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A TEMPORALIZAÇÃO DA INFÂNCIA NA ESCOLA CONTEMPORÂNEA

Juliana Carla da Paz Alves


Universidade Federal de Alagoas
Laura Cristina Vieira Pizzi
Universidade Federal de Alagoas

Os diferentes discursos sobre infância escolar nos diferentes tempos das primeiras séries
do Ensino Fundamental

Existem muitas formas de caracterizar a infância (LORDELO, CARVALHO E


KOLLER, 2002). Uma das variáveis sobre o tema advém dos diferentes contextos no qual ela
acontece. O objetivo desse texto é discutir que existem variados discursos sobre a infância,
que dependem do contexto e da significação do tempo que a criança vivencia neles – família,
bairro, hospital, classe social – mas que na escola existe uma visão específica da infância, e é
a influência da organização do tempo escolar na construção das subjetividades infantes que
analisamos nesse trabalho.
Nesse texto vamos utilizar a noção foucaultiana de discurso. Foucault, em muitos de
seus trabalhos, nos alerta sobre a construção social de campos de saberes, de verdades sociais
e de uma imagem diferenciada de sujeito produzida no século XIX. Ainda outros autores que
se dedicam à análise das produções foucaultianas – a exemplo de Veiga-Neto (2007) – têm
discriminado como Foucault se utiliza, em diferentes fases de suas produções, de
metodologias como a arqueologia e a genealogia para desobrigar a história de ser construída
por sujeitos previamente estabelecidos em suas subjetividades, destacando-se como os
sujeitos do conhecimento e o próprio conhecimento são produtos das relações de poder-saber
que constroem.
Dessa forma, argumenta que as imagens de sujeitos e espaços são produzidas
discursivamente por falas e verdades que vão sendo legitimadas por intermédio dos discursos
fabricados nas relações de poder. Foucault utilizou a análise do discurso – baseando-se em
conceitos nietzscheanos – como uma abordagem de estudo para realizar a observação a
respeito da produção de uma imagem diferenciada de sujeito no século XIX. (ARAÚJO,
2008)
Nas palavras do autor, sobre análise do discurso, “aqui me inspiro nas pesquisas
realizadas pelos anglo-americanos” já que estes vêem o discurso como “jogos (games), jogos
estratégicos de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como
também de luta” (FOUCAULT, 2003, p.9).
O autor elenca ainda outros princípios que caracterizam a concepção de discurso
sustentada por ele, para definir como as condições de disputas de poder entre os grupos
podem definir o que se tornará, ou não, o discurso hegemônico. São os princípios de inversão,
descontinuidade, especificidade e exterioridade. Esses princípios definiriam como, nessa
concepção, o discurso não teria uma origem definida e transcendental; que sua constituição
não se dá linearmente, mas fragmentada; que não existem coisas implícitas e intencionalmente
ocultadas a serem ditas nos discursos; e que o discurso não é produzido fora das relações
sociais, mas materializam-se através delas (FOUCAULT, 2009a).
A construção de verdades a respeito dos objetos, das pessoas e das instituições, por
meio das práticas pedagógicas, destaca-se como um elo que conecta os discursos sobre
infância, os espaços escolares e o a forma de organização do tempo neles produzidos e seus
efeitos sobre as subjetividades infantis na escola.
O que diferencia, em muitas ocasiões, a maneira como interpretamos e vivenciamos
um espaço é a forma como gastamos nosso tempo nele. De maneira que para chamarmos um
lugar de casa, basta que discursivamente signifiquemos um local, não exatamente padronizado
como o lugar onde moramos. Dessa forma um galpão pode ser significado como escola
(ACORSI, 2010). Entretanto, toda a flexibilidade das formas de subjetivar tempos e espaço
como mostramos agora, torna-se muito mais complexa quando pensamos nos discursos como
constituintes de campos de poder, e nas relações de poder, quais os discursos têm polarizado
mais ações a respeito do tempo escolar?
De acordo com Sibilia (2012), com advento da modernidade, e instituição de uma
nova forma de sujeitar o humano ao seu tempo, organizando-o em função de novas
prioridades produtivas instalou-se nas formas de vida e tornou-se abrangente nas sociedades
ocidentais.
Sobre isso Acorsi (2010), nos lembra que

A modernidade estabelece uma humanização do homem, colocando o humano no


próprio homem, tirando do indivíduo seu caráter de cópia do sagrado e trazendo-o
para este mundo. O indivíduo é “jogado na terra”, e por isso tem de assumir um outro
estatuto: o de sujeito. Nesse sentido, a conexão entre a mecanização do tempo
moderno a partir do relógio e as novas tecnologias que vão sendo inventadas para dar
conta de uma vontade de poder, suscitou uma nova percepção da temporalidade. Não
facilitou apenas as contagens das horas, mas introduziu uma verdadeira
autorregulação das atividades humanas e uma reorganização social. Ao possibilitar
que o homem “faça seu tempo”, “crie sua própria temporalidade”, estabelece as
condições para o surgimento do poder disciplinar que tem como objetivo organizar
também o tempo e o espaço. Paralelo a isso, a marcação dos espaços em mapas age na
mesma lógica. (p. 93)

Segundo Ariés (1981), coloca que a temporalização da infância se modifica muito com
a entrada das crianças na escola, fato que ocorre nesse mesmo período na Europa Ocidental. A
primeira, claramente teve de adequar sua conduta, atividades e prioridades na vida à
organização do tempo própria das instituições escolares.
O autor destaca que não só a imagem de infância modificou na Idade Moderna, mas as
sua durabilidade, por conta da eminente ligação entre o moderno discurso a respeito das
crianças e da criação da escola como um dos principais espaços de educação delas.
Diz ainda que, desde de sua criação, a escola passa pro um processo que não foi
imediato, mas que no percurso de sua organização no atravessar de séculos, necessitou
distinguir por idades, séries, os conhecimentos, as formas de tratamentos das crianças.
No trecho que segue nos explica melhor como se deu essa separação entre a infância
antes e depois da escolarização:

A infância foi prolongada além dos anos em que o garotinho ainda andava com auxílio
de “guias” ou falava seu “jargão”, quando uma etapa intermediária, antes rara e daí em
diante, cada vez mais comum, foi introduzida entre a época da túnica com gola e a
época do adulto reconhecido: a etapa da escola do colégio. A classes de idade em
nossas sociedades se organizam em torno de instituições. Assim, a adolescência, mal
percebida, durante o Ancien Régime se distinguiu no século XIX e já no fim do século
XVIII através da conscrição, e mais tarde do serviço militar. O ecolier – o escolar – e
esta palavra até o século XIX foi sinônimo de estudante, sendo ambas empregadas
indiferentemente: a palavra colegial não existia – o ecolier do século XVI ao XVIII
estava para uma infância longa assim como o conscrito dos séculos XIX e XX.
(ARIÈS, p. 187)
Vimos então como a noção de tempo na infância se modifica, alongando-se. Deixando
claro que, para as classes populares essa realidade não se passava, pois suas crianças ainda
não eram crias das escolas.
Se observarmos como no Brasil ocorreu esse processo veremos que já no império
brasileiro havia o início da consolidação de um discurso preocupado com a disciplinarização
da educação infantil, uma vez que até então a infância corria solta nas ruas e nos espaços de
trabalho junto com os adultos. Isso aconteceu com relação ao tempo, ao gênero, ao
conhecimento (currículo) e às classes sociais das crianças brasileiras. Por isso os espaços,
profissionais e currículos são todos diferenciados de acordo com os sujeitos que sujeitam,
com as crianças que atendem, sempre comprometidos com o conceito de cidadão que se tinha
naquele momento de sistematização da educação em nosso país. (Schuler, 1999)
Entretanto, já na metade do século XIX toda essa idéia sobre educação primária
circulava primordialmente no discurso, pois ainda havia grande dificuldade de colocar em
prática a escolarização da primeira infância. Os discursos já significavam essa forma de
educá-la, mostrando o entendimento que por muito tempo organizaria a educação primária no
Brasil.
No Brasil do século XIX,

Sob a forma de variados projetos e programas de ensino - criação de asilos, jardins de


infância, escolas primárias, colônias agrícolas e industriais etc - os dirigentes
imperiais lançavam seus olhares para as crianças e jovens. Visando educar e instruir as
crianças, eles sonhavam com a construção de uma nação na qual as hierarquias e as
desigualdades sociais permanecessem resguardadas, sob o manto de uma formação
elementar comum e de uma cidadania regulada e restrita para a ampla maioria da
população. (SCHULER, 1999, p. 9)

Gostamos de partir da idéia de infância escolarizada, como uma imagem, que embora
apresente nuances de indefinições em alguns aspectos, tem certo padrão de produção.
Evidencia o sujeito em uma fase específica de sua vida; localiza-o num lugar particular à
infância na hierarquização das relações de poder; situa-o no foco do trabalho pedagógico,
sujeitado por discursos que o produzem com efeitos sobre seus comportamento e
subjetividades.
Em pesquisas como as de Pagni (2010) e Kohan (2010), podemos encontrar a
variabilidade de discursos sobre infância nos diversos campos do conhecimento, apesar de
reconhecerem que a interpretação difundida por Philip Ariès (1981), é ainda uma das vozes
mais fortes nos textos sobre o tema na área da educação, os autores viabilizam outros olhares
sobre os estudos da infância. Gallo, (2009), traz uma imagem da criança escolarizada muito
mais propensa à sujeição pelo discurso pedagógico, que produtora de uma nova linguagem
autônoma. Destaca uma infância escolar que tem seu discurso cerceado, na tentativa de ser
disciplinado, na maioria das situações.
O disciplinamento desses discursos se dá através de várias técnicas dentro das relações
de poder, inclusive por meio das formas de utilização pedagógica dos espaços escolares. Esses
autores baseiam-se, assim como nós, numa análise Foucaultiana do discurso sobre infância.
Da mesma forma que eles, acreditamos numa infância produzida de maneira muito específica
na escola, e uma das formas de observarmos esse processo é através da utilização dos espaços
escolares e da organização dos sujeitos neles (FOUCAULT, 2009b).

A compressão espaço-tempo no espaço-tempo escolar

Estudamos os tempos escolares nesse trabalho utilizando a noção de disciplina


desenvolvida por Foucault (2003, 2009b). Uma das estratégias da disciplina é a distribuição
dos sujeitos no tempo e no espaço. A conceituação de disciplina utilizada aqui é,
também, a desenvolvida nas teorizações foucaultianas acerca do poder
disciplinar que, segundo Foucault (2009b), foi a forma de governo utilizada
nos séculos XVIII, XIX e XX nas instituições da sociedade moderna para
condicionar os corpos, as ideias e as identidades dos sujeitos, através dos
dispositivos de disciplina e controle. Esse autor denomina de disciplina
uma tática composta de diversas estratégias em campos que se complementam
para condicionar os corpos. Mais exatamente, para ele,
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem
uma relação de docilidade utilidade, são o que podemos chamar as
“disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito
tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as
disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas
gerais de dominação (FOUCAULT, 2009b, p. 133).

Na sociedade disciplinar, encontra-se a intenção de vigiar


individualmente cada sujeito, de controlar seu tempo e de intervir em sua
formação de identidade. Assim, no modelo disciplinar de sociedade, o
indivíduo circula entre diferentes instituições que se localizam
arquitetura e estruturalmente nos parâmetros do panoptismo e são regidas
por princípios que regulam esse modelo de controle social como a
vigilância, o controle e a correção. Nessas instituições enquadradas no
modelo panóptico, Foucault destaca três principais funções, que ele chama
de sequestro: o controle do tempo, o controle dos corpos e a transformação.

A primeira função do sequestro era de extrair o tempo, fazendo com


que o tempo dos homens, o tempo de sua vida, se transformasse em
tempo de trabalho. Sua segunda função consiste em fazer com que o
corpo dos homens se torne força de trabalho. A função de
transformação do corpo em força de trabalho responde à função de
transformação do tempo em tempo de trabalho A terceira função destas
instituições de sequestro consiste na criação de um novo curioso tipo
de poder. Qual a forma de poder que se exerce nestas instituições? Um
poder polimorfo, polivalente (FOUCAULT, 2003, p.119-120)

Um poder micro que mede, cria dispositivos de vigilância, recompensa


e punição. Um poder que se fundamenta no direito, estruturando um micro
tribunal dentro das instituições de controle – escolas, prisões, hospitais.
Um poder econômico – salário por trabalho, pagamento por serviços, notas
por estudo – político, pois cria hierarquias entre os sujeitos que compõem
as instituições inventando um sistema de vigilância encadeado; e
judiciário, uma vez que cria ou segue normas previamente criadas. Pune,
recompensa e avalia. Julga, inclui e exclui os indivíduos e seu
comportamento.
No que diz respeito aos espaços institucionais, são sempre funcionais, tanto os espaços
quanto a ordenação celular dos indivíduos nele, são fontes de informações. Mediante a
individualização dos sujeitos, sua vigilância constante, o controle, a análise e a punição são
realizados com mais eficiência. É devido a sua forma de distribuição dos espaços e dos
sujeitos nele, que a escola pode ser caracterizada, na maioria das vezes, como um prédio que
se adéqua ao modelo social do panóptico, numa estrutura física e organização abstrata na qual
os sujeitos têm seu tempo continuamente vigiado
Seguindo Acorsi (2010), entendemos que na educação da infância, o tempo é utilizado
em um espaço específico, e através da utilização do tempo de maneira como se faz, os
espaços escolares ganham significados particulares para as crianças.
Para autora
Cada grupo cultural irá significá-lo de uma maneira específica, instaurando o que se
pode chamar de geometria do poder, já que diferentes grupos sociais e diferentes
indivíduos posicionam-se de formas distintas em relação aos fluxos e conexões do
tempo e do espaço pós-modernos. Para Doreen Massey, aquilo que se pode chamar de
geometria do poder da compressão espaço-tempo, refere-se aos diferentes grupos
sociais e diferentes indivíduos que ocupam posições muito distintas em relação a esses
fluxos e interconexões. (ACORSI, p. 95)

Explicada nossa posição a respeito da relação espaço-tempo na escola, passamos, no


próximo tópico, às análises realizadas a partir da observação na escola.

O tempo escolar e a infância: relação de produção de subjetividade e condutas infantis

Conforme colocamos anteriormente, visitamos uma escola na qual permanecemos por


um mês, em três turmas do Ensino Fundamental, respectivamente. As séries das turmas
observadas foram 1°, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental.
Iniciaremos com a descrição das salas de aula e a rotina das crianças, uma vez que
estamos nos remetendo ao tempo escolar, como uma significação que se dá através
- Turma do primeiro ano
Essa turma se localizava no final do corredor da escola, é uma sala de aula do mesmo
tamanho que as outras, porém recebe no máximo 20 alunos. Como regra da escola essas
crianças possuem uma tolerância maior nos horários de chegada e saída – podem chegar 15
minutos mais tarde e ordinariamente saem 15 minutos mais cedo, também no horário do
recreio, têm 15 minutos a mais que as outras crianças.
Quando chegam, a professora faz um roda de conversa; pergunta sobre alguns temas
que estão sendo estudados com a turma; canta algumas cantigas folclóricas; dança; faz uma
oração e explica para a turma o que vai acontecer naquela manhã, escrevendo no quadro o que
ela chama de “rotina” (lista de atividades a serem realizadas a cada manhã). Geralmente estão
inclusos elementos fixos da rotina, como:
- roda de conversa;
- atividade escrita no livro didático, ou fotocopiada, ou realizada coletivamente no quadro;
- brincar com os joginhos junto com a professora;
- lavar as mãos;
- lanchar;
- recreio no pátio;
- joguinhos com os colegas;
- leitura ou pintura relacionada à algum estudo realizado com a turma;
- atividade escrita.
- saída

E essa é de fato a rotina quase que diária das crianças, sendo quebrada, apenas pelas
aulas de Educação Física,
O espaço é utilizado de maneiras variadas, as crianças sentam no chão para brincar,
ouvir a leitura feita pela professora, para participar de atividades/jogos coletivas com a
orientação da professora ou livre com os/as colegas.
Essa sala de aula tem um banheiro dentro, tem espaços reservados para leitura e
brincadeira no chão. Tem armários com brinquedos diversos, suas carteiras são de tamanho
diferenciado por conta da estatura das crianças, há também livros, tesouras, giz cera, e lápis de
cor e massa de modelar aos quais as crianças têm acesso, quando a professora autoriza.
Sentam em círculo ou semi-círculos, tanto nas carteiras, quanto nas atividades realizada no
chão.
Em regra há uma auxiliar de turma ajudando a professora com as crianças. Elas
sempre orientam as crianças a deixarem o ambiente arrumado, limpo, organizado; sempre que
utilizam os brinquedos livros e demais materiais são orientados a reorganizá-los.
Quando há algum recado a ser repassado às família as professoras escrevem na
agenda, explicam oralmente até que fique bem entendido. Por conta da faixa-etária,
obviamente essas crianças são mais dependentes das adultas que as acompanham e orientam.

- Turma do terceiro ano

Recebe entre 25 e 30 alunos de oito anos. Tem uma rotina diária guiada,
primordialmente por atividades no livro, no quadro e no caderno. Sentam-se enfileirados. Nas
paredes da sala há alguns cartazes com o alfabeto, com os números, ou com produções da
turma, há também um suporte com alguns livros infantis, utilizados em leituras coletivas ou
individuais. Não há armários, nem materiais, tampouco brinquedos nessa sala de aula, quando
a professora vai utilizá-los com as crianças vai buscar no almoxarifado da escola, devolvendo
depois. Também não há um espaço separado para leitura ou brincadeiras, devido o número de
carteiras e crianças dentro da sala.
O tempo é gasto em atividades menos lúdicas, mais repetitivas, voltada para a
linguagem escrita, sem a mesma liberdade de movimentação do primeiro ano, é um tempo
mais voltado para a produtividade, se incentiva nas crianças uma maior responsabilidade com
seus estudos e seu material. É uma diferenciação ainda notada pelas crianças, que estão “no
meio do caminho”. Gostariam de ter acesso ao espaço e às atividades que tinham antes, mas já
aderiram ao discurso do “você não é mais bebezinho”. Também, como a turma do primeiro
ano, possui duas aulas de Educação Física semanais, bastante esperada pelas crianças.

-Turma do quinto ano


Recebe entre 30 e 35 alunos. O trabalho é voltado também para um modelo menos
lúdico, mais centrado nas atividades dos livros didáticos, no caderno e no quadro, com
realização individual e correção coletiva. Há apenas uma professora na sala, as crianças
ficam, em regra, enfileiradas, não há armários ou materiais didáticos na sala, igualmente às
professoras do terceiro anos, essa também precisa buscar e devolver o material quando
necessários às atividades. Também vemos alguns cartazes com produção das crianças nas
paredes.
É sempre cobrada mais autonomia dessas crianças, na organização dos cadernos, do
material, da própria imagem. Elas parecem e são muito mais acostumadas às regras escolares,
sabem lidar com elas, inclusive para criar resistências. Já acham que estão muito distantes
daquelas atividades do primeiro ano, que muitos dizem ser a turma das criancinhas.

Considerações finais

A partir da utilização do tempo no espaço e da distribuição dos sujeitos nele, é


possível produzir um ambiente de controle sobre as pessoas e as atividades que realizam. A
forma de utilizar o tempo mais ou menos voltado para a produtividade, para construção da
autonomia dos sujeitos, mostrando-lhes que quanto mais produtivos mais autônomos. Que em
contrapartida, quanto mais autônomos, menos livres para o ócio, pois mais presos à
produtividade, a um corpo mais preso, à uma mente menos desocupada, a um tempo utilizado
mais intensamente.
A produção desses espaços-tempos escolares, dentro desses moldes, vem sendo
desenvolvida a partir do discurso pedagógico, voltado à disciplina não apenas dos corpos, mas
do próprio discurso infantil, sobre si mesmo, seus comportamentos e futuro.
São alunos/as que, na maioria das situações que pudemos presenciar, demonstraram
manter com essa instituição, com sua cultura e seus profissionais, relações de afeto, de
expectativa no futuro, de aprendizado, de amizade e de cobrança.
Uma das coisas que nos chamou a atenção assim que começamos a explorar o tempo e
o espaço da escola, e que tem ligação com as formas de produzir a infância, foi diferenciação
entre as salas das turmas de Educação Infantil (2º período) e primeiro ano do Ensino
Fundamental e o restante das turmas dos primeiros anos do Ensino fundamental.
As salas que também atendem às turmas do primeiro ano do Ensino Fundamental, são
espaços que possuem banheiro, têm armários com jogos pedagógicos, brinquedos, livros,
lápis de cor, massa de modelar e outros recursos para tornar as atividades mais lúdicas e
atrativas às crianças, mas principalmente abarcam uma utilização mais fluida do tempo dessas
crianças na escola, que decerto está voltada para outras formas de governá-las mas que
permitam mais liberdade, menos tempo totalmente dedicado á produtividade da escola.
Também são decoradas com cadeiras apropriadas à sua estatura; com calendários;
letras; números; cartazes; criando, mesmo sem sofisticação, um espaço colorido, divertido e
envolvente para as crianças, que nessa fase aprendem a gostar muito da escola, especialmente
do espaço da sala de aula.
Por outro lado, quando começam a frequentar as aulas dos outros anos do Ensino
Fundamental, tomam um susto com o espaço que as espera: uma sala que em nada se parece
com a anterior. Não possui banheiro, nem o material aos quais estavam acostumados/as a
trabalhar. Agora têm livros didáticos, nos quais não podem escrever; professora/o; quadro e
giz; no lugar dos armários com material pedagógico e brinquedos, há mais duas fileiras de
cadeiras com alunos.
O número de crianças nas turmas também é algo relevante, uma vez que remete à
organização dos sujeitos no tempo e espaço e na forma de a professora utilizar seu tempo com
os/as estudantes, outro fator que se modifica bastante nesse período da vida escolar, pois
antes, o espaço era menos fixo, havendo sempre atividades em grupo, ou mesmo com toda a
turma no chão da sala, como as rodas de conversa e de leitura, ou ainda os jogos e
brincadeiras realizados pelas professoras. Agora as crianças são organizadas em fileiras e
quase geralmente não saem das cadeiras durante o horário das aulas.
Há o esquadrinhamento para a melhor vigilância, para o controle e para o
disciplinamento dos corpos e mentes. As atividades de aprendizagem também tornam-se mais
abstratas, e o ensino mais voltado à leitura de conteúdos, que com o manuseio de diferentes
recursos concretos. Um tempo inteiramente gasto com a produtividade dos corpos e mentes
Esses fatos são relevantes para este trabalho por que estão sustentados por um discurso
que produz a infância, legitimado nos documentos, formação das professoras e nos livros
didáticos. O discurso pedagógico que permeia essa organização e utilização temporal e
espacial das vidas das crianças e tem haver com uma maneira de enxergá-las até o fim do que
se denomina primeira infância, e outra até a pré-adolescência.
Considerando que esses são processos discursivos vivenciados pela infância e que “Os
discursos pedagógicos são práticas, são tecnologias, mistos de poder-saber e de técnicas que
têm efeitos produtivos e práticos sobre os sujeitos a que se dirigem e os objetivos que tratam.
Seus efeitos vão além de um tipo de violência simbólica” (GARCIA, 2002, p.26), pois
impõem uma maneira de agir que orienta a infância, que não acaba junto com a educação
infantil ou com o primeiro ano do Ensino Fundamental, a comportar-se da maneira que o
espaço-tempo escolar e sua organização permitem, levando em conta também a posição das
crianças nas relações hierárquicas de poder: o lugar de menos poder nos fluxos das
interconexões.

Os discursos instituem campos de objetos, concorrem na produção de formas de


subjetividade, estabelecem diferenciações, presenças exclusões, saberes e verdades
acerca de como pensar, ser e agir, quando os indivíduos estão investidos de certos
papéis sociais e formas de autoridade. Os discursos pedagógicos, como complexos de
relações discursivas e meios não discursivos, como regimes de verdade, focos de
poder-saber, discursos de disciplina (…) têm efeitos disciplinares sobre os indivíduos,
incluindo-os ativamente na fabricação de sua própria experiência de mundo.
(GARCIA, 2002, p.26)

É importante observar como esse tipo de organização do espaço-tempo escolar diz às


crianças quando elas são e quando não são mais criancinhas da primeira infância. Quando seu
comportamento precisa começar a mudar, quando precisam deixar de ser sujeitos, não apenas
mais assujeitados às formas disciplinares, mas tornarem-se corpos que entram na lógica da
utilidade e da docilidade (Foucault, 2009b).
Esses discursos são definidores das formas como as crianças significam cada fase da
vida escolar. Isso ficou evidenciado, quando durantes as observações, pudemos notar a
“visita” diária de algumas delas à sala do primeiro ano, com olhar de saudade daquele espaço
e daquelas formas de vivenciar o ensino e a aprendizagem, ou seja, de gastar seu tempo na
escola. Nesse período houve, inclusive, furtos nestas salas, de alguns objetos, como:
canetinhas coloridas, giz cera, joguinhos e blocos utilizados nas atividades das crianças
menores, depois descobertos com alunos do terceiro ano.
As crianças, por relacionarem tal espaço e objetos com um momento especial da vida
escolar, querem levá-lo para as outras fases. É uma forma de falar, expressar o que sentem,
quais formas e metodologias preferem, por isso é interessante dedicarmos atenção às formas
de expressão dos infantes, que não se limitam às falas, mas estão presentes em atos de
resistência como esses.
Mais que isso, tem haver com as primeiras formas de sentir e vivenciar as atividades
escolares, as relações com o outro e com os vínculos afetivos que se constroem nesse percurso
singular e ao longo na vida dos/as estudantes, tingindo suas subjetividades, de alguma forma,
com as tintas deste lugar: a escola.
Outros ocorridos durante as observações do espaço escolar comunicam a resistência
ou apelo das crianças, por uma maneira mais fluida e interativa de organização dos sujeitos
nas salas de aula, trazendo junto uma forma de aprender menos presa aos formatos
disciplinares. Um exemplo é quando as professoras (3º e 5º ano) fazem trabalhos em dupla ou
em grupo e as crianças comemoram, demonstrando como rejeitam os discursos que produzem
um ambiente mais fixo e esquadrinhado nessas séries e um tempo que individua ao invés de
coletivizar.
Isso apenas nos remete mais uma vez à maneira como os espaços são representações
bastante significativas dos discursos que os produzem enquanto função social. Cada lugar
dentro da escola significa para as crianças um tipo de comportamento produzido pelo meio
social mais amplo e levado até eles pelo discurso pedagógico, produzindo as subjetivações
através do uso do tempo nesse espaço.
É um nó discursivo, composto por variados discursos que pode ser lido entendido e
representado nas ações dos sujeitos, que produz o comportamento das crianças nos
diferenciados espaços.
Segundo García (2002),

Para a subjetivação concorrem processos múltiplos e permanentes em direção aos


quais convergem complexos de saberes e de práticas, de verdades e exercícios que
posicionam e capturam os indivíduos concorrendo para a produção de certas formas
de subjetividades, de certos modos e estilos de existência. (p.29)

Isso, porque, a análise discursiva é uma discussão que pode aparentar abstrata, mas
carregada de força de ação sobre as condutas práticas e subjetivas das crianças. Que mantém
com a escola uma relação bastante vinculada aos processos afetivos, ligadas aos tempos às
formas, ás pessoas e aos espaços que a compõe, demonstrando como sua organização interfere
no comportamento das crianças na escola, e isso tem a ver tanto com a faixa-etária-maturação
quanto com as diferentes formas de organização do espaço-tempo escolar e dos sujeitos nele.
Há, ainda, muito mais a necessidade da escola de sujeitar esse/as discentes que de ouvi-
los, o que existe é a conformação de seus discursos por meio do discurso pedagógico,
produzindo uma infância específica para cada fase escolar, utilizando para isso, também uma
organização do tempo e do espaço particular a cada faixa-etária, evidenciando assim um
currículo do corpo, das disciplinas diferenciados para cada uma delas.
Ficamos com impressão que, no processo de disciplinamento dos corpos, as crianças
das primeiras séries do Ensino Fundamental, principalmente a partir do segundo ano, são
sujeitos que se expressam muito bem sobre o que preferem ter e ser na escola, porém têm seus
discursos infantis silenciados, têm suas resistências marginalizadas, pois, na escola, parece
haver pouca possibilidade de entendimento das suas formas de expressão, que são ricas.

REFERÊNCIAS

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