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Em Acenos e afagos, seu novo romance, que acaba de ser lançado

pela editora Record, o escritor gaúcho João Gilberto Noll narra sem
pudores a história de um homem que abandona uma vida monótona
e parte em busca de sua verdadeira identidade – e no processo, se
desembaraça aos poucos de suas características masculinas para
se tornar, emocional e psicologicamente, uma mulher. Escrito em
um único parágrafo e pródigo em cenas fortes, trata-se de uma
espécie de “epopéia libidinal”, na qual o protagonista mergulha
movido por um desejo sexual neurótico, sem saber ao certo qual
será o seu destino. Sem se ater aos limites do realismo, o romance
flerta com o fantástico, mas sem perder em momento algum o
rigoroso controle da escrita que caracteriza toda a obra de
Noll. Acenos e afagos é talvez o livro mais radical de um escritor
que desde a sua estréia, em 1981, com A fúria do corpo, vem
estabelecendo uma relação quase carnal com a literatura.

G1: O personagem-narrador de Acenos e afagos define a


própria existência como uma epopéia libidinal. É a libido que
move a sua escrita? E como mudou essa relação entre libido e
literatura, de A fúria do corpo até seu novo romance?
JOÃO GILBERTO NOLL: A diferença é que na Fúria existe uma
sexualidade triunfalista, aquela que resulta numa elevação a partir
da abjeção libidinal; já no Acenos, não. O que seria a gradativa
troca de gênero sexual? Me parece ser uma imolação: renunciar à
casca do homem para ingressar dolorosamente no padrão feminino,
para reter seu homem. Os personagens despencam passo a passo
para uma espécie de imolação. Só o protagonista tem a experiência
do amor total, do amor eterno, como dizia Nelson Rodrigues. É um
amor que dura a vida toda, da infância à sepultura. A fúria também
expõe um caso assim, de uma relação radical, com diversas
crispações no meio do caminho. Acenos lembra às vezes A
fúria, porque ambos colocam em jogo isso que chamei de epopéia
libidinal. São seres que só se justificam no mundo com a entrega
incondicional ao gozo. Só que na Fúria há anjos decaídos pelas
ruas de Copacabana. Reviram as latas de lixo tentando encontrar o
que comer. E ao mesmo tempo são reis. Descendem de uma
dinastia da classe média – repito, decaída. E agora estão ali, ainda
loucos de tesão, desta vez numa troca homoerótica. Durante a
revisão do texto, comprovei definitivamente que eu trato desde o
início com o mesmo personagem, mesmo que não haja, de um livro
para outro, uma continuidade explícita. O contextos dramáticos
podem se diferenciar, mas o homem está ali, sem nome, e ele
habita em mim.

G1: Como o personagem Orlando, de Virginia Woolf, o


protagonista vai aos poucos descaracterizando seu sexo, à
medida que assume sua paixão por um amigo. Isso sugere uma
busca pela superação dos papéis sexuais convencionais, ou ao
menos uma dissociação entre o gênero e a sexualidade. É isso
mesmo?
NOLL: É difícil eu observar os meus livros com essa clave tão
intelectiva. É o seguinte: eu sinto meus personagens como seres
projetados do inconsciente para a tela. Como os pintores
expressionistas, que costumavam projetar a tinta na tela, não
preocupados de antemão com as significações daquilo. Se eu tiver
alguma coisa a oferecer ao leitor, isso vem do fato de que eles – e
eu - trabalhamos numa construção às cegas, sem partir de temas
abstratos, como o plano social ou político. Houve um tempo em que
se acreditava que a literatura fosse um referendo a credos políticos,
ideológicos, e tal. Essas coisas abstratas não me ajudam a
escrever. No meu caso, o que ajuda à escrita, é uma sintonia
visceral com o motor do inconsciente. E, para me arregimentar com
saúde para essa viagem nada programada, eu começo o
trabalho me jorrando através das palavras. Nesse início, aliás, as
frases servem apenas para deixar o inconsciente passar, e esse
processo me dá o tom, até então imprevisível. Depois do fim da
narrativa, eu volto ao começo para refazê-la, já que aquilo ali era só
um aquecimento, um tatear no escuro, um exercício para que eu
pudesse encontrar a ficção. Acho que jamais escreverei um livro
baseado em fatos históricos, sociais ou econômicos. Me identifico
plenamente com aqueles versos de Drummond, “Mundo, mundo,
vasto mundo/ mais vasto é o meu coração”. Eu quero a
subjetivação sofrida. Escrevo compulsivamente sobre as torturas da
alma que não exibimos no meio social.

G1: Seus personagens são amorais, mas a tensão entre a


moral e a culpa é um elemento constante na sua ficção… A
insubmissão não é uma forma de permanecer preso à
convenção?
NOLL: De novo eu diria que não há nenhuma ideologia na escrita
de minha literatura. Tenho a impressão de ser um dos escritores
brasileiros da minha geração mais estudados em mestrados e
doutorados. Conheci alguns estudos extraordinários. Amo que tais
acadêmicos iluminem meus olhos diante do meu próprio
trabalho.Quando escrevo, pareço um jazzista improvisando,
entende? Por isso e por outras coisas, não consigo
me ater a questões transgressivas ou amorais. Agora, realmente,
dizer que não tenho o histórico dos meus personagens seria uma
bobagem, embora eu não escreva exatamente autobiografias. As
significações, para mim, são a posteriori.

G1: Seus personagens são transgressores, desajustados,


errantes. Mas transgredir parece cada vez mais difícil num
mundo em que a própria rebeldia é rapidamente enquadrada
pelo mercado. Como você lida com isso? Em que medida ainda
é possível transgredir, na vida e a literatura?
NOLL: Eu não consigo vestir terno e partir para uma reunião com
executivos. Por quê? Simplesmente porque eu não fui criado para
isso. Fui criado para ser cantor lírico. Eu não uso terno não
para recusar o mundo dos almofadinhas, não uso porque a minha
história é outra. Eu cantava Ave Maria de Schubert em casamentos,
festas do colégio e até num enterro. Desde a mais tenra idade eu já
queria ser artista. Fazer cinema, ser ator, cantor… Desconfio de que
houvesse aí a máquina materna em ação. Aliás, viva a mãe, pois
adoro a face literária em que vivi e vivo.O meu perfil é associado às
atmosferas de minhas ficções, desde a infância até aqui. Eu sempre
quis retratar o detalhe esquivo. Sem ser com isso um
escritor intimista. Intimismo para mim é nome feio. É coisa
psicologista, de apreensão de estados de alma de quem não tem
mais no quê pensar. Eu sempre corri atrás de uma literatura
metafísica. Escrevo muitas vezes ao som de Bach. Talvez porque
na infância eu tenha sido um coroinha católico. Depois que fiquei
ateu, quis migrar então para as coisas metafísicas: morte, vida, a
solidão planetária etc. E nós vivemos numa cultura com baixa
capacidade para a abstração. Mas é claro que a
experiência empírica dá muito conteúdo aos meus livros. O
inconsciente não é oco.

G1: Com que escritores do passado e do presente você


dialoga?
NOLL: Eu devo muito desses esboços de empirismo à minha leitura
dos escritores americanos. Também já amei muito Clarice Lispector,
e na minha formação a cultura francesa era uma cidadã
inconfundível. E trago comigo um gosto muitíssimo especial pela
poesia. Daí inclusive nasce uma escrita de prosa em sintonia com o
plano poético e/ou musical, com sintaxes voluptuosas e enormes,
pela necessidade de dizer tudo ao mesmo tempo. Não vivemos hoje
a supremacia do emergencial? O estilo em mim é qualquer coisa de
somatização. As aberrações querem contribuir também para um
resultado estético. A materialidade das palavras, o som, pode valer
tanto ou mais do que o enredo. Sendo assim, posso enumerar os
poetas T.S. Eliot, Camões, Fernando Pessoa, Drummond, mas
também Clarice, Henry Miller, Doris Lessing, Camus, por aí…

G1: Outra tensão presente na sua literatura é aquela entre o


consciente, as decisões racionais dos personagens, e o
inconsciente, os impulsos instintivos e primitivos que movem
muitas vezes o seu comportamento. Você sofreu influência de
Freud e da psicanálise?
NOLL: Muita. Até porque, em algumas ocasiões, eu me submeti ao
processo psicanalítico. Daí se explica que eu ame tanto as coisas
submersas no inconsciente. Acho que elas são uma matéria nobre
para a literatura. O Graciliano Ramos de “Angústia” evidencia muito
o que quero dizer. Li não sei onde que ele se envergonhava dessa
obra. Desdenhava coisas assim, quase sem controle. Pelo menos
diante dos cânones do Partidão, ele ensaiou um mea-culpa.

G1: Nos anos 60 e 70, o escritor e o intelectual pareciam ter um


poder de intervenção e reverberação na sociedade maior que
hoje. A literatura corre o risco de virar uma espécie de lazer
sofisticado de um pequeno grupo?
NOLL: Olha, não é o que eu sinto. Considero a banda dos que vêm
chegando quase um renascimento da literatura brasileira, tem para
todos os gostos: naturalistas, prosadores de fundo poético,
policiais… Eu tenho tido muitos contatos com leitores, quando
costumo ler trechos de livros meus. Gente entusiasmada por estar
em contato com escritores vivos. Leio para auditórios repletos.
Quando cheguei, em 1980, com meu primeiro livro, pouca gente
surgia. Hoje eu convivo com os novos, e decididamente não parece
que eu seja um escritor velho e nem eles, novatos.

G1: Você acha que os editores brasileiros estão mais


profissionais, maduros e competentes, desde que você
começou sua carreira?
NOLL: Aqui e ali melhoraram. Algumas editoras distribuem com
mais força. Mas, sinceramente, ainda é uma relação difícil. Os
autores novos, talvez, venham a conhecer um sistema editorial
menos feudal. Torço por eles. As coisas estão se azeitando mais,
não custa acreditar.
G1: Como analisa a cobertura de livros na imprensa, a
qualidade dos textos, o espaço que é dado? Isso está
melhorando ou piorando? Em que medida a Internet pode
mudar esse cenário?
NOLL: Quanto à internet não posso falar. Claro, uso o Word, mando
e recebo e-mails, mas só de vez em quando navego. Tenho
impressão de que o espaço na imprensa de papel está meio
devagar atualmente. Bem menos espaço, comentários ligeiros, uma
certa maçaroca quando o repórter entrevista o autor e comenta ao
mesmo tempo o livro em questão. Um hibridismo preguiçoso. Às
vezes as respostas dos autores entram como opiniões do repórter.

Trecho::

“Lutávamos no chão frio do corredor. Do consultório do


dentista vinha o barulho incisivo da broca. E nós dois a lutar
deitados, às vezes rolando pela escada da portaria abaixo.
Crianças, trabalhávamos no avesso, para que as verdadeiras
intenções não fossem nem sequer sugeridas. Súbito, os dois
corpos pararam e ficaram ali, aguardando. Aguardando o quê? Nem
nós sabíamos com alguma limpidez. A impossibilidade de uma
intenção aberta produzia essa luta ardendo em vácuo.”

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