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Sobre a memória das cidades
Para dar conta dessa tendência atual, inúmeras explicações vêm sendo
oferecidas pelos mais diversos autores. Algumas delas enfatizam as transfor-
mações que já vêm ocorrendo no imaginário ocidental há algumas décadas.
Outras dão ênfase à velocidade eletrizante do período atual de globalização,
que tem dado origem a uma busca ansiosa de referenciais identitários por
parte das sociedades.
Para Le Goff (1990: 14), a valorização atual do passado tem muito a
ver com o fim da era de otimismo ilimitado no futuro, iniciada com o
Iluminismo. Com efeito, foi a partir da Ilustração que as sociedades ociden-
tais passaram a redirecionar a sua visão de mundo, antes orientada para a
"grandeza" e a "majestade" do passado, transferindo seu foco de atenção para
o "futuro", para o "progresso". Olhar com reverência para o passado passou
a ser visto, a partir de então, como sinónimo de saudosismo ou como atitude
tipicamente reacionária, uma associação de ideias que só tendeu a ampliar o
seu escopo com o tempo. Era para o futuro, e não para o passado, que as
sociedades deveriam olhar!
Os acontecimentos do Século XX minaram bastante esta fé ilimitada no
porvir. Apesar dos inegáveis progressos técnicos e científicos, os horrores das
guerras, das fomes e dos holocaustos, tão comuns no passado que se queria
esquecer, jamais desapareceram do horizonte, tendo inclusive atingido dimen-
sões nunca antes alcançadas. Por sua vez, a capacidade, agora adquirida, de
auto-destruição da espécie humana; a emergência de crises ecológicas de nível
planetário; e o colapso do projeto de construção de uma sociedade nova e
mais justa, dentre outras decepções, tornaram bastante incerto aquele futuro
pelo qual tanto se esperava (Le Goff, 1990: 14).
Incertezas e angústias acompanham todos os momentos de transição.
Para Lepetit e Pumain (1993: vi-vii), períodos de transição são momentos de
perda da concordância de tempos. São períodos em que antigos tempos hege-
mónicos passam a co-existir e a interagir obrigatoriamente com tempos recém-
chegados, tempos novos em busca de hegemonia (Santos, 1994: 45-46; Abreu,
1996). Nada estranho, portanto, que as sociedades que estejam no meio desse
turbilhão reorientem as suas visões de mundo, vivendo mais o presente, des-
confiando daquilo que o futuro lhes reserva, e revalorizando o que já cons-
truíram em tempos passados.
Duvignaud (1990) mostrou que é nos momentos de ruptura da continui-
dade histórica que as atenções tendem a se direcionar mais para a memó-
ria. Embora suas reflexões estivessem voltadas para o entendimento da
Primeira Guerra Mundial, elas se aplicam também ao período que estamos
vivendo hoje, denominado de globalização, que é sem dúvida um momento de
ruptura.
Trata-se de um importante momento de mudança, que não se compreende
ainda muito bem, e que vem dando margem ao aparecimento de reflexões
teóricas de peso, todas elas buscando concatenar pistas que permitam decifrá-
lo. Diferentes em suas análises, essas reflexões são unânimes ao apontar
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A memória individual
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ções. Como diz Poulet, "são os lugares que oferecem precisão às ... imagens;
que nos fornecem o suporte necessário, graças ao qual podemos atribuir-lhes
um lugar em nosso espaço mental, sonhar com eles e deles nos lembrarmos"
(Poulet, 1992: 28, 31).
A análise de Poulet, ainda que literária, traz-nos importantes aportes
para a discussão que pretendemos fazer. Fundamental, nesse sentido, é a
ligação inextricável que se estabelece entre espaço e tempo no campo da
memória individual. Como diz Poulet, "graças à memória, o tempo não está
perdido, e, se não está perdido, também o espaço não está. Ao lado do tempo
reencontrado, está o espaço reencontrado" (Poulet, 1992: 54-55).
A memória individual pode contribuir, portanto, para a recuperação da
memória das cidades. A partir dela, ou de seus registros, pode-se enveredar
pelas lembranças das pessoas e atingir momentos urbanos que já passaram
e formas espaciais que já desapareceram. A importância desse resgate para
a identidade de um lugar é inquestionável, e é por isso que as "histórias
orais" e as "memórias de velhos" vêm hoje se difundindo bastante no Brasil
(Bosi, 1987; Costa, 1993; Meihy, 1996). É uma pena que essas técnicas de
resgate da memória individual só agora tenham se popularizado. Quantas
memórias de pessoas, que viveram importantes acontecimentos de uma cidade,
perderam-se no tempo!
Há que se ter cuidado, entretanto, com a memória individual, já que,
por definição, ela é subjetiva. Isto quer dizer que fazemos da nossa memória
o que bem queremos. Há também um outro fato para o qual se precisa sem-
pre atentar: o espaço da memória individual não é necessariamente um espaço
euclidiano. Nele as localizações podem ser fluidas ou deformadas, as escalas
podem ser multidimensionais, e a referenciação mais topológica do que geo-
gráfica.
Se essas distorções entre o "espaço real" e o "espaço da memória" podem
ser riquíssimas para um trabalho de geografia comportamental, ou mesmo
para trabalhos de geografia humanística, elas não têm necessariamente ò
mesmo valor quando utilizadas para o resgate da memória das cidades. Aqui
a ancoragem tem que ser objetiva, o que não impede que seja enriquecida
com uma série de lembranças subjetivas. O importante é que, ao utilizarmos
estas últimas, saibamos evitar as suas armadilhas.
A memória coletiva
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dizer, entretanto, que seja impossível resgatar muitas outras memórias dessa
cidade.
Esta segunda tarefa é não só viável, como necessária e urgente. É atra-
vés da recuperação das memórias coletivas que sobraram do passado (este-
jam elas materializadas no espaço ou em documentos), e da preocupação cons-
tante em registrar as memórias coletivas que ainda estão vivas no cotidiano
atual da cidade (muitas das quais certamente fadadas ao desaparecimento)
que poderemos resgatar muito do passado, eternizar o presente, e garantir
às gerações futuras um lastro de memória importante para a sua identidade.
Entretanto, para realizar essas tarefas é importante que, no momento
certo, saibamos sair da seara fluida e insegura das memórias e que ingres-
semos nos campos mais seguros da história e da geografia.
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Geografia e memória
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De início essa separação até que foi menor. Os historiadores não dis-
pensavam o estudo dos "quadros" naturais e territoriais onde ocorreram os
processos sociais que estudavam, e não foram poucos os que elegeram um
recorte espacial para circunscrevê-los. Os geógrafos, por sua vez, dedicavam
uma boa parcela de seus estudos regionais ao estudo do processo histórico
da região analisada, buscando nele elementos que os ajudassem a singula-
rizá-la.
É verdade que poucos foram os estudos que integraram verdadeiramente
espaço e tempo. A monumental obra de Braudel (1966) sobre o Mediterrâneo,
e algumas obras clássicas da geografia (Vidal de La Blache, 1903; 1918) são
assim exceções, e não a regra. Isto entretanto pouco importa. O que é digno
de nota é que a busca da integração, independentemente de seu grau de
sucesso, fazia parte do método de ambas as disciplinas. Isto foi o que se per-
deu.
As mudanças epistemológicas ocorridas na geografia e na história por
volta da Segunda Guerra Mundial, que não serão discutidas aqui mas que
ainda precisam ser melhor estudadas, acabaram com essa preocupação inte-
gradora. A história regional braudeliana, apesar de ainda produzir trabalhos
de grande valor (Mattoso, 1992), é hoje um corpo estranho no seio da disci-
plina. Conseqúentemente, tornou-se comum a produção de trabalhos históri-
cos que analisam muito bem os processos sociais ocorridos num determinado
lugar, mas que pouco ou nada falam desse lugar. O lugar vira então um
espaço absoluto, simples palco onde se desenrolou a trama que se queria
estudar. Capengas de sua âncora espacial, esses estudos acabam então con-
tribuindo menos do que poderiam para o resgate da memória daquele lugar.
Outro processo, que não é igual mas que vem produzindo resultados
semelhantes, tem afetado também a geografia e vem limitando igualmente a
sua contribuição para o resgate da memória dos lugares.
Não se pode negar que a abertura da disciplina ao materialismo histó-
rico e dialético veio revalorizar a dimensão temporal, antes mal tratada pelos
estudos clássicos ou renegada pelo neopositivismo. Ela não conseguiu, entre-
tanto, revogar uma das leis férreas da geografia, escrita não se sabe por
quem nem quando, mas certamente não por Kant no final do século XVIII,
que impõe despoticamente à disciplina o estudo do presente, legando à his-
tória o estudo do passado. Uma lei nitidamente freudiana, que só pode ser
explicada pela luta travada pela geografia para afirmar-se na divisão positi-
vista do saber do final do século XIX, e que só lhe autoriza tratar do pas-
sado se for para buscar nele o entendimento do presente ou a previsão do
futuro. Uma lei que, paradoxalmente ou pour cause, teve na geografia fran-
cesa, originalmente mais próxima da história do que outras escolas nacionais
(Claval, 1984), o seu maior guardião.
Obrigada a tratar unicamente do presente, a contribuição que a geogra-
fia vem dando ao resgate da memória das cidades tem sido então bastante
limitada. É importante reconhecer que isso não se deve apenas à imposição
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também ser feitas para os tempos passados, bastando para isso que façamos
as necessárias correções metodológicas. Se conceitos e variáveis são historica-
mente datados, não podendo ser transladados impunemente através do túnel
do tempo, as categorias de análise, que eles operacionalizam e desagregam,
não o são. E são elas que orientam, em última instância, a análise geográ-
fica.
Para se estudar e interpretar os espaços do passado, o que é fundamen-
tal então é definir quais são os conceitos e variáveis adequados à análise do
tempo que se decidiu estudar. Se o objeto de estudo é uma cidade, o ponto
de partida é a recuperação do quadro referencial maior daquele lugar naquele
tempo, ou seja, o seu enquadramento espaço-temporal. Em outras palavras,
temos que recuperar o "tempo do lugar", isto é, "o conjunto de temporalida-
des próprias a cada ponto do espaço, [que] não é dado por uma técnica,
tomada isoladamente, mas pelo conjunto de técnicas [amplamente definidas]
existentes naquele ponto do espaço [naquele momento do tempof (Santos, 1994:
62).
Essa tarefa não é fácil. Para realizá-la a contento precisaremos definir
primeiro quais são os conceitos e variáveis que permitirão o resgate desse
tempo do lugar. Trata-se de verdadeiro desafio, pois o tempo do lugar e os
conceitos e variáveis que o operacionalizam estão simbioticamente ligados. A
definição de um define o outro.
Sem termos a pretensão de recuperar o passado tal qual ele aconteceu,
que já vimos ser um objetivo impossível de alcançar, conseguiremos com esse
esforço adquirir as ferramentas necessárias para que possamos analisar os
processos e normas sociais então atuantes, para que possamos detectar as
contradições então presentes, para que possamos, enfim, contextualizar as
formas morfológicas então produzidas pela sociedade e a relação que elas
tiveram com as normas e com os processos sociais que lhes deram origem.
Um trabalho geográfico em nada diferente daqueles que vimos produ-
zindo para entender o momento atual, só que agora dirigido, mutatis mutan-
dis, ao entendimento do passado de um lugar.
Conclusão
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