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CIDADANIA E POESIA NA ESCOLA: ESSA RIMA “COLA”

Juliana Carla da Paz Alves - UFAL


Laura Cristina Vieira Pizzi - UFAL

Alguns conceitos de infância: com qual infância conversamos na escola

As crianças que participaram desse trabalho moram e estudam em um bairro da


periferia de Maceió. São crianças, em maior ou menor grau, desfavorecidas
financeiramente, variam em gênero, cor, tamanho, série e idade. E mesmo fazendo parte
de uma mesma comunidade escolar, lócus formador de cidadãos e cidadãs, são regidas,
muitas vezes, por distintos discursos sobre cidadania.
Esse cenário de distinção entre os sujeitos constitui já, em si, resposta para muitas
questões sobre o que é infância, segundo minha perspectiva nesse trabalho, no qual adoto
a noção histórica de construção dos conceitos de infância, de acordo com os contextos
históricos, sociais e culturais. Muitas vezes também recorro à ideia filosófica de infância
utilizada por autores como Kohan (2010), que se encerra em observar que a infância não
se limita a uma fase biologicamente determinada, ou seja, à infância não caberia ser vivida
apenas pelas crianças.
O termo infância vem do latim e significa aquele que não sabe se expressar, que não
domina a linguagem. Pois bem! Muitos autores que investiram sua atenção em pesquisar
a infância e as diferentes nuances que, historicamente, tomou esse período da vida ou da
subjetividade humana, também fundamentam suas explicações e análise, muitas vezes,
na forma como os sujeitos infantes se relacionam, dominam ou não a forma de linguagem
mais utilizada socialmente.
Postman (1999) menciona que na Idade Média a infância terminava por volta dos sete
anos de idade, uma vez que nesse período da vida os sujeitos já dominavam a
comunicação oral, forma da linguagem mais difundida socialmente. Que esse cenário se
modificou com a invenção da prensa, e com toda a transformação cultural e social
ocorrida entre o período medieval e a modernidade, quando, segundo Foucault (2008),
outra forma de governo sobre as pessoas se impôs, modificando organizações sociais,
comportamentos e formas de conceber e produzir os sujeitos, dessa maneira a própria
infância ganhou contornos muito peculiares ao mundo moderno, como explica Ariès
(1989) em uma exposição brilhante e sucinta do processo de transformação da noção de
infância entre os períodos históricos supracitados:

O primeiro sentimento de infância - caracterizado pela paparicação – surgiu no meio


familiar, na companhia das criancinhas pequenas. O segundo, ao contrário proveio de
uma fonte exterior à família: dos eclesiásticos ou dos homens da lei, raros até o século
XVI, e de um maior número de moralistas até o século XVII, preocupados com a
disciplina e a racionalidade dos costumes. Esses moralistas haviam-se tornado sensíveis
ao fenômeno outrora negligenciado da infância, mas recusavam-se a considerar as
crianças como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era
preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou
para a vida familiar. No século XVIII, encontramos na família esses dois elementos
associados a um elemento novo, a preocupação com a higiene e a saúde física. (p.
163/164)

Voltando a Postam (1999), o autor argumenta que com a difusão do novo status dado
à linguagem escrita, no período moderno, as crianças já não podiam dominar com a
mesma facilidade a comunicação com o mundo adulto que agora possuía um saber não
pertencente ao mundo infantil, impossibilitando este último de acessar determinados
conhecimentos, portanto, sendo colocada num lugar de menos poder na relação com o
saber produzido na época.
As observações de Postman (1999), acrescida das pesquisas de Ariés (1989)
demonstram como foi produzida, por conta das demandas que surgiram, a necessidade
dessa infância ser colocada em um lugar que fosse fazer das crianças o que elas
precisavam aprender a ser: adultos. Segundo os autores, esse lugar foi a escola.
Houve então a institucionalização da infância, que de acordo com Varela e Luria
(1992), ocorreu quando o Estado se responsabilizou pela educação das crianças.
Definindo algumas das características da configuração histórica que deu condições para
o nascimento da escola nacional, obrigatória e pública, do século XVI à
contemporaneidade, os autores listam os seguintes pontos:

1- A definição de um estatuto de infância;


2- A emergência de um espaço específico destinado à educação das crianças;
3- O aparecimento de um corpo de especialistas da infância dotados de tecnologias
específicas e elaborados códigos teóricos;
4- A destruição de outros modos de educação;
5- A institucionalização propriamente dita da escola: a imposição da
obrigatoriedade escolar decretada pelos poderes públicos e sancionada pelas leis. (p.69)

Tal institucionalização daria às crianças um lugar onde seriam formadas para a vida
adulta, que já não mais se misturava às suas, como na Idade Média. Lá, acessariam
gradativamente os conhecimentos, a linguagem, condutas e forma de socialização para a
póstuma vivência cidadã em sociedade.
Nesse processo como nos afirma Gallo (2003) e muitos outros autores que dissertam
a respeito do disciplinamento dos sujeitos dentro da escola a exemplo de Foucault (2009),
Alves (2010), Alves e Pizzi (2012), o que acontece com a institucionalização das crianças,
muitas vezes está ligado à conformação de sua subjetividade à linguagem que é da escola.

A criança, infans, sem palavra, é introduzida no universo da linguagem. Mas não para
experimentar sua própria voz, mas para ser enquadrada num sistema semiótico já
definido, no qual ela dirá aquilo que se espera que seja dito. Eis o que é aprendido na
escola (GALLO, p.116).

As crianças participantes desse trabalho comunicam-se muito bem através da


linguagem oral, muito embora em diversos momentos se distanciem das formas de uso
da língua padrão, mesmo sendo escolares. Com a linguagem escrita, uma vez que se trata
de crianças entre seis e catorze anos, regularmente se relacionam de maneiras bastante
distintas, mas decerto que, concordando com os autores citados até aqui, os infantes que
possuem mais intimidade com a escrita e a leitura estão em outro status de poder dentro
das relações pedagógicas, uma vez que essa é a forma de comunicação com o
conhecimento escolar mais valorizada nesse ambiente.
Durante toda a Idade Moderna é o sentimento de infância a ser conformada,
disciplinada, que se torna mais evidente nas relações sociais. A esse respeito trazemos
alguns discursos que dizem da modificação e reconstrução da visão de infância no período
que Bauman (2001) denomina de modernidade líquida, Bunckingham (2006), chama de
Modernidade tardia, e que muitos outros teóricos, baseando suas pesquisas em Foucault
nomeiam pós-modernidade. Esse período histórico, segundo esses autores, compreende
o período que se inicia por volta da metade do século XIX até a atualidade.
Narodowski (1993,1999) faz uma diferenciação entre as características da noção de
infância escolarizada nos períodos modernos e pós-moderno. O autor aponta como na
pós-modernidade a infância tem se recolocado socialmente diante do conhecimento, uma
vez que tem acesso e domínio sobre saberes que prescindem da linguagem escrita para
fazer parte do mundo infantil.
Postman (1999) segue também essa linha de pensamento sobre a infância pós-
moderna e chega a anunciar o fim da infância ou o desaparecimento dela. De maneira
metafórica, o autor explica que o afastamento das crianças do mundo adulto diminuiu
imensamente, pois ele se deu por que os infantes, na modernidade, não mais davam conta
de dominar os conhecimentos e formas de comunicação dos adultos, mas o surgimento
da TV e das novas maneiras de comunicar-se, forjadas no contexto pós-moderno, cheias
de imagens e linguagem oral, prescinde, muitas vezes, da linguagem escrita.
As imagens/linguagens presentes na televisão são autoexplicativas, desvendam
segredos, ou seja, torna públicos conhecimentos e informações, principalmente as
segundas, pois a TV, geralmente, não tem como aprofundar nos temas. Tudo fica
superficial. Temas como medicina, psicanálise, biologia... E tudo o mais. A TV não tem
tempo para a o aprofundamento. Enfim ela também não classifica o mundo em
adulto/criança, dissemina suas mensagens a todos com capacidade para absorvê-la. Não
é como a cultura livresca, implantada pelas escolas, onde é necessário ser treinado, passar
por várias e árduas etapas, nas quais os indivíduos são distinguidos, ensinados,
examinados, classificados etc.
Autores como Bunckingham (2006) e Narodowski (1999), observam como essa
relação da infância com o conhecimento, que tem a ver com essas recentes formas de
acessá-lo, presentes na TV, nos computadores, celulares e tabletes, enfim, no acesso e
domínio da linguagem presente nas novas tecnologias, provocam uma realocação das
crianças nas relações de poder dentro e fora da escola.
Dentro desse contexto, Narodowski (1999) descreve duas imagens de infância que se
constituem em diferentes vertentes, mas coexistem nesse mesmo contexto histórico,
demarcando uma convivência diferenciada com os adultos, em relação à imagem
moderna de uma “infância da falta” de experiência, de maturidade, de conhecimento, de
responsabilidade e de capacidade de tomar conta de si, ou seja, heterônoma, quase que
totalmente dependente dos cuidados e ensinamentos dos já crescidos.
O autor trabalha com os conceitos de infância hiperrealizada e infância
desrrealizada, esses se constituem polos entre os quais se projetam centenas de
possibilidades de vivenciar a infância.
Segundo suas especificações,
Un es el polo de la infancia hiperrealizada. La infancia de la realidad virtual. Se
trata de los chicos que realizan su infancia con Internt, computadoras, sesenta y cinco
canales de cable, vídeo, family games, y que hace ya mucho tiempo dejaron de ocupar el
lugar del no saber. Suelen ser considerados como “pequeños monstruos” por su padres y
maestros, parecen no gerenar cariño o ternura o, al menos, no esse cariño o esa ternura
que guardábamos tradicionalmente para la infancia moderna. No suscitan en sus adultos
“protectores” demasiada necesidad de protección. (NARODOWSKI, 1999, p.47)

Por outro lado, como o outro extremo da vivência infantil o autor traz o conceito de
infância desrrealizada:

Es la infancia que es independiente, que es autónoma, porque vive em la calle, porque


trabaja a edad muy temprana. Son tambiem los chicos y las chicas de la noche, que
pudieron reconstruir una serie de códigos que les brindan cierta autonomia económica y
cultural y les pertmiten realizarse , mejor dicho, des-realizarse, ésa es la palabra correcta,
como infância. Son ninõs hacia los cuales dificilmente tendremos um sentimiento
moderno de infancia, ternura y protección. (NARODOWSKI, 1999, p.51).

E entre esses dois polos é possível encontrar muitas infâncias, inclusive, a


encontrada com maior regularidade na escola estudada. Uma infância que acessa seus
perfis no facebook em lanhouses, nos celulares, e nos tabletes ou computadores
particulares, também ajuda a cuidar da casa e da família, realizando tarefas domésticas,
ou auxiliando na educação dos irmãos menores. Uma infância que fica trancada em casa
quando os pais saem pra trabalhar, mas estão sozinhos nos campinhos do bairro nos fins
de semana, que veem TV nos mais variados horários sem seleção da programação, que
ouvem e dançam músicas com palavras de duplo sentido, mas sabem que namoro e sexo
é coisa de adulto.

Cidadania e a infância escolar

A infância que encontramos na escola, com todas as suas peculiaridades – dos


sujeitos e sua histórias – e generalizações – quando em grupo, capturados na abrangência
por um discurso que os reúne – concorrem para a produção de formas de vivenciar a
cidadania, ligadas aos discursos e ás práticas discursivas que a produz.
Busquei em autores como Bauman (2001) e Lipovetsky uma visão de cidadania
que também retomem suas formas modernas e a radicalização de suas vivências na
atualidade. A noção de cidadania desenvolvidas por esses pesquisadores, fundamentam
muitas das falas das crianças durante o debate sobre cidadania, que teve como ponto de
partida as poesias Escola política e Na moda de Alisson da Paz e Vitor Pi,
respectivamente.
Preferi trazer autores que retomam a visão de cidadania elaborada ainda na
modernidade para falar a respeito de crianças e poesia contemporâneas, pois é esse
discurso moderno que encontrei nas aulas e no currículo difundido na escola. Essa visão
da cidadania permeia ainda muitos outros espaços, além do escolar, que está mais
direcionado para o acesso aos direitos básicos e fundamentais como educação, saúde,
moradia, voto, liberdade de ir e vir e etc.
Essa cidadania que visivelmente ainda não foi efetivada, essa que garantiria a
estabilidade necessária para a sociedade brasileira, alagoana, maceioense, periférica
atingir condições de desenvolver outros campos de uma cidadania plena.
Entretanto, ao analisar a teorizações de estudiosos que já observam as sociedades,
sobretudo as capitalistas, sob uma perspectiva da hiperrealização da cidadania moderna,
pude identificar na conversa com as crianças que essas formas modernas e hiperrealizadas
encontram-se mescladas em sua vivência cidadã.
Como hiperrealização dos valores modernos Lipovetski (2009) evidencia a
ascensão da burguesia e a adoção dessa moda democrática que massifica, mas
individualiza ao mesmo tempo, dando a liberdade de não diferenciar-se por classe social,
mas cultuando um prazer de si para si, enquanto tem a liberdade democrática da
hiperescolha, de acrescentar ao seu estilo as opções que preferir, ou pelas quais for
seduzido.
Numa obra que tem a moda como mote, mas as sociedades pós-modernas como
cerne, Lipovetsky (2009), nos traz a possibilidade de observar as formas fluidas e
individualistas massificantes de viver a cidadania, presente não apenas na esfera do
consumo da moda, mas da informação, do conhecimento, dos afetos, dos
posicionamentos políticos, que forjam identidades, construindo subjetividades e
condutas, por isso quis acrescentá-la a essa discussão sobre infância e cidadania.

Os primeiros encontros que tive com as crianças após o período de observação das
aulas ocorreram, coincidentemente, no período das campanhas eleitorais dos candidato/as
a Presidente da República; Governadores; Deputados Estaduais ou Distritais; Senadores; e
Deputados Federais, em 2014. Por conta disso preferi começar discussão sobre cidadania
com o poema de característica simples e sofisticada de Alisson da Paz:

ESCOLA POLÍTCA

Quem não estudar


Repetirá
4 anos
(alissondapaz.blogspot.com)

A partir do poema conversamos sobre a analogia que o poeta faz entre o sistema
escolar com suas formas de avaliação e classificação dos estudantes, e o processo de
avaliação e escolha dos representantes políticos, realizado pelos cidadãos.
Falamos sobre o direito do voto; sobre a importância de estudar a vida dos
candidatos aos cargos públicos; quais os meios e formas de estuda-los; e principalmente:
porque é considerado um ato de cidadania, em nossa sociedade, votar e escolher nossos
representantes.
Buscamos no dicionário os conceitos de cidadania e democracia, desconhecido
pela maior parte das crianças, e fomos caminhando na interpretação do poema até nos
deparar com a seguinte questão proposta por uma garota: “crianças não votam, nós somos
cidadãs mesmo assim?”
Deixei que elas refletissem a respeito, intermediando o debate e após muita
discussão, elas, mesmo achando que deveriam votar, para defender seus interesses,
aceitam a ideia de que exercem sua cidadania votando em seus representantes de turma
para manifestar suas ideias no âmbito escolar.
Ainda nesse interim, debatemos sobre os direitos e deveres básicos dos cidadãos.
Observando, mesmo antes de recorrer aos documentos que especificam a cidadania
infantil – o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo – que as crianças têm
direitos e deveres um pouco diferentes dos adultos. E como a cidadania infantil é
dependente dos adultos, como precisam de leis de proteção contra os mesmos que teriam
o dever de cuidá-las, e como a relação de poder entre o mundo infantil e adulto ainda é
de desigualdade.
Que por outro lado, lhes garante um lugar de concessões, pois não precisam
trabalhar – sempre colocam o estudo como obrigação que substituiria o trabalho – que
não devem sofrer constrangimentos, devem ter acesso à saúde, moradia e segurança, ou
seja, condições para tornarem-se adultos autônomos e ativos socialmente.
Em contraponto a essas conclusões, chegamos ao entendimento de que muitos
desses direitos não ultrapassam a barreira do documento. As crianças, como exemplo
utilizaram a situação do prédio da escola onde estudam, com portas, quadros, cadeiras e
torneiras quebradas. Isso ocorreu quando falamos do direito à educação de qualidade.
Simão (2009) contempla essa situação da cidadania no Brasil, ainda não efetivada
[…] entra no mundo contemporâneo com uma modernidade incompleta e na qual
há uma indistinção entre o público e o privado, uma incapacidade para fazer
valer a igualdade jurídica formal, uma forte hierarquia de privilégios e lugares
sociais, uma mescla indistinguível entre o arbítrio e a transgressão, uma
violência espantosa para impedir a reinvenção coletiva e, talvez, o que mais
impressiona, uma conexão aparentemente pouco necessária entre as capacidades
coletivas de julgar, querer e agir nos momentos fortes de expressão política. (p.6)

Outro ponto tocado pelas crianças a respeito do exercício de sua cidadania foi a
impossibilidade que sentem em interferir, de alguma forma, na organização da sociedade
mais amplamente, e mais especificamente, na escola ou na casa onde moram. Foi um
ponto contraditório, uma vez que o currículo da escola é todo voltado para ensinar as
crianças essa democracia e cidadania modernas. Da maneira que afirma Narodowsky
(1999), “Vale lembrar que a escola moderna no discurso pedagógico, é esse meio que se
constitui para garantir a unificação das metas procuradas, das utopias estabelecidas” (p.
115).
Em verdade as crianças atribuem essa impotência a todos os membros da
sociedade. Foi necessário lançar ideias opostas, falar das leis, dos órgãos, das formas de
protesto e resistência e exemplificar com fatos que tiveram um resultado favorável à
população, para que enxergassem que, por desigual que sejam as relações sociais de
poder, a resistência também é latente, às vezes, eficaz.
A democratização é colocada com mais ênfase pelos estudantes, quando falamos
no direito dos cidadãos ao consumo. Nesse campo, para a maioria deles é normalizado o
comportamento de poder de escolha. É uma infância que em regra, escolhe o que veste,
o que lê, o que assiste, joga, brinca, e come.
Para debater esse aspecto da vivência cidadã, foram utilizados trechos da letra do
RAP Na moda, de Vitor Pi. Os versos analisados foram os seguintes:

Moda, costumes, identidade


Padrões de épocas e sociedades
Todo mundo igual, isso que é moda (…)
Domínio, controle, massificação
Situação má se ficar sem ação
Massificar é a solução
Pra política vigente que quer o poder na mão
Globalização faz a interligação
Chegou ao Brasil, última moda no Japão
Devorar culturas é necessário
Consumir o fútil, nada saudável
Moda, sinônimo futilidade. (…)
Essa já passou, aquela vai passar
Moda é passageira nunca vem pra ficar
O que é de verdade é que fica
Tem utilidade, é pra toda vida (…)
(VITOR PI e a U.N.I.D.A.D.E, 2008)

E a nossa conversa sobre moda, não só do vestuário, seguiu basicamente esse


roteiro: construção da identidade, tribos, a massificação das opções e a individualização
das escolhas, globalização e o aspecto efêmero da moda, como coloca Lipovetsky (2009),
imprimindo no consumo o ritmo da produção, a necessidade de fluir, de inovar, fazendo
disso um acréscimo de valor aos produtos de toda ordem.
É uma radicalização da democracia moderna, o poder para a hiperescolha, que não
está indistinto entre as classes, uma vez que em todos os níveis de poder aquisitivo, é
possível adquirir os pirateados e cópias e fazer parte dessa liquidez que flui renovando,
reinventando, acrescendo valor ao que se produz enquanto vocabulário, vestimenta,
acessórios, cortes de cabelo, cor de esmaltes, literatura, cinema, posicionamentos
políticos e formas de organizar-se socialmente.
Para as crianças o importante na escolha do consumo é o “que eu acho legal”.
Muitas vezes ouvi a frase “Eu compro porque eu gosto” “eu uso porque é estilo, eu me
sinto bem”, sem nenhuma justificativa a mais. O “quero porque sim” é a resposta que
justifica a sedução exercida pelos produtos expostos nas prateleiras das produções da
cultura do volátil, ou da hipermodernidade a que se refere o autor supracitado.
Sobre isso Bunckingham (2006) observa que o consumismo infantil faz parte de
uma nova maneira desse grupo exercer sua cidadania, estabelecendo formas distintas de
se relacionar com o mundo adulto, dominando essa linguagem fluida do mercado e
fazendo isso coma mais desenvoltura que os adultos. Como exemplo o autor analisa a
relação das crianças com os meios digitais

Os novos meios digitais aparecem, para alguns de seus defensores, como


portadores exatamente do tipo de cidadania participatória e ativa que reivindico
aqui. Jon Katz, por exemplo, afirma que a Internet dá oportunidade às crianças
de escaparem ao controle adulto, e de criarem suas próprias culturas e
comunidades autônomas. (Buckingham, 2006, p.136)

E nesse momento, voltando às questões colocadas no início do texto sobre infância


e linguagem, é notória a maior intimidade das crianças com as novas linguagens
provindas dos meios tecnológicos, portanto, sua situação de pela primeira vez escapar do
mundo adulto por possuir mais adaptabilidade á uma linguagem que tem se tornado
hegemônica, apresentando-se e se fazendo necessária em praticamente todos os âmbitos
sociais.
Esse cenário abre espaço para a discussão de uma democracia ao acesso, de uma
cidadania que busca acessar muito mais que os direitos básicos definidos pela cidadania
moderna. Quanto ao acesso infantil a esse mundo do consumo hiperrealizado,
Bunckingham (2006) ainda contribui afirmando que:

Por fim, é importante enfatizar que os direitos de mídia ou culturais não devem
ser vistos separadamente das questões mais gerais sobre o status social e político
das crianças. Nesse sentido, o apelo aos direitos culturais acarreta
inevitavelmente um apelo aos direitos políticos. Nesse processo, questões
tradicionais sobre poder e acesso – sobre quem possui os meios de produção,
quem tem o direito de falar, e quais as vozes que podem ser ouvidas – precisam
se manter no topo da agenda política. (Buckingham, 2006, p.136)

Essa ideia desafiadora sobre a infância, decerto que não nos anuncia o fim do
período infantil, mas, de repente nos encaminhe para uma nova noção de infância, que
em alguns aspectos da vida e de sua experiência cidadã, já não inspire a mesma
dependência dos adultos, finalizando assim uma ideia anterior, iniciada, desenvolvida e
vivenciada na modernidade, mas que começa a esmaecer.

Considerações finais

O maior intuito desse trabalho foi ouvir a voz das crianças no que sentiam e
entendiam por sua experiência cidadã. Essa já foi uma relevante atitude, mesmo que o
processo tenha se dado com uma adulta participando, mediando e organizando esse
discurso infantil para trazê-lo ao texto, ao público, Foi de suas opiniões e requerimentos
que esse texto foi formulado.
Com o cuidado de interpretar seus discursos sentindo e observando que estavam
sempre atravessados por muitos outros discursos: o do currículo escolar, que abrange
muito mais que as aulas de história, mas tem a ver com as condutas presentes nas regras
de comportamento, na formação das professoras, na convivência com os colegas,
construindo comportamentos e ideias e transparecendo na fala das crianças.
A mídia e seus discursos que os alcança, interferindo na maneira como interagem
culturalmente e experienciam sua cidadania, quando os alunos querem ser iguais aos
jogadores de futebol ou rappers americanos, ou quando as meninas se identificam com a
imagem da barbie em suas roupas, cadernos e sapatos.
O discurso pedagógico mais geral, que deixa claro às crianças, que na maioria dos
aspectos da sua vivência cidadã, o que ocorre, na verdade, é um ensaio da cidadania, para
que ela seja experimentada, quiçá plenamente na vida adulta…
Os poemas e suas mensagens, interferindo obviamente na fala das crianças, assim
como a interferência da minha presença nas conversas e debates, nos faz ver que, o acesso
ás diferentes manifestações culturais, preconizado por leis e direitos infantis, podem não
lhes tornar mais ou menos crianças, nem causar mobilidade social; em se tratando de
sujeitos periféricos social e financeiramente, tampouco transformá-los em grandes astros
da arte, que se sustentem através dela, mas inevitavelmente, pode lhes fazer refletir e
situar-se melhor no grupo social ao qual pertence, problematizando suas relações com o
nosso sistema democrático e a suas formas de vivenciar a cidadania.
Essas foram as conclusões a que pude chegar até essa etapa do trabalho, que o que
interessa realmente não é saber se é o fim ou reinvenção de uma infância moderna, mas
a construção de uma forma mais justa de relacionar-se com as crianças, entendendo-as
como sujeitos capazes de interagir socialmente, inclusive para debater sobre temas da
importância da cidadania, deixando de interditar seus discursos, entendendo-os valorosos,
a ponto de quem sabe, um dia, elas venham se sentir cidadãs de verdade.

Referências

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