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EDUCAÇÃO, PSICANÁLISE E CONTEMPORANEIDADE

Leda Mariza Fischer Bernardino1

RESUMO
Pretende-se discutir as dificuldades relacionadas à educação formuladas por pais e
professores tendo em vista as condições adversas da contemporaneidade. Autores da filosofia
e da sociologia, bem como psicanalistas que discutem as incidências subjetivas das mutações
culturais em curso são chamados ao diálogo, para entender a ordem destas dificuldades,
principalmente no que se refere à questão da autoridade. Como conclusão, apresentam-se
alguns elementos essenciais da reflexão e da prática psicanalítica para o exercício da função
educativa hoje.
PALAVRAS-CHAVE
Constituição do sujeito – Educação – Psicanálise – Contemporaneidade – Linguagem
televisiva.

Atualmente vem sendo comum uma demanda aos psicanalistas – nos consultórios, nas
palestras, nas instituições – quanto à educação das crianças e jovens. Tanto por parte de pais
quanto por parte de componentes da comunidade escolar. Nossa função é justamente acolher
estas demandas, dando-lhes o destino da reflexão a partir da associação livre, nos
consultórios, ou propondo um trabalho de escuta e de circulação da palavra nos espaços
institucionais ou da comunidade.
O objetivo deste trabalho é ampliar esta discussão, buscando em referências sociológicas,
filosóficas e psicanalíticas elementos para pensar os desafios que se apresentam à
contemporaneidade para contornar o impossível intrínseco ao verbo “educar”.
É certo que as queixas quanto às dificuldades de educar sempre estiveram presentes, em
todas as épocas, podemos encontrá-las já na Antiguidade. No entanto, enfrentamos
atualmente mutações no tecido social, na estrutura simbólica que o sustenta, de tal magnitude,
que justificam a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre o tema; para não
cairmos no gozo da impotência, tão impedidor de movimentos nas relações, e para que
possamos atribuir ao mal-estar contemporâneo seu papel de crítica e de transformações
enquanto sintoma de uma época.

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Psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Curitiba, membro da Associação Universitária
de Psicopatologia Fundamental, pesquisadora FAPESP, atualmente exercendo prática clínica em São Paulo.
ledber@terra.com.br

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Para a psicanálise a educação é um conceito fundamental e amplo, pois vai mais além dos
aspectos cognitivos, pedagógicos, de aprendizagem. A educação pode ser comparada, em
psicanálise, principalmente de orientação lacaniana, com a humanização do filhote humano,
ou seja, para entrar na condição humana, simbólica por excelência, o bebê precisa de uma
educação. A educação cabe em nossa espécie pela necessidade de cada novo ser que vem à
luz de entrar em contato com uma série de construções culturais que lhe precisam ser
transmitidas. Isto quer dizer que cada novo ser humano precisa receber – dos outros que
compõem o seu entorno – um convite para habitar este mundo simbólico. Convite que, se
não for feito, ou se não for aceito, terá como consequência que ele não se tornará humano no
sentido estrito da palavra, já que o homem se caracteriza por pertencer a uma “espécie
simbólica” (Deacon, 1997).
Vemos, portanto, que há uma dimensão de transmissão do campo simbólico, que se dá
justamente através das palavras, do convite e da entrada em um discurso que permite a
constituição de laços propriamente humanos.
Como já desenvolvemos em outro trabalho (Kupfer, Bernardino e Mariotto, 2014), “a
educação possibilita à criança usufruir da palavra em seu sentido pleno, e com ela lançar-se
ao movimento do desejo e da vida. Nesse sentido, a educação é o trabalho da cultura que
permite a constituição de um sujeito do dizer” (pp. 15-16).
Entretanto, é justamente no campo da Linguagem que profundas modificações vem
ocorrendo, desde o século passado, que intervêm no próprio tecido simbólico, que desde o
advento de novas tecnologias e novas linguagens vem se modificando.
Hannah Arendt (2003), filósofa que anteviu já nos anos 1960 a crise da educação, ao se
referir à sociedade norte-americana do pós-guerra, traduz esta ideia salientando a
responsabilidade dos adultos diante das novas gerações. Para ela a educação é uma questão
de passagem de saber de uma geração a outra, e das responsabilidades pelo mundo, dos
adultos às crianças. Se esta diferença geracional se vê negada, se estes adultos não assumem
estas responsabilidades, todo o alicerce da educação, desde a época dos gregos, é colocado
em xeque. Não há mais sustentação do lugar de autoridade, pedra angular da transmissão.
Como aponta Lerude (2009), para Aristóteles o fenômeno da autoridade se relacionava à
diferença entre os jovens e os velhos, à dissimetria geracional. Assim como em Roma, só era
possível ter uma atividade política após terminada a educação. Esta autora cita a socióloga
M.R. d’Allones (2006), para a qual a definição de autoridade inclui três elementos essenciais:
reconhecimento, legitimidade e precedência. É condição para aquele que sustenta a
autoridade ser reconhecido, respeitado em seu lugar; justamente por ter socialmente uma
referência à lei social que o referenda, bem como um legado quanto a sua história e sua
experiência em relação aos demais em um determinado campo. A crise da autoridade
promovida pela pós-modernidade abala estes elementos de forma que os esquemas
tradicionais não funcionam mais. No entanto, M.R. d’Allones afirma:
“se a autoridade tem ainda um sentido, é porque os que a exercem autorizam os que virão depois deles
a empreender por sua vez alguma coisa nova, isto é, de imprevisto, e que a ideia de um horizonte de

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expectativa não se torne caduca pelo fato do desabamento das grandes filosofias da história
totalizantes: ela orienta a ação, dá-lhe um sentido, mas não faz de seu fim um enigma resolvido” (p.
151). Vemos aí o lugar da invenção e da criatividade pensados como uma saída possível, em que a
dimensão de enigma não se perde, mas é legada.

Lerude (2009) também cita Kojève (2004), para quem “a autoridade é a possibilidade que
tem um agente de agir sobre os outros sem que estes outros reajam contra ele, mesmo sendo
capazes de fazê-lo” (p.12), mostrando como a autoridade depende de uma aceitação
voluntária por parte daquele que a admite, não necessitando para isto de nenhuma coerção.
A questão que se apresenta, pois, é: o que faz autoridade hoje na educação?
Dany-Robert Dufour considera a educação como « um fato social total » (p. 119). Para este
autor, a educação atualmente – ou seja, após os anos 50 do século XX - fica a cargo de 3
instâncias: a família, a escola e.… a televisão! E ele observa: “Sendo o homem um ser de
linguagem, é consistente apostar que toda nova prática da linguagem induz profundas
transformações para os indivíduos que se encontram confrontados com ela” (p. 119-120). Ele
adverte, portanto, que as tecnologias da informação introduzem um novo modo de relação
com o campo simbólico, já que se tratam de outras linguagens.
Muito já se falou sobre o papel da família na educação, do ponto de vista psicanalítico, desde
o estudo magistral de Lacan (2003) sobre os Complexos Familiares até trabalhos mais
recentes de Roudinesco &Derrida (2004), Teperman (2014), autores que sustentam a família
como uma instituição que resiste e resistirá, em detrimento das mudanças culturais que se
apresentarem. Podemos ter, segundo eles, mudanças contingenciais na composição das
famílias, mas as funções básicas continuam presentes. Interessa-nos pensar em que as
famílias contemporâneas podem se apoiar para exercer a autoridade necessária à educação.
Pois esta questão, sim, podemos afirmar que está abalada.
Quanto a isto, propomos refletir sobre o papel deste novo componente da educação dos
sujeitos – a televisão – neste abalo. Embora os estudos sobre os efeitos da linguagem
televisiva na constituição dos sujeitos ainda sejam poucos e pouco conhecidos, alguns autores
se lançaram neste terreno. Vamos explorar alguns aspectos destes estudos dignos de
destaque.
No que se refere ao efeito da televisão e outras telas para os bebês, Serge Tisseron (2008)
aponta quatro questões essenciais: a televisão desvia o bebê de atividades que engajam seus
cinco sentidos e perturba a consciência que ele tem de seu corpo; o bebê fica fascinado com
o ritmo rápido das cores e dos sons e pode interiorizar este ritmo em sua personalidade em
formação; pode se instalar um círculo vicioso trágico, no qual os pais colocam seu bebê
diante da TV porque ela parece acalmá-lo, mas ele se torna agitado tão logo ela é desligada,
pois precisa reagir ao que foi provocado nele pelas imagens; o bebê instalado regularmente
diante de uma tela corre o risco de constituir esta última como espelho privilegiado de
interação.
Para este autor, “a televisão está perturbando os processos precoces de identificação. (...)
empobrece o lar vivo de identificações para os bem pequenos e os conduz a encapsular

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precocemente certas identificações unilaterais” (p. 110). Vemos que o principal elemento que
falta na relação criança-TV é a possibilidade de interagir com outro humano, de se relacionar
com alguém que apresenta reações adaptadas a ela, modificações nas ações de acordo com
as circunstâncias, e que aporta significações para as experiências compartilhadas.
Segundo as pesquisas de Tisseron, o consumo televisivo incide sobre “os processos de
pensamento e da imaginação, sobre a integração das emoções e sobre o desenvolvimento
psicomotor” (p. 121), com os riscos de favorecer “ a passividade, os atrasos de linguagem, a
agitação, os distúrbios de sono e de concentração, bem como a dependência de telas” (124).
Vemos que para este autor, a exposição à televisão antes dos três anos produz modificações
importantes na relação da criança com os outros, com os objetos e com o mundo que a cerca,
podendo chegar a substituir os pais no campo das interações e incidindo em suas
identificações. Isto porque “ao invés de se apoiar sobre referências já construídas para fazê-
las evoluir, como para o adulto, ela participa da construção mesma destas referências” (p.
107). Pois uma coisa é a criança entrar em contato com a TV quando já tem as bases psíquicas
estabelecidas – o que ocorre nos primeiros anos de vida – e outra é ela ter a TV como um dos
elementos que vão nortear a sua relação consigo mesma e com o entorno! No segundo caso,
uma nova linguagem e uma outra forma de relação vão intervir na sua entrada no campo
simbólico.
Dufour (2005), por sua vez, fala dos efeitos da televisão sobre as crianças em geral,
destacando “a grave questão dos desarranjos semióticos provocados pela imagem televisiva”
(p 123), ressaltando ainda: “a televisão efetivamente roubou o lugar educador dos pais em
relação aos filhos” (p. 123). Dufour analisa a independência dos efeitos das imagens dos
efeitos das palavras: até o século passado imperava uma relação texto-imagem, em que as
palavras remetiam às possibilidades representacionais: a figurabilidade, a fantasia. Ao ler um
texto, por exemplo, formam-se imagens mentais, embora estas jamais correspondam
perfeitamente à ideia contida nas palavras. Esta é a base não só da simbolização quanto da
capacidade imaginativa do homem. Já a imagem televisiva, já pronta e unilateral, requer o
caminho inverso, precisa ser decifrada, mas como não há tempo para isto neste fluxo de
informações, o mais provável é que vá se colar às fantasias de cada um, que, como Dufour
exemplifica, “frequentemente imagens de onipotência ou impotência” (p. 132). Ele
demonstra como esta exposição maciça das crianças às imagens das telas, sem a mediação
de adultos confiáveis, pode afetar gravemente a “capacidade discursiva e simbólica do
sujeito” (p. 132). Ele observa: “Sendo impotente para transmitir sozinha o dom da palavra, a
televisão dificulta a antropofeitura simbólica dos recém-vindos, ela torna difícil o legado do
bem mais precioso, a cultura” (Dufour, 2005, p. 132).
Segundo Dufour (2005), crianças com grande exposição às televisões são crianças com
“referências simbólicas mal fixadas” (p. 134) e vão ter extremas dificuldades na escola,
porque a comunicação unilateral e contínua dos programas televisivos não prepara para o
diálogo: são crianças que têm dificuldades com os turnos dialógicos: não escutam e não
falam, sendo assim, não se abrem aos enigmas de escrita, da fala e da leitura, tão

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enriquecedores para a experiência humana. As condições de aprendizagem escolar ficam
extremamente prejudicadas.
Este autor conclui esta reflexão sobre este novo “educador” representado pelas telas dizendo:
“Do ponto de vista da educação, a ruptura entre a modernidade e a pós-modernidade é
surpreendente: uma geração não faz mais a educação da outra. Desaparecendo o motivo
geracional, não há mais disciplina e, como não há mais disciplina, não há mais educação”
(Dufour, 2005, p. 141).
Aliada à questão da autoridade, a disciplina também aparece em colapso.
Outro aspecto importante no que se refere ao fracasso da transmissão simbólica para as
novas gerações é apontado por Bauman (2011), autor que cunhou o termo “liquidez” para
nos ajudar a pensar o contemporâneo, e que acentua este aspecto na educação: “fomos
transportados de uma civilização da duração e por isso da aprendizagem e da memorização,
para uma civilização da transitoriedade e com isso do esquecimento” (p. 185, grifos do
autor). Fazendo uma comparação entre mísseis balísticos e mísseis inteligentes, Bauman
(2011) refere-se a uma nova relação entre tempo, espaço e aprendizagem: trata-se de
“aprender no caminho”, ou seja, uma capacidade de aprender, e depressa, mas diretamente
proporcional à capacidade de esquecer, em uma lógica que o conhecimento adquirido se torna
“dispensável” (p. 187), e em que “todos os tipos de conhecimento têm expectativas de vida
críveis bem mais curtas” (p. 188), desembocando em uma cultura de “desengajamento,
descontinuidade e esquecimento” (p. 192).
Este autor ressalta um paradoxo com o qual temos que lidar: “para ter utilidade em nosso
cenário líquido moderno, a educação e a aprendizagem devem ser contínuas e vitalícias.
Nenhum outro tipo de educação ou aprendizagem é concebível (...) a não ser o da reforma
contínua perpetuamente inacabada, em aberto” (Bauman, 2011, p. 192-193).
Como educar, então, se o que se pode transmitir já não tem valor como outrora, se o saber
sobre o presente é mais acessível aos jovens que aos adultos, se a técnica suplanta as ideias,
se o futuro se apresenta como imprevisível? Como educar para a transitoriedade?
Lipovetsky (2004) segue a mesma direção, ao apontar as consequências que a
hipermodernidade nos faz viver: o esvaziamento trazido pelas experiências de gozo, em uma
sociedade onde tudo é hiper: “não há escolha senão evoluir’, acelerar, para não ser
ultrapassado pela ‘evolução’’ (p. 57).
Mas evoluir em qual direção, sem ter tido tempo de refletir, sem ter uma ideia do que nos
espera no futuro, e sabendo que qualquer evolução do adulto sempre estará em desvantagem
em relação à evolução dos jovens.... Num contexto em que a experiência é desvalorizada e a
aceleração incentivada, os lugares em relação ao saber podem se inverter, como já discutimos
em outro trabalho, falando da criança como mestre do gozo da família atual (Bernardino e
Kupfer, 2008).
Diante deste estado de coisas podemos conceber que a dificuldade de educar hoje é de ordem
radicalmente diferente da que se apresentava até meados do século XX, justamente porque

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os elementos que sustentavam a “autoridade da palavra”, para utilizar um termo que Dufour
foi encontrar em Blanchot (1973, p. 67) não se encontram mais postos. Quem educa, hoje,
está de saída mal posicionado, pois não encontra mais no campo social dispositivos de
sustentação para sua autoridade enquanto educador. Precisa sustentar-se sozinho, portanto.
Temos aí um ponto a salientar: a solidão daquele que realmente tem um desejo decidido de
educar, quer seja um pai, quer seja um professor, daquele que não demissiona diante dos
obstáculos que citamos acima. Poderíamos dizer, psicanaliticamente falando, que algo falha
na transferência, até então espontânea, do filho com os pais, do aluno com os professores....
Seu lugar de suposto saber o que é melhor para o filho, no caso dos pais; ou o que é seu
suposto dever ensinar no caso dos professores, são contrapostos ao poder da imagem, do
consumo e à fragilidade líquida da palavra hoje.
Como psicanalistas, que ainda resistimos heroicamente sustentando o valor e o poder das
palavras, podemos recorrer a Freud para tentar ver uma luz no fim deste túnel cheio de
vertigens da sociedade ultraliberal e suas inúmeras tentações ao gozo...
Em Futuro de uma Ilusão (Freud, 2014, 1927), conforme nos lembra Voltolini (2011, p. 52),
propõe a chamada “educação para a realidade”. Esta ideia, fundada na concepção freudiana
de realidade psíquica, é, conforme Voltolini “uma realidade tecida socialmente, em seu mais
íntimo sentido”, e o autor explica: “se por um lado é aquilo que se opõe ao gozo infinito, sem
limites, por outro é aquele que estabelece as condições possíveis de qualquer gozo”
(Voltolini, 2011, p. 53).
Vamos então seguir a via freudiana, na contramão da via hoje alardeada pela mídia, que
poderíamos resumir como um imperativo à felicidade, e que se traduziria por uma promessa
de gozo sem limites. Como no comercial da família em torno da margarina, ou da família
desfrutando o carro do ano, ou dos jovens em torno das cervejas, ou da criança com seu novo
jogo virtual, o ideal está colocado: devemos ser felizes, já que dispomos de tantos objetos
maravilhosos.... Ora, sabemos que não é bem assim, os objetos sempre deixam a desejar....
Felizmente! A própria engrenagem do mercado neoliberal conta com esta insatisfação
estrutural do homem, já que é garantia de que sempre haverá consumidores ávidos por novos
produtos. Bauman reconhece esta falácia do discurso em torno da felicidade prometida para
aqui e agora da sociedade de consumo, já que esta “prospera conquanto consiga tornar
permanente a insatisfação (e, em seus próprios termos, a infelicidade) ” (p. 174).
Mas, e é lamentável, vemos os pais de hoje tentando desesperadamente, às vezes às custas
de muito trabalho e tempo dispendido, esforçando-se para adquirir os objetos que finalmente
fariam dos filhos sujeitos felizes, sem perceber que esta labuta os distancia ainda mais dos
filhos! Mas este é o mecanismo, e é o que ouvimos frequentemente na clínica: “eu só queria
que meu filho fosse feliz”...
Por que Freud (2010, 1930) aponta a realidade e não a felicidade como uma boa saída para a
educação? Porque ele mesmo dissecou a questão da felicidade em 1930, em Mal-estar na
Civilização. Neste texto magistral e de uma atualidade sempre impressionante, Freud aponta
a incompatibilidade da experiência humana com o ideal de felicidade, já que há um
desconforto humano intrínseco, devido à força superior da natureza, à decrepitude do próprio
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corpo e das normas reguladoras da relação entre os homens. Assim, o processo civilizatório
se liga a este desconforto e é sempre incompleto, para Freud (2010, 1930), pois que se choca
continuamente com a natureza “indomável” da própria constituição do psiquismo humano.
A função da cultura, da educação, da formação, seria forçar um deslocamento das metas
pulsionais destrutivas, que trabalham contra a civilização, para um viés construtivo,
sublimatório.
Como se situar em uma boa posição para ser agente do processo civilizatório, ou seja, ocupar
o lugar de educador? E isto vale tanto para os pais quanto para os professores.
Poderíamos dizer, na esteira de Freud (2010, 1930), que ocupar um lugar de autoridade
envolve dois movimentos: não se identificar demais com as leis que representam, e não se
recusar a se identificar com elas enquanto seus representantes.
Então, podemos afirmar que uma educação para a realidade é diferente de uma educação
para a felicidade. Enquanto a segunda cai no conto da miragem publicitária, a primeira
adverte para a estrutura da condição humana, embora não seja impeditiva de um certo gozo
possível.
Contemplando esta condição, podemos nos indagar: o que é essencial ao humano,
independente das mutações culturais? Resposta lacaniana: que ele possa chegar plenamente
ao estatuto de sujeito falante e desejante.
Ao menos até que esta mutação produza realmente transformações tão cruciais que estes
estatutos se percam... E vamos ter então que redefinir o homem.
Entretanto, pensando no momento atual, em que as transformações estão em curso, mas as
bases simbólicas ainda se mantêm, quais condições mínimas uma criança precisa encontrar
em seu entorno para se tornar um sujeito falante?
Podemos destacar alguns elementos, com os quais operamos em nossa clínica psicanalítica,
justamente quando as condições para a presença da subjetividade se encontram em risco; mas
que podem também ser fundamentais na educação exercida tanto pelos pais, quanto pelos
professores: a interação, o brincar, a narratividade, o diálogo com um bom interlocutor, a
mediação na relação com os meios não humanos.
A interação é o que permite ao bebê formar seu psiquismo, ele precisa encontrar em seu
ambiente este disparador de suas potencialidades. Sem este, nenhum desenvolvimento de seu
psiquismo, suas funções e habilidades será possível. É na relação bebê/criança
pequena/criança/adolescente com um parceiro que as experiências adquirem sentido,
nomeação, registro psíquico.
O brincar é por excelência o meio de elaboração da difícil confrontação com o meio humano,
ao qual a criança é convidada a adentrar. É através da dilatação de seu imaginário que ela
poderá confrontar sua impotência e seu desamparo diante do mundo externo com
possibilidades de inventar, no faz-de-conta, outros lugares possíveis para si, sonhos que
servirão como base para seu vir a ser.

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A narratividade refere-se às palavras que o adulto empresta às experiências, para dar-lhes
contexto, propor-lhes significação, permitir sua elaboração simbólica. Contar histórias seja
em que idade for, é sempre uma forma de o adulto educador colocar-se a serviço do
psiquismo de seu pequeno interlocutor. Seja lendo uma história infantil, um conto, ou
relatando uma história familiar, um mito cultural, é no tecido de suas palavras que a criança
ou o adolescente poderão encontrar linhas para escrever suas próprias histórias.
O diálogo com um bom interlocutor é fundamental, principalmente para a criança em idade
escolar e para o adolescente. É indispensável poder contar com alguém para discutir os
assuntos, confrontar-se com as diferentes opiniões, ampliar as possibilidades de sentido,
sentir-se acolhido e apoiado, conhecer diferentes formas de enfrentar as situações.
A mediação de um adulto na relação com objetos interativos não humanos é um importante
antídoto para os riscos apontados acima da TV e das demais telas ao psiquismo em formação
de crianças e adolescentes. Desenvolver o sujeito em seu aspecto crítico, ativo, em relação
às imagens em fluxo que se apresentam a ele é fundamental para contrapor a fascinação
alienante produzida por estes meios. Poder introduzir pausas nestas relações com estes meios,
estabelecer horários, disponibilizam os jovens para outras experiências importantes da vida.
Evidentemente, para que estes elementos façam função, é necessário que o desejo esteja
presente em todas as situações descritas e em todos os personagens envolvidos.
E qual é a condição para se tornar um sujeito desejante? O encontro com a dimensão da
falta. Em termos freudianos, trata-se da castração, importante desenlace da operação edípica
que nos habilita a assumir nossa própria história.
Charles Melman, em seu artigo Sobre a Educação das Crianças (2010) afirma: “o bem
maior que posso lhe dar [ao meu filho] é ter acesso à falta inscrita no Outro” (p. 34). Trata-
se de poder conduzir as novas gerações ao encontro disto que é a essência do homem e
também fonte de seu mal-estar estrutural: vivemos no campo simbólico, mas este campo não
recobre tudo, há sempre algo que escapa, que resta fora da simbolização. A ideia de morte,
por exemplo, por mais palavras e mitos que utilizemos para ter acesso à significação última
deste significante, sempre serão insuficientes. Outra forma de explicar esta falta está expressa
na sabedoria popular: “errar é humano”, “ninguém é perfeito”, ou seja, fora do plano ideal
todos somos faltantes, em nosso saber, em nossas palavras, em nossas relações...
Esta é a função dos pais, poder dar acesso ao campo do Real, “pois é só este real que ele
pode vir a habitar como sujeito e de onde pode vir a desejar” (Melman, 2010, p. 34). O autor
chama a atenção para o aspecto paradoxal disto: como transmitir este “nada”? E ele vai
propor a resposta: através de um “trauma”, que poderá ser recebido com amor ou como
insuportável, e para a criança poder fazer esta diferença os pais têm que estar bem
posicionados diante de sua própria história, para transmitir a história familiar que sempre
envolve um dano, e para situar a criança em uma posição ideal em relação a este dano, o que
a instalaria em uma filiação. Para Melman (2010), o que se espera de uma educação é que as
crianças possam se entender com as leis da linguagem. Poderíamos então nos referir a esta
trajetória de entrada e apropriação da linguagem que vai da língua materna, na qual ela se

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constitui, para o encontro com os significantes do Nome do Pai, que vão inscrever em seu
psiquismo a constituição fálica da cultura (onde a falta se marca como simbólica, castração)
ao final da operação edípica, para então operar com a língua de todos, na escola e na
comunidade.
Melman refere-se ao que ele próprio aprendeu com Lacan, para falar da “coragem das ideias”
que os pais podem transmitir aos filhos através de seus atos, seu exemplo: de assumir, ser
responsáveis por seus desejos; de que os bens materiais não são a finalidade da existência; e
do respeito à verdade, que nada mais é do que: o Outro falta, “que no Outro há esta falha que
nenhum saber pode vir a formatar” (p. 37).
Se aprendemos com Freud e com Lacan que o desejo surge da interdição, aqui podemos
inserir a função paterna fundamental, a ser exercida em casa e na escola: a possibilidade de
colocar limites, dizer “não”, estabelecer regras e normas que possam ser seguidas. O adulto
que tem esta “coragem” à qual Melman alude é capaz de ir além de seu narcisismo encarnado
no filho ou no aluno pretensamente perfeitos e pode apresentá-los a esta falta constitutiva.
Não podemos deixar de nos referir a um grande mal-entendido que costuma se produzir nas
relações atuais. Primeiramente, nas relações familiares, quando se confunde a criança
enquanto sujeito que deve ser respeitada em sua existência, cujas palavras devem ser ouvidas
com atenção, com alguém que teria um saber que dispensaria o saber dos adultos. Uma
criança não precisa só ser acompanhada em suas descobertas e aprendizagens, ela precisa
também que o adulto lhe transmita significações, nomeie estas experiências, possa legar a ela
o que a cultura já construiu a respeito disto em torno de que ela se interroga. Deixá-la se
autorregular, deixá-la supor que é ela quem detém o saber é relegá-la a um grande desamparo,
é abdicar da função educativa em relação a ela.
Da mesma forma, na aprendizagem escolar, principalmente de pré-púberes e adolescentes,
colocar-se como professor-amigo, professor-colega, para apenas compartilhar o objeto de
conhecimento numa paridade de lugares – como equivocadamente pregou a escola-nova - é
uma situação que não favorece a relação professor-aluno nem tampouco a aprendizagem. É
importante que o professor possa transmitir sua relação com a matéria que ensina, sua paixão
por este campo de conhecimento, o qual estudou com afinco muito antes de conhecer estes
alunos, – situando-se então em uma outra posição em relação ao objeto de estudo – só assim
poderá ocupar um lugar de autoridade (não forçada, não coercitiva, mas conquistada) e
estabelecer a disciplina necessária para o ensino-aprendizagem.
Por fim, Melman resume nestas palavras o dilema contemporâneo: “Há um ideal de
felicidade proposto às crianças que coloca os pais em dificuldade para confrontar seus filhos
com regras e limites” (p. 40). Teríamos que pensar a questão da felicidade em outros termos,
diante do apresentado até então.
Inspiremo-nos na literatura, sempre uma boa maneira de roçarmos o real. Clarice Lispector
(1998), em seu conto “Felicidade Clandestina” toca no cerne da questão. No conto trata-se
de uma menina mal-ajambrada e pobre, amante dos livros, que desejava ardentemente ler o
livro Reinações de Narizinho, cuja detentora era a filha de um livreiro. Esta menina

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afortunada, no seu sadismo infantil tão bem retratado aí, prometera emprestá-lo para ela, mas
não cumpria. Acompanhamos no conto a expectativa em relação ao objeto de desejo, sempre
renovada a cada recusa da coleguinha. Até que, com a intervenção da mãe, a pequena
proprietária acaba emprestando “sem prazo de devolução” o tão ambicionado livro. Vejamos
nas palavras da autora o final da história:
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter.
Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei
ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-
o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a
felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como
demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes
sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. (Lispector, 1998, p. 12)

Poderíamos observar, para a menina do conto de Clarice: não só para ela, mas para todos, a
felicidade só pode ser clandestina, um momento roubado do cotidiano mal-estar que nos
assola, mas também nos salva e nos define como humanos: faltantes, desejantes, sempre em
busca de objetos metonímicos para nossa falta-a-ser. Em privilegiados momentos, uma
metáfora se produz, na forma de um livro, neste caso. Depois, o ciclo recomeça. O ciclo da
vida!
Esta emoção da expectativa do encontro, este intervalo entre imaginar ter e finalmente ter,
esta hiância entre a demanda e sua satisfação foi algo que se perdeu neste mundo apressado
de excesso de objetos e facilidades de obtê-los. Que em nosso papel de educadores tenhamos
sempre em mente a importância dos limites, da falta, do não ter, como matéria-prima para
expectativas, sonhos que poderão desembocar na realização, mesmo que clandestina, de
nossos anseios!

Referências
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Seuil.
Arendt, Hannah (2003). A crise da educação. Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva.
Bauman, Zygmut (2011). Vida apressada, ou desafios líquidos modernos para a educação. A
Ética é possível num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar.
Blanchot, Maurice (1973). Le Pas au-delà. Paris: Gallimard.
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