas
de muito poucos – e os constrangimentos econô- histórias pessoais, os constrangimentos e os
micos pesam também mais para os que estão nos condicionantes decorrentes das condições de exis-
limites da sobrevivência. Hoje está perfeitamente tência, que se inferiam de forma clara nas respos-
admitido, e de forma bem mais explícita a partir tas aos inquéritos. Mas também se reconheceram,
dos anos 60, que os afetos são a pedra de toque nos discursos na primeira pessoa, as margens para
essencial do que circula no casamento e na famí- agir, os espaços de manobra dos atores sociais, as
lia, embora também aí circulem e sejam geridos tentativas de contornar os constrangimentos e as
outros bens materiais e simbólicos. condicionantes estruturais. Através da técnica da
Mas essa tendência de evolução central do entrevista em profundidade, procurou-se explo-
casamento e da conjugalidade, ao longo do século rar a perspectiva individual de homens e de mu-
XX e até ao século XXI, não se traduz necessaria- lheres do mesmo casal, entrevistando-os separa-
mente na existência de uma lógica homogênea quan- damente. Partiu-se, assim, do indivíduo no con-
to às expectativas ou às modalidades de encarar e texto do casal como unidade de análise. Conside-
de viver as experiências conjugais. Dizer que se rou-se, por isso, que se ouviram as duas vozes do
tende numa determinada direção e que, para um casamento, em três andamentos, já que foram sele-
conjunto cada vez mais significativo da população cionados entrevistados com durações de casamento
das chamadas sociedades desenvolvidas, o que diferentes – até 10 anos de duração, dos 11 aos 20
passa a ser determinante são os sentimentos, não anos e mais de 21 – a que fizemos corresponder
significa, de forma alguma, a eliminação da diver- três tempos: o tempo da instalação, o tempo das
sidade de lógicas em jogo na família e no casamen- mudanças e das transições, o tempo da conforma-
to.
A discussão de alguns temas centrais da
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pesquisa desenvolveu-se diretamente a partir das 4


Trata-se, no fundamental, de dois inquéritos por questi-
propostas de autores de referência, como onário. O primeiro foi aplicado a uma amostra represen-
tativa do conjunto da população residente nos 7 conse-
Durkheim, Simmel, Burgess, Parsons e Goode, até lhos da Grande Lisboa. Inquiriram-se 493 grupos do-
às propostas feministas dos anos 70 (Torres, 2001). mésticos que tinham, em 1997, pelo menos uma crian-
ça menor de 11 anos de idade a seu cargo (Torres e Silva,
Outras problemáticas importantes – casamento e 1998). Para o outro questionário foi construída uma
amostra representativa da população entre os 20 e os 50
classe social, gênero, dominação masculina, divi- anos, tendo sido inquiridos, no Continente, 1.700 ho-
mens e mulheres, em 1999. A iniciativa desses inquéri-
são sexual e social do trabalho, mudança social, tos relaciona-se com a participação da investigadora na
sentimento amoroso – abordadas nos últimos 40 rede internacional de pesquisa “European Network for
the Division of Unpaid and Paid Labour between Women
anos foram analisadas a partir das propostas de and Men” integrando o núcleo que concebeu e elaborou
um inquérito aplicado em vários países europeus. A par-
autores contemporâneos.3 te fundamental desses resultados encontra-se publicada
no livro Homens e Mulheres entre Família e Trabalho,
O enfoque teórico assumido implicou des- 2004, Lisboa, CITE, Comissão para a Igualdade no Tra-
balho e no Emprego.
5
Realizaram-se cerca de 80 entrevistas a casais que resi-
dem na área metropolitana de Lisboa, de várias classes
sociais, idades e durações de casamento. As entrevistas,
3
No livro Sociologia do casamento. A família e a questão dada a definição das pistas e hipóteses de investigação,
feminina, 2001, Oeiras, Celta Editora, dá-se conta dos foram efetuadas isoladamente a cada membro do casal e
debates teóricos sobre o casamento e a questão femini- dizem respeito a indivíduos que nunca se separaram ou
na desde Durkheim aos autores contemporâneos. divorciaram.

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ção ou da realização pessoal. Ao selecionar dife- DIFERENTES PERSPECTIVAS TEÓRICAS


rentes durações do casamento, foi possível, simul- SOBRE O CASAMENTO: casamento e amor
taneamente, identificar indivíduos de idades e ge-
rações diferentes, já que a casamentos mais ou Nos últimos anos, no campo da sociologia
menos longos correspondem, na maioria dos ca- da família, tem-se notado uma tendência para a
sos, grupos etários diversos. Embora de forma ri- autonomia do tema casamento ou conjugalidade,
gorosa não se tenha tratado de uma análise por na análise e na pesquisa empírica sobre dinâmicas
coortes geracionais, a verdade é que foi possível familiares.6 Apesar de ser de notar tal tendência e
identificar claramente os que casaram nos anos 60, de ela ser reveladora de mudanças que ocorreram
nos anos 70 ou nos anos 80 do século XX. Essa na família nos últimos anos, não se pode esquecer
situação indiretamente acabou por nos proporcio- que as delimitações empíricas do objeto depen-
nar entrevistas de jovens de diferentes gerações, dem muito mais das perspectivas teóricas que se
no momento do seu casamento, que viveram perí- adotam do que desta ou daquela “imposição” da
odos distintos da história social portuguesa. realidade. Embora o casamento e o casal tenham
Os casais entrevistados pertenciam ainda a ganhado estatuto empírico autônomo, nem por isso
setores sociais diferentes, o que deu origem, entre deixaram de se fazer análises que os enquadram
outros critérios, à identificação de formas de numa perspectiva teórica mais vasta, incluindo-os
conjugalidade também distintas: institucional, no sistema familiar. É o caso de Parsons (Parsons e
fusional e associativa. Associando essas diferen- Bales, 1956, 1968) e de alguns seguidores contem-
ças às de gênero, foi possível verificar de que for- porâneos.7
ma cada um dos membros do casal pratica e inter- Continua-se a considerar o casamento tam-
preta as diferentes formas de conjugalidade, já que bém como produto de interações regidas por nor-
não existe necessária convergência entre eles. Em mas de regulação e coesão particulares, como foi
vários casos, com efeito, os dois membros do casal de início o caso de Burgess (1960) e é, mais recen-
assumem a defesa e a prática, real ou tendencial, temente, o de Kellerhals (1982). Esse último autor
de formas de conjugalidade distintas. associa as interações internas ao casal e à família
Identificaram-se, ainda, tipos de centramento ao estatuto social dos atores, enquanto outros in-
diferentes – parental, conjugal e de realização pes- sistem no casamento como produtor de sentido e
soal e (ou) profissional, de lazer – com o objetivo identidade (Berger e Kellner, 1964, 1975), valori-

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de identificar modalidades diferenciadas de zando também as relações internas ao casal, mas,
posicionamento de cada elemento do casal e, por sobretudo, o papel “nômico” do casamento e, nes-
vezes, até de variações do mesmo indivíduo em se sentido, construtivo, identitário e existencial.
momentos diferentes do seu trajeto perante essas Há ainda quem o defina a partir de enfoques espe-
distintas áreas de investimento. cíficos, de nível macro, como acontece com a pro-
Procuraram-se as coincidências e não coin- posta dos lugares ocupados na divisão social e
cidências do discurso e do relato referentes à mes- sexual do trabalho (Chaudron, 1984; Kergoat, 1984;
ma situação objetiva. Estimulou-se o contar da his- Barrère-Maurisson, 1984) e como acontece com a
tória na primeira pessoa, com questões precisas visão sobre o casamento que o identifica com es-
sobre o antes e o depois do casamento, em múlti-
plas dimensões da vida conjugal e a ela paralelas, 6
Os próprios títulos de obras mais relevantes, sobretudo
incitando à reflexão sobre si próprio e sobre o ou- na literatura européia, são sugestivos dessa
autonomização, como, por exemplo: J. Kellerhals
tro no contexto conjugal e fora dele. Mariages au quotidien (1982); F. de Singly Fortune et
infortune de la femme mariée. Sociologie de la vie
conjugale. (1987); J.C. Kaufmann Sociologie du Couple
(1993).
7
Podemos considerar que os seguidores da teoria sistêmica
adotam uma perspectiva do mesmo tipo da de Parsons.

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tratégias e lógicas de reprodução social (Bourdieu, amor romântico do século XIX, tão bem retratada
1972). Autores há, também, para os quais o que por Camilo, para quem o amor e o casamento não
importa acentuar é a idéia de casamento como for- deviam ter por obstáculo a condição social, para a
ma particular de produção de trabalho gratuito e associação normalizada entre conjugalidade e sen-
de dominação masculina (Delphy, 1978, 1992). timento amoroso. O casamento por amor impôs-se
Para completar essa pluralidade de pontos de vis- como a grande solução para o mal-estar conjugal,
ta sobre o casamento, interessa ainda referenciar como garantia contra o desentendimento. A partir
os que o enquadram, nos dias de hoje, numa abor- dos anos 60 do século XX, no entanto, o amor,
dagem da família contemporânea como família condição necessária para a união conjugal, pas-
relacional (Singly, 1993; J.C. Kaufmann, 1993). sou a ser insuficiente se limitado apenas ao início
A diversidade dessas perspectivas é, por si da relação. Mais do que pretexto inicial para o ca-
só, indicativa de que a escolha de uma delas tem samento, passou a ser fundamental que o amor e o
como conseqüência um olhar específico sobre o entendimento perdurassem ao longo da relação. É
real. Como é lógico, e apenas para dar um exem- essa nova perspectiva que está implícita na subida
plo, se se insiste numa perspectiva interacionista das taxas de divórcio das últimas décadas.
“pura”, privilegia-se o contexto das interações no Desse modo, as histórias de paixão, amor e
casal e tende-se a deixar relativamente na sombra desamor deixaram o romance e as telas do cinema
uma abordagem que contextualize a conjugalidade e passaram, para muitos, a fatos do quotidiano,
na lógica familiar mais alargada, ou numa rede mais sem a grandeza e o esplendor, bem entendido, que
vasta de relações sociais, sejam elas as de gênero, a tela ou o papel conferem a esses sentimentos e
sejam as da divisão social do trabalho. emoções. Hoje em dia, aliás, não cai bem afirmar
A análise das diferentes definições conceituais que se casou por interesse. Pelo contrário, se al-
sobre o casamento e a conjugalidade, com o debate guém justificar um ato menos comum com a ilógi-
teórico que suscitaram, contribuíram para defini- ca da paixão, encontrará em muitos um olhar cúm-
ções centrais no contexto da pesquisa. Optou-se plice ou benevolente.
por uma formulação conceitual específica, que Se a família, o casamento, ou mesmo a cha-
adiante se explicitará. mada questão feminina, constituem objetos de
As mudanças operadas no decurso do sé- análise consagrados na sociologia, já o tema do
culo XX, no campo das relações familiares e das amor o tem sido menos. Com algumas exceções,
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realidades que com elas direta ou indiretamente se ele só parece suscitar maior interesse dos sociólo-
entrelaçam são bastante visíveis. gos na década de 90 do século XX (Torres, 2001).
Com efeito, o século XX tem, entre outros, A legitimidade de alguns grandes nomes, como o
dois importantes protagonistas: as mulheres e o de Luhmann (1986), Giddens (1991, 1992) e o do
amor. As primeiras foram ultrapassando as limita- casal Beck (1995), que se debruçaram sobre o as-
ções impostas e mostraram, a partir de diversos sunto nestes últimos anos, contribui para lhe dar
contextos sociais, o que sabiam, o que faziam e o mais visibilidade e estatuto. O tema conhece, hoje,
que estavam dispostas a dar, muito para além da uma profusão de abordagens.
função materna a que tinham querido limitá-las. Por outro lado, a análise do lugar da socio-
De uma idéia de mulher-natureza, circunscrita no logia das realidades acima descritas coloca desafi-
ser e na ação aos condicionamentos biológicos, os e questiona algumas das teorias estabelecidas.
passamos para uma idéia de mulher-indivíduo, Na verdade, seria muito difícil imaginar essas evo-
dona do seu destino, responsável por si e pelos luções a partir das perspectivas teóricas que insis-
seus atos. Trata-se de um processo de transforma- tem, sobretudo, nos constrangimentos impostos
ção ainda em curso, com atalhos e curvas sinuosas. aos indivíduos e que lhes limitam, irrevogavelmente,
Quanto ao amor, passamos da vertigem do as margens de manobra. Em contrapartida, os que

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têm apostado nas teorias da escolha racional, ou também personalidades sociais e “sexuadas”. É essa
que sublinham, principalmente, o sentido subje- a interpretação que se beneficiou da contribuição
tivo da ação, teriam também dificuldade em admi- de vários autores, de Kellerhals (1982) a Singly
tir a persistência das assimetrias de poder que se (1987, 1987a), a Kaufmann (1992, 1993) e a Bozon
jogam na afirmação da vontade individual. (1990, 1992), entre outros. Houve a preocupação
Aqui se tentará também sintetizar algumas de articular estatuto social e casamento, salientan-
das orientações teóricas que foram desenvolvidas do também a importância do “sexo” dos capitais e
na pesquisa, no sentido de ultrapassar problemas as vantagens particulares do uso do conceito de
antes identificados. É sobre a formulação de al- gênero.
guns conceitos, como o de conjugalidade e o de A segunda dimensão da conjugalidade é a
formas de conjugalidade, que se desenvolvem, em que se refere à produção de sentido e de identida-
seguida, algumas considerações. de. A conjugalidade contribui, no plano existenci-
al, para duas importantes esferas de produção de
sentido. Por um lado, através da relação com um
RECURSOS, AFETOS, SENTIDO E IDENTIDA- outro significativo, que é uma relação validante,
DE, GÊNERO E CONTEXTO: dimensões da na acepção de Berger e de Kellner (1975, 1964).
conjugalidade Mas, para além da relação com o outro, está a pro-
messa de outros investimentos “existenciais” liga-
Numa perspectiva sociológica, o que se pen- dos à produção de seres humanos. Essa promes-
sa, o que se espera e o que se vai praticando no sa, encerrada na parentalidade, acrescenta sentido
casamento depende, de forma genérica, de dimen- existencial.
sões contextuais – recursos, tempo histórico, mo- Ora, a produção de sentido está igualmente
mento do ciclo de vida, culturas – e de dimensões associada, como os autores americanos apontam e
existenciais e identitárias. As vertentes psicológi- mais recentemente tem sido sublinhado por
cas, decisivas para explicar toda outra e muito im- Giddens (1991), à identidade pessoal e social. Atra-
portante parte da história, estão ligadas e interagem vés da relação com o outro significativo, obtenho
de forma muito particular com as sociológicas. recompensa e gratificação pessoal, construo uma
Em primeiro lugar, na perspectiva que te- maneira de ver o mundo e de me ver a mim como
mos defendido, a conjugalidade inscreve-se em indivíduo. Através dessa relação, posso ainda ter

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relações e trajetórias sociais e de gênero. Isto é, ela um estatuto, dar sinais da minha pertença ao gru-
ocorre num dado momento do percurso pessoal po (dos adultos, dos casados, dos homens, das
de um significativo conjunto de indivíduos, per- mulheres), cumprindo, assim, aspectos importan-
curso esse social, cultural e ideologicamente mar- tes da minha identidade social.
cado de forma diferenciada, de acordo com as con- Se usamos aqui a perspectiva de Berger e
dições de existência e com o gênero, já que é dife- de Kellner, também dela nos distanciamos, sobre-
rente também o que se considera ser o comporta- tudo em dois relevantes aspectos. Em primeiro
mento adequado para os dois sexos em setores lugar, a idéia de que a conversa quotidiana, no
sociais distintos. contexto da interação conjugal, “cria” realidade –
Em outras palavras, na “unidade de perso- ao construir uma visão do casal sobre o mundo e
nalidades em interacção (…) com vista à gratifica- os outros é a própria realidade que é também
ção mútua” de que Burgess8 falava, as personali- construída –, apesar de adequada, tende a dar uma
dades não são apenas unidades psíquicas, mas imagem do casal como se ele fosse constituído por

mente para o desenvolvimento e gratificação mútua dos


8
Relembre-se a definição de Burgess de família: “unidade seus membros unidos mais por coesão interna do que
de personalidades em interacção, existindo primordial- por pressões externas” (Osmond 1987, p. 113).

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uma só voz coletiva, uma voz em uníssono. A pes- va do sentimento amoroso. Isto é, não se deu im-
quisa mostrou realidades diversas, ou seja, o fato portância ao fato de o bem-estar afetivo e relacional
de algumas vezes essa voz ser resultante da impo- assumir crescentemente, não de forma isolada mas
sição da vontade de um sobre a do outro, outras sempre associado a outras dimensões sociais e de
vezes acontecer a existência de monólogos mais gênero, um papel de relevo na razão de escolha,
ou menos dissonantes e não de verdadeiras con- fundação, manutenção ou ruptura das relações
versas, e outras, ainda, de acontecerem, no casal, conjugais.
constantes e sutis negociações. Quando se procu- O fato de se dizer que há outros aspectos,
ra associar à idéia de identidade e de sentido o para além dos aspectos sentimentais e emocionais,
conceito de gênero, como se propõe, torna-se já que pesam na relação conjugal, não significa, evi-
possível prever a existência de dissonâncias e de dentemente, relegar para a inexistência aquela di-
assimetrias de poder. mensão e desprezar as suas conseqüências no pla-
Quanto à questão da identidade, é ainda no das próprias práticas e representações dos ato-
possível salientar o fato, como Kellerhals (1982) res sociais. Embora também aqui faça sentido dis-
sugere, de existirem tensões identitárias precisa- tinguir entre quem pode, de fato, fazer coincidir
mente entre o “eu” e o “nós-casal” ou “nós-famí- sentimentos com ações e quem apenas consegue
lia”, acentuadas, é preciso admiti-lo, por dificul- fazer da necessidade virtude, a verdade é que, para
dades e mesmo conflitos introduzidos pela asso- um conjunto cada vez mais significativo de pesso-
ciação entre identidade e gênero. De novo se reco- as, vai sendo possível ter, no domínio amoroso,
nhece a necessidade de articular as diferentes di- “segundas oportunidades” (Giddens, 1991, p. 10).
mensões – classe, gênero, identidade pessoal e No campo da sociologia da família,
social – para explicar práticas e representações. Kellerhals (1982) foi um dos primeiros a indicar
A terceira dimensão da conjugalidade que que a escolha sentimental e amorosa se fazia preci-
importa ter em conta diz respeito à afetividade, em samente através da partilha dos códigos sociais.
sentido amplo, nela ocupando lugar de destaque a Salientava que, da mesma forma que em relações
vertente amorosa da relação e a concretização da iniciadas numa lógica de conveniência, poderia
sexualidade. A essa dimensão só recentemente se surgir a afetividade, também seria possível que re-
tem prestado mais atenção no domínio da sociolo- lações onde prevalece a lógica romântica fossem
gia da família. Com efeito, a preocupação em de- alimentadas pela proximidade social e de interes-
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marcar o estudo sociológico do casamento com ses entre os cônjuges. Singly (1987a), ao criticar
perspectivas psicológicas e de uma lógica centrada os limites da teoria da homogamia, sublinha igual-
nos indivíduos levou a que, durante muitos anos, mente a existência dos motivos amorosos e senti-
no domínio da sociologia da família, os sentimen- mentais na escolha do cônjuge. Giddens (1991),
tos e as emoções não fossem considerados uma por seu turno, admite que, nas sociedades de
mola impulsionadora da ação suficientemente po- modernidade tardia, as determinações sociais cada
derosa, nem contassem analiticamente como moti- vez perdem mais peso na conjugalidade, tenden-
vo suficiente para justificar as uniões conjugais. do a afirmar-se a relação auto-referenciada (pure
Na verdade, uns insistiam na dimensão relationship) e o amor-confluente (Giddens, 1992).
macro e em funções, papéis e sistema, outros apos- Como dimensão do conceito de conjugalidade,
tavam numa perspectiva de estratégias matrimoni- a vertente afetiva inclui e transcende o sentimento
ais e de reprodução social, outros ainda descobri- amoroso e a sexualidade. Com efeito, os compo-
am regularidades sociais onde geralmente se via nentes afetivos inscritos na maternidade e na pa-
só escolha errática e cega às determinações sociais. ternidade, além da produção de sentido existenci-
Todos tendiam a subestimar, em todo o caso, como al e dos efeitos identitários já referidos, assumem
os últimos 40 anos mostraram, a autonomia relati- cada vez maior relevo. É o bem-estar afetivo das

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crianças que tende a estar no centro da vida fami- sua vez, escolhas, decisões e formas de agir. Claro
liar, perdendo simultaneamente relevo a dimen- que o fato de os “tempos” corresponderem a dinâ-
são estatutária da parentalidade. micas próprias e a sistemas de possibilidades e
Identificar especificamente essa dimensão limites deve ainda ser articulado ao fator gênero.
envolvida na conjugalidade e distingui-la da di- O peso dos “tempos” disponíveis de cada mem-
mensão amorosa justifica-se ainda, porque se veri- bro do casal é também social e “sexuadamente”
fica que maternidade, paternidade e relação conju- diferenciado. O casamento constitui-se em processo
gal e amorosa envolvem sentimentos em jogo na produtor de dinâmicas e constrangimentos espe-
conjugalidade e que entram em “concorrência”, por cíficos.
vezes, no decurso do casamento. A quinta e última dimensão da conjugalidade
A quarta dimensão inscrita na conjugalidade remete para o fato de ela ser social e historicamen-
é a que identifica o casamento como fonte produ- te situada. Isto é, e usando a metáfora de Berger e
tora de realidade, já não tanto no sentido simbóli- Kellner, trata-se de uma longa conversa “interpela-
co, mas mais especificamente no sentido das con- da” do exterior. As idéias, as orientações normativas
dições materiais. Expliquemo-nos. Com a entrada e os valores sobre os domínios da conjugalidade,
na conjugalidade, não só se cria uma situação nova da família e da sexualidade vão mudando, como é
em termos das condições materiais de existência – particularmente visível nos últimos quarenta anos.
através, por exemplo, da partilha de recursos e Essa evidência aparece, em todo o caso, analitica-
despesas – como sucede freqüentemente quando mente subestimada nas abordagens teóricas
se geram filhos e, com eles, novas relações afetivas. sistêmicas, ou que sublinham com demasiada ên-
Ora, esse aspecto de criação, em sentido literal e fase a idéia de reprodução social, e o mesmo se
metafórico, aponta para uma característica intrín- pode dizer das que insistem na perspectiva
seca e incontornável da conjugalidade: a sua dinâ- interacionista. Numas e noutras, a conjugalidade
mica própria. É que a realidade nova que é criada e a vida familiar são encaradas como “contexto”,
– vida em conjunto, relações familiares, filhos – fazendo surgir as suas lógicas próprias, relativa-
não só interpela os atores no sentido identitário, mente fechadas e imunes às contaminações e in-
como cria um sistema específico de possibilidades fluências exteriores.
e limites de ação (Ferreira de Almeida, et al, 1995, Ora, a realidade da vida conjugal não se
p. 28). configura com tal isolamento, o que é muito visí-

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A sucessão de fases na vida conjugal não vel nas sociedades contemporâneas e se torna pro-
corresponde apenas a condições psicológicas, vavelmente mais evidente ainda no caso portugu-
identitárias e de crescimento pessoal, mas traduz- ês. Para dar um exemplo, no decurso da mesma
se em novas condições. São os filhos pequenos história conjugal e no espaço de 25 anos, muda-
dependentes, ou já são autônomos e necessitam ram significativamente as definições valorativas do
de outro tipo de cuidados? Estamos numa fase de que é considerado comportamento adequado pe-
início da carreira profissional, no meio ou no fim rante o casamento, quer no feminino quer no mas-
desta? Já está ultrapassada a fase de adaptação à culino.
relação e ao outro? A maioria dos entrevistados com mais de
Há, assim, “tempos” diferentes na 40 anos casou numa época em que a união era
conjugalidade, por corresponderem a distintas si- considerada compromisso para a vida inteira, e o
tuações objetivas. O número e a idade dos filhos, divórcio uma dolorosa exceção. O horizonte legíti-
a duração da relação conjugal e a forma como se mo de realização pessoal para as mulheres era o da
está inserido na atividade profissional, são exem- maternidade e mesmo que não se “condenasse”,
plos de fatores que contribuem para criar realida- em alguns sectores sociais, a existência de ativida-
des objetivas diferentes, que geram e impõem, por de profissional, os homens estavam “por nature-

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CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

za” mais afastados das responsabilidades familia- FORMAS DE CONJUGALIDADE, TIPOS DE


res e domésticas. Os últimos 25 anos mudaram CENTRAMENTO, GERAÇÕES E GÊNERO
consideravelmente o horizonte. O divórcio passa
a existir como realidade mais freqüente, sobretudo Como já se mencionou, a análise das entre-
em certos setores sociais, surgindo, nas entrevis- vistas permitiu identificar três formas de
tas, como realidade bem próxima.9 E o que antes conjugalidade:10 a institucional, a fusional e a
era considerado norma, com respeito à participa- associativa. Veja-se agora como foram definidas
ção da mulher no mercado de trabalho, ou ao não essas diferentes formas de conjugalidade.
envolvimento dos homens nas tarefas domésticas A forma de conjugalidade institucional é
e nas responsabilidades familiares, é hoje corren- aquela que está associada, no essencial, a uma vi-
temente questionado. são do casamento como instituição que importa
Poder-se-ia admitir que esse efeito se evi- preservar acima de tudo. O casamento e a família,
denciasse apenas nas gerações mais jovens. Mas o nessa óptica, são encarados como destino natural,
que se verificou foi que, mesmo nos casais com o que implica o cumprimento de papéis, respon-
mais anos e em todos os setores sociais, se nota o sabilidades e deveres que se impõem ao indiví-
efeito dessas transformações de valores. O que está duo. Verifica-se, nessa forma de conjugalidade, a
bem? O que se praticava no início e ninguém pu- tendência para maior centramento na relação
nha em causa, ou o que se considera hoje normal parental do que na relação conjugal. Aliás, é, em
mas não foi prática habitual no passado? Algumas geral, o desejo de ter filhos, fundar uma família e
vezes, verifica-se uma espécie de rumor interior e passar ao estatuto e ao “estado” de adulto que sur-
sente-se ressentimento em relação ao passado. Em ge como pretexto e motivo fundamental para o ca-
outras, registra-se apenas a perplexidade, o não samento.
entender ou não aceitar que as coisas tenham mu- Se, no caso dos homens, o casamento, nes-
dado no sentido em que mudaram. Os protagonis- sa forma de conjugalidade, está associado à idéia
tas do primeiro tipo de situações são, em geral, as de perda da liberdade, no das mulheres surge mais
mulheres e das segundas, mais habitualmente, os como aquisição valorizada de estatuto. Existe clara
homens. diferenciação dos papéis sexuais – instrumental e
Parece, assim, indiscutível a necessidade de expressivo – bem como forte assimetria entre os
situar a conjugalidade nas coordenadas de espaço sexos, mesmo quando as mulheres também desem-
CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 42, p. 405-429, Set./Dez. 2004

e tempo, para avaliar de que forma as transforma- penham o papel instrumental e trabalham fora de casa.
ções de valores interpelam os atores sociais e que Os indivíduos que foram classificados nes-
efeitos têm nas suas práticas e representações. Na sa forma de conjugalidade ocupam posições espe-
verdade, as idéias circulam, interferem e podem, cíficas no espaço social, na dinâmica das gerações,
em certos contextos sociais mais do que noutros, e são também diferenciados quanto ao sexo. Como
chegar mesmo a transformar as relações e os pro- discurso sistemático e elaborado, ou “ideologia”,
cessos sociais. o casamento instituição aparece, de forma freqüen-
te, protagonizado pelos homens dos setores ope-
rários com idade superior a 40 anos. Mas também
surge, mais como resultante prática do que como
discurso elaborado, no outro extremo da escala
social e nos dois sexos, isto é, nos setores sociais
oriundos da burguesia proprietária, eles próprios
9
Com efeito, alguns dos entrevistados do grupo de dura-
ção do casamento dos 20 e mais anos, dos setores inter-
mediários ou das profissões intelectuais e científicas,
10
afirmaram que, no grupo dos amigos próximos, eram Para melhor clarificação do próprio conceito de formas
poucos os que permaneciam casados. de conjugalidade, ver Torres, 1996, 2000.

412
Anália Torres

dos mesmos setores, ou da burguesia profissio- tes gerações, aqui identificadas, quer a partir da
nal. No plano das normas e representações, con- duração do casamento, quer da idade.
cluiu-se que os fatores ideológicos e religiosos po- Finalmente, a forma de conjugalidade
dem igualmente contribuir para configurar essa associativa é caracterizável como uma “associação”
perspectiva mais institucionalizada do casamento. de dois indivíduos autônomos em deveres e direi-
A forma de conjugalidade fusional parece tos, com vista à promoção do bem-estar conjugal e
assumir uma modalidade mais romântica, pelo familiar. Este não pode colidir nem sacrificar a au-
menos no que diz respeito à forma como o projeto tonomia individual e os projetos de realização pes-
conjugal e familiar é relatado. Tendencialmente, soal. Nessa forma de conjugalidade, os indivídu-
nesse contexto, os futuros cônjuges casam porque os não esgotam o essencial da sua identidade nas
gostam um do outro, querem estar juntos e tam- dimensões familiares e conjugais, assumindo a exis-
bém querem se tornar adultos, protagonizando o tência de diversos projetos personalizados. Tal
seu próprio destino. É na perspectiva da partilha como, na forma de conjugalidade fusional, é a pers-
romântica e do amor que surge a idéia de ter fi- pectiva romântica que funda a relação e é na sua
lhos. O projeto caracteriza-se, assim, como continuidade, como conseqüência natural do amor
“fusionalmente” parental e conjugal, passando a conjugal, que surgem os filhos a completarem esse
constituir a aposta central que dá sentido à vida projeto. Mas, ao contrário da lógica fusional, os
dos indivíduos. indivíduos têm mais autonomia, precisamente tam-
Retomando a definição proposta por bém porque não esgotam a sua definição identitária
Kellerhals (Kellerhals, et al, 1982), essa forma de nessa dimensão da vida. Não é o “nós-casal” e o
encarar o casamento traduz-se no relevo dado aos “nós-família” que se impõe aos indivíduos, mas é
valores que insistem na exclusividade e na pereni- antes o bem-estar continuado destes que garante o
dade do laço conjugal, na escolha de modos de bem-estar do coletivo. A perenidade da relação de-
relação onde o “nós-casal” se sobrepõe ao “eu”, e pende, assim, da concretização e da reafirmação
no recurso a símbolos sociais que dão visibilidade desse bem-estar afetivo e emocional. Se, no plano
à existência do grupo, como tal, em relação ao ex- da definição e do discurso ideológico, esse é o mo-
terior. O acento tônico posto na vida familiar é tan- delo que mais claramente prevê a tendência para
to mais pronunciado quanto mais escassas são as uma certa indiferenciação no desempenho de pa-
possibilidades de se realizar profissionalmente péis entre homens e mulheres – ambos devem as-

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“fora” (Kellerhals, et al, 1982, p. 94). sumir as responsabilidades domésticas e familia-
Na forma de conjugalidade fusional, a dife- res e as profissionais –, na prática da vida familiar
renciação de papéis entre os sexos é menor do que e conjugal tal indiferenciação não se atinge.
na institucional; mas continua a dominar a No que toca, globalmente, a todas as formas
assimetria, sendo sempre as mulheres as respon- de conjugalidade, houve a preocupação teórica e
sáveis pelas tarefas domésticas e pelos cuidados metodológica de individualizar a perspectiva de
familiares. homens e de mulheres no quadro da vida conju-
Os “defensores” e “praticantes” dessa for- gal e familiar – o que, em geral, não surge de forma
ma de conjugalidade encontram-se entre setores tão evidente quando se assume a definição dessas
operários mais jovens (homens e mulheres) e nos tipologias familiares –, para melhor poder analisar
setores intermediários (pequena burguesia técnica os efeitos de gênero. E tornou-se evidente que, a
e de enquadramento intermediário e pequena bur- não se desenvolver esse esforço, se perderiam, de
guesia de execução11). Eles atravessam as diferen- fato, diferenças, pois elas diluir-se-iam na preocu-
pação de identificar uma resultante global
11
Para identificar a origem dessas classificações, ver Torres
caracterizadora do casal.
(2000). A focagem separada de homens e de mu-

413
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

lheres permitiu identificar vários tipos de situação tam, de forma polivalente e relativamente equili-
quanto ao gênero e às formas de conjugalidade. brada, em todas as dimensões referidas. Ao longo
Em alguns casos, homens e mulheres tendem para do ciclo de vida e no decurso das dinâmicas espe-
a mesma forma de conjugalidade, com versões li- cíficas da conjugalidade, acontecem também
geiramente distintas, enquanto em outros existe inflexões e mudanças de acento tônico de uma
nitidamente a defesa de formas de conjugalidade dimensão de investimento para outra – por exem-
diferentes. Na prática, porém, acaba por uma for- plo, da conjugal para a parental, desta para a pri-
ma de “funcionar” se impor à outra e, em geral, é a meira, das duas para a profissional – ou exclusivi-
forma de conjugalidade defendida e praticada pe- dades diversas.
los homens, a sua maneira de ver e de fazer que Identifiquem-se agora alguns dos traços fun-
acaba por se tornar dominante, ao contrário do que, damentais de cada tempo e as modalidades de ar-
por vezes, se pensa. Nessas situações, tende a acon- ticulação entre formas de conjugalidade, tipos de
tecer também, em certos sectores sociais mais do centramento e geração.
que em outros e mais nas gerações mais velhas e
menos nas mais novas, que as mulheres procu-
rem negociar alguma margem de manobra e auto-
O TEMPO DA INSTALAÇÃO: tensões para
nomia, manifestando mais ou menos explicitamente
algumas, estatuto para outros
a sua insatisfação. Mesmo assim, encontra-se aqui,
com clareza, o sinal do prolongamento, no terreno
da conjugalidade e da família, das assimetrias de Ao sintetizar as características fundamen-
poder entre homens e mulheres, que se verificam tais da situação dos casados no tempo da instala-
nas outras esferas da vida social. ção, sublinhou-se que se tratava de uma fase de
Um outro foco de interesse foi o que se cha- adaptação e de acertos. Adaptação ao outro, à situ-
mou de tipos de centramento. A identificação de ação relacional, à mudança de papéis que repre-
modalidades diferentes de “investir” na vida con- senta o nascimento dos filhos. Foi uma caracterís-
jugal, na família, na profissão, no lazer, surgiu ao tica captada quer a partir das entrevistas dos casa-
se procurar responder à velha questão de saber se dos há menos de 10 anos, quer a partir do discur-
homens e mulheres atribuem significados diferen- so retrospectivo dos que tinham casado há mais
tes à conjugalidade, e ao tentar, igualmente, tempo. Sobre essa fase, quase sempre se diz sofrer
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escrutinar o estereótipo segundo o qual as mulhe- períodos mais ou menos conflituais. Houve mes-
res só se interessariam pelos filhos e pela família e mo dois casais que pareciam ter-se bloqueado
muito menos pela profissão. numa situação que, se não era de conflito aberto,
Ficou claro que as modalidades de investi- seria, pelo menos, de claro desentendimento. To-
mento na vida conjugal, na família e nos filhos, na dos os outros falaram de momentos de tensão, abor-
profissão, no lazer, são, na verdade, diferenciadas. recimento ou conflito pelos quais foram passando.
Mais uma vez se revelou, em todo o caso, a neces- As expectativas diferenciadas sobre o casa-
sidade de ultrapassar visões estereotipadas, no- mento, o fato de se estar perante uma fase muito
meadamente quanto à diferença entre homens e intensa – a de todos os começos – e os diferentes
mulheres. Com efeito, pudemos encontrar todas modos de encarar a conjugalidade, os condiciona-
as modalidades e combinatórias possíveis de in- mentos de gênero ou as condições de existência
vestimento. Desde os que se centram basicamente em sentido lato, podem contribuir, entre outros
num dos tipos de investimento – projeção pessoal fatores de caráter psicológico e individual, para a
e profissional, por exemplo – aos que atribuem ausência ou existência desses conflitos, ou para
mais importância à relação conjugal e amorosa e que eles sejam mais ou menos acentuados.
menos à parental, ou o inverso, até os que apos- Vimos assim, nos setores operários, menor

414
Anália Torres

acento tônico na tensão e divergência e maior tran- pectiva no essencial utilitária, vêm depois a des-
qüilidade relativa nessa fase inicial do casamento. cobrir as vantagens, no plano relacional e pessoal,
Dominando claramente a forma de conjugalidade dessa participação na atividade. Vimos, aliás, como
fusional, ambos os membros do casal se mostram, as lógicas de solidariedade, fusão e ajuda mútua,
em geral, muito mobilizados pelo projeto parental, no casal, parecem ser acentuadas pela respeitabili-
embora seja também clara a aposta em limitar o dade conferida ao fato de as mulheres contribuí-
número de filhos. Revela-se bem, nos discursos rem monetariamente para a casa.
desses entrevistados, a centralidade da família no O centramento, especificamente na relação
meio operário como área garantida, controlada, conjugal, parece ser menos sublinhado do que em
próxima, desempenhando a função de outras formas de conjugalidade e surge como mais
microcosmos protetor (Nunes de Almeida, 1993; indistinto em relação ao projeto parental. Isso não
Schwartz, 1990, p. 516). significa, contudo, ausência de projeção românti-
O casamento, para os homens, é uma “hon- ca, que surge ainda mais vincada ao comparar esse
ra” e a comprovação da passagem à condição de grupo com o dos operários mais velhos, os quais
adulto responsável (Vale de Almeida, 1995, p. 222, defendem e praticam a forma de conjugalidade
67). A paternidade significa ainda, para eles, de- institucional. Mesmo na relação com os filhos, nota-
monstração de virilidade e masculinidade, assu- se uma mudança intergeracional. Os mais novos
mindo os filhos o sentido de “obra” (Schwartz, assumem comportamentos considerados mais
1990, p. 409). As mulheres, mesmo quando traba- modernos, como “assistirem ao parto”, e preocu-
lham no exterior, avaliam a maternidade como pro- pam-se diretamente com os filhos querendo ser
jeto identitário central, revelando-se fator de segu- eles, e não os pais ou os sogros, a educarem a
rança e de respeitabilidade. O casamento e a cons- “sua” criança. Os mais velhos investem nos filhos
tituição de família representam, para ambos os segundo um modelo mais institucional e numa
cônjuges, estatuto, identidade pessoal e social, lógica autoritária – escondem o afeto, impõem a
integração. Os outros meios de acesso e de perten- regra, admiram-se de ver reações dos filhos com-
ça serão, geralmente, difíceis de alcançar. Acresce pletamente diferentes das que eles teriam tido quan-
a esse conjunto de características a perspectiva, do eram crianças.
mais evidente nas mulheres, de uma avaliação Em síntese, não será nesse setor social, onde
positiva em termos de trajetória familiar predomina a forma de conjugalidade fusional, que

CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 42, p. 405-429, Set./Dez. 2004


intergeracional: elas acham, em geral, que têm mais as tensões identitárias e as dificuldades inerentes
direitos e que são mais respeitadas do que as suas a essa fase da instalação e dos grandes começos
mães o foram nos respectivos contextos conjugais são mais intensamente referidas e vividas.
e intrafamiliares. Também é um pouco essa a conclusão a que
Quanto aos tipos de centramento, as con- se chega quando se analisam os setores intermedi-
clusões, nesse setor social, confrontaram-nos com ários, onde, tal como no dos operários, se partilha
alguns aspectos interessantes e talvez inesperados. a forma de conjugalidade fusional. Aqui, no en-
Enquanto as mulheres tendem a avaliar positiva- tanto, os investimentos encontram-se mais repar-
mente o investimento profissional, os homens tidos. A relação conjugal começa a aparecer como
mostram-se bastante desiludidos com essa dimen- dimensão autônoma (“precisávamos de mais tem-
são da vida. Talvez se verifique aqui também uma po para nós dois...”). A atividade profissional tan-
relação inversa em relação às expectativas iniciais: to pode ser investida como não, dependendo do
eles esperando muito mais no plano identitário tipo de emprego. Também nesse subconjunto, as
dessa esfera, como os seus pais ou como os mode- mulheres valorizam os benefícios da atividade pro-
los masculinos mais velhos que lhes servem de fissional, enquanto os homens mostram algum
referência; elas, trabalhando no exterior numa pers- desinteresse, eventualmente também relacionado

415
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

com o fato de avaliarem o seu próprio trabalho outro pólo, os que estão mais próximos de uma
como pouco estimulante. A paternidade e a mater- lógica fusional e integram o seu projeto pessoal no
nidade são altamente investidas. A proximidade quadro mais geral do que consideram ser, também,
entre homens e mulheres parece grande, e as lógi- o do interesse da família. No caso das mulheres,
cas de ajuda mútua para o coletivo da família, que as diferenças estabelecem-se entre aquelas que
caracterizam a forma de conjugalidade fusional, manifestam claramente as dificuldades e impasses
estão claramente presentes. Também aqui o casa- da situação em que se encontram e as que encaram
mento é visto como acréscimo de estatuto e respei- a situação com algum pragmatismo, remetendo para
tabilidade, quer para homens, quer para mulhe- o futuro a concretização dos seus projetos pesso-
res, sendo pouco visíveis as tensões que caracteri- ais. Muito mais do que com os homens, situações
zam os que têm acesso a investimentos alternati- de explicitação clara das ambigüidades e declara-
vos (Kellerhals, et al, 1982). ções de insegurança na forma de lidar com os dife-
Na forma de conjugalidade associativa, onde rentes “papéis” e conciliar os investimentos pro-
incluímos os grupos domésticos em que pelo me- fissionais e familiares aparecem também no caso
nos um dos cônjuges tem formação universitária, das mulheres.
a referência a dificuldades e tensões vividas nessa Os condicionamentos de gênero atuam, as-
fase da instalação aparece então mais freqüentemente sim, na prática, embora o discurso associativo seja
do que nos grupos anteriores. As diferenças entre comum aos dois membros do casal: só eles prati-
homens e mulheres assumem características rela- cam o “associativismo” que ambos defendem, o
tivamente paradoxais: é grande a proximidade de que dá origem a tensões só às vezes explicitadas
idéias, de projetos e de experiências vividas nos por um ou pelos dois membros do casal. São situ-
trajetos anteriores ao casamento, tal como se parti- ações que ilustram a proposta de Kellerhals (1982)
lha a perspectiva de aposta diversificada nas dife- quanto às quase inevitáveis contradições envolvi-
rentes dimensões da vida (carreira, parentalidade, das na prática do modelo “modernista”.
conjugalidade, lazer). Mas a análise das entrevis- As entrevistas mostraram também que,
tas revelou que, na prática, as diferenças assumem quando essas tensões são explicitadas, não se lhes
contornos claros. Na formulação dos projetos per- atribui a origem no comportamento do cônjuge ou
sonalizados, os homens são céleres e rápidos – em alguma especificidade da relação. As dificul-
quero fazer ou estou concluindo o mestrado, por dades e ambigüidades tendem as ser vividas como
CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 42, p. 405-429, Set./Dez. 2004

exemplo –, enquanto as mulheres estão em stand produto de constrangimentos externos, alheios à


by no plano dos investimentos profissionais e se vontade dos indivíduos. Nos casos em que se atri-
queixam da sobrecarga de trabalho e da falta de buem ao outro os problemas principais vividos
apoios domésticos, ou da falta de dinheiro para nessa fase da instalação, nota-se também alguma
obtê-los. Os projetos pessoais femininos são hesi- cristalização de uma situação de conflito.
tantes, estão sempre mediados pelas responsabili- O tempo da instalação, tempo de todas as
dades familiares que assumem fundamentalmente promessas e de todos os começos, é assim vivido
como suas. O maior desejo, formulado por várias de forma diferenciada. Para uns, representa esta-
entrevistadas, surge como um apelo: uma empre- tuto, estabilidade e respeitabilidade, enquanto para
gada em tempo integral! outros, e sobretudo para outras, ele pode signifi-
Claro que, muito embora esse seja o cenário car igualmente dificuldades e ambigüidades, sem
global, há variações e diferenças de estilo, quer no deixar de representar uma época desafiante e pro-
caso dos homens, quer no das mulheres. No mas- metedora.
culino, encontramos, num dos pólos, os
“associativos puros”, definindo claramente o seu
projeto de realização pessoal individualizado e, no

416
Anália Torres

O TEMPO DA MUDANÇA E DAS TRANSI- direitos das mulheres, é mais provável e verossí-
ÇÕES: mobilidade social e retomada de mil o primeiro tipo de explicação. Só um estudo
projetos longitudinal permitiria conclusões mais seguras.
As posições das mulheres desses entrevis-
A análise das entrevistas correspondentes tados operários contribuem também para reforçar
ao tempo das mudanças e transições confronta-nos, o peso do fator explicativo intergeracional. Embo-
nos planos teórico e empírico, com aspectos cen- ra num caso se tenha verificado a defesa, por parte
trais das dinâmicas da conjugalidade, mais dificil- da mulher, de uma lógica institucional, em geral
mente captáveis quanto se usam tipologias a partir elas tendiam para a forma de conjugalidade
de cortes sincrônicos. Também a perspectiva indi- fusional, chegando mesmo a lamentar a impossi-
vidual de cada um dos cônjuges se clarifica ao bilidade de a relação conjugal funcionar nesses
abandonarem-se abordagens que apelam para a termos. Uma entrevistada desejaria, sem o conse-
identificação de uma “voz” coletiva do casal. As guir, um funcionamento pela parte do marido mais
conclusões que a seguir se sintetizam são romântico, mais partilhado.
ilustrativas. Aparece agora um fator novo em relação ao
Comparativamente com o tempo da instala- tempo da instalação, que tem a ver com divergên-
ção, verifica-se logo, no tempo das mudanças e cia quanto às formas de conjugalidade entre os dois
transições, uma diferença quanto às formas de cônjuges, aqui plenamente assumidas, pelo me-
conjugalidade. Aparece, de modo muito nítido, a nos, por um deles. Sublinhando outra vez o peso
forma de conjugalidade institucional, que não apa- dos condicionamentos de gênero, são as mulheres
receu no grupo dos que tinham casado há menos que se submetem aos modos de funcionar do ma-
de 10 anos. Essa situação pode ser explicada como rido. Noutros setores sociais, aumentam as mar-
exemplo da menor prevalência, nas gerações mais gens de negociação do sexo feminino e talvez, por
novas, dessa maneira institucional de encarar o isso mesmo, apercebendo-se de que há outros
casamento. modelos e modos de viver a relação conjugal nos
Na verdade, surge, sobretudo no discurso tempos que correm, as mulheres desses operários
dos operários e de alguns entrevistados de origem aspirem a eles.
operária, a visão institucional de duração do casa- As modalidades de centramento revelam,
mento. Além de acentuarem as dimensões de res- por seu turno, diferenças entre homens e mulhe-

CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 42, p. 405-429, Set./Dez. 2004


ponsabilidade envolvidas na conjugalidade, esses res que refletem as que foram focadas anteriormente.
entrevistados tendem a sublinhar a perda total de Os homens que apostaram, e foram socializados
liberdade que representou o casamento, mostran- para apostar, a sua identidade pessoal e social na
do também muito menos envolvimento na dimen- profissão, acabam por ver essa aposta desconfigurada
são conjugal e mesmo na parental. Ao contrário pelas ameaças constantes e pelas situações de preca-
dos mais novos, parecem ter uma perspectiva e riedade a que as situações profissionais daquele
uma prática menos fusional. As dimensões de aju- tipo têm sido submetidas, nos últimos anos. As
da mútua e de envolvimento romântico com as mulheres, em contrapartida, num efeito idêntico
mulheres ficam mais distantes. Tratar-se-á, aqui, ao que já identificamos para as operárias mais no-
de um efeito geracional, tendendo os mais novos a vas, descobriram as vantagens que o desempenho
defender duradouramente perspectivas “moder- de um trabalho pago lhes pode proporcionar. Acres-
nas”, ou estaremos perante um mero efeito de ci- ce que a instabilidade profissional dos homens ou
clo de vida conjugal? É difícil saber com toda a as ameaças de desemprego conferem ao trabalho
certeza, mas, a julgar pelas posições de uns e de feminino – aumentando assim também o poder
outros, por exemplo no que se refere a valores so- relativo das mulheres – caráter de segurança fun-
bre outras dimensões da conjugalidade, ou aos damental para a sobrevivência da família. Por isso

417
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

se afirmou que, nesse campo, as mulheres pareci- as de mobilidade social, o papel das mulheres foi
am estar em movimento de ganho e eles em perda. fundamental. No caso dos entrevistados em trân-
Nada, para todos os efeitos, e para “garantir” a sito para as profissões intelectuais e científicas,
supremacia masculina, que não seja “compensa- foram as mulheres, em duas situações, com traba-
do” com a obrigatoriedade moral sentida pelas lho em tempo integral e com dois filhos, que assu-
mulheres de assegurarem o essencial das tarefas miram a iniciativa de completar uma formação no
domésticas e dos cuidados com os filhos, ainda ensino superior. Quanto aos que passaram da con-
que trabalhem no exterior tantas horas como os dição operária aos setores intermediários, embora
seus cônjuges. também se verificasse no caso masculino a pro-
Os setores intermediários, no tempo das gressão no contexto da empresa e o acesso a luga-
mudanças e transições, constituem uma espécie res técnicos, esse esforço coincidia com o das
de entreposto, de ponto de chegada para alguns e mulheres que, terminada a formação secundária,
ponto de partida para outros, em termos de mobi- se envolviam em cursos de formação e passaram
lidade social. Discutiu-se, aliás, o papel decisivo às profissões técnicas intermediárias.
que podiam desempenhar as lógicas geradas no Esse protagonismo feminino mostra que,
grupo doméstico, e o que poderíamos também de- apesar dos constrangimentos de gênero, as mu-
signar por “cultura familiar”, como meio de con- lheres, quando vêem reunidas certas condições
centrar esforços ou desenvolver estratégias de como, por exemplo, os filhos serem menos de-
mobilidade social. pendentes, ou conseguirem apoios da família ou
No plano das representações e dos valores, do marido, podem procurar pôr em prática alguns
alguns entrevistados tentavam claramente anteci- dos projetos pessoais adiados antes, por imposi-
par os valores de setores sociais que queriam atin- ção das responsabilidades familiares. Os condici-
gir, através de um processo que Merton (1968) iden- onamentos de gênero continuam a funcionar e
tificaria como correspondente ao esforço de fazer impõem-se à vontade dos indivíduos, mas estes
coincidir o “grupo de pertença” com o “grupo de não deixam de explorar a ampliação possível das
referência”. Essa era, por exemplo, a situação dos margens de manobra.
que, tendo profissões técnicas intermediárias, pro- Essas transformações e mudanças constitu-
curavam completar cursos superiores para passar íram um dos fatores que contribuíram para a de-
às profissões intelectuais e científicas. No plano signação que atribuímos ao grupo de entrevista-
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das representações e mesmo das práticas, encon- dos com esses anos de duração do casamento. Com
trávamos aqui entrevistados que, situados ainda efeito, quer no plano da mobilidade social, parti-
na forma de conjugalidade fusional, pareciam, por cularmente visível nos setores intermediários, quer
outro lado, aproximar-se muito da associativa. devido ao fato de os entrevistados fazerem freqüen-
Do mesmo modo, os indivíduos de origem tes referências a transformações, esse tempo de
operária, que estavam, na ocasião, nos setores in- casamento é o mais revelador da dinâmica própria
termediários, mostraram ambigüidades no plano da vida conjugal. Na verdade, é quando já não se
valorativo, produzidas, eventualmente, por efei- está completamente absorvido por filhos peque-
tos de continuidade da pertença anterior. Por exem- nos ainda muito dependentes, como acontece no
plo, surgiam toques de visão “institucional” sobre tempo da instalação, quando ainda não se tem uma
o casamento e a família, no caso dos homens, em- idade que limita os reinvestimentos profissionais,
bora, em outros planos, como o do investimento quando o essencial está jogado no plano profissio-
parental e o do sentido de ajuda mútua em relação nal, como acontece no tempo da conformação e da
às mulheres, denotassem já sinais que os fariam realização pessoal, é que parece haver mais espaço
incluir na forma de conjugalidade fusional. de manobra para a mudança e para outras apostas.
Em ambos os casos, no plano das estratégi- Muitas vezes, essa dinâmica é protagonizada mais

418
Anália Torres

por um dos membros do casal do que pelo outro, em paralelo, nas diferentes dimensões da vida: no
o que se torna evidente ao captar a perspectiva trabalho profissional, na família, na relação conjugal.
individual de cada cônjuge. Foi ainda possível identificar outra diferen-
Quanto aos tipos de centramento, nos seto- ça entre homens e mulheres, claramente denunci-
res intermediários verifica-se a diversidade de in- ando, mais uma vez, os condicionamentos de gê-
vestimentos – na relação conjugal, na parental, na nero e ilustrando também os efeitos da dinâmica
profissão. Continua, no entanto, a ser central a familiar e conjugal. Na verdade, enquanto os ho-
vertente familiar e parental no plano identitário, mens com carreira profissional no tempo das mu-
quer para os homens, quer para as mulheres. A danças e das transições, estão em fase de pleno
tendência acentua-se, aliás, no meio operário, fi- empenho, as mulheres parecem estar em posições
cando a aposta na relação conjugal mais intensa ainda um pouco recuadas. Porque assumem maio-
nos outros setores. res responsabilidades familiares e dificilmente os
Os investimentos na profissão são variados, seus cônjuges, demasiado envolvidos na sua pró-
tanto para os homens como para as mulheres, mas pria carreira, partilham essas responsabilidades,
a aposta identitária masculina é também menor, as mulheres acabam sendo forçadas a retrairem-se
verificando-se, por vezes, pouco investimento ou em relação a projetos mais personalizados.
mesmo desinteresse profissional. No caso das Se as mulheres já não estão em stand by
mulheres, confirma-se o perfil de valorização do nessa fase, como as suas congêneres do tempo da
trabalho externo, já notado em outros setores. En- instalação, ainda se diferenciam da disponibilida-
trevistadas há que se queixam de não lhes serem de dos maridos. As situações analisadas são, em
atribuídas determinadas responsabilidades que se todo o caso, insuficientes para tirar conclusões de-
sentem perfeitamente capazes de assumir. O con- finitivas, embora seja no grupo de duração do ca-
trário, portanto, da imagem de uma mulher de- samento seguinte que o empenho profissional fe-
pendente e retraída no plano profissional. minino surge muito mais pleno e assumido. Os
Junto dos profissionais intelectuais e cien- cônjuges, em contrapartida, parecem já ter passa-
tíficos, quando um dos membros do grupo do- do o apogeu do seu investimento profissional. Os
méstico tem formação universitária e a forma de ritmos de investimento profissional diferenciam-
conjugalidade é associativa, surgiram característi- se entre homens e mulheres na forma de
cas diferentes das que têm sido analisadas nos conjugalidade associativa: as diferenças vão-se

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outros setores sociais neste grupo de duração do desenhando desde o tempo da instalação até o tem-
casamento. po das mudanças e das transições, tornando-se
Por um lado, quanto aos homens, estamos depois mais claras no tempo da conformação e da
perante o caso típico das situações de grande in- realização pessoal.
vestimento profissional na carreira, que se confi-
gura como aposta identitária, assumindo a profis-
são lugar central no plano da realização pessoal. TEMPO DA CONFORMAÇÃO OU DA REALIZA-
Foi, aliás, a partir desses casos, e dos “associativos”, ÇÃO PESSOAL
casados há mais de 20 anos, que se propôs uma
distinção entre homens e mulheres, quando am- Com o grupo de duração dos 20 anos e mais,
bos têm carreira profissional, a propósito da forma chegamos ao tempo da estabilização – satisfatória,
de investir nas diferentes dimensões da vida con- insatisfatória, flutuante – da relação conjugal. Al-
jugal. Enquanto eles tendem a encarar a vida fami- guns projetos foram cumpridos, outros nem tan-
liar e a conjugal como bastidores ou de pano de to. Certo é que, com a passagem do tempo, as condi-
fundo seguro, fiável e garantido, a partir do qual ções objetivas anteriores e as que foram nascendo da
se projetam pessoalmente, elas tendem a investir, própria relação criaram algumas irreversibilidades.

419
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

Em outros planos da vida, como no profissional, homens mais velhos. De forma congruente com
também foram já traçados caminhos essenciais. A essa transformação, a valorização da contribuição
relação entre família e trabalho pode, no entanto, feminina para a família, através do desempenho
transformar esse período, para as mulheres de cer- do trabalho pago, é mais evidente nas gerações mais
tos setores sociais, numa fase de novos investi- novas do que nas mais velhas. Junto das últimas,
mentos ou de afirmação tranqüila dos existentes. aliás, o modelo da domesticidade das mulheres
A comparação entre o que dizem os entre- surgia associado à desvalorização das suas compe-
vistados desse tempo da conformação ou da reali- tências em outros planos que não o “expressivo”.
zação pessoal e o que dizem os mais novos reme- Quanto aos tipos de centramento, verificou-
te-nos diretamente para a problemática da mudan- se que, no caso dos homens, a identidade pessoal
ça social e da mudança intergeracional. Nas histó- e social se constrói, no fundamental e apesar de
rias com mais densidade temporal, reencontramos eventuais dificuldades, à volta do desempenho
as profundas e rápidas transformações da socie- profissional, tendo também importância a verten-
dade portuguesa dos últimos 40 anos, a adesão te parental. Mas tudo o que diz respeito às rela-
esperançada de uns, as perplexidades de outros. ções familiares é mediado pelas mulheres. Para os
Apesar de serem notórias certas linhas de perma- homens, os filhos, tal como acontece com os ope-
nência entre gerações, parecem mais evidentes as rários mais novos, estão associados à demonstra-
linhas de fratura, sobretudo quando, a par das ção da virilidade e masculinidade e ao sentido de
opiniões, se registram processos de mobilidade “obra”. Mas, no plano dos valores, os mais velhos
social de uma geração para a outra. tendem a assumir, na relação entre pais e filhos,
Exemplo talvez bem evidente da mudança e posições autoritárias, enquanto os mais novos pa-
das perplexidades que ela pode suscitar pode ser recem inclinar-se para uma perspectiva mais de-
encontrada nos setores operários. Vimos aí a defe- mocrática e valorizadora dos afetos e da dimensão
sa e a prática, do modelo mais clássico de divisão emocional. A relação conjugal é também relativa-
do trabalho entre homens e mulheres, com elas mente indistinta da relação familiar, tanto no caso
em casa e eles a serem os provedores da família, dos homens como no das mulheres. Isso parece
modelo que se traduziu, na linguagem da pesqui- para elas, no entanto, constituir resultante não
sa, pela predominância da forma de conjugalidade desejada – a afirmação de que “os filhos estão aci-
institucional. Concluiu-se também que, se havia ma de tudo” surge, por vezes, associada à
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convergência de idéias e de projetos entre os dois lamentação pelo fato de o marido não ser o verda-
cônjuges de alguns casais, no caso de outros havia deiro companheiro que desejaram.
a imposição por parte do marido de um modelo Nos setores intermediários, os tipos de
de funcionamento autoritário a que a mulher tinha centramento são mais diversificados e menos in-
de se submeter. Reencontramos a forma de tensos. Não surge, por exemplo, no caso dos ho-
conjugalidade institucional para o marido contra mens, forte empenho e domínio identitário cen-
as aspirações mais fusionais da mulher, já detecta- tral das dimensões profissionais, como acontece
das no tempo das mudanças. Aqui, contudo, a com os operários mais velhos ou com os que têm
imposição autoritária parece ser mais decisiva, já uma verdadeira carreira. Por outro lado, e no caso
que, no caso de um entrevistado mais velho, ele das mulheres, a família não aparece a ocupar o
chega a ponto de não deixar a mulher trabalhar espaço todo, e o trabalho tende a ser muito mais
fora de casa nem freqüentar cursos de formação. do que uma fonte de rendimento.
Pode ver-se aí um sinal, como se disse a propósito As apostas são diferenciadas e podem re-
do conceito de conjugalidade, de um efeito do con- partir-se entre os que acham o trabalho estimulan-
texto envolvente nos mais novos: eles não ousam te até aos que o consideram sem qualquer interes-
já assumir posições tão autoritárias como as dos se, tanto no caso dos homens como nos das mu-

420
Anália Torres

lheres. Aqui, o fator tipo de trabalho ou as ses setores profissionais nos anos 60 e 70.
idiossincrasias pessoais contam mais do que o Outro sinal dessa especificidade feminina e
gênero. Assim, tanto podemos ter um funcionário da maior paridade relativa entre homens e mulhe-
das finanças desinteressadíssimo do seu trabalho res nesse setor é o fato de, em termos das modali-
mas conformado, como um técnico de contas que dades de funcionamento da relação conjugal, as
afirma entregar-se cem por cento com gosto à sua mulheres deterem alguma capacidade de negocia-
profissão. Podemos ainda encontrar um comissá- ção em relação aos cônjuges e às decisões sobre a
rio de bordo de uma companhia de aviação afir- vida familiar. Assim, por exemplo, no caso de cla-
mando que o seu trabalho é leve mas interessante, ra divergência de perspectivas sobre aspectos da
ou uma funcionária bancária que se sente relação e da interação conjugal, em que ele é clara-
medianamente interessada na atividade profissio- mente institucional e ela tende para o fusional, uma
nal. entrevistada acaba conseguindo negociar alguma
No plano dos investimentos conjugais, é margem de manobra. Já que não é possível a parti-
também variado o panorama, e os homens tanto lha com o marido de um conjunto de atividades
revelam perspectivas completamente fusionais que ela gosta de desenvolver, acaba por desenvolvê-
como institucionais. O investimento familiar, na las sozinha, ou com a filha. Maiores margens de
lógica das responsabilidades, aparece plenamente decisão e de autonomia das mulheres são também
assumido pelas mulheres como seu principal de- visíveis em outras entrevistas, sem esquecer, no
ver, tendendo os homens a um papel de ponto de entanto, que elas despendem e acumulam muito
apoio, mais do que ao de verdadeiros líderes fami- mais horas efetivas de trabalho, juntando o remu-
liares. Não estamos, por isso, nem perante o “pai nerado com o não remunerado.
de família” autoritário dos meios operários da E estamos longe, nesse setor, das imposi-
mesma idade, nem perante a figura de referência, ções de autoridade que vimos atrás, nos setores
distante mas central, porque tem sempre a última operários. Curiosamente, no entanto, o
palavra a dizer, dos meios em que o homem tem autoritarismo de alguns dos cônjuges é lembrado
uma carreira. por algumas como problema do passado. Proble-
Nos setores intermediários, neste grupo de ma que foi sendo ultrapassado pela persistência
duração do casamento, a figura parental é relativa- da entrevistada, não sem momentos de conflito,
mente lateralizada no plano das responsabilida- ao ir conseguindo impor um pouco mais a sua

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des familiares, mas presente como auxiliar da vontade.
mulher. Talvez se explique o papel secundarizado Muito provavelmente o fato de se sentirem
desses homens no campo familiar pelo efeito da competentes em outras esferas, como a profissio-
continuidade de uma lógica ainda tradicional, que nal, e uma progressiva segurança adquirida pelo
responsabilizava principalmente as mulheres pela longo convívio conjunto, que corre bem no essen-
família, mas a atuar num contexto em que elas, cial, podem ajudar nesse processo de maior auto-
apesar de tudo, têm uma atividade profissional. estima e afirmação feminina, bem como na maior
Para além da responsabilidade da família, elas as- capacidade de negociação nessa fase do casamen-
sumem também o respectivo sustento numa base to. Não podem, por outro lado, excluir-se dos efei-
de quase paridade com os maridos – todas as en- tos, já referidos, do contexto exterior, que favore-
trevistadas deste grupo trabalhavam na adminis- cem progressivamente a idéia da igualdade entre
tração pública, em bancos, ou em empresas como os sexos, efeitos reforçados, já se vê, pela maior
administrativas ou quadros médios. Confrontamo- permeabilidade à mudança e às influências exter-
nos, aqui, com a questão da guerra colonial e com nas dos setores intermediários.
o fato de as mulheres terem aproveitado as oportu- Essa interferência do exterior, que interpela
nidades de emprego surgidas precisamente nes- e questiona os que estão casados há mais de 20

421
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

anos e fazem o balanço entre os valores que predo- seus efeitos. Na verdade, quando se analisa ou se
minavam quando se casaram e os que são hoje faz o balanço da vida conjugal, entram em linha de
dominantes, faz-se sentir de forma particular nos conta, explicita ou sutilmente, comparações relati-
setores das profissões intelectuais e científicas. vas na forma como se observam os outros e os
Embora, nesses setores, haja mais margem contextos valorativos mais envolventes que inter-
de manobra individual e predomine claramente a ferem no modo como se pode encarar e avaliar a
forma de conjugalidade associativa, a verdade é própria vida pessoal.
que os valores tradicionalistas do passado, nome-
adamente no plano do maior distanciamento dos
homens das responsabilidades familiares, marca- EM CONCLUSÃO: três tempos, três gerações
ram os casamentos realizados nos anos 60. A nor- de casais e gênero
ma adequada era, então, a divisão clássica de pa-
péis e não a igualdade, a complementaridade, e Formulou-se, no início, a proposta da di-
não a simetria ou a indiferenciação. As socializa- versidade das formas de conjugalidade cuja confi-
ções de rapazes e moças preparavam e confirma- guração foi analisada. Se, no plano emocional, a
vam esse modelo. centralidade do casamento parece importante em
Ainda que, no plano ideológico, os jovens todas as formas de conjugalidade, embora de for-
dos anos 60, como testemunham alguns homens ma secundarizada na institucional, já no que toca
entrevistados nesses setores sociais, estivessem às esferas identitárias e à posição de dependência
prontos a cortar com os hábitos mais tradicionais que se pode estabelecer em relação à conjugalidade
da geração anterior, praticar, de fato, esse corte, no – casamento como estatuto ou como investimento
domínio da igualdade entre homens e mulheres, basicamente afetivo e relacional – há diferenças
era mais complexo. Vimos essas dificuldades se- significativas. Elas traduzem-se, também, nos di-
rem superadas, em certos casos, através dos apoi- ferentes tipos de centramento, com distintos graus
os familiares e da delegação do trabalho doméstico de dispersão e diversificação.
pago, conseguindo algumas entrevistadas concre- A operacionalização do conceito de
tizar os seus projetos, sempre em situações que conjugalidade proposto permitiu, por outro lado,
não foram fáceis. ter uma perspectiva multifacetada da vida conju-
Reconhecemos problemas idênticos através gal: captaram-se os investimentos românticos, mas
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das queixas de algumas entrevistadas, quadros de também os constrangimentos decorrentes dos re-
empresa, que só anos mais tarde puderam concre- cursos e inserções na vida social dos atores; sali-
tizar as suas aspirações, porque estiveram com- entaram-se os aspectos da construção identitária,
pletamente absorvidas pelas responsabilidades fa- sem deixar de ter em conta as mudanças, as idéias
miliares, sem apoio dos maridos, nos primeiros e o contexto cultural e simbólico mais vasto em
anos da vida de casados. A comparação entre os que se inscrevem os atores sociais; analisaram-se
primeiros anos de vida de casada de uma entrevis- expectativas, adaptações, constrangimentos, mas
tada e o que ela acha que são os mesmos primeiros igualmente estratégias para contornar as dificulda-
anos de seus colegas de empresa – que ela consi- des decorrentes das situações novas, criadas pela
dera que participam muito mais em casa, sobretu- dinâmica própria da conjugalidade.
do nos cuidados com os filhos, do que o seu ma- Veja-se agora, mais sistematicamente, o que
rido alguma vez teria participado – provoca uma a análise das entrevistas permite concluir quando
espécie de sensação de se ter nascido no tempo se comparam as gerações de casados – das três
errado. A interferência do “exterior”, de que se durações do casamento e dos três tempos – e as
falou ao propor a identificação de uma das dimen- diferentes formas de conjugalidade.
sões do conceito de conjugalidade, parece ter os Quanto à forma de conjugalidade institucional,

422
Anália Torres

verifica-se, como já foi referido, que ela não surge falta de respeito”. Essas afirmações revelam as di-
nos entrevistados casados até 10 anos, os do tem- ferentes referências simbólicas que distanciam os
po da instalação, ou seja, junto dos mais jovens, pais dos filhos, especialmente quando há mudan-
sejam eles operários, dos setores intermediários ça e movimentos de mobilidade social ascenden-
ou das profissões intelectuais e científicas. Ela só te. Percebe-se que uma jovem que se prepara para
aparece no conjunto dos que estão casados há mais ser professora, nos dias que correm, não veja a
de 10 anos, isto é, no tempo das mudanças e no da utilidade de saber “esfolar um coelho ou matar uma
conformação ou realização pessoal. O que pode galinha”. Mas também se compreende que, para
traduzir a mudança de práticas e representações um operário com origem rural, esse desconheci-
em relação à conjugalidade sustentada, pois tanto mento da filha signifique uma falta de “atributos”
quanto mais jovem se é e menos se defende e pra- do que ele, na sua perspectiva, considera serem os
tica a visão tradicional e institucionalizada do ca- da mulher “adequada”.
samento. No plano teórico, pode assim dizer-se Outro aspecto a focar, quanto aos tempos
que, nesse caso, os efeitos de contexto cultural e de duração do casamento, refere-se ao momento
simbólico ou os de ciclo de vida conjugal pesam do ciclo de vida a que chegaram esses casais
mais do que as diferenças sociais para distinguir “institucionais” do tempo da realização ou confor-
os indivíduos. mação pessoal. Verificou-se que, enquanto os ho-
Deve-se ainda salientar que a forma mens, nesse caso operários qualificados, pareci-
de conjugalidade institucional surge mais nos se- am estar bem e tinham orgulho pelo seu percurso,
tores operários (com a exceção dos mais jovens) e estando ou à beira da aposentadoria ou aposenta-
menos, embora também apareça, em setores pro- dos, as mulheres já estavam em situações mais
fissionais como os técnicos administrativos inter- ambivalentes. Os filhos ou já saíram de casa ou
mediários ou os quadros superiores, e quando aí estão para sair, e a projeção forte que sempre tive-
surge é, quase sempre, nos casados há mais de 20 ram na família precisa agora de encontrar outros
anos. Tornou-se, por isso, difícil estabelecer uma domínios de investimento. Quando esses lhes es-
comparação intergeracional, a não ser para os seto- tão vedados, como acontece com a mulher do ope-
res operários. É o que se procura fazer em seguida. rário, que a impede de freqüentar cursos de forma-
Notam-se muito bem as mudanças ção profissional e de trabalhar fora de casa, os sen-
intergeracionais quando se comparam, por exem- timentos em relação à situação podem ser negati-

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plo, os operários mais novos com os mais velhos. vos.
É elucidativo o discurso de um operário com mais Ainda nesse grupo dos que estão casados
de 60 anos, com uma perspectiva perfeitamente há mais de 20 anos, vale a pena fazer referência às
tradicionalista quanto à divisão de papéis entre posições dos que se incluem na forma de
homens e mulheres no casamento, e que se revela conjugalidade institucional, embora não sejam
também, de algum modo, perplexo com as evolu- operários. Veja-se o caso de um entrevistado, en-
ções do presente, no que se refere à situação das genheiro dirigente, com 64 anos, casado há mais
mulheres ou às relações entre pais e filhos. De- de 30 anos com uma mulher católica praticante, e
monstrando essas suas perspectivas tradicionalis- com 4 filhos, que, mesmo defendendo a perspec-
tas, ele afirma, entre outras coisas, a sua tiva institucional em todos os outros parâmetros,
incompreensão pelo fato de a filha só fazer o “tra- achava que fazia sentido a sua mulher trabalhar
balho de estudar” e não fazer nada em casa, nem como professora, porque ela “gostava” do que fa-
saber “esfolar um coelho ou matar uma galinha”. zia. E outro caso de um quadro intermediário das
E também considera que, quando era criança, obe- finanças, que ilustrava a sua posição institucional,
decia muito mais aos pais do que os seus filhos entre outras declarações e práticas, com a afirma-
lhe obedecem, achando ainda que hoje “há muita ção do fato de ter casado porque achava que a

423
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

mulher “já tinha as condições para ser uma dona esse é um momento difícil, não tanto pela lógica
de casa”, demonstrando, assim, a sua visão pouco interna à vida conjugal ou familiar, mas pela insta-
romântica do casamento, visão essa, aliás, de que bilidade introduzida pelas situações de inserção
a mulher não partilhava. Ou o de um empresário profissional.
que assumia claramente a defesa e a prática da As mulheres desse tempo das transições tra-
assimetria entre homens e mulheres na família, balham tal como os homens em empresas, muitas
subalternizando a mulher e sustentando que o ca- vezes também em equilíbrios instáveis e com gran-
samento e a família eram responsabilidades con- des cargas de trabalho e responsabilidade, já que
traídas que se impunham aos indivíduos. são elas também que assumem a execução de to-
Quanto ao tempo das transições, os das as tarefas domésticas e são responsáveis pelos
institucionais que são também operários revelam- cuidados com os filhos.
se um pouco menos tradicionalistas do que os mais Os operários mais novos, em contrapartida,
velhos. Já não se encontra tão claramente a defesa os do tempo da instalação, distinguem-se dos que
dos modelos de assimetria entre homens e mulhe- estão casados há mais de 10 anos, e, por isso, não
res, tampouco a situação do homem provedor da foram considerados na forma de “conjugalidade
família e da mulher que fica em casa a tomar conta institucional”. Exemplos dessas distinções são
dos filhos. Mas persistem os traços que os caracte- patentes num discurso que se distancia mais ex-
rizam como “institucionais”: assumem o casamento plicitamente da divisão de papéis tradicionais en-
como uma responsabilidade que contraíram e que tre homem e mulher, surgindo uma visão mais
se deve manter para preservar a instituição, inde- fusional, companheirista e romântica da relação
pendentemente da maior ou menor satisfação dos entre os cônjuges, uma vontade de se envolver mais
indivíduos. São desvalorizados os investimentos diretamente na educação dos filhos, querendo de-
afetivos e relacionais, o relacionamento parental cidir sobre tudo o que lhes diz respeito, desenvol-
revela-se mais significativo, no caso das mulheres, vendo práticas que revelam esse maior
mas também no dos homens, do que a dimensão envolvimento direto, como assistirem ao parto dos
conjugal. filhos. As responsabilidades familiares são aqui
Quanto ao momento do ciclo de vida, ou ao assumidas como decorrentes do “gosto” pela situ-
tempo em que se encontram, no caso dos homens ação de estar casado e de ter filhos, isto é, de den-
e ao contrário dos operários mais velhos, não se tro para fora, e não porque há uma responsabilida-
CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 42, p. 405-429, Set./Dez. 2004

trata, de modo nenhum, de um momento positi- de contraída a que se tem de conformar a vontade
vo. É já uma geração com mais de 40 anos, marcada dos indivíduos. Mas será que essa perspectiva se
pela ameaça ou mesmo pelo fechamento de fábri- manterá no futuro, em outros tempos de duração
cas e empresas, pelo espectro do desemprego e do casamento, como o das “transições” ou o da
pela instabilidade e precariedade do trabalho. Um “conformação”, ou será que eles se tornarão
dos operários entrevistados, pai de cinco filhos, “institucionais”? Qual será o efeito mais forte, o
com 43 anos no momento da entrevista, tinha como do contexto cultural e simbólico da época, ou o
perspectiva o fechamento da empresa onde há das lógicas próprias dos diferentes tempos do ca-
quase vinte anos trabalhava, e outro, mais novo, samento? É difícil saber ao certo.
com 2 filhos, tinha uma situação peculiar. Estava Quanto à maneira como vivem esse tempo
“ligado” sem contrato permanente há 15 anos a da instalação, pode dizer-se que, se no plano pro-
uma empresa que continuamente o despedia ao fissional, as apostas não são muito conseguidas,
fim do contrato a prazo, para depois o voltar a queixando-se esses profissionais (operadores de
contratar. Nessa dimensão tão importante da vida máquinas, trabalhadores em grandes oficinas) de
desses entrevistados, dimensão obviamente da qual terem empregos com trabalhos pesados, pouco
depende a subsistência e o bem estar da família, qualificados e pouco compensadores em termos

424
Anália Torres

de remuneração, já em relação à família parecem ciona, quer para homens quer para mulheres, como
encontrar-se num momento positivo de cumpri- um investimento que, não sendo valorizado pelas
mento da sua identidade como adultos responsá- suas qualidades intrínsecas, pode vir, no futuro, a
veis, situação que o fato de serem pais recentes assumir contornos mais interessantes. Mesmo os
lhes parece conferir. Situação idêntica parece pas- que não têm um projeto definido de mudança re-
sar-se com as mulheres dos operários mais jovens, velam, quando não estão particularmente satisfei-
no tempo da instalação. A forma de conjugalidade tos com o trabalho que têm, que há perspectivas
praticada e defendida é também a fusional, como em aberto e que as coisas podem vir a melhorar.
já foi mencionado, sendo esse um “tempo” bom No plano da relação entre trabalho e família, pro-
de afirmação individual através da maternidade, cura-se uma articulação harmoniosa dessas duas
surgindo igualmente o trabalho profissional como dimensões da vida, preocupação particularmente
algo de positivo que lhes confere auto-estima. assumida pelas mulheres. E se é verdade que o
Olhando agora para os fusionais, dos três tempo em que as crianças eram pequenas e exigi-
tempos de duração do casamento, e excluindo os am grande absorção já passou, também se mostra
operários mais novos a que já se fez referência, que, com os filhos entrando na adolescência, esse
comparem-se esses grupos entre si. Os fusionais é um tempo de exigências e de problemas específi-
do tempo da instalação distinguem-se dos do tem- cos no seu acompanhamento. As queixas femini-
po das transições, porque os primeiros parecem nas em relação à não partilha das tarefas domésti-
estar mais mergulhados na vida familiar numa al- cas não surgem de forma tão sonora como surgem
tura em que os filhos são pequenos e mobilizam nos fusionais mais velhos ou nos associativos.
toda a atenção, só começando no tempo posterior Talvez por um efeito cruzado: essas mulheres não
a definir mais claramente projetos mais individua- formulam ainda a questão da partilha no plano
lizados. Tratando-se, no plano da inserção reivindicativo, como acontece com algumas
socioprofissional, de indivíduos que ocupam po- associativas e, por outro lado, os homens já assu-
sições intermediárias, como empregados adminis- mem mais alguma divisão do trabalho, embora sem-
trativos de empresas, bancos ou função pública pre de forma muito limitada em relação ao volume
ou profissões congêneres, o grau de mobilização de tarefas que as mulheres desenvolvem.
pela profissão é bastante variável, nem sequer se Os fusionais do tempo da conformação ou
podendo dizer que se encontrem diferenças regu- da realização pessoal, casados há mais de 20 anos,

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lares entre os sexos. desempenham o mesmo tipo de atividades profis-
No plano comparativo, o que parece decisi- sionais que os mais novos e parecem assumir, em
vo é que o tempo das transições é aquele em que se relação à família, o mesmo tipo de atitudes, embo-
verificam tendencialmente mais mudanças, onde ra tenham um discurso menos igualitário, no pla-
se consolidam projetos profissionais, ou se aposta no das relações entre homens e mulheres, do que
em mais formação ou na mudança de emprego. os mais novos. Assim, o fato de serem mais ve-
Não se deve esquecer, no entanto, que, dentro desse lhos e o ponto da trajetória de vida em que se en-
grande grupo, as posições aparecem matizadas, contram podem contribuir para se referirem de
havendo os que se aproximam mais dos operários forma diferente, quer em relação à vida profissio-
e da forma de conjugalidade institucional, enquan- nal, quer em relação à dimensão familiar.
to outros antecipam, já no plano das práticas e das Quanto ao investimento no plano da famí-
representações, a sua passagem para os lia, trata-se de um relacionamento com filhos já
“associativos”. mais autônomos, que não exigem tanto
O discurso do companheirismo entre os envolvimento e que também se aproximam da sa-
cônjuges, mas também o centramento na família, é ída de casa dos pais. Para as mulheres, trata-se de
muito disseminado nesse grupo. O trabalho fun- um momento tanto mais difícil quanto não tenham

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CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

uma atividade profissional estimulante, nem hi- Mas é enganador pensar, numa lógica
póteses de investimentos alternativos, já que, ao evolutiva, que o sentido da transformação vai ser
contrário do tempo das mudanças e transições, as o mesmo para as jovens, quando elas chegarem à
hipóteses e o tempo para a mudança estão agora idade das mais velhas. Na verdade, como vimos,
mais limitadas pela idade. Assim, se os investi- cada geração corresponde também a uma conjun-
mentos profissionais continuam a permanecer tura específica, quer no plano das condições obje-
compensadores, ou existirem outras áreas de in- tivas de vida, quer no das idéias e valores. No
vestimento, a passagem para o período do chama- plano teórico, o que isso significa é que a variável
do “ninho vazio” pode efetivar-se com menos difi- ciclo de vida conjugal, ou tempo, trajetória e dinâ-
culdade. Se, pelo contrário, o interesse pelo traba- mica, como se considerou na pesquisa, ganham
lho já foi reduzido ou foi se enfraquecendo, essas significado apenas quando associadas a outras,
transições podem se fazer com mais problemas. como o contexto ou conjuntura. Se, no plano dos
Para os homens, a esfera de investimentos valores e das idéias, a situação para as mais novas
alternativos à família torna-se ainda mais impor- parece ter melhorado, já no plano das condições
tante, já que, nessa geração de pessoas casadas há objetivas, é mais duvidoso que assim seja.
mais de 20 anos, o investimento na família se faz, Um dos desejos insistente das mais novas,
de certa forma, mediado pelas mulheres. Assim, o e porque os homens continuam a não assumir a
fato de se poder atribuir sentido à profissão, numa sua parte do trabalho doméstico, é o de ter dinhei-
altura em que já se antevê, no horizonte, a situa- ro para delegar algumas das tarefas domésticas e
ção de aposentadoria, ou o fato de existirem inves- obter apoio nos cuidados com os filhos. Isso pode
timentos alternativos, como áreas de lazer a serem traduzir a vontade de reproduzir um modelo – em
valorizadas, pode representar uma defesa impor- casa dos ascendentes, ou com o grupo de referên-
tante para as mudanças familiares. Também no cia, era assim que as coisas funcionavam, já que
plano da relação conjugal se podem configurar al- as empregadas faziam o essencial – que, hoje em
guns problemas. Está-se perante a forma de dia, será mais difícil pôr em prática, devido ao
conjugalidade fusional, característica, portanto, de preço elevado desse tipo de trabalho. Embora com
grandes apostas na família como coletivo e menos maior margem de manobra no campo da imagem
em projetos individuais, numa lógica de carreira de mulher e no da afirmação dos seus desejos
como no projeto associativo. Ora, não é pouco fre- como indivíduo, certas condições objetivas difi-
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qüente que, durante muito tempo ocupado com a cultam, ainda assim, a concretização desses projetos.
educação dos filhos, o casal possa esbater o seu Outro fator negativo para a elaboração e a
centramento na relação, o que implica alguns rea- concretização de projetos profissionais é a maior
justes na fase em que os filhos se aproximam da instabilidade profissional que atinge particularmen-
saída de casa. Esses problemas não se colocam da te as mulheres: várias entrevistadas, que ocupa-
mesma forma nos outros tempos da conjugalidade. vam profissões como professoras ou arquitetas,
Considerando agora as três gerações de ainda não tinham situações completamente está-
associativas e voltando às perguntas do início da veis. Sabe-se que essa era uma situação, nas mes-
pesquisa, que tendências existem de continuida- mas profissões, altamente improvável nos anos 60.
de, que linhas de fratura? Se as mais novas esta- Se olharmos para as diferentes gerações, ten-
vam em stand by no campo dos projetos individu- do agora em conta os homens associativos, nota-se
ais relacionados com a profissão, as do tempo das uma linha de continuidade nítida dos mais ve-
mudanças começavam a retomar esses projetos, e lhos para os mais novos, persistindo algum afas-
as mais velhas, não sem testemunharem algumas tamento em relação às responsabilidades familia-
dificuldades, pareciam, finalmente, conseguir res e domésticas no plano da gestão e da execução.
concretizá-los. Apenas algum desvio positivo se observa no tem-

426
Anália Torres

po ocupado com os cuidados com os filhos e na formas de conjugalidade fusional e associativa, não
maior abertura global aos interesses da família, por corresponde, por vezes, a maior simetria efetiva
parte dos mais jovens. de posições e de percursos entre homens e mu-
O afastamento relativo dos homens em rela- lheres. Paradoxalmente, nos setores em que, por
ção às responsabilidades familiares, além de pare- efeitos de trajetória, essa igualdade parece, antes
cer inscrito num sistema de disposições masculi- do casamento, quase total – nos setores com for-
nas que naturaliza certas opções, traduzidas, por mação universitária – é onde se verificam, depois,
exemplo, na facilidade com que se definem proje- diferenças mais acentuadas. Só em certas condi-
tos personalizados, também é produzido e alimen- ções tais diferenças podem vir a ser recuperadas
tado por constrangimentos externos. Aqueles que noutras fases do casamento, como acontecia com
se impõem à vontade dos indivíduos e que se ge- algumas mulheres que retomavam, no tempo das
ram na esfera profissional através de um sistema mudanças, os seus projetos personalizados.
de expectativas. Não só os homens que têm carrei- Para todos os efeitos, verificou-se uma re-
ra, ou estão a construí-la, muitas vezes acham na- gularidade clara. São sempre as mulheres, em to-
tural, em certas fases, amortecer o seu investimen- das as durações do casamento e em todas as for-
to na família, como são muitas vezes as empresas mas de conjugalidade, a sacrificarem os seus obje-
em que trabalham que esperam deles um compor- tivos pessoais às responsabilidades familiares.
tamento adequado ao estereótipo em temos de gê- Outra regularidade nítida, que corrobora resulta-
nero. Ou seja, mesmo que eles desejem, por exem- dos de muitos outros estudos, é que há uma rela-
plo, partilhar com as mulheres a licença parental, ção direta entre atividade feminina no exterior e
serão impelidos a não fazê-lo, para não desiludir maior capacidade de decisão e negociação no ca-
expectativas na empresa. sal.
Assim, apesar dos progressos verificados Vale a pena ainda referir, a propósito do
nas gerações mais novas – que, no plano dos valo- gênero, que as posições dos homens perante a pro-
res e das representações, são inegáveis, sobretudo fissão não correspondem, de forma rígida, aos es-
no que toca ao envolvimento paternal nos cuida- tereótipos genericamente reconhecidos. Os homens
dos com os filhos –, a verdade é que outras forças inteiramente dedicados à carreira, que transformam
e constrangimentos acabam por ditar as suas re- a família no bastião seguro a partir do qual se afir-
gras. Enquanto, para a lógica de quem emprega, mam pessoalmente na profissão, constituem ape-

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homens e mulheres não forem pessoas com famí- nas um dos subtipos encontrados e, provavelmente,
lia, enquanto, de forma mais genérica, não se leva- devido aos baixos níveis de formação da popula-
rem à prática as medidas implicadas na idéia de ção portuguesa, pouco representativo no conjun-
uma mulher-indivíduo, contra a idéia de uma mu- to. Mais freqüente é uma posição de adesão me-
lher-natureza, a verdadeira igualdade de oportu- nos intensa à profissão, que pode ir do conformis-
nidades entre os sexos, no casamento ou fora dele, mo ao interesse relativo. Outro subconjunto coe-
idéia que tem, apesar de tudo, progredido de for- rente, o dos operários extremamente identificados
ma que parece irreversível, será de concretização com a profissão, estará também a perder
lenta e difícil. representatividade.
Vale a pena ainda concluir, de forma mais Predominam, assim, as posições matizadas.
sistemática, sobre os efeitos do gênero no casamen- Mas, se a profissão é pouco investida, também não
to. Dependendo das posições dos sexos e igual- é necessariamente na família que os homens ten-
mente das formas de conjugalidade, a verdade é dem a empenhar-se mais. Os espaços próprios de
que a maior proximidade no plano dos valores e lazer e o convívio com os amigos podem assumir
das representações, que se observa com nitidez nas algum peso. Já com as mulheres, em contrapartida,

427
CASAMENTO: tempos, centramento, gerações e gênero

os investimentos na família são sempre fortes, e os ponsabilidades familiares e, noutros casos, se tra-
profissionais podem ser, por razões diretas e indi- duz em culpabilização pela menor participação nas
retas, igualmente importantes. tarefas domésticas. Maior sensibilidade, portanto,
Para responder a mais uma das interroga- para diminuir a distância entre os territórios familia-
ções iniciais da pesquisa, no plano identitário, tanto res e os profissionais, para reduzir a compartimentação
a família como o trabalho são susceptíveis de re- e a diferenciação dos lugares. Mas esses sentidos
presentar apostas fundamentais para as mulheres: subjetivos, no masculino, também podem ser, por
com uma, obtém-se reconhecimento como mulher, vezes, travados pelos constrangimentos exteriores
ou com o modelo “adequado” de mulher; com o a que se fez referência.
outro, afirma-se mais a individualidade, a pessoa Duas notas finais. Concluiu-se que a vida
e os seus direitos. conjugal não pode ser analisada sem entender as
Para os homens, a aposta identitária no tra- interações que aí ocorrem, mas também que ela
balho continua a ser decisiva e significa, em al- não pode ser tomada como unidade imune às in-
guns casos, a demonstração fundamental da capa- terferências externas. A própria organização da
cidade de sustentar a família. Em outros, repre- vida conjugal está condicionada pela divisão soci-
senta uma aposta em que se joga mais a realização al e sexual do trabalho no plano da sociedade. A
pessoal, a individualidade e as qualidades intrín- conjugalidade gera, contudo, lógicas próprias,
secas da profissão. A família traduz-se também em onde, sem obviamente desaparecerem os constran-
ganho, quer no plano da identidade pessoal, quer gimentos, os atores sociais exercitam modos de os
social. Para uns, porque representa, para o exteri- contornar ou de, pelo menos, explorar as margens
or, sinal de competência, de capacidade de assu- de manobra de que dispõem.
mir responsabilidades, da masculinidade “adequa- Do mesmo modo, se se reencontraram os
da”. Para outros, significa mais os bastidores ins- obstáculos poderosos responsáveis pela manuten-
trumentais e afetivos que, simultaneamente, dão ção das desigualdades sociais e de gênero, tam-
sentido e asseguram a projeção exterior das com- bém se notou claramente a força das idéias que,
petências individuais. conjugadas com os interesses, nesse caso os da
Nos homens mais jovens, finalmente, veri- emancipação feminina, não deixam de exercer efei-
ficam-se sinais de mudança. Nas diferentes for- tos de mudança de hábitos, de desejos, de expec-
mas de conjugalidade identificadas, eles estão mais tativas e de práticas. Pela análise da vida conjugal,
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disponíveis para a partilha dos cuidados com os das formas de conjugalidade, das trajetórias e das
filhos e para o empenho direto, isto é, não media- dinâmicas conjugais, viajamos também pelas mudan-
do pelas mulheres, na relação parental. Testemu- ças sociais dos últimos 40 anos em Portugal, mos-
nha-se, assim, uma aposta masculina na paterni- trando, ainda mais uma vez, como, nas histórias em
dade de tipo diferente, aproximando-se mais da primeira pessoa, estão inscritas as estruturas, as con-
aposta identitária feminina na maternidade. Ten- junturas e as lógicas mais globais que as envolvem.
dências do mesmo tipo são também visíveis nos
movimentos de homens divorciados, que querem
assumir direta e responsavelmente o papel de pais. * Este texto, originalmente escrito em português de Portu-
gal, foi adaptado para o português do Brasil por Ana Maria
Outro sinal de mudança é a maior proxi-
de Carvalho Luz.
midade e sentido de ajuda mútua entre homens e
mulheres, quando ambos desempenham ativida-
de profissional, o que é o caso da esmagadora (Recebido para publicação em dezembro de 2004)
maioria. Proximidade que se faz sentir, em alguns (Aceito em dezembro de 2004)
casos, no sentido do respeito pelas mulheres e da
compreensão da necessidade da partilha das res-

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Anália Torres

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