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IDENTIDADE E GLOBALIZAÇÃO: UM ESTUDO DOS FÃS BRASILEIROS

DA SÉRIE STRANGER THINGS EM GRUPO ONLINE 1

Marco MARÃO2
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Resumo: Esse estudo propõe-se a compreender como certos sentidos produzidos por fãs da série Stranger
Things em um grupo no Facebook, frente às referencias à cultura midiática dos anos 80 presentes na
narrativa da obra, elucidam a existência de uma comunidade fandom transcultural e desterritorializada que
compartilha um repertório cultural cada vez mais homogêneo atravessado pelos meios de comunicação,
levando em conta o conceito de identidade cultural proposto pelos Estudos Culturais contemporâneos.

Palavras-chave: fandom; fãs; stranger things; globalização; identidade

A plataforma Netflix, desde sua chegada no Brasil em 2011, tem crescido exponencialmente
em números de usuários. Embora a empresa não divulgue dados oficiais, a consultoria Ampere
Analysis3 divulgou uma pesquisa apontando que esse número de usuários chegava a 8,5 milhões em
2017 e, de acordo com estimativas, chegará a 10 milhões ao final de 2018. A pesquisa identifica,
ainda, que o consumo sob demanda já é a principal forma de se assistir à televisão em 8% dos lares
no país.
De acordo com Jenkins (2009), no panorama contemporâneo de aceleração digital,
proliferação das interações mediadas pelas tecnologias da informação, descentralização dos meios
de comunicação e fragmentação do mercado em diferentes nichos, mudam-se as lógicas das
indústrias midiáticas para obtenção de lucros. Índices de audiência às programações importam
menos que a fidelização dos espectadores. Por fidelização entende-se o envolvimento prolongado
aos múltiplos desdobramentos propostos pelas indústrias a partir de uma programação nuclear,
como as ações transmídias.
Desde que o envolvimento tornou-se prerrogativa de consumo nesse contexto a figura do fã
de produtos midiáticos adquiriu importância central. Mercadologicamente, o fã tem se tornado alvo
de produtores para mapeamento de demandas e aplicação de estratégias de propagação.
Academicamente estuda-se, no campo da comunicação, sob diferentes vertentes, as implicações
sociais, políticas e econômicas dessa reconfiguração e o papel do fã nesse processo, sem deixar de

1
Trabalho apresentado no GT 2 do II Simpósio Internacional de Comunicação, realizado de 22 a 24 de agosto de 2018, na UFSM
campus Frederico Westphalen
2
Mestrando do Programa Pós-Graduação em Comunicação da UFSM, e-mail: marcomarao@gmail.com.
3
https://exame.abril.com.br/negocios/netflix-ultrapassa-net-e-sky-e-ja-e-o-maior-servico-de-tv-paga-do-brasil/
levar em conta que os estudos de subculturas de fãs já existiam antes mesmo da popularização da
Internet (JENKINS, 1992; GROSSBERG, 1992; SANDVOSS, 2005).
Tendo em vista esses apontamentos, o problema desse estudo diz respeito às questões
identitárias atravessadas pelos meios de comunicação no panorama da convergência midiática.
Levando em conta a importância do fã dentro dos processos comunicativos contemporâneos
envolvendo os meios, o objetivo desta pesquisa é compreender como os sentidos produzidos por fãs
da série Stranger Things, acionados por referencias à cultura midiática dos anos 80 presentes na
narrativa da obra, evidenciam a existência de uma comunidade transcultural e desterritorializada de
fãs que compartilham um repertório cultural relativamente homogêneo moldado pelos meios de
comunicação.
A plataforma Netflix foi escolhida porque acredita-se que seu modo de mapeamento de
demandas de público e disponibilização de conteúdos evidencia mais explicitamente algumas
questões que caracterizam a convergência no recorte que será aqui trabalhado. A escolha da série
deve-se: ao fato de que ela incorpora em sua narrativa referências a obras que constituem um
repertório cultural tradicionalmente compartilhado entre subculturas de fãs de ficção científica
(JENKINS, 1992; COPPA, 2006) e ao número elevado de fãs nos grupos online do Facebook. Com
80 mil usuários cadastrados, foi escolhido o grupo Stranger Things Brasil 4 para a pesquisa.
A metodologia está amparada na etnografia virtual (HINE, 2000) e adota como técnica para
coleta de dados no grupo a observação participante e aplicação de questionário online (SEVERINO,
2013). Para interpretação dos dados utiliza-se a análise de conteúdo (MINAYO, 2003) com critérios
de categorização inspirados no modelo Encoding/Decoding de Stuart Hall.

1. Das subculturas dos fãs à convergência


O termo fandom é resultado da aglutinação das palavras em inglês fan e do sufixo dom que
serve para remeter à palavra kingdom. Seu significado, assim, seria algo como domínio dos fãs ou
reino dos fãs. O termo passou a ser utilizado para referir-se às subculturas de fãs das séries Star
Trek e The Men From UNCLE nos anos 60 (COPPA, 2006). As interações entre esses fãs se davam
principalmente através de encontros presenciais esporádicos para assistências coletivas às séries,
discussões e atividades musicais (JENKINS, 1992).
Antes dos Estudos Culturais britânicos, esses fãs eram vistos como patológicos, concepção
sustentada pelas proposições da Escola de Frankfurt (ou Teoria Crítica). Esses estudos iniciais eram
mais pautados pelas questões psicológicas e emocionais dos indivíduos. É a partir da noção de

4
https://www.facebook.com/groups/sthingscombr/
cultura que os Estudos Culturais britânicos vão se diferenciar da Teoria Crítica. Um dos seus
objetivos era justamente acabar com a distinção entre alta e baixa cultura e legitimar a cultura das
massas. A cultura, sob essa ótica, não era um campo separado das práticas humanas, mas
constituinte da própria experiência social. Ao contrário de como percebiam os frankfurtianos, não
estava separada da vida material, sendo percebida como todo um modo de vida. Desse modo, ela
não é efeito de uma instância determinante, logo não é secundária, mas primária; não é apenas
superestrutura, logo não diz respeito somente ao simbólico, mas força ativa na construção social da
realidade, portanto não é tida como autônoma (apesar de sua autonomia relativa). Ao deslocarem a
acepção do termo cultura, preocuparam-se com sua implicação social, política, econômica e
ideológica. Ao debaterem a cultura como experiência social, propuseram-se a detectar como ela se
concretiza materialmente.
No início dos anos 90, Jenkins (1992) publica o resultado de sua pesquisa em subculturas de
fãs de ficção científica. Fundamentado nos Estudos Culturais, atesta o papel ativo dos receptores
através de relatos sobre embates entre alguns desses fãs e os produtores de televisão, além de
análises sobre produções criativas dentro dessas subculturas, como as fan fics e fan arts. Seu estudo
fundamenta-se em Michael De Certeau, que advoga pelas leituras constantemente negociadas e
renegociadas dos sujeitos.
Representados por um certo alinhamento teórico e temático entre os europeus e Jesus
Martin-Barbero e Nestor Garcia Canclini, os Estudos Culturais ganham contribuições na América
Latina. Os teóricos latino-americanos, pensando na comunicação como processo, preocuparam-se,
também, com o caráter de resistência das leituras dos textos e com a questão do poder e da
hegemonia na sociedade. De acordo com Martín-Barbero (1995, p. 41) “pensar a recepção apenas
como uma etapa faz da recepção unicamente um lugar de chegada e nunca um lugar de partida, isto
é, também de produção de sentido – o sentido que estava abolido pela significação apenas
transmitida ou pelos estímulos que ela comportava”. Desse modo, para o autor, estudar a recepção é
focar não apenas em um momento do processo de comunicação, mas no lugar a partir do qual o
estudo deve ser repensado.
Legitimando-se os textos populares e reconhecendo-se o papel ativo do receptor e o caráter
de resistência de suas leituras, os fãs passam a ser alvo de diversos estudos no campo da
comunicação, já menos associados a estereótipos. Se inicialmente esses fãs intensificavam a noção
de leituras ativas e resistentes, servindo objeto para atestar as proposições dos Estudos Culturais em
relação os processos comunicativos que incluíam os meios, na contemporaneidade vem sendo
observados para compreensão das implicações sociais e culturais dos novos modos de produção,
circulação e consumo televisivo no cenário da convergência midiática.
O conceito de convergência discutido por Jenkins (2009) diz respeito a uma certa simbiose
entre os diferentes tipos de meios de comunicação. No caso da televisão, o consumo outrora
concentrado no aparelho de tevê desdobra-se nos celulares, computadores, tablets e demais suportes
de mídia. Se antes as produções criativas dos fãs circulavam somente dentro das subculturas, no
atual cenário elas dispõem das tecnologias de informação para sua distribuição e podem atingir
diferentes tipos de público, indo do nicho ao mainstream. De olho nisso, as indústrias de
entretenimento tentam capturar algumas dessas práticas a fim de otimizar a propagação de seus
produtos, assim como se utilizam destas tecnologias para retenção de dados a partir das interações
entre público e meios e das interações sociais mediadas por esses meios (JENKINS, FORD,
GREEN, 2014).
Em meio a essa fragmentação de conteúdos através dos meios e da crescente incorporação
de merchandising associado aos programas de entretenimento, como games, camisetas, calçados,
cases de celulares, bonés, chaveiros etc., favorece-se a expansão dos conglomerados empresariais.
Indústrias se fundem a fim de otimizarem a produção em larga escala de todo um universo
simbólico associado às programações (JENKINS, 2009; MITTEL, 2015).
Se por um lado há uma integração entre produtores e entre meios, os consumidores também
ampliam os horizontes de interações sociais através da aceleração digital, que promove a dissolução
de fronteiras simbólicas outrora delimitadas geograficamente. Como apontam Martin-Barbero
(2006; 2010) e Ortiz (2015), as culturas nacionais se hibridizam e geram referenciais culturais
genéricos enquanto, paradoxalmente, preserva-se a diversidade em alguns aspectos. A
desterritorialização das interações sociais e a instrumentalização dos meios nas comunicações
interpessoais, cada vez mais mediadas, favorece o controle informacional por poucos e grandes
conglomerados empresariais e a aceleração do capitalismo predatório (CASTELLS, 1999).

2. Globalização e as questões identitárias


Todo o panorama até aqui apresentado desemboca na problemática das identidades no
contexto da globalização. Os Estudos Culturais britânicos, ao longo de sua trajetória,
desconstruíram a noção essencialista de identidade proferida pelos teóricos da Escola de Frankfurt,
defendendo que as identidades dos sujeitos são construídas culturalmente através das interações
sociais, estando sempre em transformação. Hall (1996) enfatiza que o paradigma cultural das
identidades surge a partir da busca em rearticular as relações entre objetos e práticas discursivas ou
do processo de materialização dessas práticas. Essa materialização implica em um ato de exclusão.
O ato de um sujeito se identificar com o outro, com determinados grupos sociais ou com
algum tipo de ideal opera através das concepções de diferenças, implicando em um trabalho
discursivo e de demarcação de fronteiras simbólicas, processo este que está sempre em construção.
Assim, o autor defende que a identidade é posicional e estratégica. Trata-se da relação entre o
sujeito e “aquilo que ele não é, ao que falta nele” (HALL, 1996, p. 4, tradução livre).
Woodward (2014) corrobora a noção de identidade como uma construção relacional e
discute o papel dos significados culturais nesse processo, que é guiado por referentes presentes nos
discursos da cultura e nos valores simbólicos atribuídos aos objetos materiais. O senso de
pertencimento e identificação com os referentes culturais se dá através das narrativas, dos discursos
que os sujeitos produzem sobre si mesmos e sobre suas próprias concepções do mundo (MARTÍN-
BARBERO, 2010). Desse modo, para Martin-Barbero (2006) as identidades culturalmente
formadas não podem se constituir sem serem contadas. Como reafirmado por Canclini (2010, p.
117), “a identidade surge (...) não como uma essência intemporal que se manifesta, mas como uma
construção imaginária que se narra”. Desse modo, tanto os discursos dos meios, absorvidos pelas
experiências sociais, assim como o valor simbólico atribuído a tudo o que é material servem de
matéria-prima para elaboração dessas narrativas.
Ao abordar a identidade narrativa, Canclini (2010) associa a discussão à questão das
divisões territoriais, dos significados produzidos sobre as cidades e nações e problematiza os
impactos da globalização nas narrativas identitárias. De acordo com Ortiz (2015) e Hall (2006) os
referentes particulares a um Estado-nação penetram em outros territórios através dos discursos e da
mediação social dos meios de comunicação, da expansão de mercados multinacionais e da
fetichização mercantil do que é culturalmente exótico. Assim, apesar de historicamente ter havido a
idéia de uma cultura nacional genérica mesmo com as contradições entre os diferentes grupos
sociais dentro dos Estados-nação, hoje se discute a hibridização entre culturas e a fragmentação das
identidades.
Para Bauman (2003) a globalização tornou as identidades instáveis e fluidas, estando em um
constate processo de reconstrução, processo esse influenciado pelos contextos sociais, culturais,
políticos e econômicos que envolvem os sujeitos. Hall (2006, p.12) afirma que “o sujeito está se
tornando fragmentado, composto não só de uma, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias e não resolvidas”. Além disso, “o próprio processo de identificação, através do qual
nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e
problemático.” (HALL, 2006, p. 12).
Assim como Hall, Martín-Barbero também entra nesta questão ao abordar que:
até pouco tempo, falar de identidade era falar de raízes, isto é, de costumes e
território, de tempo longo e de memória simbolicamente densa. Disso e somente
disso estava feita a identidade. Mas falar de identidade hoje implica também — se
não quisermos condená-la ao limbo de uma tradição desconectada das mutações
perceptivas e expressivas do presente — falar de migrações e mobilidades, de redes
e de fluxos, de instantaneidade e fluidez. (MARTIN-BARBERO, 2006, p. 61,
tradução livre)

Em meio a esse panorama fala-se de uma crise de identidade. Para Woordward (2014) essa
crise deve-se ao que ela chama de deslocamento, que consiste no fato de que as sociedades
modernas não possuem mais um núcleo específico que estabeleça identidades fixas, mas uma
pluralidade de núcleos que tem se deslocado..
Bauman (2005) enfatiza que a identidade contemporânea está associada a uma crise de
pertencimento ocasionada pela fragmentação dos sujeitos. O autor propõe uma polaridade vinculada
a essa crise: o deve e o é. Para ele, o sujeito contemporâneo só consegue estabelecer o sentido de si
quando vislumbra o que almeja ser.
Desse modo, grupos sociais se unificam não pautados por sua posição geográfica, mas pelas
narrativas e pontos de identificação que compartilham, criando comunidades imaginadas. Nesse
sentido, pode-se inferir que os fandoms de produtos midiáticos são comunidades imaginadas:
interculturais, híbridas, com repertórios cada vez mais genéricos e cada vez mais mediadas pelos
meios de comunicação.
As subculturas dos fãs de entretenimento, que ao longo das décadas vem construindo um
conjunto de normas, hierarquias e repertórios culturais muito fundamentados no consumo de obras
de ficção científica (COPPA, 2006) ampliam seu território simbólico através das redes sociais
digitais. Grupos de participação online agregam fãs oriundos de diferentes estados do país ou
mesmo de outros países, embora o segundo caso ainda ocorra com menos frequência devido às
barreiras de idioma. O repertório cultural, no entanto, passa a ser cada vez mais compartilhado e
este repercute no processo de fruição de novos textos, que por sua vez acionam um capital cultural
atravessado por referenciais simbólicos, cada vez mais genéricos, da cultura popular.

3. Estudo de caso no grupo de fãs de Stranger Things


3.1. Dos algoritmos às referencias da série
A trama de Stranger Things gira em torno do desaparecimento de um garoto de 12 anos de
idade, Will, em uma pequena cidade fictícia dos Estados Unidos dos anos 80. Descobre-se, no
decorrer da narrativa, a presença de um experimento secreto do governo envolvendo questões
sobrenaturais. A história tem como protagonistas outros três amigos de Will da mesma faixa etária,
Mike, Dustin e Lucas, que empenham-se em encontrar o garoto, e uma menina conhecida como
Eleven, procurada pelo laboratório experimentos secretos do governo e dotada de poderes
sobrenaturais. Desde o seu lançamento em 2016, a série é conhecida pela incorporação, em sua
construção narrativa, de referencias a outras obras da cultura midiática dos anos 80.
Algumas particularidades diferenciam a Netflix de uma emissora de televisão aberta ou de
um canal de TV a cabo. Sua plataforma disponibiliza uma variedade de conteúdos audiovisuais que
são transmitidos via streaming e podem ser acessados, pausados e reassistidos a qualquer momento
pelo consumidor, ou seja, não está sujeita a uma grade fixa de programação.
Para além da comodidade do espectador, o diferencial da reassistibilidade ilimitada ao seu
alcance é a possibilidade de sofisticação na elaboração de conteúdos inéditos, que dependem de um
grau maior de atenção por quem assiste e, muitas vezes, das interações com outros espectadores
para observância de detalhes que possam ter passado despercebidos (MITTEL, 2015). Para Jenkins
(2009) esse modelo de transmissão é particularmente interessante às indústrias na era da
convergência, pois possibilita a criação de conteúdos mais complexos, já que o espectador poderá
dedicar mais tempo para interpretá-los, potencializando sua fidelização aos programas e novas
sociabilidades voltadas a sua discussão.
Devido ao sucesso da série, passou-se a discutir o uso de algoritmos pela Netflix para
mapeamento de tendências e preferencias dos seus assinantes. Os algoritmos são:

cálculos matemáticos (logaritmos), funções, fórmulas, códigos ou softwares


programados por humanos que visam realizar uma tarefa por meio da resolução de
algum problema e que reconhecem informações e produzem outras (ALZAMORA
et al., 2017, p. 45).

Através das tecnologias de informação, a Netflix faz cruzamentos entre conteúdos assistidos
pelos usuários e adota um sistema de recomendação personalizado baseado no que é assistido em
cada conta. Além disso, armazena dados de cadastro dos assinantes. Com esse controle
informacional, a empresa consegue elencar objetivamente gêneros, temáticas e personalidades que
estão em alta entre os públicos.
Partindo da hipótese de que a popularidade da série Stranger Things se deve ao mapeamento
de tendências aplicado pela Netflix, Alzamora et al. (2017) realizaram um estudo baseado nos
comentários e avaliações registradas na plataforma para a série. O resultado encontrado foi um
indicativo de que a hipótese estava correta:
A concepção da série, portanto, a nosso ver, baseia-se em dados pessoais de
usuários constantemente coletados por essa plataforma. A recomendação da série
que analisamos, então, é calculada com base em comentários e avaliações de
usuários, os quais são disponibilizados para outros usuários, que decidem por
assistir ou não a Stranger Things. Logo, não fortuitamente, essa produção exclusiva
se popularizou via sistemas de recomendação, bem como por indicação
(classificação por estrelas e comentários) entre os usuários dessa plataforma,
tornando-se um grande sucesso (ALZAMORA et al., 2017, p. 55).

Para Alzamora et al. (2017), as referencias presentes na narrativa da série a títulos dos anos
80 com bases consolidadas de fãs seriam resultado do mapeamento feito pela Netflix dos rastros
digitais deixados pelos usuários levando em conta preferencias semelhantes entre eles.
Partindo dessa constatação, segue-se à discussão da primeira etapa dos dados coletados nas
publicações do grupo do Facebook relacionadas às referencias a cultura midiática dos anos 80.

3.2. Categorização das coletas nas publicações no grupo


O grupo Stranger Things Brasil escolhido tem mais de 80 mil usuários cadastrados. Para ter
acesso às publicações, solicita-se a adesão sob aprovação de moderadores. Devido ao intenso fluxo
de postagens, optou-se pela aplicação de palavras-chave em uma ferramenta de busca interna no
grupo disponibilizada pelo Facebook. De acordo com Monteiro e Azarite (2012) o uso de palavras-
chave otimiza a dimensão e eficácia da amostra a ser coletada em ambientes virtuais.
Conforme o objetivo da pesquisa, foram definidas as palavras “referencia” e “anos 80” para
filtragem de posts no grupo. Como em cada postagem estão presentes diversos comentários de
diferentes participantes, definiu-se como amostra as opiniões dos usuários, sejam as expressas
diretamente nas publicações ou nos comentários a elas vinculados. Mesmo com as filtragens por
palavras-chave foi incontável o número de postagens. Assim, dentre as publicações filtradas,
definiu-se um corpus de 120 opiniões coletadas por ordem cronológica de aparição na busca.
A análise dos comentários pautou-se por uma pré-categorização livremente inspirada no
modelo Encoding/Decoding de Stuart Hall. Ronsini (2012) propõe uma viabilização metodológica
do modelo, que consiste em analisar as leituras dominantes, negociadas e opositivas dos receptores.
O modelo, em sua concepção original, preocupa-se com questões político-institucionais e
ideológicas presentes nos discursos dos meios (Encoding) e com o nível de concordância dos
receptores em relação a elas (Decoding). A leitura dominante, desse modo, é aquela em que o
receptor tem a mesma leitura proposta no texto. A opositiva é aquela em que o receptor interpreta a
mensagem de modo totalmente contrário ao texto. A negociada mistura elementos de adaptação e
de oposição ao texto, ou seja, não é nem dominante nem opositiva.
Na aplicação de Ronsini (2012), embora priorize-se a recepção, propõe-se uma análise do
texto conforme o tema abordado pelo pesquisador para que esta seja confrontada às leituras dos
receptores. Para o objetivo da presente pesquisa, no entanto, essa análise seria inviável, pois tem
como enfoque os intertextos (aqui adotou-se o termo referências) presentes na narrativa da série, ou
seja, a análise precisaria estender-se a diversas outras obras:

a intertextualidade é uma precondição para que os textos sejam inteligíveis, o que


implica a dependência de um texto como uma entidade semiótica de outro texto
prévio. A referência intertextual, portanto, ao invés de evocar imagens, pode
excluí-las, parodiá-las ou até mesmo dar-lhes um significado oposto, dependendo
da forma pela qual é utilizada (PEREIRA, 2009, p. 18).

De todo modo, o objetivo deste estudo não demanda uma análise de valor estético ou
discursivo das referencias. Assim, a Codificação aqui diz respeito ao fato de haver referencias a
outras obras dos anos 80, independentemente de quais sejam. Legitimou-se a presença de
referencias a partir de entrevistas dos criadores da série à revista Rolling Stone 5, ao jornal The New
York Times6 e através do estudo de Alzamora et al. (2017).
A leitura dominante, para os fins desta pesquisa, se aplica ao reconhecimento direto de uma
ou mais referencias presentes na série, a negociada corresponde ao reconhecimento somente após as
interações com outros usuários e a opositiva diz respeito ao desconhecimento das referencias
mesmo após as interações. Para os casos de leituras negociadas, foi considerada somente a opinião
final de cada usuário após as interações.

3.3. Análise dos dados


A grande maioria das opiniões dos fãs no grupo se encaixa na categoria de leituras
dominantes. 89 das 120 opiniões coletadas indicam o reconhecimento de uma ou mais referências.
Vale ressaltar que as interações entre os fãs sinalizaram que o capital social dentro do grupo está
diretamente associado ao conhecimento das referencias. Em uma publicação 7, um usuário mostra
desconhecer uma música da década de 80 da banda The Clash que é tocada por um personagem em
determinada cena da série. Frente a isso, a grande maioria dos comentários vinculados à publicação
reprova o desconhecimento do usuário, vários deles frisando que o participante não deveria fazer
parte do grupo ou que não é um verdadeiro fã, conforme apontam esses comentários:

5
https://www.rollingstone.com/tv/tv-features/stranger-things-how-two-brothers-created-summers-biggest-tv-hit-
105527/
6
https://www.nytimes.com/2016/08/14/arts/television/stranger-things-netflix-duffer-brothers-interview.html
7
https://www.facebook.com/groups/sthingscombr/permalink/830073443842015/
Usuário 1: “assista a série se não assistiu oque vc esta fazendo aqui”
Usuário 2: “É por isso e outros motivos que o The Clash acabou”.
Usuário 3: “Como q uma pessoa q n sabe oq é isso tá aqui no gp? Kkkkkk”
Usuário 4: “Acho que vc n assistiu Stranger Things”.
Usuário 5: “tbm acho aff aqui é p fã de st e n p otários né”

As leituras negociadas correspondem a 22 das 120 opiniões. Tratam-se, majoritariamente, de


comentários em que os usuários disseram conhecer as referencias, porém não as tinham percebido
ao assistirem à série.
Por fim, as leituras opositivas somam apenas apenas 9 das 120 opiniões. Nestas, os usuários
afirmaram desconhecer totalmente a obra referenciada, mesmo após as interações com os colegas.
No entanto, percebeu-se uma disposição destes usuários para consumirem os títulos mencionados.
A tabela abaixo sintetiza, em números percentuais, a quantidade de opiniões
correspondentes a cada categoria:

Tabela 1 – Síntese percentual das leituras

Leituras dominantes 74,16%

Leituras negociadas 18,33%

Leituras opositivas 7,51%

É seguro inferir que as referências à cultura midiática dos anos 80 são importantes para os
fãs do grupo. Isso reforça a hipótese de Alzamora et al. (2017) de que a incorporação de referencias
na narrativa da série e a repercussão disso em sua popularidade deve-se às coletas dos dados de
assinantes, operada pelas tecnologias de informação de que a Netflix dispõe e pela aplicação dos
algoritmos. Ou seja, que as interações sociais cada vez mais mediadas por essas tecnologias
facilitam os interesses comerciais das indústrias de entretenimento. Logo, com a fusão dessas
indústrias em grandes conglomerados globais, os repertórios culturais atravessados pelos meios,
fundamentais para a construção das identidades sociais, tornam-se cada vez mais homogêneos e
descaracterizados geograficamente.
Martin-Barbero (2010) aponta, ainda, uma capitalização da nostalgia na contemporaneidade
a partir de uma busca dos sujeitos pelo passado e que isso se deve à desorganização espacial e
temporal dos referentes identitários. Wilson (2014) define a nostalgia como uma reconstrução de
um passado idealizado mais do que uma reconstituição fidedigna. Nessa reconstrução o sujeito filtra
apenas aquilo que interessa a ele no presente. Assim, os elementos do passado se incorporam às
narrativas autobiográficas do presente que fazem parte da construção identitária.
Essa revisitação ao passado, no entanto, não é feita apenas por quem o vivenciou. Por se
tratar de um passado idealizado, jovens podem buscar, através da cultura registrada nos meios de
comunicação, um passado vivido por gerações mais velhas.
A fim de atestar essa hipótese e reforçar a eficácia do mapeamento da Netflix, lançou-se um
questionário no grupo na tentativa de capturar algumas subjetividades relacionadas à questão da
nostalgia.

3.4. Aplicação do questionário


Para aplicação do questionário 8 utilizou-se uma ferramenta disponibilizada pelo Google
Docs através da qual 122 usuários o responderam. Pediu-se para que assinalassem, em uma escala
de 0 a 5, o quanto a nostalgia os levou a quererem assistir à série, sendo: 0 – indiferente; 1 – muito
pouco; 2 – pouco; 3 – moderado; 4 – bastante; 5 – indispensável.
49 usuários (40,1%) assinalaram 5, ou seja, consideraram a nostalgia indispensável. 24
participantes (19,7%) indicaram a opção 4, ou seja, a nostalgia teve bastante importância. No total,
quase 60% dos participantes atestaram a importância da nostalgia como fonte inicial de interesse na
série. Outros 23 usuários (18,9%) atribuem uma importância moderada. Somente 27 participantes
(21,3%) consideram esse fator pouco importante, muito pouco importante ou indiferente.
Perguntados sobre a importância do fato de haver referencias a outras obras na narrativa da
série, e obedecendo aos mesmos critérios da primeira pergunta, os participantes responderam o
seguinte: 59 deles (48,4%) as consideram indispensáveis e 29 (23,8%) assinalaram bastante
importante, ou seja, 88 participantes (72,2%) atribuem elevado grau de importância à presença das
referências. 22 usuários (18%) atribuem importância moderada e somente 12 deles (9,8%)
consideram esse fator pouco importante ou indiferente.
Perguntados se já eram fãs de algum outro filme ou série de ficção científica ou horror, 95
dos usuários (77,9%) responderam que sim e 27 participantes (22,1%) disseram que não.

5. Considerações finais
O presente estudo preocupou-se em problematizar a questão das identidades atravessadas
pela esfera midiática no contexto da globalização, levando em conta o panorama da convergência
de mídias e da aceleração das tecnologias de informação. O conceito de identidade trabalhado
baseou-se nos Estudos Culturais britânicos e latino-americanos. Para os teóricos dessa corrente, as

8
https://docs.google.com/forms/d/1zNdubpyVBSJnltvqn9RogDdKP4ubUeeKrTtfjNsHst8/edit#responses
identidades são culturalmente formadas e estão em constante processo de reconstrução.
Entender as identidades como culturalmente formadas requer admitir a cultura como
constituinte das práticas sociais e não apenas pertencente ao âmbito ideológico e imaterial, uma vez
que a construção identitária se realiza através das interações sociais. Um sujeito, assim, depende de
outro para adotar um posicionamento simbólico nos grupos sociais e criar fronteiras para
diferenciar-se.
Assumindo que esse posicionamento é pautado por significados presentes nos discursos da
cultura, o papel dos meios de comunicação mostra-se, então, fundamental nesse processo, pois, de
acordo com os autores trabalhados, a cultura incorpora e é incorporada pelas diferentes narrativas
midiáticas. Interagir socialmente é transmitir ao outro uma narrativa pessoal que agrega elementos
dos discursos culturais.
Segundo os Estudos Culturais contemporâneos, toda essa lógica de construção identitária
tem se modificado no contexto da globalização, pois as fronteiras territoriais se dissociam cada vez
mais das fronteiras simbólicas da cultura devido ao avanço dos meios de comunicação
hegemônicos. Indústrias de entretenimento fundem-se em grandes conglomerados transnacionais,
repercutindo em repertórios culturais cada vez mais homogêneos e compartilhados entre diferentes
Estados-nação do globo. Isso não é dizer que inexistam particularidades culturais nos territórios,
mas assumir a existência de comunidades simbólicas desterritorializadas.
Partindo do pressuposto de que os fãs de produtos de mídia são importantes fontes de estudo
para as questões identitárias atravessadas pelas mídias, uma vez que tem um vinculo com os meios
de comunicação mais explicitado, especialmente no panorama da convergência midiática, propôs-se
estudar as práticas dos fãs da série Stranger Things, sucesso de público da Netflix, em um grupo
virtual no Facebook. O objetivo concentrou-se em mensurar o reconhecimento desses fãs das
referencias a outras obras da cultura midiática dos anos 80 presentes na narrativa da série e verificar
sua importância para eles.
Atestar o reconhecimento das referencias daria indícios de que: o repertório cultural está, de
fato, cada vez mais homogêneo em certos contextos; os referentes identitários estão cada vez menos
delineados por territórios geográficos; as tecnologias da informação/meios de comunicação tem
papel fundamental nesse processo.
A pesquisa no grupo indicou um reconhecimento maciço dessas referencias entre seus
participantes e apontou que o capital social dentro do grupo é diretamente proporcional ao
conhecimento delas. A fim de verificar se havia alguma importância o fato de essas referencias
remeterem aos anos 80, percebeu-se um envolvimento com a nostalgia entre esses fãs. A maioria
deles disse que o fato de a série propiciar uma sensação de nostalgia foi fundamental para despertar
entre eles um interesse inicial para sua assistência. Tal fato reforça a colocação de Martin-Barbero
(2010) de que a busca crescente pelo passado, pela sensação de nostalgia, deve-se, entre outros
fatores, à desorganização espaço-temporal dos referentes identitários na sociedade globalizada do
presente.
Com isso, ressalta-se, conforme aponta Booth (2010), a importância de estudos de fãs que se
preocupem não só com a contribuição de integrantes para determinada comunidade virtual, mas
com o que essas comunidades tem a dizer sobre a sociedade em nível mais amplo.

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