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Marcio Caetano; Anderson Ferrari

DOI: https://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p335-350

MEMÓRIA, EXPERIÊNCIA, DISCURSOS E


IDENTIDADES NA CONSTITUIÇÃO DOS
GRUPOS GAYS
Marcio Caetano*
Universidade Federal de Pelotas
https://orcid.org/0000-0002-4128-8229

Anderson Ferrari**
Universidade Federal de Juiz de Fora
https://orcid.org/0000-0002-5681-0753

Resumo
“Jesus Cristo era gay?” É com essa questão provocativa, nascida de uma reunião
de um grupo gay, em que se definiam as temáticas que iriam ser discutidas,
que queremos problematizar como história, memória, experiência, discursos e
identidades se relacionam com a constituição dos grupos e com a construção
dos sentidos de homossexualidade e homossexual. Como esses grupos estão
contribuindo para fortalecer a articulação entre discursos, saberes e poder
na constituição dos membros como homossexuais? Tal questão nos aproxima
das perspectivas pós-estruturalista e foucaultiana dos Estudos Culturais, o que
significa dizer que o interesse de investigação e de análise estará focado nos
discursos e práticas que constituem os sujeitos e nas negociações estabelecidas
entre os grupos.
Palavras-chave: Cultura; Discursos; Identidades; Grupos Gays

Abstract
MEMORY, EXPERIENCE, SPEECHES AND IDENTITIES IN THE
CONSTITUTION OF GAYS GROUPS
“Was Jesus Cristo gay?” It is with this provocative question, born of a meeting
of a gay group, in which the themes that would be discussed were defined, that
we want to problematize how history, memory, experience, discourses and
identities are related to the constitution of groups and to the construction of the
senses of homosexuality and homosexuality. How are these groups contributing
* Pós-doutor em Currículo e Narrativas Audiovisuais, com apoio da CAPES e sob orientação da Profa. Dra. Conceição Soares,
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador do Cen-
tro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas (UFPEL/FURG/UFES/UFOB). Graduado em História pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com mestrado e doutorado em educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). E-mail: mrvcaetano@gmail.com
** Possui graduação em Licenciatura Em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1991) e graduação em Ba-
charelado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994). Na pós-graduação possui Especialização em
Sociologia Urbana pela UERJ (1996) e Especialização em História das Relações Internacionais também pela UERJ (1997), mes-
trado em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2000) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual
de Campinas (2005). Atualmente é professor associado de Ensino de História da Faculdade de Educação da UFJF. É professor
permanente do PPGE/UFJF (mestrado e doutorado) da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: anderson.ferrari@ufjf.br

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Memória, experiência, discursos e identidades na constituição dos grupos gays

to strengthen the articulation between discourses, knowledge and power in the


constitution of members as homosexuals? This question brings us closer to the
post-structuralist and Foucaultian perspectives, which means that the interest
in research and analysis will be focused on the discourses and practices that
constitute the subjects and in the negotiations, established between the groups.
Keywords: Cultura; Speeches; Identities; Gay Groups

Resumen
MEMORIA, EXPERIENCIA, DISCURSOS E IDENTIDADES EN LA
CONSTITUCIÓN DE GRUPOS GAYS
“¿Era Jesus Cristo gay?” Es con esta pregunta provocadora, nacida de una
reunión de un grupo homosexual, en la que se definieron los temas a discutir,
que queremos problematizar cómo la historia, la memoria, la experiencia, los
discursos y las identidades se relacionan con la constitución de los grupos y
la construcción de los sentidos de la homosexualidad y la homosexualidad.
¿Cómo contribuyen estos grupos a fortalecer la articulación entre discursos,
conocimiento y poder en la constitución de los miembros como homosexuales?
Esta pregunta nos acerca a las perspectivas postestructuralista y foucaultiana
de los Estudios Culturales, lo que significa que el interés en la investigación y
el análisis se centrará en los discursos y prácticas que constituyen los temas y
en las negociaciones establecidas entre los grupos.
Palabras clave: Cultura; Discursos Identidades; Grupos gay

Introdução
“Jesus Cristo era gay?” pode ser uma frase in- parcela da população - a comunidade LGBTT2 -,
cômoda para muitos fiéis das religiões judaico- essa mesma frase pode representar uma certa
cristãs. Uma frase que incomoda, uma vez que, necessidade de se afirmar a partir de uma fi-
não havendo nenhum relato de experiência gura histórica, valorizada e inquestionável. De
afetivo-sexual vivida por aquele que é conside- uma maneira ou de outra, temos a figura central
rado “filho de Deus”, qualquer menção que não de Jesus Cristo sendo disputada por diversos
o determine nos limites das experiências hete- grupos em torno da noção de sexualidade, da
rossexuais é encarada como blasfêmia, como construção de Jesus Cristo como santo ou da
um profundo desrespeito àquelas pessoas que tentativa de humanizá-lo a partir do vínculo
professam a fé judaico-cristã1. Já para outra com uma sexualidade, mais especificamente,
1 As tentações vividas por Jesus Cristo durante os 40 dias de sua aproximação com a homossexualidade.
em que esteve meditando no deserto foram inspiração Negar ou afirmar a homossexualidade de Jesus
da produtora “Porta dos Fundos” para uma das cenas do
especial natalino “A primeira tentação de Jesus”, veicula- Cristo denuncia o sentido de disputa que está
da pela Netflix, em 2019. Na sátira de 46 minutos, Jesus presente na construção da homossexualidade,
Cristo (interpretado pelo ator Gregório Duvivier) volta
do deserto com o excêntrico Orlando (interpretado pelo sobretudo, masculina. Se, para alguns, a inter-
ator Fábio Porchat), com quem parece viver um relacio-
namento, para a sua festa de aniversário. Essa cena foi o 2 Quando nos referimos à comunidade LGBTT, não estamos
suficiente para despertar reações de lideranças cristãs e entendendo-a como homogênea, mas um coletivo que
políticas que elaboraram um abaixo-assinado que pediu a congrega diferentes maneiras de viver, pensar, ser e estar
proibição da veiculação do filme no canal fechado da Net- no mundo. Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
flix. Não obstante, a sede da produtora do programa, na Transexuais que correspondem a uma parcela da popula-
madrugada do dia 24 de dezembro, foi atacada com dois ção que se identifica com e que se nomeia a partir dessa
coquetéis molotov. diversidade de gênero e sexual.

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rogação possa parecer uma afronta, um ataque as organizações e as lideranças dos principais
e mesmo uma heresia, para tantos outros, pode grupos atingidos, a exemplo de gays e profis-
ser a tentativa de ter uma imagem positiva que sionais do sexo, a atuarem na prevenção ao
é carregada de compaixão e irretocável para a IST/HIV4 e no acompanhamento as pessoas
homossexualidade. vivendo com Aids. Esse quadro permitiu o
É em meio a essa disputa que essa interro- financiamento de ações e a profissionalização
gação foi construída. A provocação que deu de ativistas do movimento gay. Privilegiando as
origem a este artigo, portanto, foi o resultado reuniões dos grupos como loci de investigação,
de uma proposição voluntária de temática para o foco da nossa análise é o tema de um desses
a composição da pauta de debates anuais de encontros – “Jesus Cristo era gay?”. Posta essa
um grupo gay organizado na cidade de Juiz de questão, a intenção é problematizar e discutir
Fora, MG. Para além do título, a motivação para como essa associação entre memória, expe-
esta escrita foi nosso vínculo com pesquisas riência, discursos, fé judaico-cristã e afirmação
interessadas nas construções das homosse- identitária se relaciona com a constituição
xualidades masculinas no campo da Educação, dos grupos e com a construção dos sentidos
entendendo-a como parte de um processo de homossexualidade e homossexual. Como
mais abrangente de constituição dos sujeitos esses grupos estão contribuindo para forta-
que dizem de práticas reiteradas de educar a lecer a articulação entre discursos, saberes
nós mesmos e aos outros. Nosso interesse de e poder na constituição dos membros como
investigação se encontra com nossas ações homossexuais? Essa questão nos aproxima das
políticas e nosso convívio com as pessoas que perspectivas pós-estruturalista e foucaultiana,
compõem quatro grupos gays organizados – o o que significa dizer que o interesse de investi-
GGB (Grupo Gay da Bahia – Salvador/BA), o gação e de análise estará focado nos discursos
CORSA (Cidadania, Orgulho, Respeito, Solida- e práticas que constituem os sujeitos e nas
riedade e Amor – São Paulo/SP), o GAI (Grupo negociações estabelecidas entre os grupos.
Arco-íris de Cidadania LGBT – Rio de Janeiro/ Além disso, essa ótica de pesquisa ressalta
RJ) e o MGM (Movimento Gay de Minas – Juiz o caráter construído e incompleto, entenden-
De Fora/MG), em que foi possível entrar em do sexualidades e grupos, mediados pelas
contato com os modos de agir, de pensar e de se identidades, como algo em constante pro-
construir como homossexuais. Os grupos gays cesso, sendo, portanto, provisórios, instáveis
tornaram-se locais privilegiados na construção
e interceptados pelas relações de poder. Ao
das “verdades” a respeito do que vem a ser a
pensarmos as dimensões de sociabilidade
homossexualidade e o homossexual, sobretudo
dos sujeitos, a categoria "identidade" ganha
a partir da década de 1990, quando as políticas
ainda mais relevo porque por meio dela é que
de enfrentamento às Infecções Sexualmente
os marcadores das sexualidades seriam de
Transmissíveis3 e Aids (IST/Aids) convocaram
pretenso domínio público e proporcionariam
3 As Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) podem
ser causadas por bactérias, vírus ou outros microrganis- 4 HIV é a sigla, em língua inglesa, do vírus da imunodefi-
mos vivos, sendo transmitidas, sobretudo, por meio do ciência humana. Ele é o causador da aids e seu principal
contato sexual (anal, vaginal e oral) sem o uso de camisi- efeito é sobre o sistema imunológico responsável por de-
nha feminina, masculina ou barreira de látex (um quadra- fender o organismo de doenças. Ser portador do HIV não
do de látex fino posto sobre a área da vagina ou dos anus é o mesmo que estar com a aids. Existem inúmeras pes-
durante a realização do sexo oral) com uma pessoa infec- soas soropositivas que não apresentam os sintomas e/ou
tada. A transmissão também pode ocorrer verticalmente desenvolvem a doença. Contudo, a pessoa portadora do
por meio da mãe à criança durante a gestação, no parto HIV, sem o tratamento médico e carga viral detectável, é
ou no período de amamentação. Ainda que não sendo co- agente transmissora do vírus quando mantém relação se-
mum, as IST podem ser transmitidas por meio do contato xual desprotegida, compartilhando seringas contamina-
das bactérias, vírus ou outros microrganismos vivos da das ou quando a mãe passa à criança durante a gravidez
pessoa contaminada com a mucosa ou pele não íntegra da ou no período de amamentação, quando não são tomadas
pessoa receptora. as medidas preventivas adequadas.

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fenômenos de agrupamento. Hall (2006, p. 87) evidenciar a identidade homossexual. Assim,


nos chama a atenção para o fato de que, em toda buscava atrair sujeitos capazes de atuar sobre a
parte, “estão emergindo identidades culturais realidade, ao assumir responsabilidades públi-
que não são fixas” e, sim, “estão suspensas, cas mediadas por sua identidade homossexual.
em transição, entre diferentes posições”. Essas Trevisan (2000), um dos fundadores do Grupo
identidades não se limitam a retirar “seus re- Somos, descreve que: “estávamos preocupados
cursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradi- em não mais separar as esferas pública e pri-
ções culturais”; acolá disso, elas “são o produto vada, o crescimento da consciência individual
desses complicados cruzamentos e misturas e a transformação social (...) Queríamos ser
culturais que são cada vez mais comuns num plenamente responsáveis por nossa sexuali-
mundo globalizado” (HALL, 2006, p. 88-89) dade, sem ninguém falando em nosso nome”
e que, assim, posicionam os sujeitos, ainda (TREVISAN, 2000, p. 340-341). Esses grupos
que temporariamente, nos jogos políticos da adquiriram legitimidade social para procla-
cultura e, portanto, também das sexualidades. mar as “verdades” sobre esses sujeitos e suas
Desde o século XIX, as sexualidades, de modo homossexualidades, principalmente após o ad-
mais sistematizado, foram o foco de produção vento do HIV/Aids. Diante do duplo desafio de,
discursiva que se organizava em torno das mais ao mesmo tempo, descontruir os parâmetros
diversas formas e instituições que buscavam da homossexualidade advindos do século XIX e
inventar, conhecer e governar os sujeitos, ao construir imagens positivas dessa identidade,
produzi-los discursivamente. Herdeiros dessa os grupos gays, muitas vezes, recorreram à
lógica, desde os fins década de 1970, os grupos História, utilizando-a paradoxalmente tanto
gays, no Brasil, foram ampliando a discussão para proclamar avanços e descontinuidades
dos parâmetros de construção das homosse- quanto para reivindicar direitos a partir da
xualidades, buscando visibilizar novas formas ideia de continuidade e tradição.
de compreender como elas foram sendo consti-
tuídas como posição de sujeito. Exemplo disso
se encontra nos modos eleitos pelo movimento
Histórias, culturas e práticas
para potencializar as suas agendas de direito. Ao analisar a visibilidade homossexual,
Nesse sentido, para que o movimento gay ti- Weeks (1998) argumentou que, embora a ho-
vesse os seus direitos civis reconhecidos pelo mossexualidade, enquanto prática sexual, seja
Estado brasileiro, ele se utilizou, sobretudo, do datada de bem antes, a cristalização do sujeito
expediente da visibilidade. Ao publicizar suas homossexual originou-se no século XIX, parale-
relações conjugais, por exemplo, o movimento la à reformulação da família e, sobretudo, das
gay reivindicou e se apropriou de marcadores formas com que suas práticas sexuais ocorriam.
reconhecidos socialmente como integrantes Segundo o autor, o fato foi impulsionado pela
das relações familiares heterossexuais: afeto, vitória do capitalismo industrial e da urbaniza-
apoio mútuo e proteção. ção. O período foi assinalado pela eliminação de
O enfrentamento ao estereótipo orientou as mulheres do mercado do trabalho e da concep-
táticas do movimento social e ainda direciona ção de uma massa operária sujeita ao sistema
suas atividades, desde sua emergência, em familiar, alicerçada no imperativo do ato sexual
1978, com o Grupo Somos, na cidade de São reprodutivo, algo que vai ao encontro da ética
Paulo. O Grupo se originou muito próximo ao naturalista cristã que debateremos adiante.
parâmetro de militância da esquerda, ou seja, Nessa engenharia, foi preciso a criação de um
focalizou-se em suas experiências (homosse- papel homossexual estigmatizado que teria a
xuais) evidenciando um ethos capaz de sus- função de manter a masculinidade delimitada
tentar o agrupamento social e por meio dele aos padrões, acabando por fornecer um limite

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entre o comportamento permitido e o não per- invenção social, cultural e histórica (FOUCAULT,
mitido. A segregação dos que foram rotulados 1988), o que nos permite pensar que elas po-
como “desviantes” produziu a contenção e os dem ser desconstruídas e reconstruídas, sobre-
limites dos padrões comportamentais cristãos tudo se relacionadas a projetos políticos. Nesse
e burgueses socialmente aceitos. sentido, suas homogeneidades somente exis-
A energia e o impulso por classificar e tem, quando lidamos com a figura idealizada da
constituir um corpo homossexual têm leva- identidade tal como existem os devaneios que
do muitos historiadores/as, sociólogos/as e buscam justificar os preconceitos e violências.
antropólogos/as, a exemplo de John Boswell Com a afirmação, abre-se a discussão: existe
(1998), a afirmarem que o surgimento de dis- ou não uma identidade homossexual? Seria
tintas categorias sexuais, ao longo dos últimos a identidade homossexual um rótulo? Uma
séculos, é consequência de esforços contínuos forma de perpetuar as discriminações? Assim,
de produzir a vigilância e o controle social da recuperar a construção da homossexualidade
população. Existem inúmeros escritos sobre a é voltar para a História para buscar entender
história da homossexualidade (FRY; MAcRAE, como o homossexual se estabeleceu nos limites
1985; ARIÉS, 1987; FLANDRIN, 1988; COSTA, da “homossexualidade”, ou seja, até que ponto
1992), que destacam que a emergência de uma o que está sendo organizado hoje depende
identidade homossexual, no fim do século XIX e desse passado. Recuperar essa história, através
princípios do XX, foi uma prescrição obrigatória da construção de heróis e comemorações, não
feita pelos sexólogos, concebida precisamente seria uma forma de pensar uma identidade
para dividir afetivamente os homens com o homogênea da homossexualidade? Como a
fim de romper seus vínculos emotivos, dire- identidade homossexual se articula na relação
cionando-os ao controle da família burguesa entre um passado que condena e a percepção
cristã. Não obstante, considera-se que é mais do presente como algo que pode ser produtivo?
contundente ver o surgimento da identidade Na busca de reconhecimento público, legi-
homossexual durante esse período como pro- bilidade política, desconstrução e construção
duto da luta contra as normas prevalecentes de suas identidades, o movimento gay se
que, indiscutivelmente, têm efeitos diferentes aproximou da fórmula conhecida e posta em
sobre homens. Os sexólogos não inventaram vigor nos Estados Unidos. O movimento social
o homossexual, mas tentaram traduzir a sua esteve interessado, desde o início, em “provar”
própria linguagem, patologizando, durante a normalidade de suas práticas e a constitui-
décadas, a homossexualidade. ção positiva de suas identidades. Em mais 40
Esse emaranhado discursivo influencia nos anos de atuação, de algum modo, as agendas
modos como foi percebida a homossexualidade de promoção da visibilidade gay, no Brasil,
e produzido o homossexual. O corpo discursivo permitiram diversificar suas apresentações
dos sexólogos, com suas infinitas possibilida- e desestabilizar, em intensidades diferentes,
des e estilos performáticos, conduziu a heteros- quando interseccionadas com outros marcado-
sexualidade ao locus de referencialidade. Como res sociais, os discursos hegemônicos, de quase
ele se constituiu como um corpo que o tornou todo o século XIX e XX, sobre as identidades
discursivamente rígido, qualquer movimento homossexuais. Contudo, convém destacar que
fora de suas expectativas o localiza no marco a assimilação dos estilos de vida gay a uma
da dúvida. Nesse sentido, primeiramente, é cultura mais ampla, em um primeiro momento,
importante pensar nessas necessidades e como ocorreu apenas nos aspectos em que serviram
elas se relacionam com a própria constituição para aproximar a identidade dos marcadores
do homossexual e do heterossexual. A homos- hegemônicos da masculinidade. Nesse aspecto,
sexualidade e a heterossexualidade são uma as táticas adotadas pelo movimento gay pare-

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cem residir em uma aproximação aos valores constatação relevante para entender o trabalho
culturais heterossexuais, ao negar radical- de produção de discursos dos grupos gays. A
mente os estereótipos que foram utilizados história e nossa herança moderna quase sem-
para posicionar a população socialmente, a pre são utilizadas com base no “senso comum”,
exemplo da possessão demoníaca que mais à mostrando uma deficiência de informação e de
frente debateremos. Concomitante a isso, ao falta de conhecimento da construção do objeto
longo de sua trajetória, foram constantes, nas histórico e, como consequência, um entendi-
agendas do movimento, a luta por direitos, por mento confuso da relação entre a realidade e
respeito e o combate à violência e à discrimi- essas construções.
nação5. Dessa forma, a questão “Jesus Cristo Nesse sentido, a recorrência à História é
era gay?” revela a necessidade de construir comumente utilizada pelos grupos gays in-
imagens mais positivas da homossexualidade, vestigados de uma forma contraditória. Por
de eleger e divulgar um panteão de heróis he- um lado, ela é utilizada para mostrar que a
terodesignados enquanto gays e de comemo- homossexualidade não é nova, que já existiu
rações importantes, a exemplo das paradas do em outras épocas e, que, portanto, os sujeitos
orgulho, para compor a noção de comunidade, não são únicos. O que entra em cena é um en-
para construir a identidade homossexual rela- tendimento anacrônico da Antiguidade Clássica
cionada à história. como época ideal em que a “homossexualida-
O título deste artigo foi um dos temas es- de” era comemorada, vivenciada e não discri-
colhidos pelos integrantes do MGM para ser minada. Por outro lado, ela também é usada
discutido em reunião, numa dinâmica em que para dar continuidade à luta, apontando os
cada integrante listava três temas que acha- avanços do grupo, para reforçar as conquistas
va interessantes, apresentava-os aos demais e definir novos desafios, marcando os avan-
participantes que votavam e escolhiam os as- ços como ruptura e como descontinuidades.
suntos para compor o cronograma anual dos Dessa forma, são recuperados momentos da
encontros. Propostas como essa só parecem História em que a homossexualidade era mais
possíveis de serem compreendidas a partir de fortemente discriminada, perseguida, evitada
uma questão muito cara para os grupos gays – o e desmotivada, para ressaltar o que os grupos
debate entre a diversidade erótica que compõe já fizeram no sentido de alterar esse quadro.
essa população e a busca insistente de se cons- Em um ou outro caso, o que vigora é um certo
truir uma identidade homogênea através de desconhecimento a respeito da construção da
atitudes, comportamentos e formas de pensar nossa realidade, sobretudo no que se refere à
que dão sustentação aos grupos de modo a sua relação com a herança moderna de cons-
retirá-los dos marcadores negativos. trução da homossexualidade, tornando o grupo
Para Flandrin (1988, p. 8), “não somos livres muito mais prisioneiro dessa herança do que
para recusar nossa herança: ela está grudada à propriamente seu libertador, visto que a cons-
nossa pele. E quanto mais quisermos ignorá-la, trução da homossexualidade, pelos grupos,
mais seremos seus prisioneiros”. Essa é uma reforça as preocupações e modelos presentes
no século XIX.
5 Em sessão do dia 13 de junho de 2019, o Supremo Tri- Esse é um debate importante de ser anali-
bunal Federal (STF) determinou que a discriminação por
orientação sexual e identidade de gênero passasse a ser sado à luz da perspectiva foucaultiana de His-
considerada um crime. Dez dos onze ministros reconhe- tória. Nos anos 1970, Foucault adotou o termo
ceram a demora inconstitucional do Legislativo em tratar
do tema e, diante da omissão do Congresso Nacional, por “genealogia” buscando reencontrar a desconti-
8 votos a 3, os ministros determinaram que a conduta nuidade e o acontecimento, a singularidade e
passasse a ser punida pela Lei de Racismo (Lei Federal nº.
os acasos, o que serviu para organizar a crítica
7716/89), que prevê crimes de discriminação ou precon-
ceito por “raça, cor, etnia, religião e procedência nacional”. à História contínua e linear. “O emprego dos

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conceitos de descontinuidade, de ruptura, de buscam harmonizar o finito com o infinito ou


limiar, de limite, de série, de transformação, a concretude e o abstrato naquelas situações
coloca, a qualquer análise histórica, não so- em que o espaço-tempo é compreendido como
mente questões de procedimento, mas também a superação da contradição. O tempo das
problemas teóricos” (FOUCAULT, 2005, p. 23). multiplicidades presentes na noção de acon-
Um primeiro problema apontado por Foucault tecimento, pelo contrário, é entendido em sua
é “libertar-se de todo um jogo de noções que singularidade. Como não existem contradições
diversificam, cada um à sua maneira, o tema que forneçam a reconciliação, o que se consti-
da continuidade”, dentre eles, o da tradição tui são as pluralidades, inevitavelmente mais
(FOUCAULT, 2005, p. 23) cuja função é “dar abertas que quaisquer forças dicotômicas.
importância temporal singular a um conjunto O acontecimento, na perspectiva de Foucault
de fenômenos”, permitindo repensar a disper- (2005), não se reduz aos investimentos presen-
são da história reduzindo as diferenças. Assim, tes na lógica ideal-real e/ou universal-particu-
na tentativa de construir uma imagem positiva lar. Ele se beneficia da relatividade e se esquiva
da homossexualidade e de si mesmo que, ao de parâmetros epistemológicos ortodoxos. O
mesmo tempo, será apresentada aos outros e acontecimento não se limita ao fato em que a
ao grupo, há um investimento em recuperar ocorrência seria suscetível de receber trata-
a existência de um passado de glória ou, pelo mentos cartesianos. Nesse sentido, o grupo gay,
menos, em um passado mais tolerante, seja ele através da memória e dos fatos que marcam a
a antiguidade clássica ou mesmo a busca por sua história, acaba investindo na historicização
datas comemorativas e heróis que marcam a do próprio olhar, de uma análise singular a
história da homossexualidade. Um investimen- partir daquilo que não é mais. Da mesma forma
to na tradição e na continuidade. em que proclama uma tradição e um passado
Um segundo eixo de discurso desenvolvido capazes de fornecer uma certa coerência e con-
por Foucault (2005), quando utiliza o termo sistência ao grupo, também comemora o que
história, diz respeito à elaboração de um foi capaz de modificar, as descontinuidades e
“pensamento do acontecimento”, a busca por os rompimentos com um passado que não se
uma história menor construída a partir de quer mais. Uma ou outra forma de trabalhar
inúmeros traços silenciosos e de fragmentos com a história contribui para construir a ho-
de existências, demonstrando que a história mossexualidade e os homossexuais.
não é uma duração, mas uma pluralidade de Segundo Pollak (1992), a identidade, tanto
durações que se entrelaçam umas nas outras. individual quanto coletiva, está intimamente
A defesa da história como acontecimento per- ligada ao sentimento de continuidade e de
mite fazer surgir momentos de ruptura, planos coerência de um grupo ou de um ser humano,
de discursos, falas singulares, estratégias de a acontecimentos, personalidades, tempos e
poder e focos de resistências. O acontecimen- espaços que nem sempre fazem parte do pas-
to apresenta uma deliberada interação com o sado vivenciado pelas pessoas que constituem
espaço-tempo. Essa interação, entretanto, não os grupos. Para o autor, a memória deve ser
se determina por meio da conexão entre o ideal compreendida enquanto fenômeno coletivo e/
e o real. Se o acontecimento não se reduz à sua ou social. Ao sinalizar a importância de lugares
mera execução, ele também não é arquitetado de memória aos quais as lembranças signi-
como um sistema intrinsecamente interligado ficativas estão, em geral, interligadas, Pollak
com o espaço-tempo idealizado ou transcen- (1992) argumenta que a memória socialmente
dental. Por isso, a noção de acontecimento construída foi, desde sempre, um fenômeno
ignora os amplos e universais acontecimentos submetido às flutuações políticas, religiosas,
privilegiados nas metanarrativas, aqueles que econômicas, culturais, sexuais presentes nas

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Memória, experiência, discursos e identidades na constituição dos grupos gays

disputas e interações mediadas pelo jogo de A linguagem e os símbolos perpetuam poder


poder. instituindo verdades, naturalizando determi-
Dessa forma, ao contextualizar a narrativa nadas situações ou questões e repugnando
que gira em torno da pergunta “Jesus seria outras, passando, dessa forma, a produzir
gay?”, o surgimento de grupos de sociabi- sentido e significado social, criando o que é
lidade "homossexual", conforme descreve denominado senso comum. Segundo Moita
MacRae (2005), tornou-se imprescindível Lopes (2002), uma sociedade normalizadora é
para reconhecer os efeitos dessa lógica no que o efeito histórico de uma tecnologia de poder
diz respeito ao sentimento de pertencimen- centrada na vida. Essas normas ou códigos são
to capaz de promover redes de amizade e a aplicados de forma sutil, de modo que tornam
liberdade de perguntar o que seria inquestio- aceitável um poder essencialmente normatiza-
nável, a heterossexualidade de Jesus. Isso nos dor. Ressalta-se que, através da ideologia e da
possibilita pensar como os grupos investem hegemonia, é que se disseminam os discursos
num trabalho motivados pela preocupação que determinam o que é normal/anormal,
de marcar a diferença, a fronteira social, mas certo/errado, saudável/doentio. Observar os
também de modificá-las, num processo de re- jogos de verdades que se instituem nos grupos
interpretar o passado a partir das demandas sociais que ocupam posições estratégicas abre
do presente. a possibilidade de entender a tripla jornada de
Assim sendo, há toda uma preocupação se nomear, de negar o outro e de homogenei-
com a desconstrução dos parâmetros da ho- zar verdades produzidas sobre as fronteiras
mossexualidade surgidos no século XIX, que é das anormalidades. Esse mecanismo de poder
marcado pela preocupação com a classificação instituído em torno das verdades sexuais, que
do que é o “anormal” (FOUCAULT, 2001). Esse se inaugurou no século XIX, foi responsável
domínio da anomalia funcionou a partir de três por incorporar as sexualidades que fugiam do
elementos: “o monstro humano, o indivíduo a formato cristão do casamento monogâmico e
ser corrigido e a criança masturbadora” (FOU- do modelo heterossexual adulto, assim como
CAULT, 2001, p. 69). A sexualidade vai estar as perversões e as novas especificações dos
presente nesse domínio da anomalia, desde o indivíduos (FOUCAULT, 1988). Sendo assim, o
seu início. Primeiro, porque o campo geral da homossexual torna-se uma personagem,
anomalia vai inaugurar a preocupação com a [...] um passado, uma história, uma infância, um
classificação e com o policiamento. E, segundo, caráter, uma forma de vida; também é morfolo-
porque serão identificados e apresentados gia, com uma anatomia indiscreta e, talvez uma
variados casos particulares de anomalia, carac- fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é,
terizados como distúrbios sexuais (FOUCAULT, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela
está presente nele todo: subjacente a todas as
2001). Pensando que a homossexualidade
suas condutas, já que ela é o princípio insidioso
também foi construída nesse contexto, parece e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem
difícil entendê-la sem levar em consideração pudor na sua face e no seu corpo já que é um se-
a constituição desse domínio da anomalia. gredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial,
Durante décadas, as indagações sobre a ho- não tanto como pecado habitual, porém como
mossexualidade foram fortemente ancoradas natureza singular (FOUCAULT, 1988, p. 43).
nas representações de gêneros ou atreladas a Ainda é com essa visão do homossexual
discursos patológicos. De acordo com Foucault como personagem, capaz de ser identificado
(2001), entre os saberes que se destacaram na pela face, pelo corpo, pela memória e pela his-
disputa pela verdade sobre a sexualidade, ainda tória de vida como sendo um segredo que se
que por meios e motivos diferentes, foram: o trai, como algo que é do sujeito sem ter como
médico, o jurídico e o religioso. fugir, que os grupos gays estão trabalhando,

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Marcio Caetano; Anderson Ferrari

entendendo a homossexualidade e produzin- Se, nos anos iniciais da década de 1980, o


do discurso, perpetuando, nesse sentido, o movimento gay se distanciou majoritariamente
século XIX. É esse mecanismo de poder que das agendas de enfrentamento às IST/AIDS,
colocam em vigor quando discutem a homos- na década de 1990, os dados epidemiológi-
sexualidade de determinadas pessoas famosas cos e a articulação entre a reivindicação de
historicamente. direitos civis e o enfrentamento à epidemia
Diversos autores, tais como Góis (2003) e resultaram em uma profícua aliança entre os
MacRae (1990), ressaltam que, atualmente, a programas públicos de HIV/AIDS, as agências
discussão em torno da homossexualidade deve nacionais e internacionais de financiamento
levar em consideração algumas transformações com as organizações homossexuais lideradas
importantes ocorridas nos anos 1980: a aber- pelos homens ou pessoas trans. Essa parceria
tura política que foi capaz de desenvolver um foi crucial para a consolidação masculina na
sentimento de otimismo cultural e social dando condução do movimento social LGBTT e na
origem aos primeiros grupos gays organizados, profissionalização de ativistas que integraram
o advento e o impacto da Aids e a visibilidade as suas reivindicações, reuniões e encontros
de uma “cultura gay”. A combinação dessas as ações de enfrentamentos epidemia de AIDS
mudanças vai formar o quadro atual que serve (CAETANO; RODRIGUES; SILVA, 2019).
para pensar a noção de homossexualidade em Os debates sociais em torno da AIDS, o
diálogo com o trabalho dos grupos gays. fortalecimento das organizações homosse-
Com o advento da doença, grupos que his- xuais por meio das políticas de financiamento
toricamente se sentiam vítimas preferenciais público, a ampliação e a diversificação do in-
de preconceito e discriminação e que já se teresse mercadológico e midiático pelo nicho
organizavam para combatê-la, viram-se diante gay possibilitaram uma complexa massificação
de um reforço através da culpabilidade pela social de apresentações homossexuais e foram
epidemia. A Aids veio arranhar o contexto de fundamentais para deslocar os discursos so-
alegria surgido nas décadas de 1960 e 1970 bre a homossexualidade de seus marcadores
e reforçado nos anos 1980, causando uma estigmatizados. O próprio desmantelamen-
profunda depressão e pessimismo e trazendo to da identidade homossexual para a sigla
uma ideia de “destino manifesto”. Novas re- LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
presentações da homossexualidade tomaram transexuais) será no sentido de minimizar ou
forma, sobretudo aquelas ligadas às imagens apagar os marcadores estigmatizados de seus
da doença e do doente, sendo responsáveis por referenciais.
gerar uma onda de medo, violência e desespe- Diante desse quadro, a luta dos grupos gays
ro. Juntavam-se a isso o despreparo e mesmo o se organizou em torno da busca de informação,
descaso governamental com a epidemia, o que prevenção e combate da epidemia e também da
causou um certo atraso no lançamento de cam- manutenção da afirmação pública da homosse-
panhas educativas e informativas capazes de xualidade, assim como da constituição de uma
frear a expansão. Autores como Altman (1995) identidade homossexual possível, valorizada e
e Góis (2003) argumentam que o aumento do desejável do ponto de vista cultural e político.
número de grupos gays organizados no Brasil e Surgia um novo homossexual: o militante,
o surgimento de novos grupos organizados em aquele que colocava a homossexualidade em
torno da Aids – as ONGs/Aids – se justificam primeiro lugar e que se prevenia. Buscava-se
por esse contexto de “crescimento da epidemia, uma imagem positiva da homossexualidade
falta de ação governamental e expansão de capaz de combater a associação entre essa
discursos preconceituosos pela mídia” (GÓIS, identidade, a doença e a promiscuidade que
2003, p. 28). a Aids foi capaz de realizar, reacendendo ve-

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Memória, experiência, discursos e identidades na constituição dos grupos gays

lhos preconceitos, discursos discriminatórios caminho, surgiram outras propostas, como: a


e excludentes, fronteiras que estavam sendo história da homossexualidade, os grandes gays
derrubadas. da humanidade, São Sebastião- o patrono dos
A doença pôs fim a um momento de espe- gays, os gays e lésbicas mais famosos do Brasil
rança, ao mesmo tempo que impunha novos de hoje, homossexuais negros mais famosos do
desafios, sobretudo aqueles relacionados à Brasil e Mário Gusmão – o maior ator gay negro
prevenção e à assistência dessa população, da Bahia. Essas propostas nos colocam diante
além de combater o medo, a discriminação e o da utilização da história para a construção de
preconceito que a doença foi capaz de reforçar. identidades.
Parte desse trabalho foi conduzido através da
desconstrução dos parâmetros da homosse-
xualidade como doença, assim como a cons-
Cultura, identidade e fé
trução de imagens mais positivas, identidades Problematizar o movimento que os grupos
valorizadas que levassem a maior visibilidade gays fazem de articulação entre história e iden-
e fortalecimento da ideia de grupo. Portanto, é tidade significa pensar como a História foi se
a constituição e o diálogo desses dois momen- tornando, pouco a pouco, a produção de saber
tos que servem para entender o surgimento sobre si mesmo. Dessa forma, é a sociedade que
de propostas como essa em que se discutiu a produz saber sobre si mesmo, o que Foucault
possibilidade de Jesus Cristo ser gay. (1988) e Giddens (1993) classificam como so-
A busca por heróis que valorizem a homos- ciedade de alta reflexividade. Esse movimento
sexualidade passou a organizar esses objetivos. se prolonga fazendo com que os grupos tenham
Nesse sentido, outros temas de reunião seme- a necessidade de também produzir saberes so-
lhantes completam esse quadro de construir bre si, cada um individualmente, o que gera um
referências positivas para os homossexuais e diálogo entre o que há de particular e o que há
também para a sociedade de forma geral. Exem- de coletivo. Pensar que o tema “Jesus Cristo era
plo da afirmativa pode ser dada com a lista dos gay?” foi proposto numa reunião de um grupo
cem gays mais famosos divulgada pelo Grupo gay é pensar o que une, o que há de semelhante
Gay da Bahia (GGB), em 24 de abril de 2000. entre de Jesus Cristo e esses sujeitos presentes
Na ocasião, a imprensa noticiava que o Grupo, e que se sentem homossexuais, fornecendo,
no dia anterior, havia lançado a relação dos portanto, uma identidade e uma ideia de fazer
cem homossexuais mais famosos da História parte de um grupo – o grupo dos homossexuais
do Brasil a fim de comemorar os 500 anos do – o que reforça a identidade como tal.
descobrimento do país. O objetivo da pesquisa, A tática adotada pelos grupos gays de trazer
diziam os jornais, era registrar a presença gay a sexualidade de Jesus Cristo ao centro de seus
na história da sexualidade brasileira e propor a debates identitários pode ser encarada, em um
consolidação dos direitos humanos de minorias primeiro momento, por dois lados. De um lado,
sexuais. As informações sobre políticos, artis- a identidade gay assume o caráter dogmático
tas, intelectuais e heróis nacionais que fizeram e inquestionável da religião. Nessa posição, o
parte da lista foram produzidas a partir das filho de Deus atribui à sexualidade uma força
pesquisas feitas pelo antropólogo Luiz Mott imperativa capaz de torná-la natural, já que a
em instituições de guarda documental. A lista natureza fora criada por seu pai. De outro lado,
trazia figuras importantes na historiografia Jesus Cristo, figura inquestionável, seria huma-
brasileira, como Tiradentes, Zumbi dos Palma- nizado e, nessa posição de aproximação com o
res, Santos Dumont, Dom João VI, Imperatriz segundo nome da Santa Trindade, o movimento
Leopoldina, Mazzaropi, Olavo Bilac, Mario de gay produziria um convite à compaixão, ensi-
Andrade, Gilberto Freyre, entre outros. Nesse namento explícito nas diversas vertentes do

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cristianismo, com os pecadores. Em ambos os Ao analisar a homossexualidade à luz da


lados, o fio condutor seria a natureza. historiografia, torna-se interessante observar
Segundo Marcos Torres (2006), a categoria que os diálogos entre a tradição judaico-cristã
natureza, no interior da moral judaico-cristã, com os discursos biomédicos e jurídicos não
está circunscrita à cosmogonia do mito funda- resultaram em crítica, distanciamento ou rom-
dor. Para o autor, a divindade superior criou o pimento com a ética naturalista. No máximo,
homem e a mulher para que povoassem o pla- foi possível constatar “pequenos ajustes” no
neta Terra. Nos anos iniciais do cristianismo, modo como os homossexuais passaram a ser
essa dimensão foi profundamente enfatizada, tratados. É importante recordar que o pen-
condenando-se, a todo e qualquer modo, as samento naturalista católico se atualizou nas
práticas sexuais orientadas pelo prazer ou últimas décadas em decorrência dos debates
sem a finalidade de procriação, a exemplo da científicos sobre a sexualidade e também gra-
sodomia. Entretanto, foi somente a partir dos ças ao “discurso naturalista que desempenhou
séculos XI e XII que o castigo e a exceção ao historicamente um papel central nas lutas dos
sodomita cresceram e o reconhecimento do homossexuais por reconhecimento na arena
vício e/ou pecado da sodomia assumiram a política” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2007, p.
dimensão de “nefando”. De acordo com o autor, 280-281). Em outras palavras, o movimento
entre os séculos XV ao XIX, os pecados de cunho gay, ao se valer de retóricas naturalistas para
sexual foram nomeados pela Igreja Católica em enfrentar a discriminação, acabou contribuin-
dois grandes eixos: do na revisão do discurso católico sobre sua
ética naturalista. Assim sendo, foi se tornando
[...] os de acordo com a natureza (fornicação,
hegemônico o entendimento de que, “por trás
adultério, incesto, estupro e rapto) e aqueles
contrários à natureza (masturbação, sodomia, da infração à lei natural, pode-se encontrar,
homossexualidade e bestialidade). O segundo ainda que anômala, uma natureza”, surgindo
grupo, aqueles contra a natureza, se tornava “posturas conservadoras e progressistas, per-
mais grave por ferir o critério de procriação, passadas pela temática do naturalismo. Ser
constituindo um abuso mais radical da sexuali- homossexual não é, necessariamente, pecado
dade humana no discurso sedimentado histori- – ainda que a prática homossexual possa ser
camente (TORRES, 2006, p. 149). culpabilizada” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2007,
A ideia de uma determinada ética natural, p. 280-281).
entendida como hegemônica, influenciou tanto Sobre a posição das igrejas cristãs, Luiz Mott,
a teologia católica quanto os protestantes na fundador do Grupo Gay da Bahia, afirmou:
Modernidade. Foi exatamente a ética natural, [...] só posso dizer que as igrejas protestantes
alimentada pela dualidade grega entre o corpo são extremamente homofóbicas em todos os
e a alma, e pelas orientações judaicas acerca da sentidos, especialmente as igrejas neopente-
candura do corpo humano, que possibilitou a costais, como Assembleia de Deus e Universal
do Reino de Deus. As curas e exorcismos de ho-
invenção do sodomita fortemente condenado
mossexuais nos cultos é feito com muita violên-
na História do Cristianismo Ocidental (TOR- cia, muita agressão e muita humilhação. Agora
RES, 2006). A religião de matriz judaico-cristã Jesus, que não jogou pedra na mulher adúltera,
se caracterizou como um dos mais eficientes que garantiu a precedência no Reino dos Céus
meios de normatizar as leis no Ocidente. Seus aos publicanos e meretrizes, que não recusou
discursos, em vários momentos, encontraram- curar o escravo/amante do centurião romano,
que garantiu que “há eunucos/gays que assim
se com os da ciência e do Estado, resultando,
nasceram do seio de sua mãe”, este mesmo Jesus,
desse diálogo, a naturalidade dos governos caso estivesse entre nós, neste terceiro milênio
androcênticos e heteronormativos de suas de seu nascimento, de que lado estaria? Do lado
interpretações bíblicas. de alguns pastores brasileiros, que declararam:

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Memória, experiência, discursos e identidades na constituição dos grupos gays

“Gay é gente pela metade, se é que são gente!”, Igreja Católica, existe uma hegemônica rejeição
ou “homossexualismo é uma aberração, uma à homossexualidade, sem que isso represente
imoralidade comparável à cleptomania!”; que a exclusão do homossexual da congregação. Os
escreveram cartas aos parlamentares para não
aprovarem o projeto de união civil entre homos-
antropólogos identificaram uma certa flexibili-
sexuais? Ou estaria Jesus do lado dos gays, a mi- dade, quando associada aos setores entendidos
noria social mais discriminada do mundo, pois como “progressistas” que defendem o acolhi-
até em casa são vítimas de repressão e violência, mento ao sujeito homossexual que se mantém
e cujo único “pecado” é amar seu semelhante? nos padrões comportamentais do heterosse-
Esquecem-se os donos do poder religioso do xual. Entretanto, se, de um lado, a doutrina da
ensinamento do discípulo que Jesus amava”, ao
afirmar: “Deus é amor e onde há amor, Deus aí
Igreja se apregoa inclusiva ao homossexual,
está!” (MOTT, 2013, s.p.). de outro, ela é enfática na orientação de que
o homossexual deve buscar tratamento com
Quando nos voltamos a refletir sobre a posi- especialistas e vivenciar a abstinência sexual,
ção do ativista e antropólogo Luiz Mott, lembra- quando for impossível uma vida sexual nos
mo-nos das considerações de Jurkewicz (2005) marcos da heterossexualidade. Com as Igrejas
sobre o cristianismo. Ele identifica três distintos Evangélicas brasileiras não existiria uma uni-
posicionamentos frente à homossexualidade. cidade discursiva em relação ao homossexual
No primeiro posicionamento, o total rechaço foi e à homossexualidade. Semelhante a Jurkewicz
encontrado por ele entre as vertentes que com- (2005), Natividade e Oliveira (2007) assina-
preendem a homossexualidade como um com- laram três posturas diferentes. Na primeira,
portamento antinatural e como profundamente os pentecostais interpretam a homossexuali-
pecaminosa porque desobedece à prerrogativa dade como uma possessão demoníaca ou um
determinada pelo divino de procriação por meio problema de cunho espiritual do homossexual
do ato sexual. Contudo, mesmo associando a que facilmente pode ser superado com a pro-
homossexualidade à perversão, o homossexual crastinação e a experiência religiosa. A segunda
é acolhido na Igreja. Aceita-se o homossexual postura, elaborada a partir de uma perspectiva
e repugna-se a homossexualidade. Em outra psicológica, associa a homossexualidade com
vertente, a homossexualidade é aceitável em seu dificuldades no processo de socialização infan-
interior de comunhão, embora o homossexual til e/ou traumas vividos nesse período da vida.
assuma um status inferior na congregação. A O homossexual é encarado como deformado,
postura funciona como uma sugestão de que sendo-lhe proposta sua associação às ações de
ele seja incapaz de se adequar à heterossexuali- conversão à heterossexualidade, a exemplo do
dade ou de realizar abstinência que o direcione Movimento pela Sexualidade Sadia (MOSES);
à relação estável heterossexual. Já a terceira e Ministério Exodus Brasil, Corpo de Psicólogos
última posição considera a homossexualidade e Psiquiatras Cristãos (CPPC), Associação Bra-
e o homossexual tão dignos quanto a heteros- sileira de Apoio aos que Voluntariamente De-
sexualidade e o heterossexual. Nessa vertente, sejam Deixar a Homossexualidade (ABRACEH),
afirma-se que o pecado não está na homosse- entre outros. E, finalmente, a última postura,
xualidade ou na vida homossexual. Ele reside mais recente e fortemente atrelada à tendência
na promiscuidade, fenômeno apontado como liberal, que desloca o foco da orientação para
presente também nas relações afetivo-sexuais o comportamento sexual.
heterossexuais. Sem questionar a validade desses processos,
Natividade e Oliveira (2007) serão outros a utilização da história, feita dessa forma pelos
autores que também irão se debruçar sobre grupos gays, a exemplo do que foi feito pelo
as diferenças existentes entre as religiões de ativista e antropólogo Luiz Mott, está servindo
caráter cristão. Para eles, entre os adeptos da para multiplicar os projetos sobre memórias

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particulares, uma vez que o tema serve para a necessidade dessa dupla legitimação, através
pensar o que faz cada um homossexual, proje- do passado e daquela ligada à preparação para
tando, assim, essas características na história o futuro. Em ambas, é a história que está sen-
de vida dessa personagem. Isso pode ser perce- do utilizada para isso. Dessa forma, os grupos
bido pelo material distribuído pelo responsável gays estão se tornando “lugares de memória”
pelo debate no Grupo MGM e que serviu como (NORA, 1993), local em que permanece a busca
ponto de partida para discussão. por uma consciência comemorativa através da
Como as coisas não são explícitas e não há história. Não é à toa que surgem momentos de
paralelo em torno do Evangelho, a imaginação comemoração como, por exemplo, “Festa de
fica solta. Jesus Cristo poderia ser gay? Protegia aniversário do GGB: 23 anos de luta”. Constrói-
João por ser o mais jovem dos discípulos? (...) se, por esses mecanismos, uma coletividade
Durante o Evangelho repete-se várias vezes a envolvida na sua transformação e renovação.
expressão “o discípulo que Jesus amava” em
Identificando vitórias, os grupos reforçam o seu
vez do nome do discípulo. E o detalhe de João
inclinar sua cabeça sob o peito de Jesus? Seria caráter de preparação para o futuro, demons-
somente João gay e Jesus não? Mas por que o tram estar no caminho “certo”, conduzindo a
protegia de modo especial? Pela sua condição? todos para uma realidade “melhor”.
Seria somente intimidade de amigos heteros?
Os lugares de memória nascem e vivem do sen-
A narrativa produz a ideia de que as di- timento que não há memória espontânea, que
mensões e os encontros da sexualidade com é preciso criar arquivos, que é preciso manter
a experiência religiosa são propriedades que aniversários, organizar celebrações, pronunciar
elogios fúnebres, notariar atas, porque essas
formam a subjetividade humana, direcionando
operações não são naturais. É por isso a defesa
o sujeito a diferentes modos de compreensão pelas minorias, de uma memória refugiada sobre
de sua experiência no/com/sobre o mundo. focos privilegiados e enciumadamente guarda-
Esse movimento é contínuo e constantemente dos nada mais faz do que levar à incandescência
reelaborado por meio das interações no curso a verdade de todos os lugares de memória. Sem
da vivência social, o que possibilita ao sujeito vigilância comemorativa, a história depressa os
varreria (NORA, 1993, p. 13).
inúmeras possibilidades de construção de
si. Tanto as vivências relativas ao campo da Isso faz com que os grupos gays busquem
sexualidade quanto aquelas experimentadas marcos que testemunhem o surgimento de
nas dimensões religiosas munem, em distin- uma outra era, comemorando suas conquistas
tos ciclos da vida, representações culturais e transformando-as em datas comemorativas,
que dimensionam e produzem significados dado o fato de que o que eles defendem está
sobre a vida. A vivência religiosa é, no geral, constantemente ameaçado. A lembrança da
refletida como parte integrante e indissociada ameaça de um período rompido com o advento
dos processos cognitivos de construção de si da Aids faz com que haja constantemente a
e é capaz de orientar as interações com outras ameaça do surgimento de um outro fato. Assim,
dimensões sociais, a exemplo da família e re- a escolha desse tema foi influenciada por um
lacionamentos afetivo-sexuais (NATIVIDADE, outro fato. Meses antes, a imprensa havia divul-
2005; HEILBORN, 1999). gado o resultado de uma pesquisa histórica que
Segundo Nora (1993, p. 12), “com a emer- levantava a homossexualidade presumida de
gência da sociedade no lugar do espaço Nação, Hitler, o que causou grande inconformismo nos
a legitimação pelo passado, portanto pela integrantes dos grupos gays, amedrontados pela
história, cedeu lugar à legitimação pelo futu- consequência dessa declaração, o que poderia
ro; o passado, só seria possível conhecê-lo e gerar a relação entre as atrocidades cometidas
venerá-lo, e a Nação servi-la; o futuro, é preciso na segunda guerra ao fato de Hitler ser homos-
prepará-lo”. Os grupos gays parecem lidar com sexual. Nesse sentido, a fala de um integrante do

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Memória, experiência, discursos e identidades na constituição dos grupos gays

movimento gay é reveladora: “eles nos deram mediante a produção da verdade” (FOUCAULT,
Hitler, mas nós queremos Jesus Cristo”. 1999, p. 28-29).
A busca por uma história que os legitime é A produção de conhecimento, as institui-
um dos mecanismos empregados pelos grupos ções em si, a escolha de símbolos, a definição
gays como mobilização social de uma crítica de marcos comemorativos, as práticas sociais
social. Assim, a construção dessa história es- vão compondo o que seria o patrimônio dos
pecífica está centrada no que Foucault (1999) grupos gays, com o objetivo politicamente claro
classificou como “insurreição dos saberes de oferecer à comunidade um sentimento de
sujeitados”. Esses saberes incluem os saberes pertencimento que vai servir para construir as
“baixos” (dos homossexuais) e os “altos”, eru- identidades homossexuais. Um exemplo disso
ditos, visto que a erudição é que foi capaz de é a transformação das Paradas do Orgulho
recuperar os conteúdos históricos que foram Gay como o grande dia de comemoração da
“mascarados” por sistematizações formais. comunidade homossexual. Nascidas como co-
Portanto, a insurreição serviu para trazer memoração de uma data histórica6 importante
para discussão esses saberes escondidos. para o movimento e comunidade homossexual,
Esse parece ser o sentimento que organizou a as Paradas hoje contam com o apoio do poder
reunião, em que se percebia uma acusação de público7 que entende que se trata de um mo-
que as fontes históricas, a historiografia e os 6 As paradas gays no mundo têm uma história. Há um certo
historiadores buscavam esconder esse aspecto consenso de que esse movimento que hoje leva milhões de
pessoas às ruas nasceu no dia 28 de junho de 1969, após
da vida de Jesus Cristo e que cabia ao grupo uma batida policial no Stonewall Inn, um bar frequenta-
revelar, desmascarar esse saber escondido, do por lésbicas, gays, bissexuais, travestis em Nova York,
nos Estados Unidos. Muito abalados com o falecimento da
adormecido. Ou seja, os grupos vão construin- diva gay Judy Garland, no dia 22 de junho de 1969, e cansa-
do um saber específico, fortalecido e que ganha dos das práticas de agressões, preconceitos, humilhações
e perseguições, um grupo resolveu enfrentar os policiais,
legitimidade através do inconsciente coletivo, resultando numa batalha campal que se estendeu por dias
de que são vítimas e que são constantemente seguidos. Ao final, resolveram ir caminhando até a prefei-
perseguidos, possibilitando, assim, pensar que tura da cidade com uma pauta de reivindicações.
7 No início dos anos 1980, existiam aproximadamente 20
talvez Jesus Cristo fosse mesmo homossexual grupos homossexuais no Brasil que eram financiados por
e que isso teria sido escondido. meio da doação de seus quadros (TREVISAN, 2000). Com
a eclosão da epidemia de Aids, que afetou com mais in-
É a produção de um “saber histórico” das cidência e, primeiramente, os homossexuais masculinos,
lutas como discurso de verdade que serve à muitas organizações passaram a atuar em projetos de
combate à Aids utilizando, como principal mote de atua-
luta política desses grupos. Nesse sentido, os ção, a “educação entre pares” e a elevação da autoestima
grupos estão revelando as múltiplas relações (PAIVA, 1991). As organizações acreditavam que um su-
de poder que caracterizam nossa sociedade, jeito com autoestima elevada não se sujeitaria à prática
sexual sem nenhum método de barreira, a exemplo da
que caracterizam e constituem todo corpo camisinha, considerando que a integridade de sua saúde
social. Assim, os grupos não seriam capazes poderia ser afetada com o contágio ao HIV. Foi com esse
argumento que o movimento gay garantiu, inicialmente, o
de existir, de se estabelecer e de funcionar sem financiamento dos programas públicos e agências de co-
a produção de um discurso de verdade. Como laboração de enfrentamento às IST/Aids para as Paradas
do Orgulho. No Brasil, o primeiro ato, semelhante às Pa-
não há exercício de poder sem discursos de radas, ocorreu em 1995, no Rio de Janeiro, no final da 17ª
verdade (FOUCAULT, 1999), reivindicar Jesus Conferência da, então, Associação Internacional de Lés-
Cristo para a galeria de personagens históricos bicas e Gays (ILGA), que terminou com uma marcha em
Copacabana, RJ. No ano seguinte, aconteceu uma manifes-
já consagrados como homossexuais deve ser tação em São Paulo, que reuniu cerca de 500 pessoas. E só
entendido, nessa organização e funcionamento em 1997 foi realizada a primeira Parada do Orgulho Gay,
Lésbica e Travesti – GLT (assim era a sigla), na Avenida
de mecanismos de poder que definem as lutas, Paulista, com apoio de recursos públicos. No governo do
como forma de luta, como reivindicação de Presidente Lula, foram acrescidos aos recursos das po-
líticas de ITS/ Aids, o financiamento das políticas cultu-
poder. “Somos submetidos pelo poder à produ- rais dos governos federais, estaduais e municipais. Com
ção da verdade e só podemos exercer o poder a explosão da Parada do Orgulho LGBTT de São Paulo, o

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mento importante para o fortalecimento da necessidades apresentadas pelo movimento


identidade homossexual, da valorização da gay. A visão religiosa que orientou as afirma-
autoestima, o que vai ocasionar em práticas ções sobre a homossexualidade irá entendê-la
sociais preventivas, resultando numa ação de como algo externo e que subjuga o corpo físico,
prevenção e combate à Aids. As autoridades emocional e espiritual do homossexual. Nesse
públicas gostam de enquadrar as comemora- sentido, a homossexualidade e o homossexual
ções que também servem para enquadrar seu são corpus distintos que devem ser entendidos
público (LAVILLE, 2005). como entes que solicitam tratamentos e abor-
Essas comemorações servem para cultivar dagens distintas da fé cristã.
a memória, criando um sentimento de perten- Nessa lógica, se existe uma força externa
cimento, fortalecendo o grupo. Comemorar é indiciada e responsabilizada como sendo a cau-
produzir discurso, encenar o passado em ges- sadora do “pecado” ou “desvio heterossexual”,
tos, mas no presente, e preparar o futuro, forne- também coexistem discursos que igualmente
cendo uma ideia de coletividade. Portanto, um convocam a responsabilidade do homossexual
passado, um presente e um futuro que se unem por consentir experiências impostas pela tenta-
na comemoração (LAVILLE, 2005). Isso nos re- ção da carne. Se, ao longo da tradição católica,
mete à importância das narrativas para a cons- os argumentos predominantes se alocam em
trução do conhecimento produzido. Como os afirmar que o homossexual se distanciou da na-
membros dos grupos não são historiadores, as tureza, na perspectiva evangélica, de um modo
narrativas se tornam história, mesmo porque o geral, é preponderante a presença da ideia de
entendimento de história é aquela narrada. Nós possessão, eximindo o homossexual de sua res-
vivemos numa sociedade em que todos são cha- ponsabilidade sobre a homossexualidade. Com
mados a produzir narrativas sobre si mesmos, isso, não se trata de desconsiderar as retóricas
a recuperar e narrar suas histórias de vida. A que balizam a leitura antinatural da homosse-
dinâmica das reuniões segue essa lógica de au- xualidade, elas confirmam uma profunda dedi-
torreflexão e de confissão construída através da cação às regras heteronormativas. A pergunta
transformação das memórias em narrativas. O “Jesus Cristo era gay?” sugere expressar uma
entendimento de história compartilhado é este tensão entre os discursos religiosos e a neces-
que a define como uma narrativa que remete sidade de determinada ética que, balizada na
ao passado. Assim, o lugar dos historiadores inquestionável natureza, buscaria, no filho de
está sendo invadido. Deus, a afirmação da identidade homossexual.

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