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Infância e educação em Platão

Walter Omar Kohan


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Este trabalho estuda, desde uma perspectiva filosófica, o concei-


to de infância em Platão, com ênfase nos seguintes diálogos:
Alcibíades I, Górgias, A República e As Leis.
Num primeiro momento, situamos a questão da infância no mar-
co mais ampliado do projeto filosófico e político de Platão. A
seguir, propomos quatro traços principais do conceito de infân-
cia em Platão: a) como possibilidade (as crianças podem ser
qualquer coisa no futuro); b) como inferioridade (as crianças —
como as mulheres, estrangeiros e escravos — são inferiores em
relação ao homem adulto cidadão); c) como superfluidade (a in-
fância não é necessária à pólis); d) como material da política (a
utopia se constrói a partir da educação das crianças).
Não há a pretensão de levar Platão a algum tribunal. Busca-se
apenas delimitar um problema e uma forma específica de enfrentá-
lo, com vistas a contribuir para a análise da produtividade dessa
perspectiva na história da filosofia da infância e da educação oci-
dental, bem como nas atuais teorias e práticas educacionais. Ao
mesmo tempo, de forma implícita, procura-se oferecer elementos
para problematizar uma visão já consolidada entre os historiado-
res da infância — particularmente desde o já clássico História
social da infância e da família de Philippe Ariès —, segundo a
qual a infância seria uma invenção moderna e ela não teria sido
“pensada” pelos antigos enquanto tal.

Palavras-chave

Platão — Infância — Filosofia da infância.

Correspondência:
Walter Omar Kohan
Av. Sernambetiba, 4420, Bloco 12,
Apto. 302
22630-011 — Rio de Janeiro — RJ
e-mail: walterko@uol.com.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 11-26, jan./jun. 2003 11


Childhood and education in Plato
Walter Omar Kohan
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Abstract

This work investigates from a philosophical perspective the concept


of childhood in Plato, with an emphasis on the following dialo-
gues: Alcibiades I, Gorgias, The Republic, and The Laws.
Initially, we situate the issue of childhood within the wider scenario
of Plato’s political and philosophical project. We then propose four
main features of the concept of childhood in Plato: a) as possibility
(children can become anything in future); b) as inferiority (children
– like women, foreigners and slaves – are inferior to the male adult
citizen); c) as superfluousness (childhood is not necessary to the
polis), and d) as matter of politics (the utopia is built from the
education of children).
It has not been our intention here to put Plato on trial. We have
just sought to delimit an issue and a specific manner of tackling it
with the aim of contributing to the analysis of the productivity of
this perspective in the history of the philosophy of childhood and of
Western education, as well as of current education theories and
practices. At the same time, we have implicitly tried to offer
elements to problematize a vision well established among historians
of childhood – particularly after Philippe Ariès already classic
Centuries of childhood: a social history of family life – according to
which childhood would be a modern invention and would not have
been “thought” as such by the ancients.

Keywords

Plato – Childhood – Philosophy of childhood.

Contact:
Walter Omar Kohan
Av. Sernambetiba, 4420, Bloco 12,
Apto. 302
22630-011 — Rio de Janeiro — RJ
e-mail: walterko@uol.com.br

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Os filósofos gregos do período clássi- Os traços de um problema
co deram, de forma quase unânime, importân-
cia singular à educação. Sabemos, por exem- Giles Deleuze e Felix Guattari afirmam
plo, que os sofistas foram educadores profis- que entender um filósofo comporta compre-
sionais. Eles teorizaram sobre o sentido e o ender os problemas que esse filósofo traçou
valor de educar, ainda que seus principais e os conceitos que criou para tentar resolver
escritos não tenham chegado até nós (Platão, tais problemas (1993, p. 40). Pensamos que
Hípias Maior 282b-c). Entre eles, Antifonte, a infância era parte indissociável de um pro-
que afirma, segundo um fragmento conserva- blema fundamental para Platão e que, por
do, ser a educação o que há de principal para meio de seus diálogos , pode-se reconstituir
os seres humanos e que, quando se semeia em tanto os traços fundamentais de tal problema
um corpo jovem uma nobre educação, esta quanto a solução conceitual proposta por
floresce para sempre, com chuva ou sem chuva Platão.
(DK 87 B 60). O problema ao qual aludimos é con-
Mesmo que declarasse não ter sido creto e situado: entender, enfrentar e reverter
mestre de ninguém, Sócrates reconhece ter a degradação da Atenas de seu tempo. Assim
formado jovens que continuariam sua tarefa, e colocado, o problema não nos remete neces-
esse é justamente um dos motivos de sua con- sariamente à infância. Contudo, na visão de
denação à morte (Platão, Apologia de Sócrates, Platão, há uma conexão direta entre as quali-
33a-c; 39c-d). O próprio Platão esteve preocu- dades de uma pólis e as dos indivíduos que a
pado, do princípio ao fim de seus diálogos com compõem, qualidades que não estão dadas de
questões educacionais, talvez porque conside- uma vez por todas mas que dependem forte-
rasse que a alma, quando vai para o Hades, não mente do contexto em que se desenvolvem.
leva outra coisa senão sua educação e seu Essa visão se apóia em uma percepção parti-
modo de vida ( Fédon , 107d). Em sua última cular da história política que o precedeu e,
obra, As Leis , afirma que é impossível não fa- durante a qual, naturezas juvenis excelsas,
lar da educação das crianças e que, diferente- como as de seus companheiros de classe,
mente de outras questões tratadas em relação Alcibíades e Crítias, se converteram em políti-
à pólis, o fará para instruir e para sugerir, não cos inescrupulosos e insanos. As conseqüên-
para legislar (VII, 788a): acerca da educação, cias foram desastrosas para Atenas e se pode-
diz ali, “O Ateniense”, ser uma aporia legislar e ria ler boa parte da filosofia de Platão como
ao mesmo tempo torna-se impossível permane- uma tentativa de colocar as bases que permi-
cer em silêncio (788b-c). tissem construir uma ordem social radicalmen-
Este texto trata de como nesses diálo- te diferente daquela que deu lugar, pelo me-
gos de Platão — nos que habitam traços do nos num nível protagonista, à intervenção de
que hoje chamamos de filosofia da educação tais cidadãos.
— foi demarcado um certo conceito de infân-
cia, proficuamente reproduzido e muito pou- 1. Para as referências bibliográficas das obras dos pensadores gregos,
co problematizado no posterior desenvolvi- traduzimos os textos curtos diretamente do original. Para alguns diálogos
mento da filosofia da educação ocidental. À de Platão utilizamos, como base, as traduções da Biblioteca Clássica Gredos
(Madri: 1983-1992) nas quais introduzimos modificações. Citamos
sua maneira, de forma explícita ou implícita, Antifonte pela edição canônica dos fragmentos estabelecida por H. Dielz e
por meio de um discurso aporético e impossível W. Kranz em Die Fragmente der Vorsokratiker (Berlim, 1923), segundo a
sigla DK, seguida do número atribuído nesta edição e o número do fragmen-
de silenciar, com alusões diretas ou metafóri- to. No caso de Platão, citamos, como é habitual, pela edição de Stephanus.
cas, Platão deu forma a um retrato específico O número corresponde à página e a letra à coluna. Quando necessário,
incluímos em romano o número do livro. Citamos os personagens dos
da infância. A seguir, nos ocuparemos de de- diálogos de Platão entre aspas (por exemplo, “Sócrates”), para diferenciá-
linear esse retrato. 1 los dos indivíduos históricos.

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Como enfrentar o problema da degra- os termos patéomai (“comer”); ápastos (“sem
dação dos jovens? O que fazer para canalizar as comer”, “em jejum”, em latim impastus); patér
melhores naturezas para o melhor projeto po- (“pai”, “o que alimenta”, em latim pater); paízo
lítico? A chave de interpretação de Platão para (jogar como uma criança”, “divertir-se”, “fazer
explicar o problema é educativa: esses jovens se criancices”); póa (“pasto”, em latim pasto );
corromperam porque não receberam a atenção poimém (“pastor”, “o que leva para comer”, em
e o cuidado que merece quem se dedicará a latim pastor ); paidíon (“jogo”, “diversão”);
governar o conjunto. Sua aposta também o é: paidiá (“jogo”, “passatempo”); paideía (“cultu-
é necessário, então, pensar outro cuidado, outra ra”, “educação”); paidéúo (“formar”, “educar”);
criança, outra educação, uma experiência infan- paidagogós (“o que conduz a criança”, “peda-
til da verdade e da justiça que preserve e cul- gogo”) (Castello, A. ; Márcico, C., 1998).
tive o que nessas naturezas há de melhor e o Em grego clássico, paîs tem uma de-
ponha a serviço do bem comum. notação muito ampla, refere-se a crianças e
A visão platônica da infância se enqua- jovens de diversas idades, no caso dos meni-
dra, então, em uma análise educativa com nos, até chegar à cidadania e, no caso das
intencionalidades políticas. Platão não faz da meninas, caso menos freqüente, até o matri-
infância um objeto de estudo em si mesmo re- mônio (Golden, 1990). Na verdade, paîs usa-
levante. De certo, a infância não é, enquanto in- se mais com o sentido de filho ou filha (na-
fância, um problema filosófico relevante para tural ou adaptado) e menos com o sentido de
Platão. Não há em seus diálogos uma par- crianças e, por extensão, como escravo ou es-
ticular atenção em retratar as características psi- crava (jovens de diversas idades até limites
cológicas da infância (contra, Charlot, 1977). A semelhantes aos do paîs ). Nesse sentido, seu
infância é um problema filosoficamente relevan- uso é extremamente amplo (designa, por
te na medida em que se tenha de educá-la de exemplo, o membro subordinado de um ca-
maneira específica para possibilitar que a pólis sal de homens homossexuais, não importa sua
atual se aproxime o mais possível da idea- idade) e não implica uma reação emocional
lizada. Dessa maneira, Platão inventa uma po- intensa entre os membros de uma família ou
lítica (no sentido mais próximo de sua etimo- do mesmo grupo social (Golden, 1985). Essa
logia) da infância, situa a infância em uma pro- mesma associação está presente no termo
blemática política e a inscreve no jogo políti- latino puer . Ainda que chamativa, essa amplia-
co que dará lugar, em sua escrita, a uma pólis ção pode ter como base um vínculo afetivo e
mais justa, mais bela, melhor. cultural que relacionava o escravo com seu
Antes de analisar a forma em que Platão senhor, não totalmente dessemelhante, ao
pensou a infância, é interessante expor algumas que vinculava o pai com seu filho (Castello,
questões vindas da língua. Sabemos que a rela- A. ; Márcico, C., 1998).
ção entre a história das palavras e a história do A outra palavra mais usada por Platão
pensamento é extraordinariamente complexa, para designar a criança é néos, literalmente,
mas, em todo caso, não queremos deixar passar “jovem”, “recente”, “que causa uma mudança”,
alguns esclarecimentos, pistas ou sugestões. “novo”. É uma palavra mais jovem ligada a uma
Platão se refere às crianças, basicamen- raiz de significado temporal, nu, de onde vem,
te, por meio de duas palavras: paîs e néos. 2 por exemplo, nûn , “agora” (Chantraine, P.,
Paîs remete a uma raiz indo-européia que toma 1975). Em usos antigos aplica-se não só às
a forma pa/po em grego e pa/pu em latim (a
palavra latina equivalente a paîs é puer), cujo 2. Há, pelo menos, uma terceira palavra para referir-se à criança em
grego, téknon, ligada ao verbo tíkto (‘dar a luz’), que marca mais acentua-
significado básico é “alimentar” ou “alimentar- damente a filiação, e nos trágicos se encontra usada para reforçar o vínculo
se”. Da mesma raiz temática são, por exemplo, afetivo, geralmente, a propósito da mãe.

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pessoas, mas a objetos e, mais raramente, a ani- temática que signifique “infância”. Em grego, a
mais e plantas. Só posteriormente foi-se espe- lógica da língua indicaria paidía ou paideía, mas
cializando em uma referência exclusivamente daquele termo só se encontra algum raro exem-
antropológica, mas conservando sua poliva- plo (Chantraine, 1975) e este tem outra conota-
lência, que permite aplicá-la a crianças e jo- ção, ligada também ao alimento (“cultura”,
vens. Algumas palavras ligadas são: neótes (“ju- “educação”). Em latim existe infantia, mas é
ventude”); neoterízo (“tomar novas medidas”, bastante tardio e designa literalmente a ausên-
“fazer uma revolução”); neoterismós (“inova- cia de fala. 3
ção”, “revolução”). Nas línguas vernáculas, deu Como explicar essa ausência? Ainda que
lugar a muitos compostos a partir do primeiro a infância fosse uma etapa da vida legal e
termo neo-. politicamente irrelevante, há muitos testemu-
Esses exemplos ilustram uma associa- nhos de vários campos intelectuais que distin-
ção muito forte entre os campos semânticos do guem diversas etapas na infância, o que permite
alimento e da educação no mundo greco-roma- supor que essas distinções tinham alguma re-
no. Alimentar e educar não constituem, ali, do- levância social (Golden, 1990). De qualquer
mínios dissociados. Outros dois exemplos ilus- modo, talvez a ausência de uma palavra para
tram claramente essa associação. Em grego, marcar uma etapa possa sugerir a percepção da
tréphein significa, em sua origem, “espessar”, e, vida humana, pelo menos na literatura domi-
daí, “coagular”, “coalhar”. Com esse sentido, nante que conhecemos, como uma totalidade
subsiste na época clássica sob o conceito ge- indissociável ou, talvez, uma unidade que pri-
nérico de “criar”, “nutrir”, desenvolvido a par- vilegia o comum e o todo por sobre seus frag-
tir de “engordar”, “alimentar”. Por graduais mentos ou partes diferenciadas.
translações de sentido chega a significar “edu- Em todo caso, registramos duas marcas
car”, ainda que nunca chegue a ser o termo chamativas na etimologia. Por um lado, a asso-
típico para referir-se ao que hoje entendemos ciação entre “criança” e “escravo jovem”. Por
por educar e esteja mais ligado ao âmbito da outro lado, a ausência de uma palavra especí-
criação das crianças. Por exemplo, Platão ( A fica para se referir à abstração “infância”. Con-
República V 450c, Alcibíades I 122b, Críton fiamos em que os sentidos dessa associação e
50e-51c) situa a trophé (criação) como um dessa ausência possam ser enriquecidos no
período intermédio entre o nascimento e a transcorrer deste texto.
paidéia (educação). Em latim, tanto al.umnus Talvez não seja um detalhe que Platão,
(“o que recebe o alimento”, “criatura” e, como que se vale de palavras raríssimas e até inven-
segunda acepção, “discípulo”, “o que apren-
de”) como ad.ol.escens (“o que começa a ser 3. Infans está formado por um prefixo privativo in e fari, ‘falar’, dali seu
sentido de “que não fala”, “incapaz de falar”. Tão forte é seu sentido ori-
alimentado”, “o que recebe os primeiros ali- ginário que Lucrécio emprega ainda o substantivo derivado infantia com o
mentos” e, como conseqüência, “cresce”) e sentido de “incapacidade de falar”. Mas logo infans — substantivado —
ad.ul.tus têm a ver com o verbo al.o , e infantia são empregados no sentido de “infante”, “criança” e “infância”,
respectivamente. Desse sentido surgem vários derivados e compostos, na
“al.imentar-se” e o substantivo al.imentum , época imperial, como infantilis , “infantil” e infanticidium , “infanticídio”.
“al.imento”. Quintiliano (I, 1, 18) fixa a idade em que a criança é considerada como
incapaz de falar até por volta dos sete anos e, por isso, infans pode designar
Em grego clássico há outras palavras, a criança no sentido ordinariamente reservado a puer. Na verdade, há usos
algumas derivadas daquelas, para referir-se às de infans referindo-se a pessoas de até, pelo menos, quinze anos, com o
qual devemos entender que infans não remete especificamente à criança
crianças, mas não há nenhuma específica e pequena que não adquiriu ainda a capacidade de falar, mas que, antes,
exclusiva para alguma etapa ou idade em par- refere-se aos que, por sua minoridade, não estão ainda habilitados para
ticular (Golden, 1990). Curiosa e significativa- testemunhar nos tribunais: infans seria assim “o que não pode valer-se de
sua palavra para dar testemunho”. A palavra infantes também passa a
mente, tampouco há, no mundo greco-romano, designar a muitas outras classes de marginais que não participam da ati-
um substantivo abstrato derivado dessa raiz vidade pública, como os doentes mentais.

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tou muitas palavras para dar conta de concei- permanecem na memória os conhecimentos
tos ainda não pensados na cultura de seu tem- aprendidos quando se é criança. Na Apologia,
po, não tenha tido a necessidade de fazer o “Sócrates” disse temer muito mais àqueles acu-
mesmo com a infância. Contudo, como vere- sadores que foram convencidos, quando eram
mos a seguir, não parece justificado afirmar que crianças, de que ele era um sábio que se preo-
a ausência de uma palavra específica signifique cupava com as coisas celestes e subterrâneas e
que Platão não tenha pensado a infância. Pelo que fazia mais forte o argumento mais débil,
contrário, de diversas formas compõe um cer- do que àqueles que só foram convencidos
to conceito complexo, difuso, variado de infân- daquelas acusações em idade adulta (Apologia
cia. Para uma melhor análise, dividiremos esse de Sócrates 18b-c).
tratamento em diversos planos que se entre- Não se trata de que, para Platão, a na-
cruzam: a) a primeira marca que distingui- tureza humana se consolide e se torne imodi-
mos no conceito platônico de infância é a ficável a partir de certa idade. O discurso que
possibilidade quase total e, enquanto tal, a Sócrates profere sobre o amor, no Banquete, e
ausência de uma marca específica; a infân- que havia sido ouvido de uma mulher, Diótima
cia pode ser quase tudo; essa é a marca do de Mantinéia, alerta que ainda que dissermos
sem marca, a presença de uma ausência; que as pessoas são as mesmas desde que nas-
b) a segunda marca é a inferioridade em face cem até morrerem, na verdade, se gera uma
do homem adulto, do cidadão, e sua conse- nova pessoa (ou uma criança) a cada momento
qüente equiparação com outros grupos so- (207d-e). “O Ateniense”, em As Leis, diz que os
ciais, como as mulheres, os ébrios, os an- jovens sofrem muitas mudanças todo o tempo,
ciãos, os animais; essa é a marca do ser durante toda a sua vida (XI 929c).
menos, do ser desvalorizado, hierarquicamen- Contudo, alguns momentos da vida são
te inferior; 4 c) em uma terceira marca, liga- vistos como tendo mais incidência que outros,
da à anterior, a infância é a marca do não sobre o curso que ela toma. Também em As
importante, o acessório, o supérfluo e do que Leis, esse mesmo personagem lembra um refrão
se pode prescindir, portanto, o que merece popular grego que diz “o começo é a metade
ser excluído da pólis , o que não tem nela de toda obra” (VI 753e) e afirma que um pri-
lugar, o outro depreciado; d) finalmente, a meiro crescimento bom é o mais importante
infância tem a marca instaurada pelo poder: para uma boa natureza, tanto entre as plantas
ela é o material de sonhos políticos; sobre a e entre os animais, como entre os humanos
infância recai um discurso de necessidade e ( Ibid. VI 765e). Em uma obra anterior, “Só-
o sentido de uma política que necessita da crates” diz a um jovem “Alcibíades” que, com
infância para erigir-se em perspectiva de um 20 anos, está em idade de ocupar-se de si
futuro melhor. A seguir, vamos nos referir a mesmo, porém, que isso seria muito difícil de
cada uma dessas marcas. fazer aos 50 anos (Alcibíades I 127e). Em ou-
tro diálogo, “Sócrates” se mostra preocupado
A infância como pura com o jovem Clínias, temeroso de que, em
possibilidade função de sua idade, alguém se adiante e diri-
ja sua alma para outros misteres ( Eutidemo
Platão não é alheio ao sentido mais
primário da infância, que a associa a uma eta-
4. Quando nos referimos a adultos ou adultez, em Platão, deve-se enten-
pa primeira da vida humana. Como tal, a valo- der o homem adulto, cidadão, nem escravo nem meteco. Não vamos tratar
riza em função de seus efeitos na vida adulta. aqui, pela complexidade da questão, do problema destas e de outras figu-
ras da ausência e da exclusão, como as mulheres o os anciãos. Para a
Fazendo-se eco de um ditado popular, “Crítias” exclusão das mulheres, cf. Cavarero, A. Nonostante Platone: figure femminili
afirma no Timeu (26b) que é admirável como nella filosofia antica. Roma: Riuniti, 1990.

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275b). Em suma, ainda que Platão pense que a dos de percepção, rápidos e fortes; enquanto
educação seja importante em toda a vida de alma, irascíveis, suaves, amantes do saber e do
um ser humano, também considera que o é aprender (374e-376c).
muito mais nos momentos em que se forjam Haverá, então, que se criar e educar os
seus caracteres. Para explorar e justificar essa guardiões de alguma maneira, diz “Sócrates”
afirmação adentremos A República. (376c — III 412b). Estamos diante de uma
No livro I, “Sócrates” trava uma de suas questão chave. A educação não é um problema
clássicas discussões com vários interlocutores menor, porque o exame da questão educacio-
(“Céfalo”, “Polemarco” e “Trasímaco”) que são nal poderá determinar a gênese, o ponto de
sucessivamente refutados em sua pretensão de partida, a causa da justiça e da injustiça na
definir o que é o justo. O final do livro I é pólis (376c-d; IV 423e-424c). “Sócrates” pro-
aporético: “Sócrates” diz a Trasímaco que nada põe que a educação com a qual se eduquem os
sabe após examinar, sucessivamente, se o jus- guardiões seja a mesma com a qual se educam,
to é um mal e uma ignorância ou uma sabedo- há muito tempo, os gregos: a ginástica para o
ria e uma excelência e se a injustiça é mais corpo, a música para a alma (376e).
vantajosa que a justiça (I 354b-c). As crianças são educadas, em primeiro
No começo do livro II, “Gláucon”, ir- lugar, na música e, logo depois, na ginástica.
mão de Platão na vida real, convence “Sócrates” Entre as primeiras atividades, inspiradas pe-
a retomar a discussão e defender a superiorida- las Musas, incluem-se as fábulas e os relatos
de da justiça sobre a injustiça (II 357a — 358e). que as crianças escutam desde a mais tenra
Depois que ele e “Adimanto”, também irmão idade. Esses relatos deverão ser escolhidos
“real” de Platão, apresentam os argumentos com muita diligência, diz “Sócrates”, para
correntes de quem defenderia que a injustiça é que contenham as opiniões que os constru-
preferível à justiça, “Sócrates” transfere o cam- tores da pólis julgam convenientes para for-
po da análise do indivíduo para a pólis, para mar as crianças (377b-c).
facilitar a percepção da justiça em um espaço Não se permitirá que as crianças escu-
maior (II 368d-e). tem qualquer relato. Não se permitirá que se
A investigação leva “Sócrates” a analisar lhes narrem, por exemplo, as principais fábulas
as origens da pólis: os indivíduos não são autár- pelas quais têm sido educados todos os gregos,
quicos e têm necessidade uns dos outros (369b- os poemas de Homero e Hesíodo, uma vez que
c ). Começa, então, um desenho da primeira afirmam valores contrários àqueles que se pre-
pólis (369d-372e). Os traços iniciais de “Sócra- tende que dominem a nova pólis. Esses relatos,
tes”, relativos apenas às necessidades básicas de cheios de mentiras, não representam os deuses
uma pólis, recebem uma objeção de “Gláucon”: e heróis tal como são e estão povoados de
trata-se de uma pólis de suínos, já que não há personagens que afirmam valores contrários
nela nem prazeres nem comodidades (372e). àqueles com que se pretende educar os guar-
Sem rodeios, “Sócrates” toma a objeção, passa a diões (377c - III 392c).
ampliar a pólis para uma pólis de prazer, mas De modo que, se se quer extirpar a
adverte que, enquanto aquela é sã e verdadei- injustiça da pólis, diz “Sócrates”, ter-se-á de
ra, esta é luxuosa e doente (372e-373a). Entre mudar os textos com os quais se tem educado
outras coisas, a nova pólis gerará guerras com sempre na Grécia. Antes de discutir quais rela-
os vizinhos e necessitará de guerreiros-guardiões, tos serão incluídos para substituir aos tradi-
inexistentes na anterior (373d-374a). A partir de cionais, “Sócrates” afirma que se deverá ser ex-
uma analogia com os cães de raça, “Sócrates” tremamente cuidadoso na escolha dos textos
descreve as disposições naturais que devem ter com os quais as crianças entrarão em contato
tais guardiões: devem ser, enquanto corpo, agu- em primeiro lugar. Ele dá a seguinte razão:

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E bem sabes que o princípio de toda a za e que uma educação inadequada faz es-
obra é o principal, especialmente nos mais tragos nas melhores naturezas.
pequenos e ternos; porque é então quando Enquanto primeiro degrau da vida hu-
se forma e imprime o tipo que alguém quer mana, a infância representa também seu caráter
disseminar em cada pessoa. (II 377a-b) de incompleta, sua falta de acabamento. Porém,
é verdade que, para Platão, a vida humana e o
Os primeiros momentos são os mais gênero humano como um todo estão marcados
importantes na vida, diz “Sócrates”. Por isso pela incompletude. A natureza dos seres huma-
não se permitirá que as crianças escutem os nos não está dada de uma vez por todas, mas
relatos que contêm mentiras, opiniões e va- vai se constituindo em função de certa educa-
lores contrários aos que se espera deles no ção que a transforma de geração em geração (IV
futuro. Porque se se pensa a vida como uma 424a-b). A pólis que começa bem, diz Platão,
seqüência em desenvolvimento, como um avança da mesma forma que um círculo. Uma
devir progressivo, como um fruto que resul- criação e uma educação valiosas produzem boas
tará das sementes plantadas, tudo o que ve- naturezas e, estas, valendo-se de tal educação,
nha depois dependerá desses primeiros pas- se tornam melhores que as anteriores e, assim,
sos. As marcas que se recebem na mais ten- sucessivamente (ibidem).
ra idade são “imodificáveis e incorrigíveis” A princípio, essa visão da infância pa-
(378e). Por isso deve-se cuidar especifica- rece extraordinariamente positiva, poderosa:
mente desses primeiros traços, por sua im- dela pode devir quase qualquer coisa; dela,
portância extraordinária para conduzir alguém quase tudo pode ser. Contudo, essa potencia-
para a virtude ( ibidem ). lidade, esse ser potencial, esconde, como con-
Nesses traços platônicos está retratada trapartida, uma negatividade em ato, uma vi-
a imagem da infância que ainda acompanha o são não afirmativa da infância. Ela poderá ser
pensamento educacional. É fundamental, diz- qualquer coisa. O futuro esconde um não ser
nos Platão, que nos ocupemos das crianças e nada no presente. Não se trata de que as cri-
de sua educação, não tanto pelo que os peque- anças já são, em estado de latência ou virtuali-
nos são, mas pelo que deles devirá, pelo que se dade, o que irá devir; na verdade, elas não
gerará em um tempo posterior: têm forma alguma, são completamente sem
forma, maleáveis e, enquanto tais, podemos
[Suficiente] é a educação e a criação, res- fazer delas o que quisermos.
pondi; pois se bem educados, surgirão ho- Em uma passagem de As Leis, diferen-
mens medidos que distinguirão claramente te em diversos aspectos da República , mas
todas estas coisas e outras (...). (IV 423e ) com temáticas afins, “O Ateniense” conta a
“Clínias” uma história de dentes semeados e
Nesse registro, a infância é um de- guerreiros nascidos deles e comenta sobre ela
grau fundador na vida humana, a base sobre o seguinte:
a qual se constituirá o resto. Como veremos,
a educação da infância tem projeções polí- (...) é, decerto, um grande exemplo para o
ticas: uma boa educação garante um cida- legislador de que alguém pode persuadir as
dão prudente. Esse primeiro degrau não tem almas dos jovens daquilo que se proponha;
características próprias muito definidas, está de modo que o único que tem que desco-
associado à possibilidade. É certo que há brir em sua investigação é de que coisa
naturezas mais dispostas que outras para a deve-se persuadi-los para produzir o maior
virtude. Mas também é verdade que uma bem da pólis. (IV 423e)
boa educação pode corrigir uma má nature-

18 Walter Omar KOHAN. Infância e educação em Platão


Podemos persuadir os jovenzinhos do to projeta o que para Platão há de inferior no
que se nos ocorra. O único problema é desco- ser humano e na ordem social que o abriga: a
brir o “maior bem” para a pólis para depois desordem, a falta de harmonia, a desproporção.
convencê-los de que atuem segundo ele. Os “O Ateniense” estipula que uma criança,
jovenzinhos não farão senão o que lhes disser- enquanto homem livre que será (no futuro), deve
mos. Nessa passagem se condensam os princi- aprender diversos saberes e, enquanto escravo
pais motivos que destacaremos na última par- que é (no presente), pode e deve ser castigada
te deste trabalho: temos que pensar nos jovens por qualquer homem livre que se encontre com
em função do bem da pólis, porque deles po- ela (VII 808e). Assim descrita a natureza infan-
dem devir outra pólis que a atual, porque eles til, com sua criação e educação buscar-se-á acal-
são o material de um sonho que podemos forjar mar essa agitação e desenvolver seus potenciais
à nossa vontade e que eles nos ajudarão, man- em ordem e harmonia. A tarefa principal dos en-
samente, a realizar. Antes, porém, vamos anali- carregados da criação das crianças é “dirigir em li-
sar outra marca da infância: a inferioridade. nha reta suas naturezas, sempre em direção para
o bem segundo as leis”. (II 809a)
A infância como inferioridade Em um âmbito judicial, as crianças,
como os escravos, só poderão dar testemunho
Junto a essa visão da infância como o em processos de assassinato e só no caso de
que pode ser quase tudo, nos textos de Platão um adulto responder por eventuais juízos con-
há outra visão dela como aquela fase da vida tra ele por falso testemunho (XI 937b). Quan-
inferior à idade adulta masculina tanto no as- do se trata de legislar seus direitos, Platão diz
pecto físico quanto no espiritual. A obra em que se uma criança quer ser afastada da famí-
que esse relato aparece mais nítido, e também lia por seu pai, terá direito a voz em um juízo
mais descarnado, é seu último texto, recém- com todos os seus parentes. Se a maior parte
referido, As Leis. Ali se afirma que as crianças da família está de acordo em expulsá-la e ne-
são seres impetuosos, incapazes de ficarem nhum outro cidadão quer adaptá-la, ela deve-
quietos com o corpo e com a voz, sempre rá, então, ser enviada para as colônias. Susten-
pulando e gritando na desordem, sem o ritmo ta, também, que se algum ancião é considera-
e a harmonia próprios do homem adulto (II do demente, se lhe despojará todos os seus
664e-665a), e que possuem temperamento ar- bens e este passará o resto de sua vida como
rebatado (II 666a). As crianças sem seus pre- se fosse uma criança (XI 929a-e).
ceptores são como os escravos sem seus donos, A infância também aparece associada a
um rebanho que não pode subsistir sem seus outros estados inferiores, como quando serve
pastores (VII 808d). Por isso, devem ser sempre de analogia para a embriaguez. Com efeito,
conduzidas por um preceptor (VII 808e). Não Platão diz que quando alguém se embriaga
devem ser deixadas livres até que seja cultiva- desaparecem inteiramente suas sensações, suas
do “o que neles tem de melhor” (IX 590e-591a). lembranças, suas opiniões e seus pensamentos,
Também ali se afirma que a criança é a e ele permanece com “a mesma disposição da
fera mais difícil de manejar, porque, por sua alma de quando era uma criança pequena”
potencial inteligência ainda não canalizada, é (I 645e). Aqui aparece outra vez, nitidamente,
astuta, áspera e insolente (VII 808d). Nessa a imagem da infância como ausência, vazio. Em
passagem, além da inferioridade, aparece, ou- estado de embriaguez, um adulto, como uma
tra vez, a idéia de potencialidade associada à criança, carece de atividade sensorial e intelec-
criança, tal como vimos em A República. Nisto tual: é menos dono de si mesmo do que nun-
a criança se diferencia do escravo. Contudo, ca, o mais pobrezinho de todos os homens. O
essa potencialidade não a torna melhor enquan- embriagado é uma criança pela segunda vez,

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 11-26, jan./jun. 2003 19


como o ancião (I 646a). Ao legislar sobre quem que se ele quer ter algum sucesso na vida
despoja os deuses, trai à pólis, ou corrompe suas política ele deve antes ocupar-se de si mesmo.5
leis, refere-se a quem poderia fazer essas ações “Sócrates” toma como exemplo os per-
como louco ou enfermo; trata-se de alguém sas. A primeira diferença está ao nascer. Quan-
ultrapassado em velhice ou “tomado pela infan- do nasce um filho de um rei persa, toda a Ásia
tilidade, o que em nada se diferencia dos esta- o festeja. Os atenienses, queixa-se “Sócrates”,
dos anteriores” (IX 864d). não comemoram os nascimentos, não lhes dão
Esta visão da infância também está importância, não lhes oferecem a menor aten-
presente em um diálogo de juventude, o Alci- ção. Quando nasce um ateniense, nem os vizi-
bíades I , um texto que muitos filósofos da nhos ficam sabendo (121c-d).5 Tampouco valo-
Antiguidade (Albino, Jâmblico, Proclo e Olim- rizam a criação ( trophé ) dos pequenos. En-
piodoro) consideraram uma excelente introdu- quanto os persas disponibilizam os melhores
ção à filosofia em geral e à platônica em par- eunucos e, aos 7 anos, põem os pequenos em
ticular. O Alcibíades I pode ser dividido em três contato com os cavalos e os levam à caça, os
grandes seções: na primeira, “Sócrates” e “Al- atenienses escolhem uma escrava de pouco
cibíades” discutem sobre a inserção deste últi- valor para cuidar do recém-nascido (121d);
mo na vida política de Atenas e a respeito de aos 14, os persas os confiam aos seus quatro
seu saber sobre os assuntos da política (103a- melhores homens: o mais sábio, o mais justo,
113c); na segunda, analisam as diferentes for- o mais prudente e o mais corajoso (121e). A
mas de se relacionar com o conhecimento e as um só tempo, o pedagogo de Alcibíades foi
implicações políticas de cada relação analisada Zópiro, o mais inútil entre os escravos de Pé-
(113d-127e); na terceira, propõe-se uma aná- ricles (122b). No final das contas, entre os
lise filosófica do preceito délfico “conhece-te a atenienses, a ninguém interessa o nascimento,
ti mesmo” (128a-135e). a criação e a educação, salvo a um amante
No início, “Sócrates” questiona a “Alci- ( ibidem).
bíades” que, desde criança, não duvidara sobre Nessa passagem, a figura da infância é,
o justo e o injusto, mas que falara desses as- como a vergonha, uma metáfora da inferiorida-
suntos com segurança e presunção. “Acredita- de. A juventude de Alcibíades é uma das razões
vas saber, apesar de ser criança, sobre o justo pelas quais a mãe do rei persa se surpreenderia
e o injusto”, recrimina-o. “Como poderia sabê- ao tentar rivalizar-se com Ataxerxes (123c-e). Do
lo”, “Sócrates” censura a “Alcibíades”, “se não
havia tido tempo de aprendê-lo ou descobri-
5. Desse texto comentou Michel Foucault: “o cuidado de si aparece como
lo?” (110a-110c). Na infância não é possível uma condição pedagógica, ética e também ontológica, para chegar a ser
saber sobre o justo e o injusto; é o tempo da um bom governante. Constituir-se em sujeito que governa implica que se
tenha constituído em sujeito que se ocupa de si” (L´éthique du souci de soi
incapacidade, das limitações no saber e, tam- comme pratique da liberté. In: Dits et Écrits , IV. Paris: Gallimard, 1994.
bém, no tempo; é a etapa da falta de experiên- p. 721-722).
cia; é a imagem da ausência do saber, do tem- 6. A queixa de “Sócrates” não pode ser tomada literalmente. M. Golden
frisa que havia, entre os atenienses, ao menos um rito cerimonial para a
po e da vida. aceitação social do recém-nascido. Celebrava-se entre cinco e sete dias
Na parte intermediária do diálogo, “Só- depois do nascimento e incluía, pelo menos, um sacrifício, reunião familiar
e decoração na porta da casa (coroa de oliveira para o menino; lã para a
crates” examina como a criação e educação menina). As famílias mais pobres davam o nome ao recém-nascido nessa
dos persas e espartanos, rivais políticos, se di- mesma cerimônia. As famílias das classes mais altas ofereciam, no dé-
ferencia da dos atenienses. O final desse exa- cimo dia do nascimento, uma segunda cerimônia mais festiva e aberta a
mais convidados para dar o nome ao pequeno (cf . Golden, 1990, p. 23-
me marcará a necessidade de que Alcibíades 24). Como interpretar a queixa de “Sócrates”? Talvez pelo peso relativo
conheça-se a si próprio — algo que não tinha que estas cerimônias teriam em uma e outra sociedade ou, simplesmente,
pelo caráter que as mesmas haviam adquirido em Atenas, caráter que
feito ainda — enquanto suas possibilidades e provavelmente desagradava Sócrates por atender ao luxuoso, superficial
limites. “Sócrates” argumenta para “Alcibíades” e acessório e desatender ao principal.

20 Walter Omar KOHAN. Infância e educação em Platão


mesmo modo que Alcibíades sentiria vergonha passar por verdade (A República X 598c). Ou-
perante a opulência dos persas, se sentiria uma tra vez, depois de mostrar a “Críton” que esca-
criança diante da prudência, modéstia, destreza, par da prisão suporia uma enorme inconsistên-
benevolência, magnanimidade, disciplina, valor, cia diante do que havia dito em sua vida, per-
constância, disposição, competitividade e hon- gunta-lhe se deveriam ignorar essa inconsistên-
ra dos espartanos (122c). cia e, assim fazendo, “em nada se diferenciari-
Em muitos outros diálogos, a infância am das crianças” (Críton 49a-b). No Górgias,
ocupa um espaço semelhante de inferiorida- censura “Cálicles” por tratá-lo como uma crian-
de. Na República , diz-se que as crianças, ao ça ao dizer coisas com sentidos contrários
nascer, participam, sobretudo, do desejo; que (499b-c) e afirma que os oradores que tratam
algumas nunca participam da razão, da qual de agradar os cidadãos sem atender o interes-
muitos participariam somente bastante mais se público, tratam-os como crianças (502e). No
tarde (IV 441a); nas crianças, como nas mu- Teeteto, “Sócrates” afirma que na infância não
lheres e escravos, domina o inferior: as pai- temos conhecimento (197e); no Timeu , que
xões, os prazeres e as dores (IV 431c); crian- nesse período não sabemos nada sobre a pólis
ças e mulheres admiram o matizado e o arti- nem sobre o passado (23b); e, no Eutidemo, lhe
ficioso (VIII, 557c). No Teeteto , as crianças parece incrível que “Dionisiodoro” e “Eutidemo”
são alinhadas com as mulheres e as bestas tenham conhecimentos desde crianças (294e).
como exemplos de indivíduos de uma classe Em outro caso, usa a criança como a imagem
que diferem entre si em sua relação com a de alguém temeroso ante a dor (Górgias 479a)
saúde (171e). Em vários lugares e de diversas e diante da morte ( Fédon 77e ). Também se
formas, Platão diz que as crianças não têm afirma nos diálogos que a percepção das cri-
razão, compreensão ou juízo ( Górgias 464d- anças é limitada: só percebem superfícies e
e). Para referir-se a um argumento óbvio, sim- não as profundidades ( A República IX 577a).
ples ou sem importância, muitas vezes, afir- Em suma, nos diferentes sentidos que
ma que é próprio de uma criança; nesses constituem uma pessoa, em suas diversas ca-
casos, o adjetivo “infantil” é sinônimo de pacidades físicas e intelectuais, Platão consi-
pueril, ingênuo, débil ( Críton 46d; Górgias , dera a criança inferior ao homem adulto, cida-
470c, 471d; Banquete 204b). No Eutidemo , dão de Atenas. Não se trata de acusar Platão
“Sócrates” diz algo que parece tão óbvio que de insensível, adultocêntrico ou de violentar
“até uma criança o entenderia” e explica o os direitos das crianças. Esse não parece um
assombro de “Clínias” ante esse saber por ser eixo de análise interessante. As realidades his-
“jovem e ingênuo” (279e). No Lísis , “Ctésipo” tóricas são complexas demais para permitir
ri de “Hipotales” porque este não é capaz de juízos tão superficiais. Simplesmente, estamos
dizer à sua amante nada que uma criança não querendo delinear o modo em que Platão
possa dizer (295c). No Filebo , os prazeres, pensou a idéia de infância, como contribuição
como crianças, têm pouca inteligência (65d; para analisar a produtividade desse pensamen-
cf. 14d). Diz-se de “Cármides” que era um to na história dos pensamentos filosóficos
caso excepcional, por não apresentar uma sobre a infância. Esse modo tem como parâ-
imagem negativa da criança ( Cármides 154b). metro de medida um modelo antropológico de
Em outras ocasiões, “Sócrates” associa homem adulto, racional, forte, destemido,
as crianças ao engano, a ser contraditório (di- equilibrado, justo, belo, prudente, qualidades
zer uma coisa e sua negação) ou ser inconsis- cuja ausência e estado embrionário, incipiente,
tente (dizer uma coisa e fazer outra). Por ou- torna as crianças e outros grupos sociais que
tro lado, sustenta que um pintor pode enganar compartilham dessa ausência, inferiores, na
as crianças como os tolos fazendo a aparência perspectiva de Platão.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 11-26, jan./jun. 2003 21


A infância como o outro entre eles são inúteis à pólis e este é o mal me-
desprezado nor que os filósofos provocam (A República VI
487c-d).
Sócrates conversa com jovens em mui- De todos, quem apresenta o argumento
tos dos primeiros diálogos de Platão e afirma mais contundente contra a filosofia é “Cálicles”
na Apologia que para ele é a mesma coisa con- no Górgias, reafirmando essa associa-ção entre
versar com pessoas de diversas idades (33a). filosofia e infância afirmada por “Adimanto”.
Contudo, Platão não destinou nenhum lugar “Cálicles” entra na conversa enfurecido pela
especial para o diálogo filosófico com jovens forma que “Sócrates” tratou “Górgias” e “Polo”,
nos projetos educativos de A República e de seus dois interlocutores anteriores. Ele pergunta
As Leis . Ao invés disso, em A República , pro- a “Sócrates” se este fala sério ou se está brin-
põe impedir que os jovens entrem em conta- cando. “Sócrates” responde que ambos com-
to com a dialética (VII 536e-537a). Afirma que partilham um mesmo afeto, porém, diferem
aos guardiões, desde a infância, devem ser en- com relação ao objeto desse afeto: enquanto
sinados cálculo, geometria e toda a educação ele ama a Alcibíades e à filosofia, Cálicles ama
propedêutica. Essa primeira educação da alma Demos e ao povo ateniense (ou seja, ele ama
deve ser lúdica, espalhada entre os jogos e não a retórica e a política, filodemia ) (481c-d).
forçada, já que nenhum saber permanece nela “Cálicles” responde com a clássica contra-po-
por força. Chegando aos 30 anos, escolher-se- sição entre natureza ( phýsis ) e lei ( nómos )
á alguns entre os mais aptos para colocá-los em (482e). Argumenta que “Sócrates” refutou
contato com a dialética; antes se os impedirá seus interlocutores anteriores perguntado em
pelos perigos dela: os jovens de Atenas costu- um plano diferente do que eles respondiam.
mam tomá-la como um jogo, levianamente, Segundo “Cálicles”, “Polo” argumentava, por
apenas para contradizer, sem crer em nada, exemplo, que é pior sofrer injustiça do que
desacreditando-se a si mesmos e à filosofia (VII cometê-la no plano da natureza e “Sócrates”
537e-539b; cf. Filebo 14d). o levava ao plano da lei, no qual acontece o
Esse descrédito pela filosofia está presen- contrário. A seguir, “Cálicles” faz uma apolo-
te em outros diálogos de Platão. No Fédon , gia da natureza (na qual “o forte domina o fra-
“Cebes” afirma que em Tebas, sua pólis, todos co”) e uma ácida crítica à lei (“obra dos fra-
estariam de acordo que os filósofos mereciam a cos e da multidão”). Depois de sua apologia à
morte (64b-c). No Teeteto, “Sócrates” admite, re- natureza, ele diz:
ferindo-se provavelmente a si mesmo, que os que
se dedicam muito tempo à filosofia parecem ora- Pois assim é a verdade, e o reconhecerás
dores ridículos nos tribunais, comparados com se, abandonando a filosofia, diriges tua
quem habitualmente freqüenta esses espaços. Para atenção a coisas de maior importância. A
falar dos filósofos, recorda uma anedota sobre filosofia, amigo Sócrates, é certamente uma
Tales, que provocou o riso de uma jovem escra- ocupação grata, quando alguém se dedica
va (therapainìs), ao cair num poço enquanto con- a ela com medida nos anos juvenis, mas
templava as estrelas. Desde então, essa piada quando se atende a ela mais tempo do que
acompanha os que se dedicam à filosofia (174a- o devido, é a corrupção dos homens. Por-
b). Na República, a má fama se diversifica e se que ainda que se esteja bem dotado inte-
agrava: “Adimanto” argumenta com “Sócrates” lectualmente, quando se faz filosofia até a
que quem não abandona a filosofia depois de idade avançada, necessariamente seremos
abraçá-la para completar sua educação na juven- inexperientes em tudo aquilo que devemos
tude são, em sua maioria, pessoas estranhas conhecer bem, para ser alguém reputado e
(allokótuous) ou perversas; só os mais razoáveis bem considerado. ( Górgias 484c-d)

22 Walter Omar KOHAN. Infância e educação em Platão


A proximidade “natural” entre filosofia idade que ainda filosofa e que não renuncia
e infância se explica, nessa passagem, pela a isto creio, Sócrates, que este homem deve
inadequação social de ambas: quando somos ser açoitado. (485a-d)
jovens podemos permitir essa diversão e dedi-
car-nos a coisas sem importância, mas se dedi- De um lado a filosofia, a educação, o
camos toda a vida à filosofia seremos inexpe- falar mal, o balbuciar, o brincar; de outro lado,
rientes ( apeíron) para manejarmos os assuntos o homem adulto, a política, o falar bem, o fa-
mais importantes, que são os assuntos da vida lar com clareza. Por natureza, a filosofia e a
pública da pólis; desconheceremos as leis, não educação estão juntas e são próprias de uma
saberemos tratar os outros cidadãos, em pú- idade tenra, como o falar mal, o balbuciar e o
blico e no campo privado, não seremos, nes- brincar. Para “Cálicles”, o problema não está nem
te caso, esclarecidos nem bem considerados na filosofia, nem na infância, em termos absolu-
( émpeiron ). É isso o que sucede a Sócrates. tos. Pelo contrário, quando acontecem juntas em
A filosofia, como a infância, está ligada à uma etapa da vida, são proveitosas: “está bem
falta de experiência. O filósofo é tão ridículo ocupar-se da filosofia na medida em que serve
e infantil nos assuntos públicos como os para a educação (paideías)”, afirma “Cálicles”. A
políticos o são nas conversas filosóficas filosofia vale como entretenimento e formação de
(484d-e). “Cálicles” avança um pouco mais algumas disposições. O problema, em sua opi-
na comparação: nião, é quando as coisas não respondem a seus
tempos naturais. A liberdade ou a escravidão, a
Está muito bem ocupar-se da filosofia na complacência ou os açoites, os risos ou a fúria de
medida em que serve para a educação e não “Cálicles” virão da manutenção ou da quebra
é feio filosofar enquanto se é jovem; mas dessa linha divisória, de seguir a natureza ou de
quando se é velho, o fato torna-se vergo- violentá-la. De modo que, para “Cálicles”, a infân-
nhoso, Sócrates, e eu não experimento a cia e a filosofia podem estar juntas porque ambas
mesma impressão ante os que filosofam do são, por natureza, coisas sem importância.
que ante aos que falam mal e brincam. Com Platão responderá algumas poucas vezes
efeito, quando vejo brincar e balbuciar uma a esse argumento com uma estratégia semelhan-
criança, que por sua idade deve ainda falar te: no plano do que é, a filosofia é inútil, porque
assim, me causa alegria e me parece gracio- a pólis está sem rumo, perdida, desordenada, com
so, próprio de um ser livre e adequado à sua os valores invertidos. No plano do que deve ser,
idade. De modo contrário, quando escuto os filósofos se ocupam do mais importante: o
uma criança falar com clareza, parece-me governo da pólis.
algo desagradável, irrita-me o ouvido e o No Teeteto, “Sócrates” considera que
julgo próprio de um escravo. De outro lado, mesmo que os filósofos pareçam inúteis, eles fo-
quando se ouve um homem falar mal ou o ram criados como homens livres. Os hábeis
vemos brincando, fica ridículo, degradado e retóricos, por outro lado, como escravos: de
digno de açoites. Esta mesma impressão ex- almas pequenas e não retas, são servos do tem-
perimento também a respeito dos que filo- po e de seus discursos (172c-173b). Em uma
sofam. Certamente, vendo a filosofia em um citada passagem da República, “Sócrates” res-
jovem, tenho comprazer, me parece adequa- ponde às objeções de “Adimanto” com a “Alego-
do e considero que este homem é um ser li- ria do Navio”: no relato, quem maneja uma
vre; pelo contrário, o que não filosofa me embarcação não tem nenhum conhecimento do
parece servil e incapaz de ser estimado, ja- ofício, todos ali comem e bebem até empantur-
mais digno de algo belo e generoso. Mas, rarem-se, se regem pelo prazer e não pelo saber:
por outro lado, quando vejo um homem de consideram inútil o “verdadeiro” piloto, que jul-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 11-26, jan./jun. 2003 23


ga ser necessário ter em conta as estações, o da da saúde de seus pacientes e não de seu
estado do tempo, o movimento dos astros e prazer. Como tampouco os políticos de Atenas
outras coisas tais para conduzir adequadamen- percebem que o verdadeiro político busca o
te a embarcação (488a-489a). Em um navio bem e não o prazer. Nessa imagem do julga-
como este, afirma “Sócrates”, os filósofos são mento, as crianças ocupam o mesmo lugar que
certamente inúteis, mas não são responsáveis por ocupavam os bêbados e os gulosos que toma-
isso, já que o natural seria que os homens que vam o controle da embarcação na “alegoria do
têm necessidade de governo fossem em busca de navio”. São os que não têm domínio e nem
quem tem capacidade para fazê-lo (489b-c). controle sobre si.
No Górgias , “Sócrates” responde di- Assim, “Sócrates” responde a “Cálicles”
zendo que ele, o filósofo, é um dos poucos, se com sua mesma moeda: “as crianças são vocês”.
não o único, ateniense que se dedica à “ver- As crianças são sempre os outros. Esse talvez
dadeira” arte da política (521d). O que se faz seja o único ponto em que “Sócrates” e “Cáli-
na pólis é sofística e retórica, não política. Tal cles” coincidem. Discordam sobre quase tudo:
qual o “verdadeiro” piloto do navio, em A sobre a filosofia, sobre a política, a retórica, o
República , o verdadeiro político se preocupa bem, o prazer. Mas em uma coisa coincidem:
com o bem e não com o prazer. “Sócrates” “as crianças são vocês, os outros”. As crian-
considera uma hipotética acusação e um even- ças são a figura do não desejado, de quem
tual juízo contrário, na pólis , pela seguinte não aceita a própria verdade, da desqua-
imagem: lificação do rival, de quem não compartilha
uma forma de entender a filosofia, a política,
Se me ocorre o mesmo que eu dizia a Polo, a educação e, por isso, dever-se-á vencê-la.
que serei julgado como o seria, diante de As crianças são, para “Sócrates” e para “Cá-
um tribunal de crianças, um médico acu- licles”, portanto para Platão, uma figura do
sado por um cozinheiro. Pensa, com efei- desprezo, do excluído, o que não merece en-
to, de que modo poderia defender-se o trar naquilo de mais valioso disputado por
médico posto em tal situação: “Crianças, Platão, teoricamente, com os sofistas: a quem
este homem lhes causou muitos males; cor-responde o governo dos assuntos da
aos menores de vocês, ele os destroça cor- pólis, tà politikà.
tando e queimando seus membros, e os
faz sofrer enfraquecendo-os, sufocando- A infância como material da
os; dá a vocês as bebidas mais amargas e política
os obriga a passar fome e sede; não como
eu que os fartarei com toda a sorte de Tanto no Alcibíades I, quanto no Gór-
manjares agradáveis”. O que crês que po- gias, na República e nas Leis, as discussões que
deria dizer o médico posto neste perigo? alcançam a infância e a educação adquirem
Ou melhor, se dissesse a verdade: “Eu fa- sentido por sua significação política. No
zia tudo isso, crianças, por sua saúde”. O Alcibíades I a análise comparativa da educa-
quanto crê que protestariam tais juízes? ção de Alcibíades diante da educação dos ri-
Não gritariam com todas as suas forças? vais persas e espartanos permite avaliar as pos-
( Górgias 521e-522a ) sibilidades de suas ambições políticas. No
Górgias , depois de deixar desarticulados
Nesse caso, “Sócrates” compara os po- “Górgias”, “Polo” e “Cálicles”, “Sócrates” aca-
líticos a crianças que julgam o médico verda- ba o diálogo com um mito que reafirma que
deiro. Acusam-no de causar-lhes muitos males. a questão inicial, “como se deve viver”, deve
Não percebem que o médico de verdade cui- ser respondida por uma chave política, em

24 Walter Omar KOHAN. Infância e educação em Platão


termos de se precaver de cometer injustiça, para isso, se ocuparão deles em uma casa es-
mais do que de padecê-la, e que o melhor pecial, em um bairro específico da pólis, prévio
modo de vida consiste em praticar e exortar os ocultamento secreto dos que nascem com al-
outros a praticar a justiça e todas as outras guma deformidade (V 460c).
virtudes (527a-e). Na República, tantos cuida- Ali, nos primeiros anos, as crianças se-
dos na criação e educação dessas pequenas rão indistintamente alimentadas pelas mães no
criaturas se justificam porque elas serão os período de amamentação, sem que se reconhe-
futuros guardiões da pólis, seus governantes. çam seus filhos. Os jogos infantis serão regula-
Deve-se pensar nisso ao desenhar sua educa- mentados rigorosamente para que as crianças
ção. Em As Leis, os legisladores se ocupam da desenvolvam desde pequenas a estima e o ape-
educação no meio de uma pormenorizada go pelas leis. A música e a ginástica serão pra-
análise que busca esgotar até os mínimos ticadas segundo critérios igualmente estritos,
detalhes da vida na comunidade da pólis. cuidando para que não se introduza inovação
Voltemos à República. Como sabemos, nenhuma perante a ordem estabelecida pelos
essas crianças de cuja educação se preocupa fundadores da pólis (IV 424b-e; cf. V 460c-d).
Platão serão, no futuro, reis que filosofem e fi- Encontramos nesse esquema os dois
lósofos que governem, de modo justo, a pólis (V elementos básicos que definem uma clássica
473c-e). O legislador se preocupa, sobretudo, pedagogia formadora (Larrosa, 1996). Por um
com sua criação (trophé), a etapa imediatamente lado, educa-se para desenvolver certas dispo-
posterior ao nascimento, por ser a mais trabalho- sições que existem em estado bruto, em potên-
sa de todas, e também com sua educação (V cia, no sujeito a educar; por outro lado, edu-
450c). O princípio para organizar a vida entre os ca-se para conformar, para dar forma, nesse
guardiões é proverbial: “comuns às coisas dos sujeito, a um modelo prescritivo, que foi esta-
amigos” (IV 423e ss.; cf. V 450c ss). Entre eles, belecido previamente. A educação é entendida
homens e mulheres, não haverá posses individu- como tarefa moral, normativa, como o ajustar
ais de nenhuma ordem: nem materiais nem es- o que é a um dever ser. Na medida em que a
pirituais. Os bens, os companheiros e os filhos normatividade que orienta a educação da Re-
também seriam comuns (IV 421c ss.; cf. V 457d), pública é um modelo de pólis justa, trata-se
caso se queira fomentar a maior unidade possí- também ou, sobretudo, de uma normatividade
vel (que digam “é meu” e “não é meu” sobre o e de uma tarefa políticas.
mesmo), cultivar o interesse de cada um pelo Segundo esse modelo, é alguém ex-
todo (o comum, a comunidade) por sobre suas terno, um outro, o educador, o filósofo, o po-
partes (uma hipotética família ou propriedades lítico, o legislador, o fundador da pólis, quem
individuais) e a um só tempo produzir gover- pensa e plasma para os indivíduos educáveis
nantes “dos mais excelsos” (V 459e). o que quer que estes sejam. É a idéia de edu-
A procriação entre os guardiões e a cação como modelar a outro. Modelá-lo,
criação de suas crianças está rodeada de uma formá-lo. Dar-lhes uma forma. Qual forma?
série de intrigas e mistérios justificados pelo No caso de Platão é, em uma última instân-
legislador para manter e melhorar a “qualidade cia, a forma das Formas; são as Idéias, os a
humana” da pólis (V 459c ss). Mentiras e en- priori , os modelos, os paradigmas, os em si
ganos diversos, sorteios espúrios, festas orques- transcendentes, entidades que são sempre do
tradas são planejados com a intenção de per- mesmo modo, indivisíveis, perfeitas, que in-
mitir mais procriações entre guardiões do que dicarão a normatividade da formação. Assim
entre as classes “inferiores”, sem que estas o formados, com a forma das Formas, com o
saibam. Uma vez nascidos os pequenos, ho- conhecimento dessas realidades inteligíveis,
mens e mulheres, especialmente designados as crianças chegarão a ser os filósofos que

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 11-26, jan./jun. 2003 25


governarão adequadamente a pólis e, dessa — não resiste à tentação de apropriar-se da
maneira, nos permitirão conformar a pólis que novidade dos novos, à tentação de fazer da
desejamos produzir. educação uma tarefa eminentemente política e
Nesse registro, as crianças não interes- da política o sentido final de uma educação,
sam pelo que são — crianças — mas porque a partir de uma lógica da política determina-
serão os adultos que governarão a pólis no da com independência da vontade dos novos.
futuro. Nós, os adultos do presente, os funda- Educa-se para politizar os novos, para fazê-los
dores da pólis, os que sabemos da ausência de participantes de uma pólis que se define pre-
certezas e os riscos desse chegar a ser, quere- viamente para eles. As relações entre política
mos o melhor para eles. Isto é, a uma só vez, e educação são carnais: educa-se a serviço de
o que nós consideramos melhor para nós, o que uma política a um só tempo em que a ação
não pudemos ser, mas que queremos fazer que política persegue, ela mesma, fins educativos.
eles sejam. Tentaremos, ainda, acompanhá-los, Por isso a educação é tão decisiva para Platão,
ajudá-los nesse caminho. Para isso, nós os edu- porque é sua melhor ferramenta para alcançar
caremos, desde a mais tenra idade. E o faremos a pólis sonhada.
com nossas melhores intenções. Nesse acompa- Possibilidade, inferioridade, outro re-
nhar os novos (hoi néoi) encontra sentido a edu- chaçado, material da política. Marcas de uma
cação formadora: na passagem de um mundo filosofia da educação. Marcas sobre a in-
velho, que já não queremos, para um mundo fância deixadas por um pensamento. Marcas
novo — novo para nós, claro, velho para os no- que situam a infância em uma encruzilhada
vos —, que os outros trarão com nossa ajuda; ou entre a educação e a política. Primeiras mar-
que nós traremos com a ajuda deles. cas da infância na filosofia da educação. An-
Assim, a educação da República — como tigas marcas da infância. Marcas distantes.
toda a educação formadora em sentido clássico Primeiras? Antigas? Distantes?

Referências bibliográficas

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Recebido em 15.10.02
Aprovado em 18.03.02

Walter Omar Kohan é professor-titular de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Coordenador das séries: Filosofia na Escola (Editora Vozes) e Educação: Experiência e Sentido (Editora Autêntica).

26 Walter Omar KOHAN. Infância e educação em Platão

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