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A religião sempre teve um papel fundamental para o homem. De acordo com o sociólogo Bryan Wilson,
“o sentimento religioso, e certamente da forma encontrada entre pessoas relativamente simples, parece
ter origem numa grande variedade de emoções fundamentais que são experimentadas quando o
homem confronta a incerteza, o desconhecido, ou o desafortunado. Os sentimentos que esses
fenômenos engendram estimulam estados de respeito, medo, reverência, e o desejo de aplacar forças
supostamente poderosas.”1
Assim, é comum líderes religiosos despertarem sentimentos ambíguos como temor e reverência, que
acabam influenciando o destino das pessoas e da humanidade.
Muitas religiões surgiram e caíram no esquecimento após o falecimento de seu líder e somente
algumas poucas conseguiram manter vivo seus ensinos mesmo tendo se passado vários séculos.
A imagem da maioria desses líderes, normalmente construída por seus discípulos, é cercada de
subjetividade já que a falta de documentos históricos torna muito difícil desvendar a figura religiosa,
causando assim, muitas controvérsias.
Mas, no caso do Budismo de Nitiren, surgido há 750 anos, existem registros que possibilitam conhecer
de maneira clara o homem que difundiu uma nova e ampla visão do ser humano em relação à vida.
Por sua postura contestadora, Nitiren Daishonin é, muitas vezes, retratado como um reacionário e
nacionalista. Ele é ainda descrito como um “profeta budista militante que contribuiu significativamente
para a adaptação do budismo à mentalidade japonesa e que continua sendo uma das mais
controversas e influentes figuras da história do budismo no Japão.”2
Porém, as inúmeras cartas e teses deixadas por ele, escritas de próprio punho, revelam uma
personalidade pacífica, tolerante e extremamente humana.
Daishonin promovia debates e diálogos, sempre fundamentando seus argumentos. Apesar de sofrer
inúmeras perseguições no decorrer de sua vida, jamais recorreu à violência, vencendo seus
adversários com a força de suas palavras. Ele também conquistou discípulos de todas as classes
sociais que o ajudaram nos momentos mais críticos.
Sua intenção não era fundar uma nova religião nem ser alguém especial. Ele almejava tornar-se o
homem mais sábio do Japão para ajudar o povo a superar seus infortúnios e demonstrar com a sua
vida que não há diferença entre um buda e um mortal comum.
Além disso, ao comprovar a veracidade de seu ensino em vida, Daishonin foi vitorioso como homem e
como Buda, deixando um legado espiritual que sobrevive até os dias atuais.
O cenário mundial
No século XII o Japão passou por grandes mudanças político-sociais. O clã Minamoto vencera os Taira
na batalha de Dannoura, em 1185, e Minamoto Yoritomo (1147–1199) tornara-se o líder da nação.
Yoritomo foi sucedido por seu filho, Yoriie, que foi deposto por seu avô materno, o regente Hojo
Tokimasa (1138–1215), que efetivamente governava a nação. Yoriie chegou a ser reempossado por
seu irmão, Sanetomo, mas foi assassinado em 1219, pondo fim à linhagem dos descendentes diretos
de Yoritomo.
A partir de então, a posição de xogum foi ocupada por um infante escolhido inicialmente entre os da
família Fujiwara, e posteriormente da família imperial, tendo como regentes membros da família Hojo.
A supremacia dos Hojo não era livre de disputas e, em 1221, o imperador aposentado Gotoba reuniu
um exército e, com o apoio de mosteiros das províncias, tentou restaurar o domínio da casa imperial.
Mas o bakufu3 sufocou o levante e o imperador, o imperador aposentado e vários membros da família
imperial foram exilados a ilhas remotas.
O clero também envolvia-se nesses conflitos, pois tinha muitos membros da nobreza e era dona de
consideráveis terras. Para proteger seus interesses, formaram exércitos de monges-guerreiros que não
tinham escrúpulos em marchar contra a capital nem de lutar contra soldados leigos ou monges de
outras casas.
Entretanto, com o tempo, as gerações mais novas de guerreiros começaram a desenvolver o gosto pelo
luxo o que levou ao aumento do consumismo, tornando a precária economia agrária do Japão incapaz
de suprir a demanda.
Além disso, um grande terremoto destruiu a região de Kamakura em 1257, sendo seguido, dois anos
depois, pela peste e fome em todo o país.
Com tantos mortos, houve escassez de homens para cultivar a terra e realizar outros trabalhos;
criminosos foram libertados, e até assassinos foram anistiados para suprir a mão-de-obra. Quioto
parecia à beira da anarquia.
Templos e mosteiros de todo o país foram convocados para realizarem maratonas de orações a fim de
implorar pela volta do favor dos céus. Mas essas instituições também contribuíam para os problemas
do bakufu. Os mosteiros, grandes latifundiários, brigavam freqüentemente entre si, com a nobreza e até
com a corte imperial por direitos territoriais, privilégios e pagamentos por serviços religiosos prestados.
A inquietação dos monges era apenas um dos sintomas das grandes mudanças que estavam
ocorrendo na vida religiosa do Japão. Anos de guerras entre clãs tinham provocado uma fome de
esperança e consolo entre gente comum. Porém, o clero corrupto e arrogante estava mais interessado
em enriquecer seus próprios templos e defender seus interesses na corte do que em oferecer consolo
às pessoas.
Nitiren Daishonin (1222–1282) nasceu na época em que o poder político no Japão havia mudado da
corte imperial em Quioto para a classe dos samurais que estabeleceram um governo militar, ou
xogunato, em Kamakura, na costa do Pacífico, há muitas milhas de Quioto.
O mundo religioso do Japão havia se corrompido e as seitas budistas Tendai e Shingon haviam se
tornado completamente aristocráticas e, como resultado, perderam sua capacidade de conduzir as
pessoas. Um movimento oposto ao das seitas estabelecidas em busca de uma religião significativa
começou a crescer entre o povo.
Por sua vez, desde a infância, Nitiren Daishonin devotou-se aos estudos. Ele parecia mesmo ter se
aprofundado na crença popular do Buda Amida, que acreditava oferecer a salvação àqueles que
invocassem seu nome. Daishonin começou a duvidar da eficácia do budismo que todo o Japão seguia.
Afirmava-se que o budismo traria proteção e paz à nação, no entanto, o Japão, ostensivamente uma
Eram tantas as dúvidas de Daishonin sobre o assunto que decidiu deixar o lar para estudar e resolver
as questões básicas sobre o budismo. Após obter permissão de seus pais, ele viajou para o norte até
chegar ao templo Seityoji. Em 12 de maio de 1233, tornou-se discípulo de um sacerdote chamado
Dozembo, da seita Tendai.
Apesar de discutir suas dúvidas com Dozembo e outros sacerdotes e de ler todas as obras disponíveis
nesse templo remoto, ele estava insatisfeito. A biblioteca do templo era incompleta, e os sacerdotes
careciam do treinamento rigoroso necessário para ajudar Daishonin a tirar suas dúvidas.
Aos dezessete anos, ele estabeleceu um plano a seguir em sua busca pela verdade: primeiro não iria
alimentar preconceitos em relação a nenhuma das seitas; aceitaria todos os textos e idéias que
lançassem luz sobre os ensinos do Buda, que concordassem com a lógica e que fossem suscetíveis à
prova real. Ele não contaria com eruditos ou líderes mas confiaria nos sutras.
Dedicou-se então a estudar todos os textos disponíveis sobre o assunto. Ele se aprofundou nas
doutrinas das dez principais seitas budistas determinado a compreender sua essência. Empenhou-se
em descobrir se os ensinos de várias seitas concordavam com o verdadeiro significado do budismo e
se todos os sutras expunham esse significado.
Só mais tarde é que Daishonin obteve permissão de seu mestre Dozembo para partir e estudar em
outros lugares. Sua primeira estada foi em Kamakura, a capital do xogunato. Ele estudou ali durante
quatro anos. Concluído esse período, retornou a Seityoji. Com o desejo de aprofundar ainda mais seu
conhecimento, viajou para o templo Enryakuji, localizado no Monte Hiei e considerado o centro de
erudição budista do Japão.
Durante os doze anos que passou no Monte Hiei, Nitiren estudou todos os sutras e doutrinas da época,
submeteu-se a um rigoroso programa de meditação e, como resultado, passou por uma profunda
mudança interior e atingiu a iluminação. Ele estava convicto de que o Sutra de Lótus e mais
especificamente a recitação do Nam-myoho-rengue-kyo, era o âmago dos ensinos do Buda Sakyamuni.
Também acreditava que a própria recitação do Nam-myoho-rengue-kyo representava o desejo de
Sakyamuni.
Em 28 de abril de 1253, Daishonin retornou ao templo Seityoji e reuniu seu mestre Dozembo, todos os
demais sacerdotes e seguidores leigos e anunciou a eles a conclusão de seus estudos e experiências
religiosas. Na presença de todos refutou cada uma das seitas e recitando o Nam-myoho-rengue-kyo
três vezes estabeleceu o seu budismo. O mundo naqueles dias já se encontrava na última era dos
ensinos de Sakyamuni. Essa era, chamada de Últimos Dias da Lei (Mappo), caracterizava-se pela
degeneração e perda da fé. Nitiren Daishonin veio ao mundo para revelar o Sutra de Lótus, ou o
Percebendo que o tempo para a propagação havia amadurecido, Daishonin começou a promover
reuniões em sua humilde morada. Ao mesmo tempo que pregava o Sutra de Lótus como o principal
ensino budista, refutava cada uma das seitas predominantes.
Na época, o xogunato de Kamakura oferecia total proteção aos sacerdotes das seitas Jodo (Terra Pura)
e Zen, que em troca apoiavam as autoridades no poder.
Não demorou muito para que ele fosse submetido a uma rajada de perseguições.
A coragem, a audácia e a persistência de Daishonin despertava cada vez mais a curiosidade das
pessoas. “Quem será esse homem que tem a ousadia de enfrentar e refutar líderes religiosos e
políticos?”, esse deve ter sido o pensamento de muitos em relação a Daishonin. Levando-se em conta
que essas pessoas viviam no Japão feudal do século XIII, na Idade Média, uma era turbulenta e
obscura em que “a espada era lei”, essa admiração era mais do que justificada.
Durante os três anos seguintes de sua campanha de propagação, mais e mais pessoas procuravam
Daishonin para aprender seus ensinamentos.
No início de 1256, o Japão sofreu uma série de desastres naturais. Em agosto desse ano, fortes chuvas
provocaram deslizamentos de terra, deixando inúmeros mortos e destruindo vastas áreas de
plantações. Em 1257, houve um grande incêndio no prédio do Conselho de Estado em Quioto. Em
seguida, um violento terremoto devastou a capital e para completar houve um outro grande incêndio,
dessa vez no Palácio Gojo, também localizado em Quioto. Dois eclipses lunares ocorreram quase que
seguidamente (um em abril e o outro em maio do mesmo ano). Em junho e julho Kamakura e Quioto
foram severamente castigadas por inundações e terremotos. Secas ocorreram e então mais terremotos,
sendo que um deles foi tão intenso que, de acordo com documentos, montanhas ruíram e templos,
Vendo essas cenas de extremo sofrimento e ouvindo os gritos das pessoas em busca de auxílio,
Daishonin não podia permanecer impassível. Sabia que a razão de tudo era a crença cega das pessoas
em ensinos errôneos que prometiam salvação e felicidade após a morte e que se aliavam àqueles no
poder em troca de proteção. Ele desejava ardentemente despertar o povo para o ensino revitalizador do
Sutra de Lótus. Estava ciente de que para convencer as pessoas teria de buscar provas lógicas nos
textos canônicos do budismo. Assim, viajou para o templo Jissoji, na Província de Suruga (atual
Shizuoka) e por dois anos estudou todos os sutras e outras obras ali disponíveis.
A “Tese sobre o estabelecimento do ensino correto para a paz da nação” foi o fruto desses esforços.
Trata-se de uma advertência enviada em 16 de julho de 1260 ao regente aposentado Hojo Tokiyori, a
pessoa mais influente na época. Porém, essa advertência foi ignorada e, quarenta dias depois de ter
divulgado a tese, seguidores da Terra Pura atacaram a cabana de Daishonin e a incendiaram.
Daishonin escapou por pouco dessa investida.
A exposição dessa tese foi como se Daishonin tivesse mexido em um vespeiro. A fúria de líderes
políticos e religiosos havia sido despertada e o que se seguiu foram inúmeras perseguições e
banimentos.
Em meio a essas dificuldades, Daishonin continuou a propagar seus ensinos chegando a converter
vários sacerdotes da seita Terra Pura por meio de debates. Mesmo nos locais de exílio, passando por
extremas privações, nunca se esqueceu de seus discípulos. As muitas cartas de agradecimento, de
encorajamento e de resposta às questões de seus seguidores foram escritas nessas circunstâncias
adversas. Essas cartas juntamente com as teses compõem o chamado Gosho (escritos honoráveis).
Nelas estão registrados seus ensinamentos e constituem ainda hoje importantes documentos históricos
que revelam as condições culturais e sociais da época. Essas cartas oferecem também ricos dados
geográficos do Japão, pois Daishonin conhecia a “nação-ilha”, como costumava referir-se ao país, de
ponta a ponta. A concepção do mundo e do Universo apresentada em muitas de suas cartas também é
admirável, uma visão que estava muito além de sua época.
Com o passar dos anos, mais e mais seguidores visitaram a pequena morada no Monte Minobu em sua
busca pela verdade religiosa. Quando Nitiren Daishonin completou sessenta anos, um novo e belo
templo foi erigido na montanha.
A saúde de Daishonin começou a debilitar e ele decidiu visitar a localidade de sua juventude. Em
setembro de 1282, ele montou no cavalo, que lhe fora presenteado pelos discípulos, e partiu para
Província de Awa (atual Tiba).
Porém, Daishonin não chega à Awa. Pára na Província de Musashi (que hoje faz parte da Prefeitura
Urbana de Tóquio) por estar fraco demais para continuar. Levado para a residência da família
Munenaka permanece em repouso por algumas semanas. Sentindo que a morte estava próxima,
Decorridos 750 anos desde o seu estabelecimento, o Budismo de Nitiren Daishonin mantém-se como
uma religião viva. Hoje, em 185 países e territórios o Nam-myoho-rengue-kyo é recitado e a filosofia
humanística do budismo é propagada. Essa ampla aceitação se deveu à universalidade dos ensinos,
escritos de próprio punho pelo seu fundador que também legou para a humanidade o Dai-Gohonzon, o
objeto de devoção inscrito em 12 de outubro de 1279.
Em um de seus escritos, Daishonin expressa seu mais profundo e sincero desejo: “Tempo virá em que
todas as pessoas entrarão no caminho do estado de Buda e a Lei Mística sozinha florescerá por toda a
Terra. Então, quando todas as pessoas estiverem recitando simultaneamente o
Nam-myoho-rengue-kyo, o vento não vergará a ramagem ou os galhos nem cairá torrencialmente a
chuva para cavar a terra. O mundo tornar-se-á calmo e sereno como foi na era de Fu Hsi e Shen Nung
na antiga China. Não somente as pessoas serão libertadas do infortúnio e desastres por toda a vida,
como também aprenderão a arte de viver longa e plenamente. Observe o tempo em que a eternidade
da Lei e do homem será provada. Não pode haver a mínima dúvida a respeito da solene promessa no
sutra para uma vida pacífica neste mundo.”5
Em um outro escrito ele diz: “Agora, no começo de Mappo, Nitiren abre as cortinas para a propagação
mundial dos cinco caracteres do Myoho-rengue-kyo.”6
Esta presente era em que a humanidade vive não difere muito dos tempos de Nitiren Daishonin.
Guerras, fome, violência, corrupção e muitos outros males são realidades para muitos povos.
Conforme o próprio Daishonin declarou, ele abriu as cortinas para a propagação mundial do
Nam-myoho-rengue-kyo. Quanto à continuidade dessa tarefa, esta cabe a todos aqueles que
abraçaram seu ensino, pois hoje, mais do que nunca a propagação de uma filosofia fundamentada no
ser humano, que resgate o respeito à vida, faz-se necessária.
Fonte:
TERCEIRA CIVILIZAÇÃO, EDIÇÃO Nº 416, PÁG. 3, ABRIL DE 2003.
Notas: 1. Valores Humanos num Mundo em Mutação, Daisaku Ikeda e Bryan Wilson. Editora Record, pág. 16. 2.
The New Encyclopædia Britannica, 1995, vol. 8, pág. 680. 3. Governo militar. 4. Para calcular a idade de uma
pessoa, os japoneses consideram que, ao nascer, o indivíduo já tem um ano, e acrescenta-se mais um ano a
cada passagem de Ano-Novo. 5. “A Prática dos Ensinos do Buda”, As Escrituras de Nitiren Daishonin, vol. 1,
págs. 117–118. 6. “Comportamento do Buda”, As Escrituras de Nitiren Daishonin, vol. 1, pág. 156. Fontes de
consulta: • Buddhism: The Living Philosophy (Budismo: a filosofia viva), Daisaku Ikeda. Tóquio, The East
Publications, Inc., 1974, págs. 59–87. • Conquistas Mongólicas 1200–1300, série História em Revista. Time-Life
Livros e Abril Livros, págs. 35–58.