Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Voltando a Postam (1999), o autor argumenta que com a difusão do novo status dado
à linguagem escrita, no período moderno, as crianças já não podiam dominar com a
mesma facilidade a comunicação com o mundo adulto que agora possuía um saber não
pertencente ao mundo infantil, impossibilitando este último de acessar determinados
conhecimentos, portanto, sendo colocada num lugar de menos poder na relação com o
saber produzido na época.
As observações de Postman (1999), acrescida das pesquisas de Ariés (1989)
demonstram como foi produzida, por conta das demandas que surgiram, a necessidade
dessa infância ser colocada em um lugar que fosse fazer das crianças o que elas
precisavam aprender a ser: adultos. Segundo os autores, esse lugar foi a escola.
Houve então a institucionalização da infância, que de acordo com Varela e Luria
(1992), ocorreu quando o Estado se responsabilizou pela educação das crianças.
Definindo algumas das características da configuração histórica que deu condições para
o nascimento da escola nacional, obrigatória e pública, do século XVI à
contemporaneidade, os autores listam os seguintes pontos:
Tal institucionalização daria às crianças um lugar onde seriam formadas para a vida
adulta, que já não mais se misturava às suas, como na Idade Média. Lá, acessariam
gradativamente os conhecimentos, a linguagem, condutas e forma de socialização para a
póstuma vivência cidadã em sociedade.
Nesse processo como nos afirma Gallo (2003) e muitos outros autores que dissertam
a respeito do disciplinamento dos sujeitos dentro da escola a exemplo de Foucault (2009),
Alves (2010), Alves e Pizzi (2012), o que acontece com a institucionalização das crianças,
muitas vezes está ligado à conformação de sua subjetividade à linguagem que é da escola.
A criança, infans, sem palavra, é introduzida no universo da linguagem. Mas não para
experimentar sua própria voz, mas para ser enquadrada num sistema semiótico já
definido, no qual ela dirá aquilo que se espera que seja dito. Eis o que é aprendido na
escola (GALLO, p.116).
Por outro lado, como o outro extremo da vivência infantil o autor traz o conceito de
infância desrrealizada:
Os primeiros encontros que tive com as crianças após o período de observação das
aulas ocorreram, coincidentemente, no período das campanhas eleitorais dos candidato/as
a Presidente da República; Governadores; Deputados Estaduais ou Distritais; Senadores; e
Deputados Federais, em 2014. Por conta disso preferi começar discussão sobre cidadania
com o poema de característica simples e sofisticada de Alisson da Paz:
ESCOLA POLÍTCA
A partir do poema conversamos sobre a analogia que o poeta faz entre o sistema
escolar com suas formas de avaliação e classificação dos estudantes, e o processo de
avaliação e escolha dos representantes políticos, realizado pelos cidadãos.
Falamos sobre o direito do voto; sobre a importância de estudar a vida dos
candidatos aos cargos públicos; quais os meios e formas de estuda-los; e principalmente:
porque é considerado um ato de cidadania, em nossa sociedade, votar e escolher nossos
representantes.
Buscamos no dicionário os conceitos de cidadania e democracia, desconhecido
pela maior parte das crianças, e fomos caminhando na interpretação do poema até nos
deparar com a seguinte questão proposta por uma garota: “crianças não votam, nós somos
cidadãs mesmo assim?”
Deixei que elas refletissem a respeito, intermediando o debate e após muita
discussão, elas, mesmo achando que deveriam votar, para defender seus interesses,
aceitam a ideia de que exercem sua cidadania votando em seus representantes de turma
para manifestar suas ideias no âmbito escolar.
Ainda nesse interim, debatemos sobre os direitos e deveres básicos dos cidadãos.
Observando, mesmo antes de recorrer aos documentos que especificam a cidadania
infantil – o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo – que as crianças têm
direitos e deveres um pouco diferentes dos adultos. E como a cidadania infantil é
dependente dos adultos, como precisam de leis de proteção contra os mesmos que teriam
o dever de cuidá-las, e como a relação de poder entre o mundo infantil e adulto ainda é
de desigualdade.
Que por outro lado, lhes garante um lugar de concessões, pois não precisam
trabalhar – sempre colocam o estudo como obrigação que substituiria o trabalho – que
não devem sofrer constrangimentos, devem ter acesso à saúde, moradia e segurança, ou
seja, condições para tornarem-se adultos autônomos e ativos socialmente.
Em contraponto a essas conclusões, chegamos ao entendimento de que muitos
desses direitos não ultrapassam a barreira do documento. As crianças, como exemplo
utilizaram a situação do prédio da escola onde estudam, com portas, quadros, cadeiras e
torneiras quebradas. Isso ocorreu quando falamos do direito à educação de qualidade.
Simão (2009) contempla essa situação da cidadania no Brasil, ainda não efetivada
[…] entra no mundo contemporâneo com uma modernidade incompleta e na qual
há uma indistinção entre o público e o privado, uma incapacidade para fazer
valer a igualdade jurídica formal, uma forte hierarquia de privilégios e lugares
sociais, uma mescla indistinguível entre o arbítrio e a transgressão, uma
violência espantosa para impedir a reinvenção coletiva e, talvez, o que mais
impressiona, uma conexão aparentemente pouco necessária entre as capacidades
coletivas de julgar, querer e agir nos momentos fortes de expressão política. (p.6)
Outro ponto tocado pelas crianças a respeito do exercício de sua cidadania foi a
impossibilidade que sentem em interferir, de alguma forma, na organização da sociedade
mais amplamente, e mais especificamente, na escola ou na casa onde moram. Foi um
ponto contraditório, uma vez que o currículo da escola é todo voltado para ensinar as
crianças essa democracia e cidadania modernas. Da maneira que afirma Narodowsky
(1999), “Vale lembrar que a escola moderna no discurso pedagógico, é esse meio que se
constitui para garantir a unificação das metas procuradas, das utopias estabelecidas” (p.
115).
Em verdade as crianças atribuem essa impotência a todos os membros da
sociedade. Foi necessário lançar ideias opostas, falar das leis, dos órgãos, das formas de
protesto e resistência e exemplificar com fatos que tiveram um resultado favorável à
população, para que enxergassem que, por desigual que sejam as relações sociais de
poder, a resistência também é latente, às vezes, eficaz.
A democratização é colocada com mais ênfase pelos estudantes, quando falamos
no direito dos cidadãos ao consumo. Nesse campo, para a maioria deles é normalizado o
comportamento de poder de escolha. É uma infância que em regra, escolhe o que veste,
o que lê, o que assiste, joga, brinca, e come.
Para debater esse aspecto da vivência cidadã, foram utilizados trechos da letra do
RAP Na moda, de Vitor Pi. Os versos analisados foram os seguintes:
Por fim, é importante enfatizar que os direitos de mídia ou culturais não devem
ser vistos separadamente das questões mais gerais sobre o status social e político
das crianças. Nesse sentido, o apelo aos direitos culturais acarreta
inevitavelmente um apelo aos direitos políticos. Nesse processo, questões
tradicionais sobre poder e acesso – sobre quem possui os meios de produção,
quem tem o direito de falar, e quais as vozes que podem ser ouvidas – precisam
se manter no topo da agenda política. (Buckingham, 2006, p.136)
Essa ideia desafiadora sobre a infância, decerto que não nos anuncia o fim do
período infantil, mas, de repente nos encaminhe para uma nova noção de infância, que
em alguns aspectos da vida e de sua experiência cidadã, já não inspire a mesma
dependência dos adultos, finalizando assim uma ideia anterior, iniciada, desenvolvida e
vivenciada na modernidade, mas que começa a esmaecer.
Considerações finais
O maior intuito desse trabalho foi ouvir a voz das crianças no que sentiam e
entendiam por sua experiência cidadã. Essa já foi uma relevante atitude, mesmo que o
processo tenha se dado com uma adulta participando, mediando e organizando esse
discurso infantil para trazê-lo ao texto, ao público, Foi de suas opiniões e requerimentos
que esse texto foi formulado.
Com o cuidado de interpretar seus discursos sentindo e observando que estavam
sempre atravessados por muitos outros discursos: o do currículo escolar, que abrange
muito mais que as aulas de história, mas tem a ver com as condutas presentes nas regras
de comportamento, na formação das professoras, na convivência com os colegas,
construindo comportamentos e ideias e transparecendo na fala das crianças.
A mídia e seus discursos que os alcança, interferindo na maneira como interagem
culturalmente e experienciam sua cidadania, quando os alunos querem ser iguais aos
jogadores de futebol ou rappers americanos, ou quando as meninas se identificam com a
imagem da barbie em suas roupas, cadernos e sapatos.
O discurso pedagógico mais geral, que deixa claro às crianças, que na maioria dos
aspectos da sua vivência cidadã, o que ocorre, na verdade, é um ensaio da cidadania, para
que ela seja experimentada, quiçá plenamente na vida adulta…
Os poemas e suas mensagens, interferindo obviamente na fala das crianças, assim
como a interferência da minha presença nas conversas e debates, nos faz ver que, o acesso
ás diferentes manifestações culturais, preconizado por leis e direitos infantis, podem não
lhes tornar mais ou menos crianças, nem causar mobilidade social; em se tratando de
sujeitos periféricos social e financeiramente, tampouco transformá-los em grandes astros
da arte, que se sustentem através dela, mas inevitavelmente, pode lhes fazer refletir e
situar-se melhor no grupo social ao qual pertence, problematizando suas relações com o
nosso sistema democrático e a suas formas de vivenciar a cidadania.
Essas foram as conclusões a que pude chegar até essa etapa do trabalho, que o que
interessa realmente não é saber se é o fim ou reinvenção de uma infância moderna, mas
a construção de uma forma mais justa de relacionar-se com as crianças, entendendo-as
como sujeitos capazes de interagir socialmente, inclusive para debater sobre temas da
importância da cidadania, deixando de interditar seus discursos, entendendo-os valorosos,
a ponto de quem sabe, um dia, elas venham se sentir cidadãs de verdade.
Referências
ARIÉS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Zahar, 2001. 258p.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 26. ed. Rio de Janeiro: GRAAL, 2008,
p.295.
______, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 36ª ed. Petrópolis:
Vozes. 2009, p. 291.