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CRISTOLOGIA:

Mais que uma doutrina, uma adesão, uma libertação

Reinaldo Arruda Pereira1

“Jesus Cristo, tinha a condição divina, mas não se apegou a


sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si
mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se
semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como
simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se
obediente até a morte, e morte de cruz”. (Filipenses 2:6-8).

Resumo
Quem é Jesus Cristo para a igreja e para cada um de nós, hoje? É a esta pergunta que
o presente artigo procurará responder. É em Jesus Cristo que descobrimos mais
efetivamente quem é Deus e quem é o ser humano. Reinterpretamos a Cristologia
como uma das doutrinas de maior importância para o cristianismo, para a igreja e para
a vivência cristã. Reafirmamos a sua centralidade na libertação do homem todo e de
todo o homem, no lugar em que está inserido e onde tem alcance a sua fé e sua ação.
Reconstruímos também a idéia da conversão e do seguimento de Jesus como um
processo que liberta a vida dentro da vida e como uma condição indispensável para o
estabelecimento de uma nova ordem espiritual, social e política. Sinalizamos também
que a Cristologia é construída e pensada no entorno do tema Jesus Cristo como
Libertador, o que na prática significa cristificar toda a realidade com os valores do
Reino: liberdade, amor, justiça, solidariedade, verdade, etc.

Palavras-chave: Cristologia, libertação, conversão, Reino de Deus, esperança,


solidariedade.

Abstract
Who is Jesus Christ to the church for each of us today? This is the question that this
article will try to answer. It is in Jesus Christ that we find out effectively who God is and
who is the human being. We understand the study of Christ as one of the most
important doctrines for Christianism to the church and to the Christ living. Reafirm that it
is the center for men’s liberty in the place where he is inserted and where men can
achieve their faith and their action and the following of Jesus as a process that free the
life inside and as an essencial condition for the stability of a new spiritual, social and
political order. We point out that the study of Christ is built and thougth around Jesus
Christ theme as a liberator, what in practice means sacrifice all the reality with the
values of the Reign: liberty, love, justice, sympathy, true, etc.

Keywords
Christology, liberation, convertion, kingdom of God, hope, solidarity.

1
Doutorando em Ciências da Religião, pela Universidade Metodista de São Paulo; Mestre em
Educação pela PUC-MG, 2002; Lato Sensu em Metodologia do Ensino Superior e Filosofia
para o pensar. Licenciatura em Filosofia pela PUC-MG, 1999, e Pedagogia pela FAFI-BH,
1997; Curso Livre de Teologia pelo Seminário Teológico Batista Mineiro, 1991.
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1 INTRODUÇÃO

Escrever sobre o inefável. Eis o desafio paradoxal da teologia. Desafio


paradoxal por dois motivos. Primeiro, porque devemos recordar, sempre, das
perguntas do Cristo registradas nos Evangelhos: “quem dizem que Eu sou? E
vocês, que dizem?” Segundo, porque diante do inefável o melhor que temos a
fazer é ouvir, sentir, silenciar-se. Contudo, reconhecemos: de tal tarefa não
podemos nos esquivar. Por isso, decidimos “falar”, isto é, escrever este artigo
sobre a Cristologia. Não qualquer cristologia, mas uma Cristologia que tem
como eixo principal a libertação. É nesta direção que o presente artigo é
construído e tem como objetivo apresentar as idéias-chaves sobre a
Cristologia, bem como despertar e estimular vivências religiosas que tenham
como foco principal não só a salvação individual, mas também a libertação
numa perspectiva globalizante. De acordo com Culmann (2004) a vida de
Cristo está ligada, desde a criação do mundo, não só à história da salvação,
mas fundamentalmente à história da libertação. Nesta perspectiva, a
Cristologia é mais do que uma doutrina, é um acontecimento que tem uma
história e uma razão de ser, tanto para Deus, quanto para o homem.
Destacamos que a temática - Cristologia: mais que uma doutrina, uma
adesão, uma libertação - foi pensada, elaborada e proposta com uma
intencionalidade: fazer-nos enxergar a vida, o ser humano, o sofrimento, a dor,
a exploração, etc, sempre pela lógica do Cristo libertador e do Reino de Deus.
Neste aspecto, aproveitamos as linhas, as letras, as idéias e o pensamento que
formam as teias deste texto, para reforçar a necessidade de tirarmos os
disfarces e as camuflações teológicas que tanto nos marcam, cegam e nos
cativam à uma fé inoperante. Ao pensarmos a Cristologia, pensamos
cristologicamente. Neste sentido, tencionamos pensá-la como
fundamentalmente libertadora, para nós mesmos, para todos os outros e para
toda a criação. A libertação é algo que requer uma atitude, uma práxis e uma
esperança, mesmo que esteja se constituído numa tarefa por demais
complicada e desafiadora. Contudo, como destaca Paulo em I Coríntios 13,
sendo a libertação uma tarefa de amor, o amor tudo vence!
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A relevância da cristologia está no interesse pelas atitudes e pelos


comportamentos do Jesus histórico e sua aplicabilidade no contexto de vida
das pessoas seja em qualquer tempo e lugar geográfico. Essa relevância tem a
premissa de que Jesus Cristo revelou o que há de mais divino no ser humano e
o que há de mais humano no ser divino. A cristologia tem Jesus Cristo como
libertador e como centro da fé na periferia de todos os lugares do mundo. Isto
diferencia a Cristologia Libertadora das demais cristologias existentes, ou seja,
daquelas que não são para a libertação. “A Cristologia que proclama Jesus
Cristo como Libertador quer comprometer-se com a libertação econômica,
social e política dos grupos oprimidos e dominados” (BOFF, 2003, p. 17).
Diante disto, há de nossa parte a compreensão de que a proposta teológica
que emerge da Cristologia da Libertação, é entender o homem e o próprio
Deus a partir da centralidade de Jesus. Portanto, destacamos que é em Jesus
que se encontra o mistério máximo da vida, da fé e da divindade: Jesus
manifestou e revelou o homem na sua máxima radicalidade da mesma forma
que revelou quem foi o Deus humano.
Assim, o que pretendemos com este artigo é apresentar uma síntese
das principais idéias sobre a Cristologia Libertadora, elucidar alguns conceitos
e socializar conhecimentos no entorno deste importante tema teológico. Para
tanto, em primeiro lugar vamos abordar com o ambiente sócio-cultural da
América Latina e a Cristologia que emerge dentro deste espaço-ambiente.
Segundo Moltmann (2004), uma Cristologia que nasce no próprio lugar onde
está o ser humano tem como alvo tornar todo o povo um sujeito de sua própria
história. Destacamos a América Latina porque é nesse lugar e nesse palco que
tem acontecido os mais descabidos pecados espirituais, sociais, econômicos e
políticos: opressão, exploração, violência, injustiça, fome e miséria...
Abordaremos também a Cristologia e a re-construção da idéia de conversão e
do seguimento de Jesus. Conversão e seguimento de Jesus estão diretamente
relacionados com o Reino e exigem do convertido e do seguidor uma atitude
libertadora para com todo homem e para o homem todo. Na terceira e última
parte do artigo, consideraremos a Cristologia e o Reino, pois partimos da
indissociabilidade do Cristo e do Reino, pois compreendemos um e outro como
fundamentais para uma práxis transformadora e libertadora. De acordo com
Boff (2003), o Reino significa uma revolução radical e profunda no modo de
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pensar e agir da pessoa e uma global transformação no mundo e também das


coisas da pessoa.

2 O AMBIENTE SÓCIO-CULTURAL DA AMÉRICA LATINA E A


CRISTOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Os países da América Latina como um todo e, especificamente, o Brasil,


tiveram sua origem através de um ato brutal de violência: a conquista e a
colonização. Foi um processo de violência e opressão da terra e da gente da
terra, uma vez que não há conquista, sem invasão, colonização e depredação
do outro. Nossa história como latino-americanos é marcada, infelizmente, por
relações de injustiça, opressões, pobreza, miséria e maus-tratos. Sobre a
condição de colonialismo e dependência, ressalta Sampaio (1989): eles não
conta toda a história da América Latina, pois a história incluiu e ainda inclui
sucessivas gerações de pessoas e profetas que se levantam contra este
estado de coisas. A aceitação da dominação, da pobreza, da violência e da
opressão não foi passiva e pacífica, o que desmonta a velha tese de que
somos um povo pacífico, cordial e sem força para lutar.
A pobreza é um estado de coisas que vem de muito longe. No
passado, ela sem dúvida deu lugar a gestos admiráveis de serviço aos
pobres e abandonados. Hoje, no entanto, o conhecimento de sua
amplitude incômoda, a brecha cada vez maior e mais profunda entre os
estratos ricos e pobres na sociedade atual, é o modo como nos
aproximamos dela, fizeram com que apenas na segunda metade do
século XX se tenha começado a percebê-la realmente como um
desafio à nossa compreensão da fé. (GUTIÉRREZ, 2000, p. 59).

Mas a violência continuou pelos séculos e ainda continua em nossos


dias. No decurso da história a violência cresceu e cresce, cada vez mais, nos
países do Terceiro Mundo e, de modo particular, no Brasil. Somos marcados
por um capitalismo predatório e explorador. Os assaltos em rua, prédios e
casas, o extermínio de crianças abandonadas e o abandono de “idosos” e a
exclusão social, econômica e cultural, de um número maciço de pessoas fazem
parte de uma dura realidade. Tal situação configura, objetivamente, um estado
de violência que tem a ver com estruturas permanentes e continuadas de
violência. Diante desse quadro de violência e opressão que atinge a América
Latina, Gutiérrez explicita que a violência é geradora de morte: “Vivemos hoje
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na América Latina uma situação muito dolorosa. Muitos cristãos são mortos
porque são cristãos. Isso já aconteceu na história cristã, no passado. Mas,
estamos passando por isso na América Latina hoje” (GUTIÉRREZ, 1989, p.
38). Muitas foram as tentativas reformistas que objetivavam uma mudança
nesse quadro assolador. Entretanto, somente nos anos 60 e 70 do último
século é que as esperanças de uma grande mudança começam a existir.
Nessa época, lá pelos idos de 1960, nascia a Teologia da Libertação e
com ela, a Cristologia da Libertação. Esta, respaldada pelo Cristo vivo anuncia
a vivência radical do Deus da vida numa realidade marcada pela morte. Por ser
um projeto teológico-humano que se reveste, no seu todo, daquilo que é mais
característico da divindade – a libertação – a proposta da Cristologia é a
libertação não só dos pobres e oprimidos, mas de toda a criação de Deus. Na
perspectiva de Boff é uma Teologia da Libertação, ao mesmo tempo, que uma
práxis libertadora. Isto porque:
Viver a fé em Jesus Cristo Libertador supõe um compromisso com a
libertação histórica dos oprimidos... Falar em Jesus Cristo Libertador
supõe alguma coisa anterior. Libertação acha-se em correlação à
dominação. Venerar e anunciar Jesus Cristo Libertador implica
pensar e viver a fé cristológica a partir de um contexto sócio-histórico
de dominação e opressão. (BOFF, 2003, p. 15. Grifo do autor).

A Cristologia, como também outras teologias construídas a partir da


situação e do contexto latino-americano, são atentas à vida do Jesus histórico
e das historizações feitas acerca d’Ele e das comunidades e pessoas daquela
época. Contudo, não se esquece e nem secundariza as situações e as
calamidades do tempo presente. Diante deste fato incontestável, a Cristologia
se propõe como libertadora, pois está pautada, por um lado, no Jesus histórico
e na sua missão e, por outro, na necessidade da libertação de milhares de
pessoas cuja morte e causa dela são similares às de Jesus.
Jesus não procurou a morte; esta lhe foi imposta de fora e ele a aceitou
não resignadamente, mas como expressão de sua liberdade e
fidelidade à causa de Deus e dos homens. Isolado, rechaçado e
ameaçado, não compactuou – para sobreviver – com os poderosos
privilegiados, mas permaneceu fiel á sua missão de anunciar a boa-
nova aos que se convertem. (Ibdem, p. 32).

A Cristologia, que é para a libertação, condena sem rodeios a riqueza


que foi e que é apropriada as custa da injustiça, da opressão e do dolo.
Condena-se a riqueza que gera e que mantém a exclusão, a injustiça e a
opressão de milhares de pessoas e povos. Condenação que se iniciou com o
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Jesus histórico e pelos seus ensinos, pois tais coisas, além de oprimir, tornam-
se obstáculos ao Reino de Deus. Na América Latina, a violência, a dominação,
a injustiça, a opressão e a exclusão têm relação direta com o capitalismo e com
um projeto fundacional de um mercado mundial. É nesse contexto que emerge
uma consciência histórica em prol de libertação. A palavra libertação tornou-se
significativa e foi interpretada para além de um mero vocábulo. Libertação é
uma linguagem, uma tomada de consciência, mas também um componente da
reflexão teológica e uma práxis política libertadora.
A Cristologia que é para a Libertação denuncia o monopólio e os
privilégios do poder que se auto-idolatra e que tem em si mesmo o seu próprio
fim. É por isso que a Cristologia fundamenta e corrobora para uma ação cristã
e eclesial que seja para a Libertação, pois o seu imperativo é o serviço, o
engajamento e a esperança como forma de poder, de solidariedade e de
libertação. Assim, como enfatiza Boff (2004), só se pode elaborar uma
Cristologia verdadeiramente de libertação com a condição de que o teólogo
tenha feito uma opção clara e irredutível pelo Reino de Deus e por todos
aqueles a quem Deus ama. Como a América Latina e os muitos países a ela
pertencentes carecem de libertação, por causa das inúmeras desigualdades
sociais, culturais, políticas e econômicas, com suas opressões e “matanças”, o
lugar e a vez da Cristologia da Libertação estão definidos. A Cristologia da
libertação deve corporificar-se numa práxis de amor engajado, pois seu
nascimento se deu a partir da escuta do grito massivo dos pobres entendidos
como injustamente oprimido.
Especificamente no que tange à pobreza e à miséria no Continente Sul-
americano, Boff (2004), reforça a idéia de que ele vive uma situação como a da
parábola evangélica do “bom samaritano2”. Ou seja, desde a sua descoberta,
depende de outros que o despojam, lhe fazem violência e o deixam semimorto.
Nesse aspecto, ressaltamos que as crises econômicas, políticas e sócio-
culturais da América Latina são também crises teológico-religiosas, uma vez
que a teologia e as religiões, ao longo da história, contribuíram para o
estabelecimento de relações de mando, de opressão, de violência e de

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De acordo com o relato do evangelho, em Lucas 10: 30-36, denominada “A parábola do bom
Samaritano”, Jesus conta a história de um homem que caiu nas mãos dos salteadores, os
quais o despojaram, o que pode ser compreendido paralelamente ao Continente Sul-
americano, que desde a sua descoberta é também despojado.
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exploração. Mesmo que a Teologia e as religiões possuíssem uma


responsabilidade de libertação dos povos, o compromisso foi negado, por
causa de um grave reducionismo teológico – um Cristo vivo, mas não um Jesus
histórico, - uma igreja que tem uma mensagem que liberta, mas que não tem
prática e vivência libertadora. A carência e a falta de ação e de vivências
libertadoras nas igrejas católicas e protestantes se manifestam, historicamente,
por dois motivos: pela superficialidade de sua Cristologia e pelo desprezo da
história da América Latina. Segundo Mendonça (1989), tanto a cristologia
católica quanto protestante deixaram para trás a história da América Latina.
Segundo ele, a primeira por apresentar um Cristo morto, a segunda por
apresentar um Cristo vivo, mas completamente distante.

3 A CRISTOLOGIA E A RE-CONSTRUÇÃO DA IDEIA DE


CONVERSÃO E DO SEGUIMENTO DE JESUS

A Cristologia da Libertação revisita dois conceitos teológicos


importantes: a conversão e o seguimento de Jesus. Isto porque a conversão e
o seguimento de Jesus são mais do que conceitos teológicos e religiosos. São
experiências e vivências profundas com Deus e com outros seres humanos e
traduzem uma práxis transformadora e um compromisso com a libertação.
Neste sentido, é impossível pensar a vida religiosa fora e separada do
processo de libertação e do Jesus histórico como um marco de referência
central. Como enfatiza Boff (2003), a adesão á Cristo é condição indispensável
para participar na construção de uma nova ordem a ser introduzida por Deus. A
conversão e o seguimento de Jesus não significam apenas um compromisso
com religiosidade de caráter eclesial. Ao contrário, significam uma nova
espiritualidade, que a partir da fé e da encarnação do Cristo em nós, em nossa
vida e em nossa prática, se encontra comprometida e engajada na libertação.
Gutiérrez (2000), ressalta que a prática é o que constitui precisamente o
coração da conversão e do seguimento. Para esse teólogo, a prática é aquilo
que se configura no evangelho de Mateus (7:21), como um chamado a fazer “a
vontade do Pai”, em oposição a um simples dizer “Senhor, Senhor”.
Para que se realize semelhante transformação libertadora do pecado,
de suas conseqüências pessoais e cósmicas, de todos os demais
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elementos alienatórios sentidos e sofridos na criação, Cristo faz duas


exigências fundamentais: exige conversão da pessoa e postula uma
reestruturação do mundo da pessoa (Ibidem, p. 48).

Sobre a conversão e o seguimento de Jesus, como vivências,


experiências e engajamento em prol da libertação, esclarece-nos Boff (2003): a
conversão não é somente mudança de convicção (teoria/crença/pensamento).
É principalmente mudança de atitude (prática/ação), não somente do ser
humano como possuidor de uma liberdade pessoal (do coração/interioridade),
mas da pessoa como ser concreto que está envolvida numa rede ativa e viva
de relações. Na verdade, o que a Cristologia traz como imperativo, a partir de
uma nova espiritualidade, é que o ser humano transformado e libertado viva a
vida dentro da vida, isto é, participe das tristezas e das angústias, bem como
das alegrias e esperanças de libertação de todo o homem como também do
homem todo. Segundo Higuet (1989), o ponto de partida da Cristologia
Libertadora é a experiência da fé. É, ao mesmo tempo, prática, atitude e ação.
É encontro com Deus em Cristo pelo Espírito e práxis de libertação efetiva, nas
múltiplas dimensões da existência humana.
Conversão verdadeira atinge o converso no seu todo. Por isso Jesus
iniciou sua pregação enfatizando que o Reino dos céus estava próximo. É
somente depois da conversão, que o ser humano, já libertado, encontra-se
apto para o seguimento de Jesus. Nesta perspectiva, Boff (2003) enfatiza:
converter-se não consiste em exercícios piedosos e nem na prática de ritos.
Converter-se consiste num novo modo de existir diante de Deus e diante da
novidade anunciada por Jesus. É esse processo que habilita o ser humano a
aceitar e a obedecer ao chamado para o seguimento de Jesus. Ressaltamos,
portanto, que o seguimento de Jesus vem depois da conversão. Não é uma
mera imitação do mestre, do Jesus histórico. O seguimento é
fundamentalmente a continuidade da sua obra aqui na terra. É uma forma de
atualizar a libertação que ele oferece no lugar onde vivemos e em quaisquer
outras partes do continente e do mundo. O seguimento implica em anúncio da
utopia e sua tradução em prática, mas também no envolvimento com as lutas e
conflitos que a causa da libertação tem. “Seguir a Jesus é pro-seguir sua obra,
per-seguir sua causa e con-seguir sua plenitude” (ibidem, p. 35).
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A conversão é dom oferecido; com ela e por ela o Reino se estrutura no


convertido e coloca-o em sintonia com os pobres e oprimidos objetivando a
libertação. No entanto, esclarecemos que a conversão de acordo com a
Cristologia da Libertação não é filiação a uma igreja ou a um segmento
religioso. Claro, ela não exclui necessariamente a filiação religiosa, mas vai
muito além dela e tem como base o amor. Sem amor não há possibilidade de
um seguimento verdadeiro de Jesus. É por isso que Boff (1986) enfatiza: a
conversão significa mudar o modo de pensar e agir no sentido de Deus, tal
como Jesus pregou: “convertei-vos, pois o Reino de Deus está próximo” (Mt
3:2). Nessa perspectiva, podemos destacar que uma nova lei tem a função
libertadora e salvadora, pois muda o interior do indivíduo, preenchendo-o com
amor. De acordo com Moltmann (2004), o amor é que muda a vida do indivíduo
e este amor é, nada menos que, a presença real do Deus vivo. Nesse sentido,
a Cristologia da Libertação tem como núcleo a lei do amor. “O amor que salva
supera todas as leis e leva todas as normas ao absurdo”. (BOFF, 1986, p. 53).
A conversão, tal como apregoa a Cristologia da Libertação, envolve uma
reviravolta na compreensão da salvação. Esta, historicamente, foi pensada e
difundida, a partir de um reducionismo teológico, em que se descrevia a
salvação tão somente como um ato que efetivava a salvação da alma.
Desconsiderava e secundarizava-se, portanto, um significado e um sentido
ainda maior do que é a salvação – um projeto amplo e autêntico de libertação.
Nesta abordagem teológica reducionista, Jesus Cristo era e é tão somente um
perdoador de pecados pessoais, íntimos e subjetivos, e não o centro da fé na
periferia e nas fronteiras do mundo para a sua libertação. Enfatizamos que
“Venerar e anunciar Jesus Cristo Libertador implica pensar e viver a fé
cristológica a partir de um contexto sócio-histórico de dominação e opressão”
(Ibidem, p.15), como uma exigência e um imperativo, tanto da conversão,
quanto do seguimento de Jesus.
A Cristologia da Libertação não corrobora com a idéia da salvação
humana como um ato acabado e individualizado. Ao contrário, compreende-a
como um processo e uma construção que envolve a trama histórica e a
realidade em que aquela se desenrola. A conversão que gera e produz a
salvação do indivíduo implica em salvar também a realidade de sua miséria, o
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que se dúvida nenhuma, dá sentido à libertação alcançada pelo próprio


indivíduo.
Se Cristo tem um valor determinante para nós é porque nele
encontramos a resposta aos problemas e às esperanças da condition
humaine. Resposta que envolve Deus e o homem. E encontramo-la na
realidade mesma de Cristo. Por isso que a fé viu nele o homem-Deus.
Deste modo professamos que temos em Cristo o caminho e ao mesmo
tempo a meta do caminho: pelo homem vamos a Deus e através de
Deus compreendemos quem é o homem. (BOFF, 2003, p. 172).

A Cristologia Libertadora, desde o tempo de Jesus de Nazaré, tem um


foco primordial: a Palavra que se fez carne e habitou entre nós. É Jesus de
Nazaré que inaugura na temporalidade uma nova época e cria um novo ser
com uma nova história. “Ele mesmo já se apresenta como o homem novo, da
nova criação reconciliada consigo mesma e com Deus. Suas palavras e
atitudes revelam alguém libertado das complicações que os homens e a
história de pecado criaram” (Ibidem, p. 60), para tornar outras tantas pessoas,
pela conversão e seguimento de Jesus, em servos e em filhos reconciliados
com Deus. Contudo, é somente com a concretização da ressurreição de Jesus
que se manifesta o homem novo; aquele que, por ter morrido, ressuscitado e
vencido a morte, está apto espiritual, histórica e fisicamente a implantar uma
nova história, um novo cosmos e uma nova experiência com Deus. A
ressurreição mostrou que, com Cristo, a história chegou ao seu ponto ômega.
A morte foi vencida e o homem totalmente realizado e inserido dentro da esfera
divina, pode, então, lutar pela libertação completa do seu semelhante e de todo
o universo.
Com o advento de Cristo, sua encarnação, seu ministério, sua morte e
ressurreição, Jesus de Nazaré atinge toda a humanidade, tomando-a para si a
fim de libertá-la das opressões, maus-tratos, violência e pobreza. Com sua
ressurreição é confirmada a inauguração de um novo ser e de uma nova
história, cuja maior ameaça foi vencida, a morte. Pela morte e ressurreição do
Filho de Deus, abriram-se espaço para a libertação, pois somos todos
destinados à imagem e semelhança de Deus por meio de Jesus Cristo. Assim,
é bem possível, se todos quisermos, semearmos em nós mesmos e em tantos
outros a boa nova de libertação. Ora, isto é serviço, é seguimento, é
demonstração de conversão.
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4 A CRISTOLOGIA E O REINO DE DEUS

A Cristologia é Libertação. Por se esta a sua natureza é fundamental


que é preciso que a Cristologia seja pensada e teologizada a partir do contexto
existencial do teólogo e daqueles a quem se quer atingir e libertar. A Cristologia
é construída no entorno do tema Jesus Cristo Libertador e por isso mesmo,
demarca e afirma com quem deve ser e qual deve ser o compromisso da igreja
e do cristão na sociedade a ser transformada. Segundo Mendonça (1989), a
grande descoberta da teologia latino-americana é do Cristo pós-profético e
anterior à sua morte e ressurreição. Esse Cristo libertador ganha sentido e traz
o sentido para a história porque o povo e a igreja da América Latina precisam
de salvação e, a partir dela, se tornem instrumentos de libertação nas mãos do
Senhor do Reino
Nesta perspectiva, ao povo cristão e à igreja há um desafio fundamental:
continuar aquilo que Jesus iniciou em Nazaré. Cristificar toda a realidade com
os valores do Reino, já que o Reino coloca em cheque os interesses regionais
e imediatos, religiosos, políticos e sociais. Para tanto, esclarece-nos Boff:
Cabe às igrejas e à cultura influenciada pelo cristianismo não poluírem
os canais de acesso à realidade de Cristo. (...) Com Jesus, deverá de
modo especial dar atenção aos sem-nome e aos sem-voz; deverá
acentuar particularmente as dimensões seculares e libertadoras da
mensagem de Cristo encerrar e ressaltar adequadamente o futuro que
ele também promete pra esse mundo no qual está crescendo, entre o
joio e o trigo, o Reino futuro, não para alguns privilegiados, mas para
todos. (BOFF, 2003, p. 228 e 233).

A Cristologia trata da libertação do homem contemporâneo, como uma


forma e como uma práxis de transformação e superação da pobreza, da
exclusão, das desigualdades e das opressões que ainda existem e estão
solidificando cada vez mais. Segundo Josgrilberg (1991), em Jesus e em sua
encarnação, Deus assume a causa dos fracos. Ele se constitui como o
defensor dos fracos e das vítimas de opressão e exploração. Dessa maneira, a
Cristologia da Libertação têm como eixo norteador Jesus Cristo Libertador, e
por isso, possui um projeto revolucionário e transformador dos pobres, dos
dominados e dos oprimidos. É esta situação de opressão, miséria e pobreza,
realidade concreta, que alimenta a Cristologia, sua atividade, seu compromisso
e sua luta pela libertação. “A libertação total, gerada pela liberdade plena,
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constitui a essência do Reino e é o bem escatológico de Deus. A história é


processo rumo a isso. Cabe ao homem incrementá-lo”. (BOFF, 2003, p. 27).
A libertação deve ser compreendida como uma ação que, a partir da fé,
liberta e transforma opressor e oprimido, pois esta tem como centralidade o
Reino de Deus. Mas, o Reino que foi tema da pregação e do ensino de Jesus e
que é também temática recorrente na Cristologia não diz respeito apenas à
dimensão espiritual do ser humano. O Reino implica numa mudança e numa
transformação das pessoas e de suas atitudes, do mundo das pessoas e do
cosmos como um todo. “Hoje não apenas os pobres gritam. Gritam também a
terra, as águas, os ares submetidos a formas de utilização depredadora e
destrutiva, enfim, grita o planeta todo (BOFF, 2000, p. 203). Temos urgência de
libertação, pois a vida e a sobrevivência de todos os seres vivos correm sérios
riscos.
Na verdade, o que está em pauta na construção e na proposição da
Cristologia Libertadora, do lugar e para o lugar, do homem para o homem, do
homem para Deus e vice-versa, é a relevância de se voltar a Jesus como uma
realidade concreta. Uma realidade que garante sentido concreto e não abstrato
para a vida no aqui e no agora e também no futuro, já que o Reino de Deus foi
inaugurado e tem dimensões escatológico-apocalípticas. Nesse aspecto, o
mundo como espaço-tempo da habitação humana e as relações econômicas,
religiosas e sócio-culturais que nele se estabelecem, tal como se encontram,
contraria a vontade e os desígnios de Deus. Dessa maneira, o imperativo é a
libertação. Como salienta Boff (2003a), libertação só é verdadeira libertação se
possuir um caráter universal e globalizante e traduzir o sentido absoluto
buscado pelo homem. De acordo com Echegaray, o Reino é uma libertação
radical do mal, que acontece no aqui e no agora: “Reino já liberta aqui e agora,
oprimido e opressores. (...) mostra por isso mesmo sua vinculação indestrutível
a uma forma superior de humanidade. Mas quebra com mais força ainda a
inércia da cumplicidade com a opressão que é sinal de um mundo dominado
parcialmente pelo mal. (ECHEGARAY, 1984, p. 156).
A libertação é, de fato, o componente integral e primordial da Cristologia.
Por libertação se exprimem, ao mesmo tempo, uma negativa e uma afirmação,
ambas radicalizadas. Nega-se o reformismo e o progressivismo e afirma-se a
libertação do status quo vigente e de estruturas econômicas, sociais, políticas e
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ideológicas dominantes e opressoras. Segundo Boff (1986), surgem duas


cristologias: a da sensibilidade e a da análise. A primeira, por se originar de
uma indignação ética, trabalha cristologicamente o que é vivenciado; já a
segunda, emergindo da racionalidade sócio-analítica, atua e opera
cristologicamente com o que é pensado. Com um contexto social, político e
econômico nos qual imperam a opressão, a dominação, a ganância e a
pobreza, é preciso construir a consciência da necessidade de uma
transformação mais ampla no interior das sociedades latino-americanas. A
partir do contexto, mas também de uma fé engajada que conduz ao
seguimento de Jesus, se elabora/constrói uma Cristologia da Libertação.
“Sentir-se atingido por Cristo hoje é pôr-se no caminho da fé, que compreende
quem é Jesus não tanto dando-lhe títulos novos e nomes diferentes mas
ensaiando viver aquilo que ele viveu: tentar sempre sair de si, buscar o centro
do homem não nele mesmo, mas fora, no outro e em Deus, ter a coragem de
pular na brecha em lugar dos outros ... (BOFF, 2003, p. 182).
Mas, o que vem a ser Cristologia? Essa é uma pergunta essencial. A
Cristologia não é só uma doutrina sobre a natureza divina de Cristo; é anúncio,
interpelação da fé que nos convida a crer, a tomar a cruz de Cristo e, assim
justificado, participar de sua ressurreição. A Cristologia é palavra de Deus que
nos atinge hoje e agora, pois sua função não é checar a fé. Quer antes, ajudar
e esclarecer a fé. Assim, a Cristologia tem um paradigma que afeta
significativamente a totalidade da existência humana e a vivência ousada da fé
em utopias, projetos e práxis de libertação. Esse paradigma é a cruz e a
ressurreição.
Com sua pregação do Reino de Deus, quis dar um sentido derradeiro e
absoluto à totalidade da realidade. Em nome desse Reino de Deus,
viveu seu ser-para-os-outros até o fim, mesmo quando a experiência
da morte (ausência) de Deus se fez, na cruz, sensível até quase às
raias do desespero. (...) Mas, eis que alguns dias após sua morte
aconteceu algo de inaudito e único na história da humanidade: Deus o
ressuscitou. (...) Agora se mostrou quão verdadeira era a pregação de
Jesus: a ressurreição é a realização de seu anúncio de total libertação,
especialmente do domínio da morte. A ressurreição significa a
concretização do Reino de Deus na vida de Jesus. (BOFF, 2003, p. 87
e 90).
Vale ressaltar, portanto, que a Cristologia não é só uma reflexão cristã
“doutrinária”, um dogma. É também uma práxis que busca os fundamentos
para uma ação libertadora no e para o mundo. Essa Cristologia, por estar
fundamentada no Jesus histórico, não é apenas um pensamento, uma reflexão,
14

um estudo, uma teologia. É, por sua vez, uma hermenêutica e uma práxis cristã
evangélica, libertadora e transformadora. Assim, a Cristologia – além de ser a
explicitação feita pela comunidade após a vida, ministério, morte e ressurreição
de que Jesus foi o Filho de Deus, é também a descoberta iluminada pelo
Espírito Santo de que a fé em Cristo tem uma dimensão política que coloca em
cheque todo o poder, ação e situação que obstrui a libertação. Então, a
Cristologia é mais do que repassar adiante aquilo que emergiu em Jesus. É
viver intensamente, pela fé, uma nova opção cristã na sociedade, que deve se
concretizar na libertação e na reconquista da liberdade aprisionada de homens
e mulheres de todo o mundo.
Em toda a reflexão teológica, porém, urge não esquecer: ela não vem
em primeiro lugar, nem deve substituir a fé. Mais importante do que a
reflexão é a vida. (...) toda cristologia deve estar unida à ética: “quem
diz que permanece n’Ele, deve andar como ele andou” (I Jo 2:6). “Nem
todo aquele que faz cristologia e diz: Senhor, Senhor! Entrará no Reino
dos céus” (Mt 7:21-23). (BOFF, 2003, p. 115).

Como Cristo veio descobrir a novidade mais antiga e originária do ser


humano – de que fomos criados e feitos à imagem e semelhança do Criador -
uma coisa nos é muito necessária, hoje: continuarmos a implantar o Reino de
Deus aqui na terra. À luz da Cristologia da Libertação e do Reino de Deus
precisamos desenvolver a capacidade de ver, e com isso, enxergar nos seres
criados – homem, mulher – a imagem e semelhança de Jesus Cristo e de Deus
e lutarmos pela sua total libertação. O cristianismo e própria Cristologia devem
ser compreendidos e entendidos como prolongamento do processo
encarnatório de Deus. Como o Filho que a tudo assumiu para tudo libertar, a
proposta da Cristologia e do Reino de Deus é encarnar em tudo para que tudo
seja transfigurado, transformado e libertado. Nesta perspectiva, Boff enfatiza:
“Todos os que aderem à causa de Jesus estão irmanados com Ele e ele está
agindo neles para que haja nesse mundo maior abertura para o outro e maior
lugar para o humano e também para Deus. Cristo não veio fundar uma religião
nova, ele veio trazer o homem novo (Ef. 2:15) que se define não pelos critérios
estabelecidos na sociedade (Gl 3:28) mas pela opção que fez à causa do amor,
que é a causa de Cristo” (BOOF, 2003, p. 162).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A Cristologia da libertação é, conforme delineamos, mais do que uma


doutrina; é uma adesão à vida e uma libertação da vida. Nesta perspectiva, a
Cristologia exige que a teologia seja para a vida e a vida para a teologia. De
acordo com Moltmann (2008), trata-se de uma vida que é recebida por
promessa e está aberta para a promessa, o que significa peregrinação
histórica, movimento e obediente prontidão frente ao futuro. Por possuir sua
centralidade na libertação, a Cristologia é uma teologia, mas também uma
cosmologia. “Há uma unidade radical que transcende e liga todos os seres uns
com os outros. As coisas não estão jogadas aí, umas junto, de permeio e por
cima das outras. O mundo é fundamentalmente um cosmos...”. (BOFF, 2003, p.
158). Cristo é a razão de tudo que existe. É o primeiro e o último, o fim e o
ponto ômega. Tudo começou, perdura e tem continuidade em função dEle.
A Cristologia da Libertação é, ao mesmo tempo, é uma teologia
cosmológica-libertadora. Sua origem tem uma idéia raiz – Jesus Cristo é
Libertador e Senhor do Reino. Por causa dEle e para Ele todas as coisas foram
criadas. Em outras palavras, essa Cristologia professa que Cristo é
verdadeiramente o princípio, o meio e a finalização de todos os caminhos e de
todos os alvos Deus para as obras feitas por suas mãos. Notar-se-á, então,
que a Cristologia cosmológica e libertadora coloca e reconhece Jesus Cristo
como Aquele que veio realizar a grande missão encarnatória, propugnada
desde a eternidade, de assumir, recriar e divinizar toda a criação. “Pela
ressurreição ele dimensionalizou a realidade-Jesus às dimensões de todo o
cosmos” (BOFF, 1986, p. 160).
Assim, o começo e o fim de todas as coisas, ou seja, da criação à
consumação, tudo tem correspondência e se encontra em Jesus de Nazaré.
Sinner (2007) compactua com esta idéia e salienta que a Cristologia da
Libertação assume uma dimensão mundial porque foi desenvolvida a partir da
urgência do contexto, sempre com vistas não só ao universo ecumênico
cristão, não só aos seres humanos, mas também ao cosmos e até ao universo
como um todo. A Cristologia que faz jus a este nome surge, evidentemente,
com o pathos, a admiração. Ao longo de toda a história, tanto ontem como
hoje, a admiração por Jesus está na gênese da Cristologia. Isto quer dizer que
Cristo deve ser admirado pelo que foi, pelo que é, pelo que fez, faz e fará em
cada um de nós.
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A Cristologia que tem Jesus como Libertador, por um lado, pressupõe o


pensar sobre o vivido e, por outro, a transformação do local e da estrutura em
que se vive. Neste sentido, por pressupor uma transformação estrutural da
sociedade é que a Cristologia como uma instância doutrinal e ética, pressupõe
e traz em seu bojo, uma práxis da Libertação, que se propugna a partir de um
processo de ruptura com a dominação, exploração e opressão. “A justiça e o
amor universal são reveladores do Pai e rejeitam toda forma ideológica ou de
vida, cúmplice da opressão”. (ECHEGARAY, 1984, p. 154). A Cristologia que
tem como referência o Jesus histórico e os evangelhos se atém a um dos
elementos de maior relevância para o cristianismo, que é o anúncio. Na
verdade, o que se quer anunciar é a presença de uma nova realidade, que faz
com que a história fique carregada de esperança, pois, aquele que se encarnou
e morreu, ressuscitou e venceu a morte, o pecado e tudo aquilo que aliena e
aprisiona os homens e as mulheres, individuais e coletivamente.
A Cristologia tem um centro e esse centro é Jesus Cristo. Uma pessoa
humana aberta a Deus e à sua vontade. Uma pessoa divina próxima e
totalmente voltada para o ser humano em todas as suas histórias e
necessidades. É nesse sentido que a Cristologia tem uma finalidade especial
que é revolucionar o mundo da pessoa em sua mais variada extensão. Como
acentua Boff (1986), em Jesus Cristo se revelou o que há de mais divino no
homem e o que há de mais humano em Deus. O que se destaca na Cristologia
é a capacidade que Jesus possuía de colocar todas as coisas no seu devido
lugar: a lei, o imperador, o homem, o sábado, etc.
A importância Cristologia, hoje, é tamanha, pois visa colocar o divino e o
humano em seu devido lugar. Essa Cristologia se contrapõe a uma tendência
teológica muito comum desde os tempos mais antigos, que é acentuar mais o
Deus em Jesus em detrimento do homem ou fazer prevalecer o homem em
Jesus em prejuízo de Deus. Na verdade, o que se tem como alvo e meta com
essa Cristologia é manter a unidade do homem e de Deus em Jesus. Nesta
perspectiva é que a Cristologia deve ser pensada muito mais do que um nome
e uma idéia religiosa. Ao contrário, deve ser pensada, crida e praticada como
um princípio e um ethos evangélico, cultural, político e econômico pela via da
encarnação e da morte, mas tanto mais e fundamentalmente pela ressurreição
de Jesus. Por estar associada ao messias, n’Ele encontra a sua matriz
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substantiva. Assim, a Cristologia tem uma tarefa messiânica, cujo cumprimento


se estende à sua dimensão profética. É por isso que Jesus Cristo, na
perspectiva de uma Cristologia que pode ser chamada de radical, é em si
mesmo e em sua própria pessoa, a resposta concreta de Deus à condição
humana.
Jesus não era religioso como costumeiramente se define. A ação de
Jesus foi religiosa e inscreveu-se no âmbito da religião, pois toda intervenção
no esquema religioso tinha, sem dúvida nenhuma, inequívocas conseqüências
na política e no poder político. O grande avanço da Teologia da Libertação se
dá a partir de uma hermenêutica utópica, que tem dupla dimensão
compreensiva: a compreensão do papel e da missão do ser humano nos
desígnios de Deus e recriação teológica da imagem de Deus. Nesta
hermenêutica utópica, o homem não é apenas um expectador; Deus não é um
simples concessionário que assume a causa dos injustiçados e oprimidos
enviando Jesus Cristo, a boa notícia. O homem é um agente da transformação
neste mundo, a partir da conversão, do compromisso e da parceria com as
boas notícias e com o Senhor delas.
A revolução de que se fala e se propõe na Cristologia está associada à
pessoa de Jesus Cristo, seu ministério e sua forma de encarar a vida. Mas,
também está relacionada a nós. Portanto, para dar prosseguimento a esse
processo revolucionário, não precisamos inaugurar uma escola teológica e nem
elaborar um novo ritual de oração e nem ditar uma nova moral. O que
precisamos fazer, na verdade, pela fé, esperança e amor, é criar condições e
potencialidades para a abertura de novos horizontes que obrigam tudo a se
revolucionar e se transformar, ou seja, a se rever, a se repensar e a se
converter, por mais misterioso que isto seja.
Em nossa trajetória histórica, no ontem e no hoje, nossa maior tentativa
deve ser encontrar respostas de fé para a pergunta mais importante no
universo cristão religioso - quem é Jesus? Já que a Cristologia é o humano
levado às últimas conseqüências, o evangelho e sua mensagem devem ser
aplicados e praticados em nossa vida como realização de um grande milagre:
Deus se fazendo novamente presente, libertando, através da vida, dos sonhos
e das ações daqueles e daquelas que agem cristamente para a construção de
um mundo melhor. Assim, a Cristologia não é apenas texto; é palavra
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evangélica que se encarna na ação e na vida; é verbo, esperança, silêncio,


práxis e cuidado. Cristologia é libertação e ela acontece onde Deus está agindo
de modo salvífico. Por isso, falar de Deus e com Deus implicam
necessariamente entrar na Cristologia. Antes de tudo, podemos afirmar, sem
hesitar, que o grande princípio hermenêutico da fé, da teologia e da própria
igreja é Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem e inserido em nossa história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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