(Algebra A) Fundamentos de Algebra PDF

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FUNDAMENTOS DE ÁLGEBRA

Dan Avritzer
Hamilton Prado Bueno
Marília Costa de Faria
Ângela Maria Vidigal Fernandes
Maria Cristina Costa Ferreira
Eliana Farias e Soares

Universidade Federal de Minas Gerais


Departamento de Matemática
À Eliana,

inesquecível colega, amiga, companheira.


APRESENTAÇÃO

Este livro teve a sua origem em 1976, quando Dan Avritzer ministrou uma primeira
disciplina em Álgebra para os alunos do curso de Matemática da UFMG. Nessa época
os textos elementares disponíveis em português, de fácil acesso e boa qualidade, eram
o do curso que Said Sidki ministrou no 10o Colóquio Brasileiro de Matemática e
uma tradução de um livro curto de Serge Lang, denominado "Estruturas Algébricas".
Os demais eram, em sua grande maioria, publicados em inglês ou francês. As
peculiaridades de então do curso de licenciatura em Matemática motivaram Dan a
trabalhar um primeiro texto, no qual o método axiomático e o rigor fossem introduzidos
em situações simples. Esse foi testado por ele e por outros professores, no período
1976/1977. Houve um hiato de alguns anos até que no início da década de 80
vários docentes retornaram de programas de doutorado e a proposta de se examinar
cuidadosamente os conteúdos e os enfoques da disciplina "Fundamentos de Álgebra"
foi retomada e, ao longo dos anos, várias versões de um texto circularam e foram
adotadas nessa disciplina, culminando neste.

O livro introduz alguns conceitos e métodos básicos, essenciais à formação quer


de um professor de Matemática, quer de um Matemático. O rigor e a axiomática
são utilizados no contexto de números inteiros e transplantados, verbatim, para o
contexto de polinômios em uma variável. O mínimo essencial para o estudo dos
inteiros é percorrido de maneira suave, terminando com um breve estudo da noção de
congruência, motivadora primordial do conceito de estrutura quociente. Os polinômios
em uma variável são trabalhados exatamente na mesma ordem em que os inteiros
o foram, exemplificando de maneira simples um dos propósitos fundamentais da
Matemática, a busca de padrões. Os exercícios são motivadores, condizentes com uma
primeira apresentação do assunto, têm a qualidade de não serem repetitivos e são em
número adequado.

O livro atinge dois propósitos: é referência segura para professores do ensino médio
e é uma correta introdução à Álgebra elementar em nível universitário.

Márcio Gomes Soares

v
PREFÁCIO

Na primeira metade da década de 80, nós, um grupo de professores do


Departamento de Matemática da UFMG, resolvemos escrever um texto para a disciplina
"Fundamentos de Álgebra". No então currículo de graduação em Matemática, essa
disciplina era o primeiro contato dos estudantes com o método axiomático. Sua ementa
era simples: indução matemática, números inteiros e divisibilidade, congruências
e polinômios. Essa ementa era considerada adequada para uma disciplina com
esse propósito, uma vez que, em grande parte, abordava tópicos já conhecidos dos
estudantes desde o ensino básico.

Já havia bibliografia em português para o assunto. Entretanto, os livros existentes


não tinham a preocupação de introduzir a matéria tendo em vista a completa
inexperiência de seus leitores com o método axiomático. As provas eram apresentadas
sem preocupação com sua heurística. Achávamos esse tratamento inadequado para o
objetivo almejado.

Nosso objetivo era a redação de um texto ameno, que procurasse motivar cada
conceito introduzido e, dentro do possível, apresentá-lo dentro de um contexto
histórico. Um texto que aceitasse a inexperiência inicial do aluno, mas que fosse capaz
de acompanhar sua evolução com o decorrer do curso. E, diferentemente dos textos já
existentes em português, não procurávamos a abordagem mais concisa ou elegante,
ou mesmo aquela mais passível de generalizações; queríamos adotar, tanto quanto
possível, o mesmo enfoque empregado no ensino básico, tornando nosso texto uma
fonte de consulta imediata para os professores daqueles níveis.

Não demos ênfase à apresentação de estruturas algébricas. Preferimos salientar


apenas as similaridades entre inteiros e polinômios, deixando para cursos mais
avançados a generalização das estruturas envolvidas. De qualquer maneira, pensamos
que os dois exemplos básicos dessas estruturas foram apresentados, preparando o aluno
para os conceitos mais abstratos da Álgebra.

Depois de finalizado, o texto foi editado como apostila e adotado por quase todos os
professores da disciplina "Fundamentos de Álgebra" na UFMG. Alunos dessa disciplina
que vieram a se tornar professores universitários passaram também a utilizá-lo em seus
cursos. E, assim, o texto começou a ser adotado em diversas faculdades do interior de
Minas Gerais. Independentemente das críticas feitas ao texto – algumas delas vindas de

vii
viii PREFÁCIO

seus próprios autores – há que se constatar que a receptividade desse material por parte
dos alunos sempre foi bastante favorável. Talvez essa seja a melhor justificativa para a
presente edição deste livro.

O Brasil do começo dos anos oitenta vivia um período de final de ditadura e difusão
de um sentimento de cooperação. Consonante com o espírito da época, esse trabalho
nunca foi assinado. Seus autores se identificavam com o "Grupo de Álgebra", embora
um deles nunca tenha se dedicado a essa área da Matemática. Vários de seus autores já
tinham lecionado anteriormente a disciplina "Fundamentos de Álgebra". Mesmo assim,
o texto nasceu a partir de discussões (em sua maioria, bastantes acaloradas) em torno
de cada um dos temas abordados, procurando um enfoque que satisfizesse a todos
os membros do grupo. Após extensas discussões, chegávamos à redação de um texto
provisório que, experimentado em sala de aula, era alvo de críticas e novas discussões.
Um processo que parecia interminável, mas que foi concluído por volta de 1985. Desde
então, o texto permaneceu praticamente inalterado, sofrendo apenas simples correções.

Assim, quase 20 anos após a sua edição inicial como apostila, não deixa de ser
curioso que este texto seja agora publicado como livro. Dentre seus seis autores, dois
estão aposentados e um faleceu. A sua publicação trouxe consigo um problema ético:
alterar o texto, de modo a adequá-lo às atuais concepções de parte de seus autores?
Ou mantê-lo, tanto quanto possível, inalterado? Optamos por tentar manter a essência
do texto, embora corrigindo-o e atualizando-o, quando necessário. Para tornar sua
concepção mais coerente, foram feitas adequações: alguns exercícios propostos foram
reformulados, outros deram origem a material incorporado ao texto. Foram inseridos
textos que já estavam redigidos, mas que não estavam presentes na apostila. Entretanto,
ainda é possível ver este livro como uma edição melhorada daquela apostila. E era isso
que ambicionávamos nessa revisão...

Por outro lado, a oportunidade de reavaliar o texto original nos deixou com a
impressão de que ele satisfaz os objetivos escolhidos quando de sua redação. E achamos
que isso é suficiente para justificar sua edição como livro.

Agradecimentos. No decorrer de todos esses anos após a edição inicial desse texto
como apostila, é difícil nomear todos aqueles que colaboraram para o aperfeiçoamento
do mesmo. Diversos professores que ministraram o curso de "Fundamentos de
Álgebra"na UFMG contribuíram com sugestões, correções e discussões sobre o material
apresentado. Alunos de diversos anos em que a disciplina foi lecionada apontaram
incorreções e sugeriram aprimoramentos.

Cabe, entretanto, destacar algumas pessoas: os Profs. Antônio Zumpano Pereira


Santos, Jorge Sabatucci e Márcio Gomes Soares, que adotaram o texto em seus cursos e
contribuíram com inúmeras sugestões; o aluno Rogério Scalabrini, que foi responsável
pela datilografia da apostila e muitas correções; a aluna Cláudia Regina da Silva Lima,
que digitou em LATEX este texto.
ix

Utilizamos as fontes de Peter Wilson para os caracteres hieróglifos e gregos arcaicos,


e as de Karel Píška para os caracteres cuneiformes.

A todos, o nosso muito obrigado.

A edição deste livro foi possível graças ao financiamento da Pró-Reitoria de


Graduação da UFMG, através de projeto de produção de material didático.

Belo Horizonte, abril de 2004

Dan Avritzer
Hamilton Prado Bueno
Marília Costa de Faria
Maria Cristina Costa Ferreira

Ângela Maria Vidigal Fernandes


Eliana Farias e Soares (in memoriam)
AO ALUNO
Este texto tem um duplo propósito. Por um lado, pretende apresentar o estilo em
que são redigidos os textos de matemática. Em outras palavras, introduzir o método
axiomático. Isto é feito, no nosso caso, justamente através do estudo dos conjuntos dos
números inteiros e dos polinômios.

No ensino básico, a preocupação predominante de um texto de matemática era


explicar o porquê de tal ou qual problema ter sido resolvido de uma determinada
maneira. Em outras palavras, aprender tinha o significado de o aluno ter compreendido
o que o professor (ou o livro) justificava. Para se efetuar, por exemplo, a divisão de
dois números inteiros, o professor explicava o funcionamento do algoritmo da divisão,
justificando-o da melhor maneira possível. Se essa explicação fosse convincente, o aluno
seria capaz de perceber quando tal algoritmo era aplicável, ou seja, quais números
inteiros podiam ser divididos um pelo outro. O importante era a utilização do algoritmo
ensinado e não investigar sob quais condições ele poderia ser aplicado. Essa mesma
postura foi adotada nos primórdios da matemática, cuja ênfase é prática : "é assim que
se faz".

O florescimento da matemática grega introduziu uma nova postura, que contestava


o saber prático e que tem sido utilizada desde então em todos os ramos da matemática:
não bastava verificar a validade de uma afirmação para uma série de casos; era preciso
deduzi-la de fatos básicos, tidos como inquestionáveis ou então aceitos em determinado
contexto. Assim, por exemplo, para um babilônio, era indubitável que a soma dos
ângulos internos de um triângulo é 180 graus, já que esse fato poderia ser verificado
para cada triângulo. Esse é um exemplo de utilização do saber indutivo. A matemática
grega se opunha a essa postura: era preciso provar esse fato a partir de verdades básicas
(axiomas, princípios ou postulados), através de passagens lógicas irrefutáveis1 . Esse é
o método dedutivo. No Capítulo 2 apresentaremos exemplos de questionamentos ao
saber indutivo e de aplicações do método dedutivo.

Uma das grandes dificuldades de todo texto que pretende introduzir o método
axiomático é escolher quais fatos serão aceitos como inquestionáveis e quais precisarão
ser deduzidos. Tentar chegar aos princípios básicos de todo o conhecimento matemático
é uma tarefa inglória: as dificuldades serão imensas e a exposição será dificultada,
1 O estudo da geometria no ensino básico é feito sob essa diretiva. Inicialmente os postulados da

geometria euclidiana foram tidos como evidentes. Entretanto, a negação de seu quinto postulado deu
origem a novas geometrias e os postulados aceitos passaram a depender do contexto.

xi
xii AO ALUNO

fazendo com que o texto perca a simplicidade. Por exemplo, podemos partir dos
números naturais como conhecidos. Mas é possível construir o conjunto dos naturais,
isto é, obtê-lo de resultados mais fundamentais.

Aceitaremos como verdadeiros fatos básicos sobre os números inteiros. Mas não
explicitaremos quais resultados serão tidos como verdadeiros. Isso pode causar-lhe
alguma dificuldade, já que você poderá ter dúvidas sobre o que é evidente e o que não é.
Como norma, podemos sintetizar que todo processo (algoritmo, resultado) geral deverá
ser demonstrado, enquanto algumas afirmações particulares serão aceitas como válidas.
Por exemplo, demonstraremos que podemos sempre dividir o número inteiro a pelo
número inteiro b, desde que b 6= 0. Mas não mostraremos a inexistência de um número
natural entre 1 e 2, fato que aceitaremos como óbvio. (A nossa experiência didática nos
diz que é infrutífera a tentativa de explicitar aquilo que aceitaremos como verdadeiro.)

O material que apresentaremos nesse curso você conhece, em grande parte, desde
o ensino básico: números inteiros, critérios de divisibilidade, números primos, máximo
divisor comum e mínimo múltiplo comum, polinômios. Isso torna, ao nosso ver, mais
fácil a introdução do método axiomático, pois você estudará apenas a demonstração de
resultados (em grande parte) já conhecidos, e terá contato restrito com material que não
conhece.

Contudo, aprender o método axiomático não é brincadeira de criança. O método


traz consigo uma linguagem abstrata que, muitas vezes, pode ser difícil de entender.
Por exemplo, você pode não ser capaz de compreender a seguinte frase: não existe um
número real a > 0 tal que a < (1/n), para todo número natural n ≥ 1. Tentaremos, tanto
quanto possível, introduzir paulatinamente a linguagem abstrata, para que você possa
se inteirar de seu significado. Isso será feito motivando o estudo de um determinado
problema ou a apresentação de uma demonstração. Mas, em última instância, a
linguagem abstrata somente deixará de ser um problema através da sua utilização
corriqueira. Em outras palavras, através de muitas horas de estudo.

Mas o texto tem um segundo objetivo: ao estudar os inteiros e polinômios, ele


pretende comparar esse conjuntos, apresentando propriedades que lhes são comuns.
Por exemplo, se b 6= 0, a possibilidade de escrevermos a = qb + r, com 0 ≤ r < b no
caso dos inteiros ou, no caso de polinômios, r = 0 ou gr(r ) ≤ gr(b), em que gr( p) denota
o grau do polinômio p. Ou a possibilidade de decompormos a = p1 · · · pk como produto
de fatores primos, no caso dos inteiros, ou fatores irredutíveis, no caso de polinômios.

Se, ao final dessa jornada, o método axiomático deixar de ser uma abstração
desagradável e as similaridades entre os conjuntos dos inteiros e o dos polinômios
tornarem-se claras, estaremos duplamente recompensados. E você poderá prosseguir
no estudo da álgebra abstrata, que procura justamente estudar e classificar conjuntos
com propriedades semelhantes, em especial, grupos, anéis e corpos.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO v

PREFÁCIO vii

AO ALUNO xi

1 SISTEMAS DE NUMERAÇÃO 1
1.1 O P ROCESSO DE C ONTAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.2 U M P OUCO S OBRE S ISTEMAS DE N UMERAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . 2
1.3 A R EPRESENTAÇÃO DE UM N ÚMERO EM UMA B ASE . . . . . . . . . . . . . 4

2 INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO 9


2.1 I NTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
2.2 D EDUÇÃO E I NDUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
2.3 I NDUÇÃO : PRIMEIRA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
2.4 I NDUÇÃO : SEGUNDA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
2.5 O P RINCÍPIO DA B OA O RDENAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
2.6 P RINCÍPIOS OU T EOREMAS ? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
2.7 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

3 DIVISÃO EUCLIDIANA 32
3.1 I NTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
3.2 O A LGORITMO DA D IVISÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
3.3 R EPRESENTAÇÃO DE UM N ÚMERO EM UMA B ASE . . . . . . . . . . . . . . 39
3.4 C RITÉRIOS DE D IVISIBILIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3.5 A E XPRESSÃO D ECIMAL DOS N ÚMEROS R ACIONAIS . . . . . . . . . . . . 44
3.6 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

4 O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA 51


4.1 N ÚMEROS P RIMOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
4.2 O T EOREMA F UNDAMENTAL DA A RITMÉTICA . . . . . . . . . . . . . . . . 55
4.3 A P ROCURA DE N ÚMEROS P RIMOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
4.4 E XPRESSÕES D ECIMAIS F INITAS E I NFINITAS . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
4.5 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

xiii
xiv SUMÁRIO

5 DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS 67


5.1 M ÁXIMO D IVISOR C OMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
5.2 M ÍNIMO M ÚLTIPLO C OMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
5.3 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

6 EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 86


6.1 I NTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
6.2 R ESOLUÇÃO DE E QUAÇÕES D IOFANTINAS L INEARES . . . . . . . . . . . . 87
6.3 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

7 CONGRUÊNCIAS 96
7.1 D EFINIÇÃO E P ROPRIEDADES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
7.2 C LASSES DE C ONGRUÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
7.3 O S T EOREMAS DE F ERMAT, E ULER E W ILSON . . . . . . . . . . . . . . . . . 113
7.4 O T EOREMA C HINÊS DO R ESTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
7.5 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

8 DIVISÃO DE POLINÔMIOS 128


8.1 C ORPOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
8.2 P OLINÔMIOS : D EFINIÇÕES E O PERAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
8.3 L EMA DA D IVISÃO DE E UCLIDES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
8.4 M ÁXIMO D IVISOR C OMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138
8.5 M ÍNIMO M ÚLTIPLO C OMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
8.6 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146

9 RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE 150


9.1 R AÍZES E FATORAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
9.2 O T EOREMA F UNDAMENTAL DA Á LGEBRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153
9.3 FATORAÇÃO EM P OLINÔMIOS I RREDUTÍVEIS . . . . . . . . . . . . . . . . . 161
9.4 D ECOMPOSIÇÃO EM F RAÇÕES PARCIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
9.5 E XERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 175

ÍNDICE REMISSIVO 177


CAPÍTULO 1

SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

1.1 O P ROCESSO DE C ONTAGEM


O conceito de número com o qual estamos familiarizados, e que é tão essencial
na sociedade de nossos dias, evoluiu muito lentamente. Para o homem primitivo, e
mesmo para o filósofo da antiguidade, os números estão intimamente relacionados com
a natureza. Para o homem civilizado de hoje, o número natural é um ente puramente
matemático, uma conquista de seu pensamento.

Em todas as formas de cultura e sociedade, mesmo as mais rudimentares,


encontramos algum conceito de número e, a ele associado, algum processo de contagem.
Pode-se dizer que o processo de contagem consistia, a princípio, em fazer corresponder
os objetos a serem contados com os objetos de algum conjunto familiar (chamado
conjunto de contagem): os dedos da mão, do pé, pedras, etc. Com a necessidade
de contagem de uma quantidade maior de objetos (como, por exemplo, o número de
cabeças de gado ou de dias), o homem sentiu que era necessário sistematizar o processo
de contagem e os povos de diversas partes do mundo desenvolveram vários tipos
de sistemas de contagem. Estabelecia-se então um conjunto de símbolos juntamente
com algumas regras que permitiam contar, representar e enunciar os números. Alguns
desses conjuntos continham cinco, outros dez, doze, vinte ou até sessenta símbolos,
chamados "símbolos básicos".

Hoje, o processo de contagem consiste em fazer corresponder os objetos a


serem contados com o conjunto N = {1, 2, 3, . . .}. Para se chegar à forma atual,
aparentemente tão semelhante à anterior, foram necessárias duas grandes conquistas
que estão intimamente relacionadas: o conceito abstrato de número e uma representação
adequada para esses.

A possibilidade de se estender indefinidamente a seqüência numérica e, portanto,


a existência de números arbitrariamente grandes, foi uma descoberta difícil e está
associada às duas conquistas acima citadas. Arquimedes (287 - 212 A.C.), em sua
monografia O Contador de Areia, descreve um método para enunciar um número maior

1
2 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

do que o número de grãos de areia suficiente para encher a esfera das estrelas fixas
(então considerada como o "Todo", isto é, o Universo). Em outras palavras, Arquimedes
descreveu um número maior do que o número de elementos do maior conjunto de
contagem possível: o Universo.

Para dar uma idéia da dificuldade da questão relativa à representação dos números,
lembramos que, a princípio, nossos mais antigos antepassados contavam só até dois,
e a partir daí diziam "muitos" ou "incontáveis". (É fato que, ainda hoje, existem
povos primitivos que contam objetos dispondo-os em grupos de dois.) Os gregos, por
exemplo, ainda conservam em sua gramática uma distinção entre um, dois e mais de
dois, ao passo que a maior parte das línguas atuais só faz a distinção entre um e mais
de um, isto é, entre singular e plural.

1.2 U M P OUCO S OBRE S ISTEMAS DE N UMERAÇÃO


Tendo sido escolhido o conjunto de símbolos básicos, os primeiros sistemas de
numeração, em grande maioria, tinham por regra formar os numerais pela repetição
de símbolos básicos e pela soma de seus valores. Assim eram os sistemas egípcio, grego
e romano.

Por volta de 3000 A.C. os egípcios usavam figuras para representar seus numerais.
Tinham então um sistema que consistia em separar os objetos a serem contados em
grupos de dez, mas não tinham um símbolo para o zero . Portanto, para representar
cada múltiplo de dez eles utilizavam um símbolo diferente dos básicos. Um número era
formado, então, pela justaposição desses símbolos, os quais podiam estar escritos em
qualquer ordem, já que a posição do símbolo não alterava o seu valor. Por exemplo,

|, 2, 3, e 4
representavam 1, 10, 100 e 1000, respectivamente. Assim, tanto

33 322 ||| |||


quanto

232 3|| ||| |3


representavam o mesmo número, a saber, 326.

Por volta de 400 A.C. os gregos utilizavam letras para representar os números1 . Mais
precisamente, era usado um sistema que consistia na separação dos números em grupos
de 9 elementos, que eram simbolizados por letras: as nove letras iniciais representavam
1 Nessa mesma época, existia uma outra maneira de representar números. Veja [10].
1.2. UM POUCO SOBRE SISTEMAS DE NUMERAÇÃO 3

os números de 1 a 9; as nove letras seguintes as dezenas de 10 a 90 e os nove últimos


símbolos representavam as centenas de 100 a 900. Assim, temos a seguinte tabela2 :

A B G D E F Z H 
1 2 3 4 5 6 7 8 9
I K L M N  O P Q
10 20 30 40 50 60 70 80 90
R S T U  X
M
100 200 300 400 500 600 700 800 900

Por exemplo, RIA representava o número 111. É interessante observar que aqui também
a ordem dos símbolos não altera o valor do número. (Para representar 1000, por
exemplo, os gregos de então utilizavam um sinal à esquerda do símbolo empregado
para representar 1: ´A.)

Mas essa notação aditiva tem um grande inconveniente: à medida que números
maiores são escritos, mais símbolos devem ser introduzidos para representá-los (já
que utilizar apenas os símbolos antes empregados torna a representação do número
demasiadamente extensa). Entretanto, esta dificuldade é superada atribuindo-se
importância à posição que um símbolo ocupa na representação de um número. Assim
já era o sistema desenvolvido pelos babilônicos por volta de 1800 A.C. Esses usavam
grupos de 60 elementos e seus símbolos eram combinações de cunhas verticais

à
(representando a unidade) e angulares

u
(representando a dezena), dando origem ao que se chama sistema sexagesimal - ainda
hoje utilizamos este sistema ao medir o tempo em horas, minutos e segundos e os
ângulos em graus. Um símbolo em uma seqüência fica então multiplicado por 60
cada vez que avançamos uma casa à esquerda. Nos exemplos que se seguem temos
a representação de 1, 5, 14, 72 e 129, respectivamente:

à, m, uU, à u: e : q
(Uma exposição mais detalhada sobre sistemas posicionais será feita na Seção 1.3.)

Os babilônios também não tinham um símbolo que representasse o zero, mas nas
posições em que ele deveria aparecer era deixado um espaço em branco, ficando a
cargo do leitor a tarefa de adivinhar, pelo contexto, o valor correto que estava sendo
representado. Observe que um espaço vazio pode conter um ou mais zeros, na
2 Alguns símbolos (isto é, letras) mudaram suas formas com o tempo; os símbolos relacionados com os

números 6, 90 e 900 foram abandonados no alfabeto grego de 24 letras, mas permaneceram em uso (com
aparências que evoluíram com o tempo) na representação de números.
4 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

representação de um número. Por exemplo, à podia tanto representar 1 unidade ou


60 unidades ou 602 unidades...

Os mais antigos espécimens dos numerais utilizados pelos indianos foram


encontrados em pilares erguidos na Índia por volta de 250 A.C. Entretanto, nesses
antigos escritos ainda não existe um símbolo para o zero e a notação posicional
tampouco é empregada. Eles usavam um sistema de numeração com nove símbolos
representando os números de 1 a 9 e nomes para indicar cada potência de 10. Por
exemplo, escreviam 3 sata, 2 dasan, 7 para representar o número 327 e escreviam 1
sata, 6 para representar 106. A data exata da introdução na Índia da notação posicional
e de um símbolo para o zero não é conhecida, mas deve ter sido anterior a 800 D.C., pois
o matemático persa Al-Khowarizmi (∼ 780-850) descreve num livro escrito em 825 D.C.
um sistema hindu assim complementado.

A origem do zero é incerta; entretanto, os maias da América Central, que possuíam


um sistema vigesimal posicional, já faziam uso dele por volta de 300 D.C.

Atualmente, quase todos os povos do mundo usam o mesmo sistema de numeração


e aproximadamente os mesmos algoritmos para efetuar as operações básicas da
aritmética. Este sistema quase que universalmente adotado é conhecido como sistema
numérico hindu-arábico, por acreditar-se ter sido ele inventado pelos indianos e
introduzido na Europa pelos árabes.

Este sistema é decimal posicional. Ele é decimal, pois faz uso de dez símbolos
(chamados algarismos): nove para representar os números de um a nove e outro para
representar posições vazias ou o número zero. Usamos os algarismos 0, 1, 2, 3, 4, 5,
6, 7, 8 e 9. É posicional, pois todos os números podem ser expressos através desses
algarismos, que têm o valor alterado à medida que eles avançam para a esquerda na
representação do número: cada mudança para a esquerda multiplica seu valor por dez.
É o que passaremos a explicar.

1.3 A R EPRESENTAÇÃO DE UM N ÚMERO EM UMA B ASE


Vimos, na seção anterior, que a cada sistema de numeração posicional está associado
um conjunto de símbolos (algarismos), a partir dos quais escrevemos todos os outros
números. Chamamos de base do sistema à quantidade destes símbolos. Por exemplo,
os babilônios usavam um sistema sexagesimal (isto é, de base 60) e hoje utilizamos o
sistema decimal, ou seja, de base 10.

A razão de utilizarmos base 10 é convencional e, provavelmente, é conseqüência do


fato de quase todos os povos terem usado os dedos das mãos para contar. Temos então
que no nosso sistema todo número pode ser representado por uma seqüência

a n a n −1 . . . a 1 a 0 ,
1.3. A REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 5

em que cada algarismo ai ∈ {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9}. O que cada algarismo representa


depende de sua posição nessa seqüência, de acordo com a seguinte regra: cada vez que
deslocamos uma casa para a esquerda na seqüência acima, o valor do algarismo fica
multiplicado por dez.

Por exemplo, para representar o número de dias do ano na base 10, o nosso primeiro
passo consiste em formar grupos de dez dias, obtendo o diagrama abaixo, em que cada
"+" representa um dia e cada "O" indica um grupo de dez dias:
O O O O O O O O O O
O O O O O O O O O O
O O O O O O O O O O
O O O O O O + + + +
+
Como o número de grupos de dez dias é superior a nove, o nosso próximo
passo será repetir o processo anterior, formando novamente grupos de dez:

O O O O O O O O O O
O O O O O O O O O O
O O O O O O O O O O
O O O O O O + + + +
+

Obtemos assim três grupos com dez grupos de dez dias, seis grupos de dez dias e
cinco dias. Podemos, então, representar o número de dias do ano por 365: o algarismo
3 representa a quantidade de grupos formados por 10 grupos de 10 dias; o algarismo 6
o número de grupos de 10 dias excedentes a esses; e o algarismo 5 representa o número
de dias que sobraram quando da divisão em grupos de dez. Em outras palavras, como
o algarismo 6 está deslocado uma casa à esquerda na seqüência 365, seu valor é de 6
vezes 10 e como o algarismo 3 está deslocado duas casas à esquerda, seu valor é de 3
vezes 10 vezes 10. Isto significa que

365 = 3 · 10 · 10 + 6 · 10 + 5
= 3 · 102 + 6 · 10 + 5.
Generalizando: se o número de elementos de um conjunto é representado por uma
seqüência an an−1 . . . a1 a0 , este conjunto tem an grupos de 10n elementos, mais an−1
grupos de 10n−1 e assim por diante, até a1 grupos de 10 mais a0 elementos; ou seja,
ele tem
an · 10n + an−1 · 10n−1 + . . . + a1 · 10 + a0
elementos.
O que fizemos com grupos de dez poderíamos ter feito com grupos com
outro número de elementos. Por exemplo, se estivéssemos contando com os
6 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

dedos da mão, o natural seria usar grupos de cinco. Teríamos então que
considerar cinco símbolos, um para cada número de um a quatro e outro para
indicar posições vazias. Usemos os símbolos 0, 1, 2, 3, 4 como os algarismos
desse sistema. Para representar o número trinta e dois na base 5 devemos,
de maneira análoga àquela utilizada para base 10, formar grupos de cinco:

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ +

Como obtivemos mais de cinco grupos de cinco elementos repetimos o processo


tendo então um grupo de cinco grupos de cinco elementos, um grupo de cinco
elementos e dois elementos. Logo a sua representação é 112, isto é:
32 = 1 · 52 + 1 · 5 + 2.
De maneira análoga, para representar o número vinte e cinco na base cinco, temos o
seguinte diagrama:

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

Logo, a sua representação é 100 já que só obtivemos um grupo de cinco grupos de


cinco elementos, isto é:
25 = 1 · 52 + 0 · 5 + 0.

Observe que nós poderíamos considerar a seqüência 112 como a representação de


1.3. A REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 7

um número na base 3 onde os algarismos considerados são 0, 1, 2. Para deixar claro que
a seqüência acima é a expressão de um número na base 5 nós escrevemos (112)5 , ou seja

(112)5 = 1 · 52 + 1 · 5 + 2
(100)5 = 1 · 52 + 0 · 5 + 0.

Na verdade, não é difícil demonstrar que podemos ter sistemas de numeração


posicionais com qualquer base b ∈ N. Depois de escolhida a base b, escolhemos b
símbolos para representar os números de "0" a " b − 1". Se b ≤ 10, podemos utilizar
os nossos algarismos hindu-arábicos; se b > 10, podemos utilizar os nossos algarismos
hindu-arábicos de 0 até 9 e escrever outros símbolos (geralmente utilizamos letras) para
representar os números 10, . . . , b − 1.

Por exemplo, se b = 12 podemos utilizar os símbolos 0, 1, . . . , 9, c, d como


algarismos do nosso sistema, sendo que c representa o número dez e d
o número onze. Assim, para representar o número duzentos e oitenta e
seis na base 12, formamos grupos de doze elementos conforme o diagrama
abaixo, em que "O" representa um grupo (de doze) e cada "+" um elemento:

O O O O O O O O O O O O
O O O O O O O O O O O +
+ + + + + + + + +

Obtemos portanto um grupo com doze grupos de doze elementos, onze grupos de
doze elementos e dez elementos. Logo

286 = (1dc)12 ,

ou seja,

286 = 1 · 122 + d · 12 + c
= 1 · 122 + 11 · 12 + 10.

Assim, se b ∈ N, qualquer número inteiro não-negativo a pode ser escrito como

a = a n b n + . . . + a1 b + a0 ,

em que os coeficientes ai , i = 0, 1, · · · , n tomam valores de 0 a b − 1.

O número a acima é representado posicionalmente na base b pela seqüência

a n a n −1 . . . a 2 a 1 a 0

e escrevemos a = ( an an−1 . . . a2 a1 a0 )b . Convencionamos não escrever o subscrito b


quando estamos utilizando a base 10, que é a usual. Para cada i ∈ N, o símbolo ai
8 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

representa, portanto, um múltiplo de alguma potência da base, a potência dependendo


da posição na qual o algarismo aparece, de modo que ao mover um símbolo uma casa
para a esquerda este tem seu valor multiplicado por b.

A afirmação que é possível representar um número natural a em uma base b faz parte
de um resultado conhecido como Teorema de Representação de um Número em uma
Base (Teorema 3.17), que garante não só a existência, mas também a unicidade dessa
representação, uma vez fixada a base. O que fizemos acima é a heurística que justifica
este resultado, que será demonstrado rigorosamente no Capítulo 3.
CAPÍTULO 2

INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.1 I NTRODUÇÃO
Em matemática, palavras como "grande" ou "pequeno" têm pouco significado. Por
exemplo, no ano de 1742, em uma carta a Euler (1707 - 1783), Christian Goldbach (1690
- 1764) afirmou que acreditava que todo inteiro par maior1 do que 6 podia ser escrito
como a soma de dois primos ímpares (para a definição de número primo, veja a página
51). Certamente Goldbach intuiu esse resultado depois de ter observado que ele era
válido para alguns números: 6 = 3 + 3, 8 = 3 + 5, 10 = 5 + 5 = 3 + 7, 12 = 7 + 5,
14 = 7 + 7 = 11 + 3, etc. Desde então muitas pessoas dedicaram-se a verificar a
conjectura para inteiros pares entre 6 e números muito grandes. Em 1940, a conjectura
havia sido verificada até 100 000. Em 1989, até 2 · 1010 . Em 1998, até2 1014 . Entretanto,
não podemos considerar a afirmativa de Goldbach verdadeira a partir desse fato, já que
1014 é um número insignificante comparado com a "maior parte" dos inteiros, ou mesmo
quando comparado com 1, 2 · 1080 , a estimativa do número de prótons e elétrons no
Universo.

Na matemática, muitas vezes resultados são enunciados a partir da consideração de


casos particulares, como no exemplo acima. Mas eles só são tidos como verdadeiros se
puderem ser demonstrados (o que ainda não ocorreu com a conjectura de Goldbach),
isto é, deduzidos de resultados já conhecidos (teoremas, proposições, lemas, corolários,
etc.) ou então de afirmações aceitas como verdadeiras, embora não demonstradas
(axiomas, postulados, princípios). A teoria está fundamentada nestas últimas.

Neste capítulo trataremos dos números naturais a partir de um dos postulados que
os caracterizam, a saber, o Princípio de Indução Matemática. Veremos então como
utilizá-lo na demonstração de afirmações a respeito dos números naturais, entre as quais
aquela que chamamos "Princípio da Boa Ordenação".

1 Goldbach formulou sua conjectura dizendo que todo inteiro positivo par era soma de dois primos
ímpares; naquela época, 1 era considerado um número primo.
2 Para informações sobre os avanços mais recentes, veja em www.informatik.uni-giessen.de

9
10 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.2 D EDUÇÃO E I NDUÇÃO


Para que se compreenda o Princípio de Indução Matemática é necessário saber
distinguir entre dedução e indução e como esses métodos são utilizados em Matemática.

Comecemos com uma série de exemplos de afirmações:

• TODO brasileiro alfabetizado fala português.

• TODO número terminado em zero é divisível por 5.

• As diagonais de TODO paralelogramo são bissectadas por seu ponto de


intersecção.

• Paulo fala português.

• As diagonais do paralelogramo ABCD são bissectadas por seu ponto de


intersecção.

• 140 é divisível por 5.

Analisando estas afirmações podemos dividi-las em dois grupos: gerais e


particulares. As três primeiras são gerais e as três últimas particulares.

A passagem de uma afirmação geral para uma particular é chamada dedução. Um


exemplo simples:

Todo brasileiro alfabetizado fala português. (a)


Paulo é um brasileiro alfabetizado. (b)
Paulo fala português. (c)

A afirmação (c) é obtida da afirmação geral (a) com o auxílio da afirmação (b).

A tentativa de generalização de uma afirmação particular, isto é, a passagem de uma


afirmação particular para uma geral, é chamada indução. Ilustremos com um exemplo.
Considere a seguinte afirmação particular:

140 é divisível por 5. (1)

Podemos fazer, com base nesta afirmação particular, uma série de afirmações gerais.
Por exemplo:

Todo número com três dígitos é divisível por 5. (2)


Todo número terminado em zero é divisível por 5. (3)
Todo número terminado em 40 é divisível por 5. (4)
Todo número cuja soma de seus algarismos é 5 é divisível por 5. (5)
2.2. DEDUÇÃO E INDUÇÃO 11

As afirmacões (2), (3), (4) e (5) são tentativas de generalização do caso particular (1).
As afirmações (3) e (4) são verdadeiras, enquanto (2) e (5) são falsas.

Temos então a seguinte questão: como poderíamos usar indução em Matemática


de forma a obter somente conclusões verdadeiras? Neste capítulo, apresentamos um
método que soluciona essa questão.

Consideremos, inicialmente, dois exemplos com generalizações inadmissíveis em


Matemática.
Exemplo 2.1 Seja
1 1 1 1
Sn = + + +...+ .
1·2 2·3 3·4 n ( n + 1)
É fácil ver que:
1 1
S1 = =
1·2 2
1 1 2
S2 = + =
1·2 2·3 3
1 1 1 3
S3 = + + =
1·2 2·3 3·4 4
1 1 1 1 4
S4 = + + + =
1·2 2·3 3·4 4·5 5
Com base nos resultados obtidos afirmamos que, para todo número natural n,
n
Sn = . ¢
n+1

Exemplo 2.2 Considere o trinômio x2 + x + 41 (estudado por Euler). Fazendo x = 1


nesse trinômio, obtemos 43, um número primo. Substituindo x por 2, 3, · · · , 10,
obtemos, respectivamente, os números primos 47, 53, 61, 71, 83, 97, 113, 131, 151. Com
base nestes resultados, afirmamos que a substituição no trinômio de x por qualquer
natural dará como resultado um número primo. ¢

Por que este tipo de raciocínio é inadmissível em Matemática? A falha está no


fato de termos aceito uma afirmação geral com respeito a um número natural (n no
primeiro exemplo, x no segundo exemplo) somente com base no fato dessa afirmação
ser verdadeira para certos valores de n (ou de x).

O processo de indução é muito empregado em Matemática, mas devemos saber usá-


lo adequadamente. Assim, enquanto a afirmação geral do Exemplo 2.1 é verdadeira, a
afirmação geral do Exemplo 2.2 é falsa. De fato, se estudarmos mais cuidadosamente o
trinômio x2 + x + 41, veremos que sua soma é igual a um primo quando substituímos x
por 1, 2, . . . , 39. Mas, para x = 40, temos:

x2 + x + 41 = 402 + 40 + 41 = 40(40 + 1) + 41 = 41(40 + 1) = 412 ,


12 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

que é um número composto.

Apresentamos agora alguns exemplos de afirmações verdadeiras em certos casos


especiais, mas que são falsas em geral.
Exemplo 2.3 Considere n planos passando por um mesmo ponto tais que quaisquer 3
deles não contêm uma reta comum. Em quantas regiões eles dividem o espaço?

Ora, é fácil ver que: um plano divide o espaço em duas partes; dois planos passando
por um ponto dividem o espaço em 4 partes; três planos passando por um ponto, mas
não contendo uma reta em comum, dividem o espaço em 8 partes. Em vista disto,
parece que quando o número de planos aumenta de uma unidade, o número de partes
nas quais se divide o espaço é dobrado, e portanto 4 planos dividiriam o espaço em 16
partes.

Figura 2.1: Quatro planos, sendo que quaisquer três deles não contem uma reta em
comum, dividem o espaço em 14 regiões. (Conte 7 regiões na parte frontal da figura!)

Contudo, observando a figura acima, vemos que o espaço fica dividido em 14


regiões. (Na verdade, pode-se provar que n planos, nas condições acima, dividem o
espaço em n(n − 1) + 2 partes). ¢
Exemplo 2.4 Considere os números:
0 1 2 3 4
22 + 1 = 3, 22 + 1 = 5, 22 + 1 = 17, 22 + 1 = 257, 22 + 1 = 65537
2.3. INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA 13

que são primos. Fermat (1601 - 1665), matemático francês, conjecturou que todos os
números dessa forma (os quais são denominados números primos de Fermat) eram
primos. Entretanto, Euler descobriu, um século depois, que:
5
22 + 1 = 4 294 967 297 = (641) · (6 700 417)

é um número composto. ¢

2.3 I NDUÇÃO : PRIMEIRA FORMA


Os exemplos considerados anteriormente mostram que uma afirmação pode ser
válida em uma série de casos particulares e falsa em geral. Surge então a seguinte
questão: suponhamos que uma afirmação seja válida em muitos casos particulares e
que seja impossível considerar todos os casos possíveis — por exemplo, uma afirmativa
a respeito de todos os números naturais. Como se pode determinar se esta afirmativa é
válida em geral? Algumas vezes podemos resolver essa questão aplicando um método
particular de raciocínio, chamado Método de Indução Matemática (indução completa),
baseado no

Princípio da Indução Matemática - primeira forma:

Suponha que para cada número natural n se tenha uma afirmativa P(n) que satisfaça as
seguintes propriedades:

(i ) P(1) é verdadeira;

(ii ) sempre que a afirmativa for válida para um número natural arbitrário n = k, ela será válida
para o seu sucessor n = k + 1 (ou seja, P(k) verdadeira implica P(k + 1) verdadeira).

Então P(n) é verdadeira para todo número natural n.

Exemplo 2.5 (Modelo)


O Princípio da Indução Matemática pode também ser entendido através do seguinte
modelo. Suponhamos a existência de uma fila infinita de peças de dominó, colocadas
em pé e distribuídas como na Figura 2.2. Teremos certeza de que, golpeando a primeira
peça de dominó, todas cairão se:

• a primeira peça cair ao ser golpeada;

• as peças de dominó estiverem espaçadas de tal modo que, quando uma delas cai,
atinge e faz cair a seguinte.
14 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Figura 2.2: As peças de dominó estão espaçadas de tal forma que, se uma cair, a seguinte
também cairá. ¢

Uma demonstração baseada no Princípio da Indução Matemática é chamada prova


por indução. Tal demonstração deve, necessariamente, consistir em duas partes, ou
seja, da prova de dois fatos independentes:

FATO 1: a afirmação é verdadeira para n = 1;

FATO 2: a afirmação é válida para n = k + 1 se ela for válida para n = k, em que k é


um número natural arbitrário.

Se ambos estes fatos são provados então, com base no Princípio da Indução
Matemática, concluímos que a afirmação é válida para todo número natural n.

As hipóteses do Princípio da Indução (quer dizer, os Fatos 1 e 2) possuem


significados específicos. A primeira hipótese cria, digamos assim, a base para se fazer
a indução. A segunda hipótese nos dá o direito de passar de um número inteiro para o
seu sucessor (de k para k + 1), ou seja, o direito de uma extensão ilimitada desta base.
(Veja o exemplo das peças de dominó). Quer dizer, como P(1) é verdadeira, podemos
concluir que P(2) também é. Mas, sendo P(2) verdadeira, podemos concluir que P(3) é
verdadeira, e assim sucessivamente.
2.3. INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA 15

Observação 2.6 O Fato 2 contém uma implicação. Portanto, possui uma hipótese (P(k)
é verdadeira) e uma tese (P(k + 1) é verdadeira). Consequentemente, provar o Fato 2
significa provar que a hipótese acarreta a tese. A hipótese do Fato 2 é chamada hipótese
de indução. ¢
Exemplo 2.7 Calcular a soma
1 1 1 1
Sn = + + +···+ .
1·2 2·3 3·4 n ( n + 1)

Sabemos que S1 = 21 , S2 = 23 , S3 = 34 , S4 = 45 .

Agora não repetiremos o engano cometido no exemplo 2.1. Examinando as somas


S1 , S2 , S3 , S4 , tentaremos provar, usando o método da indução matemática que
n
Sn = para todo natural n.
n+1
Para n = 1 a afirmativa é verdadeira, pois S1 = 21 .

Suponhamos que a afirmativa seja verdadeira para n = k, isto é,

1 1 1 k
Sk = + +...+ = .
1·2 2·3 k ( k + 1) k+1
Provaremos que a hipótese é verdadeira para n = k + 1, isto é,

k+1
Sk +1 = .
k+2
De fato,

1 1 1 1 1
S k +1 = + +···+ + = Sk + .
1·2 2·3 k(k + 1) (k + 1)(k + 2) (k + 1)(k + 2)
k
Pela hipótese de indução, Sk = k +1 . Logo,

1 k 1 k2 + 2k + 1 k+1
S k +1 = S k + = + = = .
(k + 1)(k + 2) k + 1 (k + 1)(k + 2) (k + 1)(k + 2) k+2
Verificadas as hipóteses do Princípio da Indução Matemática, podemos então
afirmar que, para todo natural n,
n
Sn = . ¢
n+1
É necessário enfatizar que uma prova pelo Princípio da Indução Matemática requer
provas de ambas as suas hipóteses (ou seja, os Fatos 1 e 2). Já vimos, pelo Exemplo
2.2, como uma atitude negligente para com a segunda hipótese do Princípio da Indução
pode nos levar a resultados falsos. O exemplo seguinte mostra que tampouco podemos
omitir sua primeira hipótese.
16 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Exemplo 2.8 Seja Sn = 1 + 2 + 3 + · · · + n e consideremos a conjectura

1
(2n + 1)2 .
Sn =
8
Suponhamos que a afirmativa seja válida para um número natural n = k, isto é,

1
Sk = (2k + 1)2 .
8
Então temos que

1 1 1
S k +1 = S k + ( k + 1 ) = (2k + 1)2 + (k + 1) = (4k2 + 12k + 9) = (2(k + 1) + 1)2 ,
8 8 8
o que mostra que o Fato 2 se verifica.

Entretanto, é fácil verificar que esta conjectura não é verdadeira para qualquer
número natural n. Por exemplo,

1
S1 = 1 6 = (2 + 1)2 .
8
Pode-se provar que3

n ( n + 1)
Sn = ,
2
que é diferente de 18 (2n + 1)2 para todo n ∈ N. ¢

Exemplo 2.9 Retornemos ao exemplo 2.2 para clarear um aspecto significativo do


método da indução matemática. Examinando a soma

1 1 1 1
Sn = + + +···+ ,
1·2 2·3 3·4 n ( n + 1)
para alguns valores de n, obtivemos S1 = 12 , S2 = 23 , S3 = 3
4, · · · e estes resultados
particulares sugeriram a hipótese de que, para todo n,
n
Sn = ,
n+1
o que foi provado no Exemplo 2.7.

Poderíamos ter feito a seguinte conjectura:

n+1
Sn = .
3n + 1
3 Veja o Exercício 1 (a).
2.3. INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA 17

A fórmula acima é verdadeira para n = 1, já que S1 = 12 .

Suponhamos que ela seja verdadeira para n = k, isto é,

k+1
Sk = .
3k + 1
Tentaremos provar que ela também é verdadeira para n = k + 1, isto é, que

k+2
S k +1 = .
3k + 4
Entretanto,

1 k+1 1 k3 + 4k2 + 8k + 2
S k +1 = S k + = + = ,
(k + 1)(k + 2) 3k + 1 (k + 1)(k + 2) (k + 1)(k + 2)(3k + 1)
o que não confirma a nossa conjectura. ¢

O exemplo acima teve o intuito de mostrar que, se fizermos uma afirmativa


incorreta, não conseguiremos demonstrá-la pelo método de indução.

O Método de Indução Matemática se baseia no fato de que, depois de cada número


inteiro k, existe um sucessor (k + 1) e que cada número inteiro maior do que 1 pode ser
alcançado mediante um número finito de passos, a partir de 1. Portanto é, muitas vezes,
mais conveniente enunciá-lo do seguinte modo:
Teorema 2.10 (Formulação equivalente do Princípio da Indução)
Seja S ⊂ N um subconjunto tal que:
(i ) 1 ∈ S;
(ii ) sempre que k ∈ S tem-se que (k + 1) também pertence a S.
Então podemos afirmar que S = N.
Exemplo 2.11 Para mostrar que
1 1 1 n
+ +...+ = para todo n ≥ 1,
1·2 2·3 n ( n + 1) n+1
poderíamos ter considerado o conjunto
½ ¾
1 1 1 n
S= n∈N : + +...+ =
1·2 2·3 n ( n + 1) n+1
e então, pelos mesmos argumentos utilizados no exemplo 2.7, concluiríamos que 1 ∈ S
e, se k ∈ S, então (k + 1) ∈ S. Logo, poderíamos concluir que S = N, ou seja, a fórmula
1 1 1 n
+ +...+ =
1·2 2·3 n ( n + 1) n+1
é verdadeira para todo n ∈ N. ¢
18 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Observação 2.12 Não é essencial começarmos a indução em n = 1. Dada uma


afirmativa a respeito de números inteiros, algumas vezes essa afirmativa faz sentido
para todos os inteiros maiores do que um inteiro n0 fixo4 . Assim, podemos reescrever o
Princípio da Indução Matemática da seguinte forma:
Teorema 2.13 (Formulação equivalente do Princípio da Indução)
Suponha que, para cada número inteiro n ≥ n0 , se tenha uma afirmativa P(n) que satisfaça
as seguintes propriedades:
(i ) P(n0 ) é verdadeira;
(ii ) sempre que a afirmativa for válida para um inteiro n = k ≥ n0 , ela também será válida
para n = k + 1.

Então P(n) é verdadeira para todo número inteiro n ≥ n0 .


No modelo das peças de dominó (Exemplo 2.5), se tivéssemos escolhido a quarta
peça para ser golpeada inicialmente, poderíamos afirmar que todas as peças seguintes
cairiam. (Nesse exemplo não faz sentido considerar inteiros não-positivos.) ¢

2.4 I NDUÇÃO : SEGUNDA FORMA


Apresentaremos a seguir uma formulação alternativa do Princípio da Indução.
Como veremos no exemplo abaixo, esta formulação será útil nos casos em que a
validade de P(k + 1) não puder ser obtida facilmente da validade de P(k), mas sim
da validade de algum P(m), em que 1 ≤ m ≤ k.

Exemplo 2.14 Considere a seqüência de Fibonacci (∼ 1170-1250)

1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, . . . (2.1)

em que cada elemento, a partir do terceiro, é a soma dos dois anteriores. Se Fn denota o
n-ésimo termo dessa seqüência, podemos defini-la por:

F1 = 1
F2 = 1
Fn = Fn−2 + Fn−1 , se n ≥ 3.

Os termos da seqüência de Fibonacci satisfazem a desigualdade


µ ¶n
7
Fn < para todo n ≥ 1. (2.2)
4
Tentaremos mostrar a desigualdade (2.2) usando a primeira forma do Princípio da
Indução.
4 No exemplo 2.4 começamos considerando n = 0. No exemplo 2.2 poderíamos ter considerado

qualquer número inteiro x.


2.4. INDUÇÃO: SEGUNDA FORMA 19

A desigualdade é verdadeira para n = 1 e n = 2. Suponhamos que P(k) seja válida,


isto é, suponhamos que Fk < ( 47 )k . Devemos mostrar que Fk+1 < ( 74 )k+1 .

Suponhamos k ≥ 2. Como k + 1 ≥ 3, então Fk+1 = Fk + Fk−1 e não fica claro como


obter a desigualdade desejada a partir da hipótese de indução. Observe que

Fk−1 ≤ Fk

e então
µ ¶ k µ ¶ µ ¶ k +1
7 8 7
Fk+1 = Fk + Fk−1 ≤ Fk + Fk < 2 = ,
4 7 4
que é uma quota maior de que a desejada.
µ ¶k µ ¶ k −1
7 7
Entretanto, se além de Fk < , soubéssemos que Fk−1 < , teríamos
4 4
µ ¶ k µ ¶ k −1 µ ¶ k −1 µ ¶
7 7 7 7
Fk+1 = Fk + Fk−1 < + = +1 ,
4 4 4 4
donde
µ ¶ k −1 µ ¶ 2 µ ¶ k +1
7 7 7
Fk+1 < = .
4 4 4
¢

Observação 2.15 (A seqüência de Fibonacci e o problema dos coelhos).


A seqüência (2.1) tem o seu nome devido ao matemático italiano Leonardo de Pisa,
mais conhecido como Fibonacci, autor de Liber abaci (Livro sobre o ábaco), escrito em
1202, que contém grande parte do conhecimento aritmético e algébrico desta época e
que teve grande influência no desenvolvimento da Matemática na Europa Ocidental.
Neste livro Fibonacci formulou e resolveu o seguinte problema:

Os coelhos se reproduzem rapidamente. Admitamos que um par de coelhos adultos


produza um casal de coelhos jovens todo mês, e que os coelhos recém-nascidos se
tornem adultos em dois meses e produzam, por sua vez, nessa época, um outro casal
de coelhos. Começando com um casal jovem, de que tamanho estará a colônia após
um certo número de meses?

Se começarmos com um casal recém-nascido, durante o primeiro e o segundo meses


teremos somente este casal. No terceiro mês nasce um novo casal, de modo que agora
existem dois casais. No quarto mês o casal original produziu outro par, existindo então
três casais. Um mês mais tarde, tanto o par original quanto o primeiro casal nascido
produziram novos casais, de forma que agora existem dois casais adultos e três casais
20 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

jovens. Os dados podem ser colocados na seguinte tabela:

Crescimento de uma colônia de coelhos


meses casais adultos casais jovens total
1 - 1 1
2 - 1 1
3 1 1 2
4 1 2 3
5 2 3 5
6 3 5 8

Se denotarmos por Fn o número total de casais de coelhos no n-ésimo mês então Fn


é o n-ésimo termo da seqüência de Fibonacci. ¢

Para facilitar a solução de problemas como o que surgiu no exemplo 2.14, podemos
fazer uso da segunda forma do Princípio da Indução, que enunciaremos a seguir.

Teorema 2.16 (Princípio da Indução Matemática - segunda forma)


Seja a um número inteiro. Suponha que, para todo inteiro n ≥ a, se tenha uma afirmativa
P(n) que satisfaça as seguintes propriedades:

(i) P( a) é verdadeira;

(ii) P(m) verdadeira para todo natural m com a ≤ m ≤ k implica P(k + 1) verdadeira.

Então P(n) é verdadeira para todo n ≥ a.

Observação 2.17 Note que aqui também a condição (ii ) consiste em uma implicação.
Sua hipótese, como antes, é chamada hipótese de indução. A diferença entre as duas
formas do Princípio de Indução Matemática está exatamente na hipótese de indução:
na primeira forma, supõe-se que P(k ) seja verdadeira e, na segunda, supõe-se que

P ( k ), P ( k − 1), . . . , P ( a + 1), P ( a )

sejam todas verdadeiras. ¢

Voltemos ao exemplo anterior.

Exemplo 2.18 (Continuação do Exemplo 2.14)


Vamos reescrever formalmente, utilizando a segunda forma do Princípio da
Indução, o que já foi feito anteriormente.
µ ¶n
7
Seja P(n) a afirmativa (2.2): Fn < para todo n ∈ N.
4
2.4. INDUÇÃO: SEGUNDA FORMA 21
µ ¶2
7
Se k = 1, Fk+1 = F2 = 1 < . Assim, P(1) é verdadeira. Seja k ≥ 2 e
4
suponhamos que P(m) seja verdadeira para todo 1 ≤ m ≤ k. Precisamos mostrar que
P(k + 1) é verdadeira, ou seja,

µ ¶ k +1
7
Fk+1 < .
4

Se k ≥ 2, Fk+1 = Fk + Fk−1 . Temos, por hipótese de indução, que

µ ¶k µ ¶ k −1
7 7
Fk < e Fk−1 < .
4 4

Consequentemente:

µ ¶ k µ ¶ k −1 µ ¶ k µ ¶ µ ¶ k µ ¶ µ ¶ k µ ¶ µ ¶ k +1
7 7 7 4 7 11 7 7 7
Fk+1 < + = 1+ = < = .
4 4 4 7 4 7 4 4 4

µ ¶ k +1
7
Portanto, Fk+1 < , como queríamos demonstrar. ¢
4

A segunda forma do Princípio de Indução é uma afirmativa sobre os números


naturais e faz sentido tentar prová-la usando a primeira forma. Faremos isto a seguir.

Demonstração da segunda forma do Princípio de Indução: Para mostrar que a


afirmativa P(n) é verdadeira para todo natural n ≥ a, consideraremos o conjunto

S = { n ∈ Z : n ≥ a e P ( a ), P ( a + 1), . . . , P ( n ) são verdadeiras}

e mostraremos, usando a primeira forma do Princípio de Indução, que

S = { n ∈ Z : n ≥ a }.

Pela condição (i ) temos que P( a) é verdadeira, ou seja, a ∈ S. Seja k ≥ a tal que


k ∈ S. Logo, pela definição de S, P( a), P( a + 1), . . . , P(k ) são verdadeiras e então, pela
condição (ii ), temos que P(k + 1) também é verdadeira, donde (k + 1) ∈ S.

Temos então, pelo Teorema 2.10, que todos os inteiros n tais que n ≥ a pertencem a
S, isto é:
S = { n ∈ Z : n ≥ a },

donde P(n) é verdadeira para todo n ≥ a. 2


22 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.5 O P RINCÍPIO DA B OA O RDENAÇÃO


Além do Princípio da Indução Matemática, uma outra propriedade importante dos
números naturais é o Princípio da Boa Ordenação, também conhecido com Princípio
do Menor Inteiro. Tal princípio também é muito útil na demonstração de resultados a
respeito dos números inteiros.
Dizemos que um conjunto S ⊂ R é limitado inferiormente se existe um número
a ∈ R tal que a ≤ s para todo s ∈ S. Nesse caso, a é uma cota inferior para o conjunto
S. Se a cota inferior está no conjunto S, dizemos que a é o menor elemento de S.

Teorema 2.19 (Princípio da Boa Ordenação)


Seja S ⊂ Z um conjunto não-vazio e limitado inferiormente. Então S possui um menor
elemento.

Exemplo 2.20 No conjunto {7, 9, 11, 13, 15, . . .} dos números ímpares maiores do que 5,
temos que 7 é o menor elemento. ¢

Exemplo 2.21 O conjunto dos números inteiros

Z = {0, ±1, ±2, ±3, . . .}

não possui menor elemento, pois se z ∈ Z então (z − 1) ∈ Z, isto é, Z não é limitado


inferiormente. ¢

De acordo com o exemplo anterior, não podemos esperar que conjuntos não
limitados inferiormente possuam um menor elemento. O próximo exemplo mostra
que mesmo conjuntos que são limitados inferiormente podem não possuir um menor
elemento.

Exemplo 2.22 Considere o conjunto dos números racionais positivos


nm o
Q+ = : m e n são naturais positivos ,
n
isto é, o conjunto de todas as frações positivas. Note que 0 é menor que todos os
elementos de Q+ , donde Q+ é limitado inferiormente.
Como 0 6∈ Q+ , 0 não é o menor elemento de Q+ . Vamos mostrar que Q+ não possui
menor elemento. Suponhamos, por absurdo, que a ∈ Q+ seja o menor elemento de Q+ .
Então, vemos, facilmente, que 2a também pertence a Q+ . Como 2a < a chegamos a uma
contradição. ¢

Consideremos, agora, uma afirmativa P(n) a respeito dos números naturais maiores
do que a. Temos então duas possibilidades:

• P(n) é verdadeira para todo número inteiro n ≥ a, ou

• existe pelo menos um número inteiro n ≥ a tal que P(n) é falsa.


2.5. O PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO 23

Observemos que essas possibilidades são exclusivas, ou seja, se uma é verdadeira, a


outra é falsa. Uma maneira de verificarmos que a primeira possibilidade é verdadeira
é aplicar o Princípio da Indução. Entretanto, podemos concluir que a primeira
possibilidade é verdadeira mostrando que a segunda é falsa.

Uma das maneiras de aplicarmos o Princípio da Boa Ordenação (outra será vista
posteriormente) na demonstração de resultados sobre os inteiros é justamente esta:
supomos que a segunda possibilidade seja verdadeira e consideramos então o conjunto

F = {n ∈ Z : n ≥ a e P(n) é falsa}.

Se a segunda possibilidade for verdadeira, F 6= ∅. Aplicamos então o Princípio da


Boa Ordenação, tomamos o menor elemento de F e tentamos obter uma contradição. Se
obtivermos esta contradição, necessariamente concluiremos que F = ∅, o que implica
que a primeira possibilidade é verdadeira. Este é o procedimento que usaremos no
seguinte exemplo.

Exemplo 2.23 Vamos mostrar, usando o Princípio da Boa Ordenação, que


1 1 1 1 n
+ + +...+ = para todo n ≥ 1,
1·2 2·3 3·4 n ( n + 1) n+1
o que já foi provado aplicando-se a primeira forma do Princípio da Indução.

1 1 1 1
Seja Sn = + + +...+ . Queremos mostrar que
1·2 2·3 3·4 n ( n + 1)
½ ¾
n
F = n ∈ N : Sn 6 =
n+1
é o conjunto vazio. Vamos supor que F 6= ∅ e então obteremos uma contradição, donde
n
a única alternativa é concluirmos que F = ∅ e, portanto, que Sn = n+ 1 para todo n ∈ N.

Ora, se F 6= ∅, então o Princípio da Boa Ordenação se aplica. Logo, existe a ∈ F tal


que a ≤ n para todo n ∈ F. Assim,
a
Sa 6= .
a+1
Temos que a > 1 pois S1 = 12 = 1
1+1 (isto implica 1 6∈ F). Como a é o menor elemento
para o qual a afirmativa é falsa,
a−1 a−1
S a −1 = = .
( a − 1) + 1 a
1
Somando a ( a +1)
em ambos os lados, obtemos

1 1 1 1 a−1 1
+ +···+ + = + .
1.2 2.3 ( a − 1) a a ( a + 1) a a ( a + 1)
24 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

a −1 1 a
Mas o lado esquerdo é Sa , enquanto a + a ( a +1)
= a +1 (verifique!).

Portanto,
a
Sa = ,
a+1
o que contradiz
a
Sa 6=
a+1
Concluímos então que F = ∅, o que prova nossa afirmativa. ¢

Em geral, qualquer resultado sobre os números inteiros que pode ser demonstrado
usando-se o Princípio da Indução, também pode ser demonstrado usando-se o Princípio
da Boa Ordenação.

Demonstraremos agora o Princípio da Boa Ordenação, usando a segunda forma do


Princípio da Indução. A primeira vista bastaria usar o seguinte procedimento: dado um
conjunto S ⊂ Z de inteiros maiores do que o inteiro a, verificamos se a ∈ S. Se a ∈ S,
então a é o menor elemento de S, pois S ⊂ Z é um conjunto de inteiros maiores do que
a. Se a 6∈ S, verificamos se a + 1 ∈ S. Se a + 1 ∈ S então a + 1 é o menor elemento de
S pois a 6∈ S e S é um conjunto de inteiros maiores do que a. Se a + 1 6∈ S, verificamos
se a + 2 ∈ S, e assim sucessivamente. O primeiro elemento pertencente a S seguindo tal
procedimento seria o menor elemento de S.

Este processo, entretanto, é difícil de ser formalizado. Adotaremos um método


alternativo: consideraremos um conjunto S ⊂ Z de inteiros maiores do que o inteiro
a e suporemos que S não possui menor elemento; provaremos que este conjunto só
pode ser o conjunto vazio, donde podemos concluir que, se S é um conjunto de inteiros
maiores do que o inteiro a e S 6= ∅, então S possui menor elemento.

Demonstração do Princípio da Boa Ordenação: Seja S ⊂ Z um conjunto não-vazio e


limitado inferiormente. Seja a ∈ Z uma cota inferior para S. Suponhamos que S não
possua menor elemento.

Temos então que a 6∈ S pois, caso contrário, a seria o menor elemento de S.


Suponhamos que a, a + 1, a + 2, . . . , a + k não estejam em S (segunda forma do Princípio
da Indução). Afirmamos que a + (k + 1) 6∈ S. De fato, se a + (k + 1) ∈ S então a + (k + 1)
seria o menor elemento de S, pois todos os inteiros maiores do que a e menores do
que a + (k + 1) não estão em S; como S não possui menor elemento, concluímos que
a + (k + 1) 6∈ S. Logo, pela segunda forma do Princípio da Indução, nenhum elemento
de Z maior do que a está em S.

Como S ⊂ Z é um conjunto de números maiores do que a, só podemos ter S = ∅.


Concluímos que a única possibilidade de S não possuir menor elemento é quando
S = ∅, o que mostra o Princípio da Boa Ordenação. 2
2.6. PRINCÍPIOS OU TEOREMAS? 25

2.6 P RINCÍPIOS OU T EOREMAS ?


A segunda forma do Princípio de Indução e o Princípio da Boa Ordenação foram
apresentados como teoremas: a segunda forma do Princípio de Indução foi provada
utilizando-se a primeira forma, enquanto o Princípio da Boa Ordenação resultou da
segunda forma do Princípio de Indução. Mantivemos, entretanto, a denominação de
"Princípios" para esses resultados. Qual a razão desse procedimento?

Dizemos que duas afirmações A e B são equivalentes se A implica B (notação:


A ⇒ B) e, reciprocamente, B implica A (notação: B ⇒ A) e escrevemos A ⇔ B, que
se lê: A se, e somente se, B. (Para uma discussão mais detalhada desta linguagem veja
[16], pp. 38-47.) Quer dizer, a afirmativa A é verdadeira se, e somente se, a afirmativa B
for verdadeira.

Observe que já demonstramos que a primeira forma do Princípio de Indução


implica a segunda forma, e que essa implica o Princípio da Boa Ordenação. Assim,
para completarmos a verificação que esses Princípios são todos equivalentes, basta
mostrarmos que o Princípio da Boa Ordenação implica a primeira forma do Princípio
da Indução. É o que faremos agora. Uma vez mostrado esse resultado, poderemos
concluir que todas essas afirmativas são equivalentes: não importa qual aceitemos como
verdadeira, as outras também serão verdadeiras.

Teorema 2.24 O Princípio da Boa Ordenação implica a primeira forma do Princípio de Indução.

Demonstração: Seja P(n) uma afirmativa à respeito dos números inteiros, tais que

( a) P(n0 ) é verdadeira;

(b) se k ≥ n0 , P(k) verdadeira implica P(k + 1) verdadeira.

Queremos mostrar que P(n) é verdadeira para todo n ≥ n0 . Para isso, definimos o
conjunto
S = {n ∈ Z : n ≥ n0 e P(n) é falsa.}.

Vamos mostrar, usando o Princípio da Boa Ordenação, que S = ∅, donde podemos


concluir o desejado.

Claramente S é um conjunto limitado inferiormente. Suponhamos que S não seja


vazio. Então, pelo Princípio da Boa Ordenação, S tem um menor elemento k0 ∈ S.
Temos que k0 6= n0 pois, por hipótese, P(n0 ) é uma afirmação verdadeira. Logo, k0 > n0 .
Isso quer dizer que k0 − 1 6∈ S e também que P(k0 − 1) é uma afirmação verdadeira
(pois k0 é a primeira afirmativa falsa). Mas isso é uma contradição com a hipótese (b):
P(k0 − 1) verdadeira implica P(k0 ) verdadeira. 2
26 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.7 E XERCÍCIOS
1. Verifique, por indução, que as seguintes fórmulas são válidas para n ≥ 1:
n ( n + 1)
(a) 1 + 2 + 3 + . . . + n = ;
2
(b) 5 + 9 + 13 + . . . + (4n + 1) = n(2n + 3);
n(n + 1)(2n + 1)
(c) 1 + 4 + 9 + . . . + n2 = ;
6
n(n + 1)(n + 2)
(d) 1 · 2 + 2 · 3 + 3 · 4 + . . . + n(n + 1) = ;
3
µ ¶
3 3 3 n ( n + 1) 2
(e) 1 + 2 + 3 + . . . + n = ;
2
µ ¶
5 5 5 7 7 7 n ( n + 1) 4
(f) (1 + 2 + 3 + . . . + n ) + (1 + 2 + 3 + . . . + n ) = 2 .
2

Usando indução, é possível provar regras conhecidas. Os Exercícios 2 e 3 tratam de


progressões aritméticas e geométricas. Relembramos suas definições:

Definição 2.25 Uma progressão aritmética de razão r e termo inicial a1 é uma seqüência

a1 , a2 , . . . , a n , . . .

em que a diferença de dois termos consecutivos é sempre igual a r, isto é,

an − an−1 = r, ∀ n ≥ 2.

Uma progressão geométrica de razão q 6= 1 e termo inicial a1 é uma seqüência

a1 , a2 , . . . , a n , . . .

em que o quociente an /an−1 é sempre igual a q, para todo n ≥ 2.

2. Considere uma progressão aritmética de razão r e termo inicial a1 . Usando


indução, prove que:

(a) an = a1 + (n − 1)r;
(b) mostre que a soma Sn dos n primeiros termos desta progressão, é dada por

n ( a1 + a n )
Sn = .
2

3. Considere uma progressão geométrica de razão q 6= 1 e termo inicial a1 . Usando


indução, prove que:

(a) an = a1 qn−1 ;
2.7. EXERCÍCIOS 27

(b) mostre que a soma Sn dos n primeiros termos desta progressão, é dada por

1 − qn
Sn = a1 .
1−q

Às vezes, antes de aplicar o método de indução, precisamos formular uma lei que
englobe alguns casos considerados. É o que acontece nos próximos exercícios:

4. Encontre a lei geral sugerida e em seguida demonstre-a por indução.


1 1 1 1 1 1 1 1 1
(a) 1 + = 2− , 1+ + = 2− , 1+ + + = 2−
2 2 2 4 4 2 4 8 8
µ ¶µ ¶ µ ¶µ ¶µ ¶
1 1 1 1 1 1 1 1 1
(b) 1 − = , 1− 1− = , 1− 1− 1− =
2 2 2 3 3 2 3 4 4
(c) 1 = 1, 1 − 4 = −(1 + 2), 1 − 4 + 9 = 1 + 2 + 3,
1 − 4 + 9 − 16 = −(1 + 2 + 3 + 4).

5. Deduza a expressão geral que exprime de modo simplificado o produto:


µ ¶µ ¶ µ ¶
1 1 1
1− 1− ... 1− .
4 9 n·n

Demonstre o resultado por indução.


µ ¶
1 1
6. (a) Seja A = . Calcule A2 e A3 para determinar uma possível fórmula
0 1
para An , n ∈ N.
(b) Demonstre o resultado obtido em (a) por indução.

Também podemos aplicar o método de indução para provar desigualdades. Vejamos:

7. Mostre, por indução, que:

(a) 1 + n ≤ 2n para todo inteiro n ≥ 0;


(b) 2n < n! para todo n ≥ 4, n ∈ N;
(c) Para todo a ∈ R, a < 0 temos a2n > 0 e a2n−1 < 0 para todo n ∈ N.
(d) Seja x ∈ R. Então (1 + x )2n > 1 + 2nx para todo n ∈ N.
(e) Seja x ∈ R, 0 < x < 1. Então (1 − x )2n ≥ 1 − 2nx para todo n ∈ N.
(f) Se a > 0 e x > 0 são números reais, então

( a + x )n ≥ an + nxan−1

para todo n ∈ N.

Resultados a respeito de somatórios também podem ser provados por indução.


Relembramos a notação de somatório:
28 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Definição 2.26 Se n ∈ N e ai ∈ R para i ∈ N com 1 ≤ i ≤ n, indicamos a soma


a1 + a2 + · · · + an por
n
∑ ai
i =1
e lemos "somatório de ai , com i variando de 1 a n".
Se m e n são inteiros, com m ≤ n, definimos5
n
∑ a i = a m + a m +1 + . . . + a n .
i =m

8. Demonstre as seguintes propriedades dos somatórios.


à ! à !
n n n
(a) ∑ ( a i ± bi ) = ∑ a i ± ∑ bi ;
i =1 i =1 i =1
à !
n n
(b) ∑ kai = k ∑ ai ;
i =1 i =1
à !
n n
(c) ∑ ( ai + a ) = ∑ ai + na;
i =1 i =1
à ! à !
n n n n
(d) ∑ ∑ aij = ∑ ∑ aij .
i =1 j =1 j =1 i =1

9. Mostre que
n n n n
∑ ∑ ai b j = ∑ ai ∑ b j .
j =1 i =1 i =1 j =1

Podemos também usar dois índices no mesmo somatório. Para isso definimos, tendo
como base a propriedade (d) do Exercício 8,

Definição 2.27
n n n
∑ aij = ∑ ∑ aij .
i,j=1 i =1 j =1

5 Por exemplo, temos:


6
∑ i = 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 = 21
i =1
e
6
∑ (7 − 3j) = (7 − 3 · 3) + (7 − 3 · 4) + (7 − 3 · 5) + (7 − 3 · 6) = −26.
j =3

Observe que
n n
∑i=n e ∑ k = kn.
i =1 i =1
2.7. EXERCÍCIOS 29

10. Calcule
n
(a) ∑ (5i + 3);
i =1
n
x
(b) ∑ aij a ji , em que a xy =
y
.
i,j=1

Também regras a respeito da potenciação de números reais podem ser provadas pelo
método de indução. Relembramos a definição pertinente:
Definição 2.28 Seja a ∈ R, com a 6= 0. Definimos:

a0 = 1 e a j = aa j−1 , para todo j ∈ N.


Se a = 0, definimos a j = 0 para todo j ∈ {0, 1, . . .}.

11. Sejam a ∈ R e m, n ∈ {0, 1, . . .}. Mostre, por indução:


(a) am · an = am+n ;
(b) ( am )n = am.n .
12. Mostre que, para todo n ∈ N,
n −1
an − bn = ( a − b)( an−1 + an−2 b + · · · + bn−1 ) = ( a − b) ∑ a(n−1)−i bi .
i =0

A fórmula do binômio de Newton (1642-1727) pode ser provada por indução.


Relembramos:
Definição 2.29 Sejam n, p ∈ N, com 1 ≤ p ≤ n. Defina:
µ ¶
n n!
n! = n · (n − 1) · . . . · 3 · 2 · 1, 0! = 1 e = .
p p!(n − p)!
13. (a) Demonstre a relação de Stiefel (1487-1567),
µ ¶ µ ¶ µ ¶
n n−1 n−1
= + .
p p−1 p

(b) Mostre, por indução, a fórmula do binômio de Newton:


n µ ¶
n
n
( x + a) = ∑ a p x n− p , n ∈ N.
p =0
p

14. (a) Sejam b e x números reais com x 6= 1. Mostre que, para todo n ∈ N,
n −1
xn − 1
∑ bx j = b .
j =0
x−1
30 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

(b) Refaça (a) usando o resultado obtido no Exercício 3 (b).


n −1
(c) Observe que ∑ m j > n. Deduza então de (a) que n < mn , sendo m e n
j =0
naturais arbitrários e m > 1.
(d) Refaça (c) usando indução.

O próximo exercício apresenta algumas propriedades da seqüência de Fibonacci:

15. Seja Fi o i-ésimo termo da seqüência de Fibonacci. Mostre que:

(a) F1 + F2 + . . . + Fn = Fn+2 − 1
(b) F1 + F3 + . . . + F2n−3 + F2n−1 = F2n
(c) F2 + F4 + . . . + F2n−2 + F2n = F2n+1 − 1
(d) F12 + F22 + . . . + Fn2 = Fn Fn+1
(e) Fm+n = Fm−1 Fn + Fm Fn+1
(f) Fn2+1 = Fn Fn+2 + (−1)n
(g) F2n−1 = Fn2 + Fn2−1

Mesmo resultados geométricos podem ser provados por indução. O próximo exercício
é um exemplo:

16. (a) Prove que o número de diagonais dn de um polígono convexo de n lados é


dado por
n ( n − 3)
dn = .
2
(b) Prove que a soma Sn dos ângulos internos de um polígono convexo de n lados
é: Sn = (n − 2) · 180o .

A demonstração de uma afirmação pelo método de indução deve ser feita através de
aplicação criteriosa da hipótese de indução. Vejamos:

17. Explique o erro na seguinte "demonstração" por indução:

Proposição: "Em um conjunto de n bebês, todos têm a mesma cor de olhos".

Demonstração: Seja P(n) a afirmativa da proposição. Claramente P(1) é


verdadeira.
Suponhamos que P(k) seja verdadeira e consideremos que P(k + 1).
Seja um conjunto de k + 1 bebês.
Se escolhermos os k primeiros bebês do conjunto, como estamos supondo que
P(k ) seja verdadeira, temos que todos têm os olhos da mesma cor. O mesmo é
2.7. EXERCÍCIOS 31

verdadeiro para os k últimos bebês. Mas então o primeiro bebê tem a mesma cor
de olhos que o segundo, que tem a mesma cor que os k últimos.
Assim P(k + 1) é verdadeira e, pelo Principio de Indução, P(n) é verdadeira para
todo natural n, o que prova a nossa proposição.

Nota: Este exemplo deve-se ao matemático húngaro G. Pólya (1887-1985),


professor da Universidade de Stanford (EUA), que sugeria ao leitor que
comprovasse experimentalmente a validade da proposição.

O Princípio da Boa Ordenação pode ser utilizado como alternativa ao Princípio da


Indução:

18. Refaça os exercícios 1, 4, 5 e 7 usando o Princípio da Boa Ordenação.

19. Defina conjunto limitado superiormente. Use o Princípio da Boa Ordenação para
provar que qualquer subconjunto dos inteiros não-vazio e limitado superiormente
tem um maior elemento.
(Sugestão: suponha que cada elemento nesse conjunto, S, seja menor do que n.
Considere o conjunto de todos os números da forma n − s, onde s ∈ S.)

20. Adapte o enunciado do Teorema 2.10 para o caso de subconjunto S ⊂ Z. Quais


hipóteses devem ser feitas sobre S nesse caso?
CAPÍTULO 3

DIVISÃO EUCLIDIANA

3.1 I NTRODUÇÃO
O mais antigo texto matemático grego completo que conhecemos é Os Elementos,
escrito por Euclides de Alexandria (∼ 325-265 A.C.) por volta de 300 A.C. Nesta
obra, escrita em treze volumes (cada um deles denominado "Livro"), Euclides
conseguiu incorporar praticamente todo o conhecimento matemático acumulado por
seus antecessores. O material é apresentado de forma sistemática, sendo a aplicação
mais antiga do método axiomático que chegou até nossos dias.

Os Livros VII, VIII e IX d’Os Elementos são sobre teoria de números. Para os gregos de
então, a palavra número significava o que hoje denominamos número natural e nesses
livros cada número é representado por um segmento de reta. Assim, Euclides se refere
a um número como AB e não usa as expressões "é múltiplo de" ou "é dividido por", mas
"é medido por" ou "mede", respectivamente. O modelo concreto de número utilizado
por Euclides era um segmento de reta de comprimento igual a esse número, sendo a
unidade de medida u escolhida arbitrariamente; por exemplo, o número 7 era entendido
como o segmento AB abaixo:

u
A B

Uma característica dos inteiros é que um número nem sempre divide o outro e
Euclides interessava-se particularmente pelo estudo dessa relação, ou seja, pela teoria
da divisibilidade. Nos livros acima citados encontramos importantes resultados sobre
os inteiros – com demonstrações que são utilizadas até hoje, apenas reescritas numa
notação moderna.

Neste capítulo apresentaremos o resultado conhecido hoje como Lema da Divisão


de Euclides. A partir desse resultado, demonstraremos o Teorema da Representação
de um Número em uma Base qualquer b > 1 e obteremos também alguns critérios de
divisibilidade.

32
3.2. O ALGORITMO DA DIVISÃO 33

3.2 O A LGORITMO DA D IVISÃO


Retornando ao modelo de número utilizado por Euclides, dados dois segmentos de
reta AB e CD é natural comparar os seus comprimentos e nos perguntarmos sobre a
possibilidade de utilizar um deles para medir o outro. Assim, pode ser que o segmento
AB esteja contido um número exato de vezes no segmento CD, isto é, o segmento CD
pode ser obtido pela justaposição do segmento AB um certo número de vezes:

C D

A B

C AB AB AB D

Nesse caso, Euclides dizia que CD possuía AB como parte exata ou que AB servia
para medir CD. Assim
CD = AB + AB + AB = 3AB,
em que, aqui, a soma é a soma do número natural representado por AB. Obtemos daí a
definição de múltiplo. Damos a definição abstrata:

Definição 3.1 Dados os números naturais a e b, dizemos que a é múltiplo de b, se existe um


número natural n tal que a = nb.

Se o segmento AB não for uma parte exata do segmento CD, podemos considerar o
número máximo de segmentos do tamanho de AB que cabe em CD e obter um segmento
restante, que chamaremos MN, o qual possui comprimento menor do que o de AB:

C D

A B

C D
AB AB MN

Portanto, se os segmentos CD e AB representam os números naturais a e b,


respectivamente, temos que a = nb + r, em que r < b é o número natural que representa
34 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

o segmento MN e n é o número máximo de segmentos do tamanho de AB que cabe em


CD.
Esse é o enunciado, para os números naturais, do que hoje chamamos Lema da
Divisão de Euclides, cuja prova pode ser encontrada no Livro VII d’Os Elementos.

Nosso objetivo agora é enunciar e demonstrar esse resultado, cuja veracidade parece
ser evidente pelo raciocínio acima, com uma linguagem atual.

Repetimos o processo heurístico apresentado acima, com uma linguagem um pouco


mais abstrata. Sejam a e b números naturais. Dispondo os números naturais sobre uma
semireta e destacando os múltiplos de b, obtemos uma divisão dessa em intervalos de
comprimento b

-
0 b 2b 3b 4b

e então vemos que existem somente duas possibilidades: ou a é múltiplo de b, isto é,

a = qb, em que q ∈ N,

ou a está compreendido entre dois múltiplos consecutivos de b:

-
qb a ( q + 1) b

Nesse último caso, temos que a distância de a a qb é menor do que a distância entre
dois múltiplos consecutivos de b. Assim, podemos escrever

a = qb + r, em que 0 < r < b.

Observação 3.2 Observe que, até agora, consideramos o "1" como o primeiro número
natural. No lema de Euclides, a seguir, consideraremos "0" como número natural. É
uma simples convenção a questão do zero ser ou não natural. No texto, adotaremos a
postura que for mais conveniente no momento. ¢

Passamos agora ao tratamento formal desse resultado de Euclides:

Lema 3.3 (Lema da Divisão de Euclides)


Sejam a e b números naturais, com b > 0. Então existem números naturais q e r, com
0 ≤ r < b, de modo que a = qb + r.

Demonstração: Faremos a demonstração por indução em a.


3.2. O ALGORITMO DA DIVISÃO 35

Se a = 0, escolhemos q = 0 e r = 0, obtendo 0 = 0 · b + 0. Neste caso, o resultado


está demonstrado.

Seja então a > 0 (inclusive menor que b) e suponhamos, por indução, que o resultado
seja válido para o número natural ( a − 1): existem q0 , r 0 ∈ N tais que
( a − 1) = q 0 b + r 0 , em que 0 ≤ r 0 < b.
Logo,
a = q0 b + r 0 + 1 com 1 ≤ r 0 + 1 ≤ b.
Se r 0 + 1 < b, tomamos q = q0 e r = r 0 + 1, o que mostra o resultado. Se, por outro
lado, r 0 + 1 = b, temos que
a = q0 b + b = (q0 + 1)b,
e basta tomar, nesse caso, q = q0 + 1 e r = 0. 2

Portanto, o Lema da Divisão de Euclides nos garante que, dados a, b ∈ N, com b > 0,
sempre podemos achar o quociente q e o resto r da divisão de a por b, o que fazíamos
desde o ensino básico, para pares particulares de números naturais a e b.

Podemos agora nos perguntar se o quociente e o resto são únicos. A nossa


experiência nos diz que a resposta a essa pergunta é afirmativa: há muito tempo
sabemos que existe uma única "resposta certa" para a divisão de a por b. (Verifique
que esta unicidade fica clara ao considerarmos o nosso modelo geométrico).

Para demonstrar formalmente este fato, vamos supor que (q0 , r 0 ) e (q00 , r 00 ) sejam dois
pares de números naturais tais que
a = q0 b + r 0 , a = q00 b + r 00 , com 0 ≤ r0 < b e 0 ≤ r 00 < b.
Queremos concluir que
q0 = q00 e r 0 = r 00 .
Se tivéssemos q0 > q00 , obteríamos (q0 − q00 )b = r 00 − r 0 , e como q0 − q00 é um número
natural não-nulo, q0 − q00 ≥ 1 e, portanto, (q0 − q00 )b ≥ b. Logo, obteríamos r 00 − r 0 ≥ b,
o que é absurdo, já que 0 ≤ r 0 < b e 0 ≤ r 00 < b. Assim, não podemos ter q0 > q00 .
Analogamente, não podemos ter q00 > q0 e, portanto, q0 = q00 . Mas então
r 0 = a − q0 b = a − q00 b = r 00 .
Provamos assim a unicidade no lema de divisão de Euclides.

Gostaríamos agora de estender o lema de Euclides para o conjunto dos inteiros


Z = {· · · , −2, −1, 0, 1, 2, · · · }.
Esses podem ser representados sobre uma reta escolhendo um ponto arbitrário como
a posição do zero (chamado origem) e associando os pontos à direita do zero aos
números naturais e os pontos à esquerda do zero aos números negativos:
36 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

-
−2 −1 0 1 2

Temos então que o ponto correspondente a 2 fica à direita da origem e a duas


unidades dessa, enquanto que o número −2 fica à esquerda da origem, também a
duas unidades dessa. Assim a cada inteiro b está associado um número natural que
é a distância de b à origem chamado valor absoluto de b. Temos então a seguinte
Definição 3.4 O valor absoluto de um número inteiro b, denotado por |b|, é
½
b, se b ≥ 0,
|b| =
−b, se b < 0.
Observação 3.5 Para todo b ∈ Z, |b| é um número natural. Além disso, |b| = | − b|. ¢

Dado um número inteiro não-nulo b, podemos obter, a partir do zero, uma partição
da reta em segmentos de comprimento |b|. Como |b| = | − b|, esse processo nos dá a
mesma subdivisão da reta se consideramos b ou −b:

-
−2| b | −|b| 0 |b| 2| b | 3| b |

Os números inteiros destacados são os que chamaremos múltiplos de b, estendendo


a definição dada para naturais:
Definição 3.6 Dados dois inteiros a e b, dizemos que a é múltiplo de b, se existe um inteiro q
tal que a = qb.
Exemplo 3.7 Claramente 6 é múltiplo de 3, pois 6 = 2 · 3; 6 é múltiplo de −3, pois
6 = (−2)(−3); −6 é múltiplo de 3 e de −3, pois −6 = (−2)3 = 2(−3). ¢
Dado um inteiro b 6= 0, destacando na reta os múltiplos desse, temos que, para todo
inteiro a, ou a é múltiplo de b ou a está entre dois múltiplos consecutivos de b:

-
q|b| a (q + 1)|b|

Como estamos agora considerando também números negativos, podemos exprimir


o fato de a estar entre os múltiplos consecutivos de b, q|b| e (q + 1)|b|, de duas maneiras:
a = q|b| + r, com 0 < r < | b |,
3.2. O ALGORITMO DA DIVISÃO 37

ou
a = (q + 1)|b| + r, com − |b| < r < 0.
Vamos escolher sempre a primeira forma. Então, como no caso dos naturais,
chamaremos q e r, respectivamente, de quociente e resto da divisão de a por b; o
quociente e resto são únicos. Observe que escolher a primeira forma é exigir que o
resto seja não-negativo.

Exemplo 3.8 Se a = 8 e b = 3 escrevemos 8 = 2 · 3 + 2 e não 8 = 3 · 3 + (−1). Assim o


quociente da divisão de 8 por 3 é 2 e o resto também é 2.

Se a = −8 e b = 3, escrevemos −8 = (−3)3 + 1 e não −8 = (−2)3 − 2, ou seja, o


quociente da divisão de −8 por 3 é −3 e o resto é 1. Quais são os quocientes e os restos
das divisões de 8 por −3 e de −8 por −3?

-
−9 −8 −6 −3 0 3 6 8 9

Temos então o seguinte enunciado para números inteiros:

Teorema 3.9 (Lema da Divisão de Euclides)


Sejam a e b inteiros, com b 6= 0. Então existem inteiros q e r, com 0 ≤ r < |b|, tais que
a = qb + r. Além disso, são únicos os inteiros q e r satisfazendo as condições acima.

Demonstração: Consideremos a existência do quociente q e do resto r. Temos quatro


casos a considerar:

(1) a ≥ 0 e b > 0; (2) a ≥ 0 e b < 0

(3) a < 0 e b > 0; (4) a < 0 e b < 0.

O caso (1) é o Lema da Divisão de Euclides para naturais. Os casos restantes têm
demonstração similar. Mostraremos (4), deixando os outros casos como exercício.

Como a < 0 e b < 0, temos − a > 0, −b > 0 e |b| = −b. Pelo Lema de Euclides
para naturais, existem q0 , r 0 ∈ N tais que − a = q0 (−b) + r 0 , com 0 ≤ r 0 < −b. Se r 0 = 0,
temos a = q0 b e, então, basta fazer q = q0 e r = 0. Se r 0 > 0, temos a = q0 b + (−r 0 ).

-
0 q0 (−b) −a (q0 + 1)(−b)
38 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

e, portanto,

a = q0 b + b − b + (−r 0 )
= (q0 + 1)b + (−b − r 0 )

e então basta fazer q = q0 + 1 e r = −b − r 0 pois, como 0 < r 0 < −b temos


0 < −b − r 0 < −b.

Também deixaremos como exercício a unicidade de q e r. (Veja o Exercício 1.) 2

Exemplo 3.10 Se a ∈ Z, então a = 2q + r, em que q, r ∈ Z e 0 ≤ r < 2. Assim, a = 2q ou


a = 2q + 1. Os números da primeira forma são chamados pares e os da segunda forma
ímpares. ¢

Exemplo 3.11 O quadrado de um inteiro qualquer é da forma 3k ou 3k + 1, com k ∈ N.


Com efeito, pelo lema de Euclides, qualquer inteiro a pode ser escrito como

a = 3q + r, em que r ∈ {0, 1, 2}.

Portanto,
a2 = 9q2 + 6qr + r2 = 3(3q2 + 2qr ) + r2 .
Logo, temos as seguintes possibilidades:
• se r = 0, então a2 = 3(3q2 + 2qr ) = 3k, em que k = 3q2 + 2qr;

• se r = 1, então a2 = 3(3q2 + 2qr ) + 1 = 3k + 1, em que k = 3q2 + 2qr;

• se r = 2, então a2 = 3(3q2 + 2qr ) + 4 = 3(3q2 + 2qr + 1) + 1 = 3k + 1, em que


k = 3q2 + 2qr + 1. ¢

Passamos agora a estudar o caso em que a divisão de Euclides é exata (isto é, o resto
da divisão é zero). Demonstraremos alguns resultados de divisibilidade.

Se a é múltiplo de b, dizemos também que b divide a ou que b é divisor de a e


denotamos b | a. Se b não divide a, denotamos b - a.
Observação 3.12 A notação b | a não deve ser confundida com a fração ba . ¢

Exemplo 3.13 Temos que 3 | (−21), pois −21 = 3(−7). Mas 2 - 3, pois não existe n ∈ Z
tal que 3 = 2n. Note que 0 | 0, pois 0 = k0 para todo k ∈ Z. Também 3 | 0, pois 0 = 3 · 0,
mas 0 - 3, pois não existe n ∈ Z tal que 3 = n · 0. Finalmente, a | a para todo a ∈ Z,
pois a = 1a. ¢

Proposição 3.14 Sejam a e b inteiros quaisquer. Então vale:


(i ) se a | b, então a | (−b);
3.3. REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 39

(ii ) se a | b e a | c, então a | (b + c);


(iii ) se a | b e a | (b + c), então a | c;
(iv) se a | b e b | a, então a = ±b;
(v) se a | b e a | c, então a | (bx + cy) para quaisquer x, y ∈ Z;
(vi ) se a | b e b | c, então a | c.
Demonstração: As demonstrações de todos os ítens são muito semelhantes. Faremos
apenas a demonstração de (ii ), deixando os demais ítens a cargo do leitor (veja o
Exercício 2).

Se a | b, então existe q ∈ Z tal que b = aq. Se a | c, existe p ∈ Z tal que c = ap. Logo

b + c = aq + ap = a(q + p).

Como (q + p) ∈ Z, concluímos que a | (b + c). 2

Observação 3.15 Demonstramos acima que se a | b e se a | c, então a | (b + c). Isso


é muito diferente da afirmação: se a | (b + c) então a | b e a | c. A última afirmação é
chamada recíproca da anterior, pois a hipótese de uma é a tese da outra. Dê um exemplo
que mostra que essa afirmação recíproca é falsa. ¢

3.3 R EPRESENTAÇÃO DE UM N ÚMERO EM UMA B ASE


Descrevemos rapidamente no Capítulo 1 a evolução histórica dos sistemas de
numeração e vimos que é de se esperar que possamos usar sistemas numéricos
posicionais com respeito a qualquer base b > 1 (b ∈ N), de modo que um inteiro
arbitrário a possua uma representação posicional na base b, dada por uma seqüência
an an−1 . . . a1 a0 , em que cada ai (i = 0, 1, · · · , n) assume um valor em {0, . . . , b − 1},
significando que

a = a n b n + a n −1 b n −1 + · · · + a 1 b + a 0 .

Nesta seção demonstraremos formalmente que essa representação sempre existe e


que, escolhida a base b, ela é única.
Exemplo 3.16 Para representar 32 na base 5, de acordo com o raciocínio utilizado na
Seção 1.3, devemos efetuar as seguintes divisões:

32 = 6 · 5 + 2
6 = 1·5+1
1 = 0·5+1
40 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

Temos então que

32 = 6 · 5 + 2 = (1 · 5 + 1) · 5 + 2 = 1 · 52 + 1 · 5 + 2,

ou seja, a representação de 32 na base 5 é (112)5 , os algarismos 1, 1, 2 sendo exatamente


os restos das divisões acima, tomados de baixo para cima.

Seja b ≥ 2 um inteiro. Para obtermos o caso geral, consideremos um número a ≥ 0.


Gostaríamos de determinar os coeficientes a0 , a1 , . . . , an tais que

a = a n b n + a n −1 b n −1 + · · · + a 1 b + a 0 ,

com 0 ≤ ai < b para todo i = 0, . . . , n. Ora, colocando b em evidência nessa igualdade,


obtemos:

a = ( a n b n −1 + · · · + a 2 b + a 1 ) b + a 0 .

Como o resto e o quociente na divisão euclidiana são únicos, temos que a0 e


q0 = an bn−1 + . . . + a2 b + a1 são, respectivamente, o resto e o quociente da divisão de a
por b. Como

q0 = ( a n b n −2 + · · · + a 2 ) b + a 1 ,
temos, como antes, que a1 e q1 = an bn−2 · · · + a2 são, respectivamente, o resto e o
quociente da divisão de q0 por b. Repetindo este processo, determinamos todos os
coeficientes ai :

a = q0 b + a0 , 0 ≤ a0 < b,
q0 = q1 b + a1 , 0 ≤ a1 < b,
.. ..
. .
q n −1 = 0 · b + an , 0 ≤ an < b.
(Estamos supondo que qn−1 seja o último quociente não-nulo. Observe que, como os
quocientes vão decrescendo, necessariamente devemos ter qn = 0 para algum n.)

A representação de a na base b é, então, ( an an−1 . . . a0 )b .

O algoritmo apresentado acima nos permite obter a representação de um número


natural qualquer em uma base e constitui o fundamento da demonstração de nosso
teorema:

Teorema 3.17 (Representação de um Número em uma Base)


Dado um número natural a ≥ 0 e um natural b ≥ 2, existe e é única a representação de a na
base b.
3.3. REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 41

Demonstração: Para a = 0, vemos que o resultado é trivialmente verdadeiro. Seja


a > 0 e suponhamos, por indução, que o resultado seja válido para todo natural c, com
0 ≤ c < a. Isto é, suponhamos que c possa ser escrito de maneira única como

c = a n b n + . . . + a1 b + a0 , em que 0 ≤ ai < b.

Devemos mostrar que o resultado é verdadeiro para o natural a.

Pelo lema de Euclides, existem e são únicos os naturais q ≥ 0 e 0 ≤ r < b, tais que
a = qb + r.

Se q = 0, então a = r. Nesse caso, a coincide com sua representação na base b. Se


q > 0, como b ≥ 2, temos que

a = qb + r ≥ 2q + r ≥ 2q > q.

Logo, pela hipótese de indução, podemos escrever de modo único

q = a n b n + a n −1 b n −1 + . . . + a 1 b + a 0
e, portanto,

a = qb + r = an bn+1 + an−1 bn + . . . + a1 b2 + a0 b + r, com 0 ≤ r < b.

Obtivemos, então, uma representação de a na base b. A unicidade dessa


representação segue-se da unicidade de q e r, dadas pelo Lema da Divisão de Euclides,
e da unicidade da representação de q na base b (hipótese de indução). 2

Exemplo 3.18 Os algoritmos empregados para se efetuar a adição e a subtração na base


10 são facilmente estendidos para qualquer outra base. Observe que

(3 2 1)6 (3 2 1)6
+ (2 3 5)6 e - (2 3 5)6

(1 0 0 0)6 (4 2)6

(Exprimindo cada número na base 10, efetuando então as operações e escrevendo a


resposta na base 6, podemos confirmar as operações efetuadas.) ¢

Exemplo 3.19 Para efetuar um divisão em uma base qualquer devemos ter em mente a
tabela da multiplicação nessa base. Por exemplo, na base 6, temos:
42 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

(321)6 (54)6 (54)6 · (2)6 = (152)6



(250)6 (3)6 (54)6 · (3)6 = (250)6

(31)6 (54)6 · (4)6 = (344)6

ou seja,
(321)6 = (3)6 · (54)6 + (31)6 .
¢

3.4 C RITÉRIOS DE D IVISIBILIDADE


Nesta seção apresentaremos a demonstração de alguns critérios de divisibilidade.
Estamos sempre supondo que o número está representado na base 10.

Proposição 3.20 (Critério de divisibilidade por 2)


Um número natural a é divisível por 2 se, e somente se, o algarismo das unidades for divisível
por 2.

Demonstração: Seja an an−1 . . . a2 a1 a0 a representação de a ∈ N na base 10. Assim,

a = an · 10n + . . . + a2 · 102 + a1 · 10 + a0 ,

em que os algarismos ai tomam valores de 0 a 9.

Colocando o número 10 em evidência a partir da segunda parcela, temos:

a = 10( an · 10n−1 + . . . + a2 · 10 + a1 ) + a0 = 10m + a0 ,


em que m = an · 10n−1 + . . . + a2 · 10 + a1 é um inteiro.

Se 2 | a, como a = 10m + a0 e 10 = 2 · 5, temos, pela Proposição 3.14 (iii ), que 2 | a0 .

Reciprocamente, suponhamos que o algarismo das unidades de a seja divisível por


2, isto é, suponhamos que 2 | a0 . Como a = 10m + a0 temos, pela Proposição 3.14 (ii ),
que 2 | a. 2

Proposição 3.21 (Critério de divisibilidade por 9)


Um número natural a é divisível por 9 se, e somente se, a soma de seus algarismos for divisível
por 9.
3.4. CRITÉRIOS DE DIVISIBILIDADE 43

Demonstração: Seja an an−1 . . . a2 a1 a0 a representação de a na base 10, isto é,

a = an · 10n + . . . + a2 · 102 + a1 · 10 + a0 ,
em que 0 ≤ ai ≤ 9 para todo i ∈ {0, . . . , n}.

Como, para todo natural j,


10 j = 9b j + 1,
em que b j é um inteiro positivo (veja o Exercício 8), temos
a = an (9bn + 1) + an−1 (9bn−1 + 1) + . . . + a2 (9b2 + 1) + a1 (9b1 + 1) + a0
= 9( an bn + an−1 bn−1 + . . . + a2 b2 + a1 b1 ) + ( an + an−1 + . . . + a2 + + a1 + a0 ).
Fazendo c = an bn + . . . + a2 b2 + a1 b1 ∈ N, temos então que

a = 9c + ( a0 + a1 + · · · + an ). (3.1)
Portanto, se 9 | a temos, pela Proposição 3.14 (iii ), que

9 | ( a0 + a1 + · · · + a n ).
Reciprocamente, se 9 | ( a0 + a1 + · · · + an ) concluímos de (3.1), pela Proposição 3.14
(ii ), que 9 | a. 2

Proposição 3.22 (Critério de divisibilidade por 11)


Um número natural a = an an−1 · · · a1 a0 é divisível por 11 se, e somente se, a soma alternada
dos seus algarismos
a0 − a1 + a2 − · · · + (−1)n an
for divisível por 11.
Demonstração: Suponhamos que
a = an · 10n + . . . + a2 · 102 + a1 · 10 + a0 ,
com ai ∈ {0, . . . , 9} para todo i.

Como, para todo natural j > 0,

10 j = (11 − 1) j = 11c j + (−1) j , em que c j ∈ Z,


(veja o Exercício 9), temos que
a = an (11cn + (−1)n ) + . . . + a2 (11c2 + (−1)2 ) + a1 (11c + (−1)) + a0
= 11( an cn + . . . + a2 c2 + a1 c1 ) + ( a0 − a1 + a2 − · · · + (−1)n an )
= 11c + a0 − a1 + a2 − · · · + (−1)n an ,
em que c = an cn + . . . + a2 c2 + a1 c1 .

Portanto, 11 | a se, e somente se, 11 | ( a0 − a1 + a2 − · · · + (−1)n an ), de acordo com


a Proposição 3.14. 2
44 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

3.5 A E XPRESSÃO D ECIMAL DOS N ÚMEROS R ACIONAIS


Um número racional é um número que pode ser escrito na forma ba , em que a e b são
inteiros, com b diferente de zero. Por exemplo,

3 1 3 25 18
− , , 3= , e
2 7 1 12 8
a
são números racionais. Como qualquer número inteiro a pode ser escrito como , temos
1
que todo inteiro é racional.
Um número racional pode ser escrito de várias maneiras diferentes:

−2 1 2 3
= = = = ...
−14 7 14 21
e estas são chamadas formas equivalentes do número racional.

Existe uma outra maneira de representar um número racional que é chamada a sua
representação decimal, como:

−3 1 25 18
= −1, 5 = 0, 1425714257 . . . 3 = 3, 0 = 2, 0833 . . . = 2, 25.
2 7 12 8
Estas expressões decimais são obtidas dividindo-se o numerador pelo denominador,
segundo o algoritmo da divisão, multiplicando-se o resto por 10 e em seguida
dividindo-se o último número obtido pelo denominador e assim sucessivamente:

1 7 18 8
10 0, 1428571... 20 2, 25
30 40
20 0
60
40
50
10
.
.
.

18
Se, no decorrer desse processo, obtivermos um resto nulo, como no caso, então a
8
expressão decimal é finita. No entanto, podemos nunca obter um resto nulo, como no
3.5. A EXPRESSÃO DECIMAL DOS NÚMEROS RACIONAIS 45

1
caso , quando obtivemos os restos 1, 3, 2, 6, 4, 5 e então novamente o resto 1. Nesse
7
ponto reaparece a divisão de 10 por 7 e uma parte dos algarismos da expressão decimal
1
de , denominada período, começa a se repetir. Em ambos os casos dizemos que a
7
expressão decimal é periódica (daí o nome dízima periódica), já que o caso em que
existe um resto nulo pode ser englobado por esse: 2, 25 = 2, 25000 . . .

a
No caso geral , sabemos que, ao efetuarmos a divisão de a por b, os únicos restos
b
possíveis são 0, 1, . . . , b − 1. Portanto, se não obtivermos o resto zero, podemos ter
certeza que, após um número finito de operações, haverá a repetição de algum resto,
dando origem a um período não-nulo.

Passaremos agora à demonstração formal desse resultado.

Proposição 3.23 Todo número racional tem uma expressão decimal que se repete a partir de um
determinado ponto.

Demonstração: É suficiente provar o resultado para números racionais positivos.


a
Suponhamos, então, que r = . Sem perda de generalidade, podemos supor que essa
b
fração é irredutível (veja a p. 61). Então

a = bq0 + r0 , com r0 < b


10r0 = bq1 + r1 , com r1 < b
10r1 = bq2 + r2 , com r2 < b
.. ..
. .

de modo que
a q q
= q0 + 1 + 22 + · · · .
b 10 10
Considere a seqüência numérica

r 0 , r 1 , r 2 , . . . , r n −1 , r n , . . .

Se, nessa seqüência , temos resto nulo para algum rs , a expansão decimal é finita.
Caso contrário, como todos os números são positivos e menores do que b, ao menos
dois desses números são iguais. Certamente deverá ocorrer repetição do resto antes
realizarmos b divisões. Suponha, então, que rs = rs+d para d > 0 e 0 ≤ s < s + d < b.
Dividir 10rs+d por b resulta o mesmo quociente e resto que a divisão de 10rs por b.
Isso significa que qs+1 = qs+d+1 e rs+1 = rs+d+1 . O mesmo argumento mostra que
qs+2 = qs+d+2 e rs+2 = r + s + d + 2, e assim sucessivamente. Isso prova o afirmado. 2
46 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

3.6 E XERCÍCIOS
1. Mostre os casos (2) e (3) da demonstração do Teorema 3.9, bem como a unicidade
do quociente e do resto.

2. Mostre os casos não demonstrados na prova da Proposição 3.14.

3. Mostre que o quadrado de qualquer número inteiro ímpar é da forma 8k + 1.

4. Seja a ∈ Z. Mostre que, na divisão de a2 por 8, os restos possíveis são 0, 1 ou 4.

5. Determine os inteiros positivos que divididos por 17 deixam um resto igual ao


quadrado do quociente.

6. Na divisão do inteiro a = 427 por um inteiro positivo b, o quociente é 12 e o resto


é r. Ache o divisor b e o resto r.

7. Sejam a, b e c inteiros. Prove ou dê um contra-exemplo:

(a) se ac | bc, então a | b;


(b) se a | b e a | c, então a | (b − c);
(c) se c | ( a + b), então c | a ou c | b;
(d) Se a | b, então a | bx para todo x ∈ Z;
(e) Se c | ab, então c | a ou c | b.

8. Mostre que, para todo natural j > 0, 10 j pode ser escrito na forma 9b j + 1, sendo
b j > 0 um natural.

9. Mostre que, para todo natural j > 0, 10 j pode ser escrito na forma 11c j + (−1) j ,
sendo c j > 0 um natural.

10. Se m e n são inteiros ímpares, mostre que m2 − n2 é divisível por 8.

11. Mostre que todo inteiro ímpar pode ser escrito como diferença de dois quadrados.

12. Mostre que os


√ divisores de um número natural n se dispõe em pares (d, d0 ) tais
que 1 ≤ d ≤ n e dd0 = n.

13. Mostre que, dados 3 inteiros consecutivos, um deles é múltiplo de 3.

14. Sejam a e b inteiros com b > 0. Mostre que, dentre os números a, a + 1, a +


2, . . . , a + b − 1, um e apenas um deles é múltiplo de b. Em outras palavras, um
conjunto de b inteiros consecutivos contém exatamente um múltiplo de b.

15. Sejam a, b, m ∈ Z, com m 6= 0. Mostre que, se m | (b − a), então a e b deixam o


mesmo resto quando divididos por m.
3.6. EXERCÍCIOS 47

16. Examine a seqüência:

13 = 12 − 02
23 = 32 − 12
33 = 62 − 32
43 = 102 − 62
53 = 152 − 102
.. ..
. .

Prove que o cubo de qualquer inteiro é igual à diferença dos quadrados de dois
inteiros.

17. Mostre que, se a | (2x − 3y) e a | (4x − 5y), então a | y.

18. Utilizando indução, mostre que 24 | n(n2 − 1)(3n + 2) para todo natural n > 0.

19. Demonstre o Lema de Euclides usando o Princípio da Boa Ordenação. Para isso,
considere o conjunto S = {b − xa : , x ∈ Z e b − ax ≥ 0}.

20. (a) Escreva 983457832411 na base 1000.


(b) Faça a conversão do número (110011111001)2 para a base 8.
103 − 1
(c) Escreva na base 1000.
3
(d) Decida qual é o maior número: (984782)327 ou (984782)511 .

21. Faça a tabela da soma e da multiplicação na base 7.

22. Prove que as adivinhações abaixo estão corretas:

(a) Peça a alguém para pensar em um número a com dois algarismos, depois
para multiplicar o algarismo das dezenas de a por 5, somá-lo com 7, então
dobrar o resultado e somar a esse o algarismo das unidades de a. Peça-lhe
que diga o resultado obtido, b. Então o número pensado a é igual a b − 14.
(b) Pense em um número a com 3 algarismos. Agora multiplique o algarismo
das centenas por 2, some 3, multiplique por 5, some 7, some o algarismo das
dezenas de a, multiplique por 2, some 3, multiplique por 5, some o algarismo
das unidades e diga o resultado, b. Se você subtrair 235 de b, você obterá o
número pensado a.

23. Mostre que todo número com 3 algarismos, todos eles iguais, é divisível por 37.

24. Considere um número cuja representação decimal seja abc com a 6= c. Calcule a
diferença positiva entre abc e cba, considere o resultado obtido e f g e efetue a soma
de e f g com g f e. Verifique que o resultado obtido é 1089.
48 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

25. Sejam a e b números naturais com b ≥ 1 e a ≥ 2 e seja b = rk ak + · · · + r1 a + r0


a representação de b na base a, com rk 6= 0. Mostre, usando indução, que
a k ≤ b < a k +1 .

26. Encontre as expressões de 37 na base 3 e 144


141
na base 6, de maneira análoga à
utilizada para encontrar a representação decimal.

27. Imite as demonstrações dos critérios de divisibilidade por 2 e 9 para provar os


critérios de divisibilidade por 5 e 3, respectivamente.

28. Enuncie e demonstre o resultado análogo à Proposição 3.23 para um número


racional representado numa base b ≥ 2.
Euclides de Alexandria
Quando Alexandre, o grande, morreu, em 323 A.C., o mundo antigo já
não era aquele que ele conquistara. Com suas conquistas, Alexandre levou a
civilização grega a todos os recantos do mundo antigo. Ele havia fundado a
cidade de Alexandria, no atual Egito, que estava destinada a substituir Atenas
como o centro comercial e cultural do mundo. Estava se iniciando assim o
período conhecido como helenístico.

Após a morte de Alexandre, na divisão de seu império entre seus generais,


coube a Ptolomeu I o reino do Egito, iniciando assim toda uma dinastia de
Ptolomeus. Ptolomeu I funda aí, aproximadamente em 300 A.C., o museu de
Alexandria. O museu logo tornou-se o centro dos maiores desenvolvimentos
acadêmicos da Grécia, seja nas ciências exatas, seja nas ciências humanas. As
pessoas que trabalhavam no museu podiam morar em suas dependências e
recebiam um salário para tal. Seus membros que inicialmente se dedicavam à
pesquisa foram gradualmente levados a se dedicar ao ensino.

Os Ptolomeus organizaram com muito zelo a biblioteca do museu. Capitães


das embarcações que partiam de Alexandria tinham ordem para trazer todos os
rolos de papiro que encontrassem em cada porto por onde passassem. Conta-se
que Ptolomeu III pediu emprestado a Atenas os textos dos dramaturgos Ésquilo,
Sófocles e Eurípides em troca de um depósito considerável. Mas nunca devolveu
os originais, apenas cópias. O objetivo da biblioteca era arquivar toda a cultura
grega da época, de maneira sistemática. Chegou a conter 500 000 volumes em
todos os campos de conhecimento e foi destruída por um incêndio no século IV
D.C.

Foi aí que Euclides (∼ 325-265 A.C.) viveu, trabalhou e construiu sua


obra monumental: Os Elementos. Pouco se sabe sobre sua vida, a não ser
que viveu na época do reinado de Ptolomeu I. Este teria lhe indagado se seria
possível aprender geometria de uma maneira mais fácil do que utilizando os seus
Elementos. Euclides respondeu-lhe que não existe estrada real para a geometria.

Os Elementos é uma obra em 13 volumes. Embora tenha uma unidade


incontestável no seu método, na sua maneira de expor e no seu rigor, fica evidente
o débito de Euclides para com matemáticos gregos que o antecederam.

O seu plano geral é o seguinte. Os primeiros quatro livros versam sobre


geometria plana, já então considerada elementar. É a parte da obra que muito
deve a Tales (∼ 624-547 A.C.) e a Pitágoras (∼ 530-510 A.C.). Os dois seguintes
tratam da teoria de proporções de Eudoxo (∼ 408-355 A.C.) e suas aplicações.
O décimo trata da teoria dos incomensuráveis e os três últimos da geometria
espacial.
Os Livros VII a IX tratam da teoria dos números. Euclides trata aqui do
conceito de número primo, máximo divisor comum e conceitos relacionados.
Muitos dos resultados apresentados neste capítulo e em capítulos seguintes deste
livro chegaram até nós através d’Os Elementos, embora possivelmente tenham
sido provados antes da época de Euclides. Dentre estes resultados, podemos
citar o Lema da Divisão, o algoritmo para calcular o máximo divisor comum e
a demonstração de que existe um número infinito de primos, tida, por muitos,
como uma das peças mais belas de todo o edifício matemático.
CAPÍTULO 4

O TEOREMA FUNDAMENTAL DA
ARITMÉTICA

4.1 N ÚMEROS P RIMOS


Considerando novamente o modelo usado por Euclides, ou seja, os números
naturais representados por segmentos, podemos observar que esses segmentos podem
ser distribuídos em dois grupos distintos: no primeiro estão aqueles que possuem
"partes exatas" além da unidade, e no segundo aqueles que só podem ser "medidos"
pela unidade. Assim, por exemplo, o segmento de 6 unidades está no primeiro grupo,
já que pode ser medido pelos segmentos de 2 e 3 unidades, enquanto que os segmentos
de 7, 11 e 13 unidades pertencem ao segundo grupo.

Na nossa linguagem atual, dizemos que os números naturais do primeiro grupo são
aqueles que podem ser escritos como produto de dois fatores positivos menores que ele
(por exemplo, 6 = 2 · 3), e os do segundo são aqueles que não podem ser assim escritos
(por exemplo, 1, 2, 3, 7 e 13).

Definição 4.1 Seja n ∈ N, com n > 1. Dizemos que n é um número primo, se seus únicos
divisores positivos são a unidade e ele mesmo. Caso contrário, dizemos que n é composto .

Em outras palavras, um número natural n é primo se, sempre que escrevemos


n = ab, com a, b ∈ N, temos necessariamente que ou a = 1 e b = n ou a = n e
b = 1. Conseqüentemente, um número natural n é composto, se existem a, b ∈ N, com
1 < a < n e 1 < b < n, tais que n = ab. Observe que o número 1 não é primo nem
composto.

Exemplo 4.2 Vamos determinar todos os números primos p que são iguais a um
quadrado perfeito menos 1.
Se p = n2 − 1, então temos que p = (n + 1)(n − 1). Pela definição de número primo
só existem duas possibilidades:
n+1 = 1 e n−1 = p

51
52 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

ou
n+1 = p e n − 1 = 1.
Daí segue-se p = 3. ¢

De acordo com a definição apresentada, para decidir se um determinado número


n é primo, é necessário verificar a divisibilidade dele por todos os números naturais
menores do que ele, o que fica extremamente trabalhoso à medida que avançamos na
seqüência dos números naturais. Entretanto, é suficiente testar a divisibilidade de n
pelos primos menores do que a sua raiz quadrada.

Antes de provarmos esse resultado, gostaríamos de observar que, se considerarmos


o conjunto dos divisores positivos diferentes da unidade de um número natural n ≥ 2
(por exemplo, n = 12, 17 e 25) então o seu menor elemento é sempre um número primo.
Esse é o fato que fundamenta a demonstração de nosso lema:

Lema 4.3 Seja n ∈ N, com n ≥ 2. Então n admite um divisor primo.

Demonstração: Considere o conjunto S dos divisores positivos de n, além da unidade,


isto é:
S = { d ∈ N : d ≥ 2 e d | n }.
Certamente S é não-vazio, pois o próprio n está em S. Logo, pelo Princípio da Boa
Ordenação, S possui um menor elemento d0 . Mostraremos que d0 é primo. Com efeito,
se d0 não fosse primo, existiriam números naturais a e b tais que d0 = ab, com

2 ≤ a ≤ ( d0 − 1) e 2 ≤ b ≤ ( d0 − 1).

Já que a | d0 e d0 | n, então a | n. Temos também que a ≥ 2, donde a ∈ S. Chegamos,


portanto, a um absurdo, pois a é menor do que o menor elemento de S. 2

Mostramos agora o resultado enunciado anteriormente:

Seja n ∈ N, com n ≥ 2. Se n for composto, então n admite pelo menos um


Proposição 4.4 √
fator primo p ≤ n.

Demonstração: Como n é composto, existem naturais a e b, com 1 < a, b < √ n tais que
n = ab. O exercício 12 do Capítulo 3 nos garante que podemos tomar a ≤ n. Além
disso, pelo Lema 4.3, temos que existe p primo tal que p√| a. Assim, como a | n, podemos
concluir que n admite um divisor primo p tal que p ≤ n. 2

Portanto, o primeiro passo para se decidir se um dado√número n é primo consiste na


determinação de todos os números primos menores que n. (Determine, por exemplo,
se n = 1969 é primo).
4.1. NÚMEROS PRIMOS 53

É conveniente, então, termos à nossa disposição uma lista de primos. Várias tabelas
de números primos, até certo limite, já foram calculadas. Antigamente essas tabelas
eram baseadas num algoritmo ou crivo, desenvolvido por Eratóstenes (276 - 194 A.C.),
e cujo princípio abordamos a seguir.

CRIVO DE ERATÓSTENES

Escrevem-se, na ordem natural, todos os números naturais entre 2 e n. Em seguida, √


eliminam-se todos os inteiros compostos que são múltiplos dos primos p tais que p ≤ n,
isto é: primeiro elimine todos os múltiplos 2k de 2, com k ≥ 2; a seguir, todos os múltiplos 3k de
3, com√ k ≥ 2; depois os múltiplos 5k de 5, com k ≥ 2; e assim sucessivamente, para todo primo
p ≤ n. Os números que sobrarem na lista são todos os primos entre 2 e n.

Exemplo 4.5 Vamos construir a tabela de todos os primos menores que 100.

Como 100 = 10, pelo crivo de Eratóstenes devemos eliminar da lista dos números
naturais de 2 a 100 todos os múltiplos dos primos p tais que p ≤ 10, ou seja, os múltiplos
de p = 2, 3, 5 e 7. Assim, obtemos:

2 3 
4 5 
6 7 
8 
9 
10 11

12 13 
14 
15 
16 17 
18 19 
20 
21

22 23 
24 
25 
26 
27 
28 29 
30 31

32 
33 
34 
35 
36 37 
38 
39 
40 41

42 43 
44 
45 
46 47 
48 
49 
50 
51

52 53 
54 
55 
56 
57 
58 59 
60 61

62 
63 
64 
65 
66 67 
68 
69 
70 71

72 73 
74 
75 
76 
77 
78 79 
80 
81

82 83 
84 
85 
86 
87 
88 89 
90 
91

92 
93 
94 
95 
96 97 
98 
99 
100

Segue-se então, do crivo de Eratóstenes, que os primos entre 1 e 100 são: 2, 3, 5, 7,


11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37, 41, 43, 47, 53, 59, 61, 67, 71, 73, 79, 83, 89 e 97. ¢

Desde os tempos de Euclides, problemas envolvendo os números primos têm


fascinado os matemáticos. Naquela época, muitos resultados sobre os números primos
haviam sido compilados, mas muitos foram perdidos. Uma das demonstrações mais
antigas em teoria de números que chegou até nós foi a prova da infinitude dos números
primos, que se encontra no Livro IX dos Elementos de Euclides. Apresentaremos essa
demonstração usando uma linguagem moderna.
54 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Teorema 4.6 Existem infinitos números primos.

Demonstração: Suponhamos, por absurdo, que exista somente uma quantidade finita
de números primos. Sejam eles p1 , p2 , . . . , pk . Considere então o número

m = p1 p2 . . . pk + 1.

Como m é maior que qualquer um dos primos p1 , . . . , pk , segue-se da nossa hipótese


que m não é primo. Logo, pelo Lema 4.3, m admite um divisor primo, que teria de ser
um dos primos p1 , . . . , pk . Mas nenhum desses pode dividir m. De fato, se p é um primo
que divide m, então p teria que dividir 1 também, já que

1 = m − p1 p2 . . . p k .

Portanto, qualquer que seja k ∈ N, o conjunto { p1 , p2 , . . . , pk } não pode conter todos


os primos. 2

Muitas questões interessantes sobre números primos não foram respondidas até
hoje. Por exemplo, dizemos que dois primos são gêmeos se eles são números ímpares
consecutivos. Assim, 3 e 5, 5 e 7, 11 e 13 são números primos gêmeos. Um antigo
problema que até hoje não foi resolvido é se existe ou não um número infinito de primos
gêmeos.

Sabendo-se que existem infinitos números primos, coloca-se também a questão de


como eles são distribuídos na seqüência dos números naturais. Temos o seguinte
resultado.

Proposição 4.7 Para todo número natural n ≥ 2 existem n números compostos consecutivos.

Demonstração: A seqüência (n + 1)! + 2, (n + 1)! + 3, . . . , (n + 1)! + (n + 1) é formada


apenas por números compostos, pois i | (n + 1)! + i para todo i tal que 2 ≤ i ≤ n + 1. 2

Esse resultado parece indicar que os números primos não estão distribuídos de
maneira regular, e que eles são cada vez mais raros à medida que se avança na seqüência
numérica. No entanto, não é bem assim.

Um resultado importante sobre a distribuição dos números primos é conhecido


como o "Teorema do Número Primo". Gauss (1777-1855), em seus estudos sobre os
números primos, considerou a função Π(n), a qual é dada pelo número de primos
menores que o número natural n. Ele conjecturou que, para valores grandes de n,
Π(n) era aproximadamente igual a lnnn . Nomes como Legendre (1752-1833), Riemann
(1826-1866) e Chebychev (1821-1894) também tentaram achar aproximações para essa
função. Esse problema foi resolvido em 1896 por C. J. de la Vallée-Poussin (1866-1962)
e Hadamard (1865-1963). Enunciaremos agora esse resultado, cuja demonstração pode
ser vista em cursos mais avançados de teoria de números.
4.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA 55

Teorema 4.8 (do Número Primo)


Sejam x ∈ R, com x > 0, e Π(n) o número de primos p tais que p ≤ x. Defina
Z x
x dt
f (x) = e g( x ) = .
ln x 2 ln t
Então vale:
Π( x ) Π( x )
lim = lim = 1.
x →∞ f ( x ) x →∞ g ( x )

Exemplo 4.9 Pode-se verificar que entre a = 2 600 000 e b = 2 700 000 existem
exatamente 6762 primos. A estimativa feita através da integral é
Z b
dt
= 6761, 332.
a ln t ¢

4.2 O T EOREMA F UNDAMENTAL DA A RITMÉTICA


A importância dos números primos se deve ao fato que qualquer inteiro pode ser
construído multiplicativamente a partir deles: com efeito, se um número não é primo,
podemos decompô-lo até que os seus fatores sejam todos primos. Por exemplo,
360 = 3 · 120 = 3 · 30 · 4 = 3 · 3 · 10 · 2 · 2 = 3 · 3 · 5 · 2 · 2 · 2 = 23 · 32 · 5.
Vamos assumir que uma decomposição de um número primo p é dada por ele mesmo.

Observamos agora que, se um número foi expresso como produto de primos,


podemos dispor esses fatores primos em qualquer ordem. A experiência nos diz que,
salvo pela arbitrariedade da ordenação, a decomposição de um número natural em
fatores primos é única. Essa afirmação parece, à primeira vista, evidente; entretanto,
ela não é uma trivialidade e sua demonstração, ainda que elementar, requer algumas
sutilezas. A demonstração clássica deste resultado, conhecido como o "Teorema
Fundamental da Aritmética", dada por Euclides, está baseada em um método (ou
algoritmo) para o cálculo do máximo divisor comum de dois números, e diz respeito
apenas à existência da fatoração de um número natural em primos. Acredita-se que
Euclides conhecia a unicidade dessa fatoração e que, por dificuldades de notação,
não conseguiu estabelecer a demonstração desse resultado, a qual faremos aqui.
Salientamos, entretanto, que a demonstração da existência da decomposição em fatores
primos não será feita pelo método de Euclides1 .

Dividiremos a demonstração desse teorema em duas partes: a primeira mostrará a


existência dessa fatoração em números primos, a segunda mostrará a unicidade dessa
fatoração, a menos da ordem dos fatores.
1 É bom lembrar que o Princípio da Indução, ferramenta que usaremos nessa demonstração, só passou

a ser utilizado muito depois da época de Euclides.


56 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Teorema 4.10 (Teorema Fundamental da Aritmética)


Todo número natural n ≥ 2 pode ser escrito como um produto de números primos. Essa
decomposição é única, a menos da ordem dos fatores.

Demonstração: Seja P(n) a afirmativa: n é um número primo ou pode ser escrito como
um produto de números primos.

P(2) é verdadeira, pois 2 é primo. Suponhamos a afirmativa verdadeira para todo


número m com 2 ≤ m ≤ k e provemos que P(k + 1) é verdadeira.

Se k + 1 é primo, então P(k + 1) é verdadeira.

Se k + 1 não é um número primo, então k + 1 pode ser escrito como

k + 1 = ab, em que 2≤a≤k e 2 ≤ b ≤ k.

Portanto, pela hipótese de indução, ou a e b podem ser escritos como produto de primos,
ou são números primos. Logo k + 1 = ab é também um produto de números primos,
a saber, o produto dos números primos da fatoração de a multiplicados pelos números
primos da fatoração de b. Isso completa a primeira parte da demonstração: provamos
que todo número natural k > 1 pode ser decomposto como produto de fatores primos.

Para mostrar a unicidade dessa decomposição, consideramos

S = {n ∈ N : n ≥ 2 e n tem duas decomposições distintas em fatores primos}.

Suponhamos, por absurdo, S 6= ∅. Logo, pelo Princípio da Boa Ordenação, S tem um


menor elemento m.

Assim,
m = p1 p2 . . . pr = q1 q2 . . . q s , (4.1)
são duas fatorações distintas de m como produto de números primos.

Reordenando esses primos, se necessário, podemos supor que

p1 ≤ p2 ≤ . . . ≤ pr e q1 ≤ q2 ≤ . . . ≤ q s .

Notemos que p1 6= q1 . De fato, caso contrário, teríamos duas decomposições


diferentes para um número natural menor do que m (a saber, o número natural m/p1 ),
contrariando assim o fato de m ser o elemento mínimo de S (veja o Exercício 1). Assim,
podemos assumir que p1 < q1 .

Definimos então
m 0 = m − ( p1 q2 q3 . . . q s ). (4.2)
Substituindo m pelas expressões dadas em (4.1), obtemos
4.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA 57

m 0 = p1 p2 . . . pr − p1 q2 . . . q s = p1 ( p2 . . . pr − q2 . . . q s ) (4.3)
m0 = q1 q2 . . . qs − p1 q2 . . . qs = (q1 − p1 )(q2 q3 . . . qs ) (4.4)

Por definição, temos m0 < m. Por outro lado, (4.3) nos mostra que m0 ≥ 2, pois
p1 | m0 . Assim, m0 tem decomposição única como produto de fatores primos. Se
for ( p2 . . . pr − q2 . . . qs ) ≥ 2, podemos decompor esse termo como produto de fatores
primos. Caso contrário, ( p2 . . . pr − q2 . . . qs ) = 1. De qualquer modo, vemos que p1 é
um fator na decomposição de m0 em fatores primos.

A mesma decomposição em fatores primos pode ser feita com respeito à equação
(4.4). Como p1 < q2 ≤ · · · ≤ qs , necessariamente o fator primo p1 deve estar presente
na decomposição que (q1 − p1 ). Mas isso quer dizer que q1 − p1 = cp1 para algum
inteiro c e, portanto, q1 = (c + 1) p1 , contrariando o fato de ser q1 > p1 . Chegamos,
assim, a um absurdo, o que prova que S = ∅ e completa a demonstração. 2

Exemplo 4.11 Vamos determinar todos os números primos p tais que 3p + 1 seja um
quadrado perfeito.

Se 3p + 1 = n2 , então 3p = n2 − 1 e, portanto,

(n + 1)(n − 1) = 3p. (4.5)

Observe que não podemos ter nem n − 1 = 1. Isso implica que devemos ter n + 1 ≥ 2 e
n − 1 ≥ 2. Já que temos dois números primos do lado direito da igualdade acima, pelo
Teorema Fundamental da Aritmética, n + 1 e n − 1 são ambos primos. Mais do que isso,
só existem duas possibilidades:

n+1 = 3 e n − 1 = p, ou n+1 = p e n − 1 = 3.

A única solução é, portanto, p = 5. ¢

O próximo resultado é conseqüência imediata do Teorema Fundamental da


Aritmética.
Corolário 4.12 Todo número inteiro não-nulo diferente de ±1 pode ser escrito como ±1 vezes o
produto de números primos. Essa expressão é única, exceto pela ordem na qual os fatores primos
aparecem.

Definição 4.13 Um número negativo q cujo simétrico −q é um número natural primo é


chamado número primo negativo.

Exemplo 4.14 Temos então que 2, 3 e 5 são números primos, enquanto que −2, −3 e −5
são primos negativos. ¢
58 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Observação 4.15 Observemos que, na fatoração de um número inteiro a, o mesmo


primo p pode aparecer várias vezes. Agrupando esses primos, podemos escrever a
decomposição de a como:
a = (±1) p1r1 p2r2 . . . prnn ,
em que 0 < p1 < p2 < . . . < pn e ri > 0 para i = 1, 2, . . . , n.

Ao nos referirmos a uma decomposição (ou fatoração) de um número inteiro em


números primos, estaremos nos referindo a essa decomposição, em que os primos são
todos positivos.

Assim, por exemplo, aceitamos as decomposições

40 = 23 · 5 e − 12 = −(22 · 3),

mas não aceitamos as decomposições

40 = (−23 ) · (−5) e − 12 = 22 · (−3). ¢

Corolário 4.16 Sejam a, b ∈ Z e p um número primo. Se p é um fator de ab, então p é um


fator de a ou p é um fator de b.

Demonstração: Já sabemos que m | n se, e somente se, m | (−n); portanto é suficiente


mostrar este resultado para a e b números naturais.

Se p não fosse um fator de a nem de b, então as fatorações de a e b em produtos


de primos levaria a uma fatoração de ab não contendo p. Por outro lado como, por
hipótese, p é um fator de ab, existiria um q ∈ N tal que pq = ab. Então, o produto de p
por uma fatoração de q daria uma fatoração de ab em primos contendo p, contrariando
a unicidade da decomposição de ab em primos. 2

4.3 A P ROCURA DE N ÚMEROS P RIMOS


Um dos problemas mais antigos de que se tem notícia é a procura de um polinômio
que gerasse todos os números primos ou cujos valores fossem somente números primos.
Alguns matemáticos da Idade Média acreditavam, por exemplo, que o polinômio
p( x ) = x2 + x + 41 assumisse valores iguais a números primos, para qualquer número
natural x. Como já vimos, esse resultado é verdadeiro para x = 0, 1, . . . , 39, mas p(40)
é um número composto. Não é difícil provar que qualquer polinômio com coeficientes
inteiros deve assumir algum valor composto (veja [17], p. 80).

Legendre mostrou que não existe função algébrica racional (isto é, quociente de dois
polinômios) que forneça somente números primos. Já foi provado que existem funções
não-polinomiais que geram somente números primos, mas não é fácil exibi-las.
4.3. A PROCURA DE NÚMEROS PRIMOS 59

Nas diversas tentativas de se obter uma fórmula que gerasse primos, a maioria das
afirmações feitas neste sentido revelaram-se erradas. (Contudo, essa procura contribuiu
de maneira significativa para o desenvolvimento da teoria de números.) A seguir,
enunciaremos algumas delas:

1. Já vimos que Fermat (1601-1665) observou que, para n = 0, 1, 2, 3 e 4, os números


n
Fn = 22 + 1

eram primos; em 1640 ele conjecturou que, para qualquer n ∈ N, Fn era um


número primo. Mas, em 1739, Euler (1707-1783) mostrou que F5 é divisível por
641. Desde então, tentou-se descobrir outros números primos de Fermat (nome
dado hoje aos números da forma acima) além dos cinco primeiros. Hoje se sabe
que Fn não é primo para n entre 5 e 16, inclusive, mas ainda não foi provado se o
número de primos de Fermat é finito ou infinito.

2. Um processo para determinar números primos grandes é através dos números da


forma
Mk = 2k − 1,
que são chamados números primos de Mersenne (1588-1648). Não é difícil provar
(veja o Exercício 18) que, se Mk é um número primo, então k também é primo.

Em 1644, Mersenne afirmou:

"Todo número M p é primo para p = 2, 3, 5, 7, 13, 17, 31, 67, 127 e 257 e é
composto para os outros primos p tais que 2 < p < 257".

Observe que

M2 = 3, M3 = 7, M5 = 31, M7 = 127, M13 = 8191,

M17 = 131 071, M19 = 524 287 e M31 = 2 147 483 647.

Naquela época, a afirmação de Mersenne era motivo de muitas controvérsias; não


existiam processos práticos para verificar, por exemplo, se M31 era primo ou não.
De fato, a maior tábua de número primos conhecida então só continha primos
menores do que 750. Para se verificar a afirmação de Mersenne era necessária
uma tábua com todos os números primos até 46 340.

Sua conjectura não era correta: ele errou ao incluir os números 67 e 257 e ao excluir
os números primos primos 19, 61, 89 e 107.

O maior número de Mersenne conhecido até 1952 era M127 . Esse foi descoberto,
em 1876, pelo matemático francês Lucas (1842-1891). Foi necessário utilizar
60 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

computadores para encontrar outros números primos de Mersenne. Em 1983, por


exemplo, Slowinski, analista de sistemas americano, identificou com a ajuda de
um supercomputador, o maior número primo conhecido até então. Era o número
M86243 , que possui exatamente 25 962 algarismos. No final de 2003, foi encontrado
o quadragésimo primo de Mersenne: M20996011 , o qual possui 6 320 430 algarismos.

3. Em 1639, Pierre Fermat enunciou a seguinte conjectura:

"Um número natural n > 1 é primo se, e somente se 2n − 2 é divisível por n".

Em 1819, Pierre Frédéric Sarrus (1798-1861) descobriu que o número 341 satisfaz
as condições da conjectura e não é primo. Mais tarde, outras exceções ao resultado
de Fermat foram descobertas, tais como os números 15 e 91. Entretanto, uma
parte da conjectura é verdadeira e o teorema de Fermat, o qual demonstraremos
no Capítulo 7, é uma generalização desse fato: "se p é um primo e a ∈ N, com
a > 1, então a p − a é divisível por p".

Esse teorema serve de base para vários testes de verificação se um dado número
é primo. Entretanto, se quisermos determinar, utilizando o teorema de Fermat, se
209 é primo, teremos que testar a divisibilidade de 3209 − 3 (que é um número
de 100 algarismos) por 209. Mas esses cálculos podem ser simplificados se
utilizarmos a teoria de congruências, que veremos no Capítulo 7.

4.4 E XPRESSÕES D ECIMAIS F INITAS E I NFINITAS


Como vimos na Seção 3.5, todo número racional possui uma expressão decimal
periódica. Dizemos que esta expressão é finita, se a partir de um determinado ponto
os algarismos são todos nulos. Caso contrário, a expressão decimal é infinita.

Por exemplo, os números racionais

3 18
− , e 3
2 8
possuem expressões decimais finitas:

3 18
− = −1, 5, = 2, 25 e 3 = 3, 0.
2 8
Mas
1 25
= 0, 1425714257 . . . e = 2, 0833 . . . ,
7 12
1 25
mostrando que e não possuem expressões decimais finitas.
7 12
4.4. EXPRESSÕES DECIMAIS FINITAS E INFINITAS 61

Se a expressão decimal de um número r é finita, então é possível representá-lo como


um quociente cujo denominador é uma potência de 10, por exemplo:

22375
2, 2375 =
104
e podemos simplificar essa fração até torná-la irredutível, isto é, até que o numerador e
o denominador não possuam fatores primos em comum:

22375 7 · 55 7·5 35
4
= 4 4 = 4 = .
10 2 ·5 2 16
Observe que, como o denominador é sempre uma potência de 10, os únicos
números primos que podem aparecer na fatoração do denominador da fração na forma
irredutível são 2 ou 5, ou mesmo nenhum deles:
3 1 3 1
−1, 5 = − , 0, 04 = , 3, 0 = , 0, 1 = .
2 52 1 10
Por outro lado se considerarmos uma fração irredutível ba , tal que b possua, no
máximo, os números primos 2 e 5 em sua fatoração, podemos garantir que a expressão
decimal de ba é finita.

Por exemplo, seja


a 3087 32 · 73
= = 3 2.
b 200 2 ·5
Para obtermos a expressão decimal de b , devemos transformar a fração ba numa
a

outra, cujo denominador seja uma potência de 10. Para isto, nesse caso, basta
multiplicarmos o numerador e o denominador por 5:

3087 3087 3087 · 5 15435 15435


= 3 2 = 3 2 = 2
= = 15, 435.
200 2 ·5 2 ·5 ·5 (2 · 5) 103

Passaremos agora à demonstração do resultado geral:

a
Proposição 4.17 Um número racional, na forma irredutível , possui uma expressão decimal
b
finita se, e somente se, o denominador b não tiver fatores primos além de 2 e 5.

Demonstração: Se r for um número racional que possui uma expressão decimal finita,
então
a a2 . . . an b1 b2 . . . bs
r = a1 a2 . . . an , b1 b2 . . . bs = 1
10s
em que n ≥ 1 e s ≥ 0. Logo, simplificando a fração acima, obteremos uma fração
a
irredutível r = , em que b não possui nenhum fator primo além de 2 e 5, pois b é um
b
divisor de 10s .
62 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

a
Reciprocamente, seja uma fração irredutível cujo denominador b possua, no
b
máximo os fatores primos 2 e 5. Logo,

b = 2m · 5n , em que m≥0 e n ≥ 0.

Temos apenas duas possibilidades: n ≤ m ou n > m.

Se n ≤ m, então m − n ≥ 0 e 5m−n é um inteiro. Portanto, multiplicando o numerador


e o denominador por 5m−n , obteremos uma fração equivalente:

a a a · 5m − n a · 5m − n c
= m n = m n m−n = m m = m ,
b 2 ·5 2 ·5 ·5 2 ·5 10
em que c = a · 5m−n ∈ Z.

Como a divisão do inteiro c por 10m requer apenas que coloquemos a vírgula no
a
lugar correto, obteremos a expressão decimal finita de .
b

Por outro lado, se n > m, então n − m > 0 e 2n−m ∈ Z. Multiplicando o numerador


e o denominador por 2n−m , obtemos:

a a a · 2n − m a · 2n − m d
= m n = n−m m n = n
= n,
b 2 ·5 2 ·2 ·5 10 10
a
em que d = a · 2n−m ∈ Z. Obtivemos, assim, uma expressão decimal finita para . 2
b

Para mais resultados sobre a expressão decimal dos números racionais, veja [16].

4.5 E XERCÍCIOS
1. Na demonstração do Teorema Fundamental da Aritmética, como se justifica que
podemos assumir m/p1 ≥ 2?

2. Demonstre o Lema 4.3 usando o Princípio da Indução.

3. Encontre todos os pares de primos p e q tais que p − q = 3.

4. Calcule o menor número natural n para o qual n, n + 1, n + 2, n + 3, n + 4 e n + 5


são todos compostos.

5. Encontre o menor número natural n tal que p1 p2 · · · pn + 1 não seja um número


primo, em que p1 , p2 , . . . , pn são os n primeiros números primos.

6. Mostre que 7 é o único número primo da forma n3 − 1.


4.5. EXERCÍCIOS 63

7. Mostre que três números naturais ímpares consecutivos não podem ser todos
primos, com exceção de 3, 5 e 7.

8. Se p > 1 divide ( p − 1)! + 1, mostre que p é um número primo.

9. Mostre que todo número primo que deixa resto 1 quando dividido por 3 também
deixa resto 1 quando dividido por 6.

10. Sejam a1 , . . . , an números inteiros, com n ≥ 2, e p um número primo. Mostre que,


se p | a1 a2 · · · an , então p | ai para algum i.

11. (a) Se n é um quadrado perfeito, então, na sua fatoração como produto de


primos, todos os expoentes são pares.
(b) Se p é um número primo, mostre que não existem inteiros a e b tais que
a2 = pb2 .

12. Mostre que



(a) 2 é irracional.

(b) se p for um número primo, então p é irracional.

13. Usando o Teorema Fundamental da Aritmética, mostre que



(a) 1000 é irracional;

(b) se n não for um quadrado perfeito, então n é irracional.

14. Seja a ∈ N, com a ≥ 2. Considere a decomposição em fatores primos

a = p1r1 p2r2 · · · prnn ,

em que n ≥ 1, ri ≥ 1 para todo i = 1, . . . , n e os fatores primos pi são todos


distintos.

(a) Mostre que todos os divisores b de a são da forma

b = p1s1 p2s2 . . . psnn ,

em que 0 ≤ si ≤ ri para todo i = 1, . . . , n.


(b) Conclua que o número de divisores positivos de a (incluindo 1 e a) é dado
pelo produto
(r1 + 1)(r2 + 1) · · · (rn + 1).
(Para isso, observe que, se a = pn , com p primo, então o número de divisores
de a é n + 1, a saber: 1, p, p2 , . . . , pn )

15. (a) Demonstre que todo número natural ímpar é da forma 4k + 1 ou 4k − 1, em


que k é um inteiro positivo.
64 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

(b) Mostre que todo número da forma 4k − 1 tem pelo menos um fator primo da
mesma forma.
(c) Mostre que existem infinitos primos da forma 4n − 1.

16. Mostre que existem infinitos primos da forma 6n + 5.

17. Mostre que n | (n − 1)!, se n não for primo e n ≥ 5. Para isso, escreva n = ab
e estude separadamente os casos a 6= b e a = b. Quando a = b, mostre que
2 ≤ 2a < n.

18. Sejam a e n números naturais, com n > 1 e a ≥ 2. Mostre que, se an − 1 for um


número primo, então a = 2 e n é primo. Para isso, escreva n = pq e aplique a
igualdade

a pq − b pq = ( a p − b p )( a(q−1) p + a(q−2) p b p + · · · + b p(q−1) ).


O príncipe da matemática
Um dos maiores matemáticos de todos tempos, Carl Friedrich Gauss nasceu
em Brunswick, na atual Alemanha, em 1777. Seus talentos revelaram-se muito
cedo. Com apenas 22 anos, Gauss obteve seu título de doutorado com a primeira
demonstração conhecida do Teorema Fundamental da Álgebra, que diz que
toda equação polinomial com coeficientes reais possui pelo menos uma raiz. O
teorema já havia sido enunciado anteriormente por Albert Girard (1595-1632)
e D’Alembert (1717-1783) tentou demonstrá-lo em 1746. Gauss tinha grande
admiração pelo resultado e posteriormente deu outras duas demonstrações do
mesmo.

Gauss foi dos últimos cientistas a trabalhar em várias áreas da matemática


e da física, além da geodésia – áreas que ele via como tendo uma unidade.
Problemas aplicados muitas vezes levaram Gauss aos seus melhores resultados.
De 1807 até a sua morte em 1855, Gauss foi diretor do observatório astronômico
e professor da prestigiosa universidade de Göttingen. Como exemplo da
impressionante envergadura da obra de Gauss, podemos citar o seu trabalho
sobre movimento dos planetas, que o levou ao primeiro estudo sistemático da
convergência de séries. Foram também trabalhos de astronomia que o levaram
ao método de resolução de equações lineares conhecido até hoje como de Gauss
e aperfeiçoado por W. Jordan (1842-1899). Também o método dos mínimos
quadrados tem história semelhante.

Seu interesse pela geodésia, por outro lado, o levou a descobertas


importantes em geometria diferencial: aí ele realizou estudo pioneiro sobre a
geometria intrínseca de uma superfície, isto é, sem utilizar informações sobre o
espaço que a contém.

Ao representar os números complexos como pontos do plano, Gauss


desmistificou-os, ao possibilitar que eles fossem tratados como os outros
números, o que proporcionou um enorme progresso no estudo das funções
complexas. Mas muitos resultados profundos obtidos por Gauss só vieram a
ser conhecidos após a sua morte, quando a dimensão de sua obra foi revelada.
Dentre esses, está a descoberta das geometrias não-euclidianas e das funções
elípticas.

Uma das obras mais influentes de Gauss, no entanto, o Desquisitiones


Arithmeticae, de 1801, não teve nenhuma preocupação com as aplicações. É aí
que Gauss estuda toda a teoria de números de seus predecessores e a enriquece
de tal maneira que este pode ser considerado o primeiro texto da moderna teoria
de números. Neste livro, Gauss introduz a notação de congruências, utilizada até
hoje, e termina com a primeira demonstração da lei da reciprocidade quadrática.
Mas nem todos os resultados sobre teoria de números descobertos por
Gauss estão presentes neste livro. Um de seus passatempos era compilar uma
lista de números primos. Ele possuía um caderno onde foi listando os números
primos ao longo de toda a sua vida, chegando à casa dos 3 milhões. Hoje, com uso
de computadores, sabe-se que ele cometeu pouquíssimos erros nesta lista. Mas
nem este passatempo "ingênuo" ficou sem conseqüências: de posse deste material
experimental, Gauss conjecturou o teorema do número primo, só demonstrado
mais de um século após a sua morte.
CAPÍTULO 5

DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

5.1 M ÁXIMO D IVISOR C OMUM

Como já vimos, podemos considerar um número inteiro positivo n como um


segmento de reta de comprimento n unidades, o comprimento da unidade tendo sido
escolhido arbitrariamente e representando, portanto, o número 1.

Dados dois segmentos de reta de comprimentos a e b unidades, vimos, no Capítulo


3, que b mede a quando b for uma parte exata de a. Por exemplo:

4
4 = 2m,

em que m = 2
m m

Interessa-nos agora a seguinte questão: existe um segmento, de comprimento c


maior do que a unidade, que mede simultaneamente a e b? A ressalva de c ser maior do
que a unidade é natural, pois essa mede qualquer segmento.
Na próxima figura temos um segmento c que mede ambos os segmentos a e b:

67
68 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

a a
c
a = 3c

b b

c b = 2c
c

Usando linguagem atual, se a e b são inteiros positivos, estamos nos perguntando a


respeito da existência de um número c > 1 que divida simultaneamente a e b, ou seja,
que seja um divisor comum de a e b. Por exemplo, se a = 12 e b = 8, temos c = 4
ou c = 2. No entanto, se a = 7 e b = 5 não existe tal número c. Entretanto, sabendo
que existe pelo menos a unidade como divisor comum de a e b, afirmamos que sempre
existe o maior divisor comum (justifique!).

Vamos chamar de máximo divisor comum de dois inteiros positivos a e b ao maior


dos divisores comuns de a e b. Nos exemplos acima considerados, temos então que 4 é
o máximo divisor comum dos números 12 e 8, enquanto 1 é o máximo divisor comum
dos números 7 e 5. Generalizamos esta definição para o conjunto dos números inteiros:

Definição 5.1 Dados dois inteiros a e b, não simultaneamente nulos, dizemos que um inteiro d
é o máximo divisor comum de a e b se d satisfaz:

(i ) d | a e d | b;
(ii ) se c ∈ Z é tal que c | a e c | b, então c ≤ d.
Se d é máximo divisor comum de a e b, escrevemos d = mdc( a, b) ou simplesmente
d = ( a, b), quando não houver dúvidas quanto à notação.

(Na notação d = mdc( a, b), estamos antecipando a unicidade do máximo divisor


comum de a e b, que será garantida mais abaixo.)

No caso particular em que o máximo divisor comum é a unidade, definimos

Definição 5.2 Dizemos que dois números inteiros são primos entre si, se o máximo divisor
comum deles for igual a 1.

Observação 5.3 O leitor deve observar que, na definição de máximo divisor comum,
exigimos a e b não simultaneamente nulos porque, caso contrário, qualquer inteiro
c seria um divisor comum de a e b, o que tornaria impossível tomar o maior desses
números. ¢
5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 69

Deixaremos como exercício o seguinte resultado (veja o Exercício 1).

Proposição 5.4 Sejam a e b inteiros não simultaneamente nulos. Então:

(i ) mdc( a, b) > 0;

(ii ) se a 6= 0 e b 6= 0, então mdc( a, b) ≤ min{| a|, |b|};

(iii ) é único o mdc( a, b);

(iv) mdc( a, b) = mdc(b, a);

(v) mdc( a, b) = mdc(| a|, |b|);

(vi ) se a 6= 0, mdc( a, 0) = | a|.

Assim, já conhecemos algumas propriedades do mdc( a, b). Mas ainda permanece


sem ter sido respondida a seguinte pergunta: o máximo divisor comum de a e b sempre
existe? Para respondê-la, notamos: o conjunto de divisores positivos de a e b é não-vazio
(pois 1 divide tanto a quanto b) e limitado superiormente, em virtude da Proposição 5.4
(ii ). O Exercício 19 do Capítulo 2 garante então a existência do maior divisor positivo
de a e b.

Exemplo 5.5 Vamos calcular mdc(24, −18). Como D−18 = {±18, ±9, ±6, ±3, ±2, ±1}
e D24 = {±24, ±12, ±8, ±6, ±4, ±3, ±2, ±1} são, respectivamente, os conjuntos dos
divisores de −18 e 24, então o conjunto dos divisores comuns de 24 e −18 é:

D−18 ∩ D24 = {±6, ±4, ±3, ±2, ±1}

e portanto mdc(−18, 24) = 6. ¢

Observe que o processo utilizado no exemplo acima não é muito prático toda vez
que os números a e b forem grandes. Euclides, em seus Elementos, dá uma "receita"
de como encontrar a maior medida comum de dois segmentos, conhecida atualmente
como o "Algoritmo de Euclides", o qual passamos a descrever.

Sejam dados dois segmentos a e b. Se o menor, digamos b, é parte exata do maior,


a, então b é a maior medida comum procurada. Em linguagem moderna, se a e b são
inteiros positivos e b | a então mdc( a, b) = b.

Exemplo 5.6 Sejam a e b segmentos de 6 e 3 unidades, respectivamente. Como b mede


a, então a maior medida comum é o segmento b. ¢
70 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

No caso de b não medir a, ainda assim podemos subtrair b de a um número inteiro de


vezes, de tal modo que o segmento restante r0 possua medida menor do que b. Observe
que esse é o conteúdo do Lema da Divisão de Euclides, no caso em que a divisão não é
exata:
a = qb + r0 , com 0 < r0 < b.

Se r0 medir b, então r0 é a maior medida comum de a e b. Caso contrário, subtraímos


r0 um número inteiro de vezes de b, de modo que reste um segmento r1 de comprimento
menor do que r0 .
Se r1 medir r0 então r1 é a maior medida comum de a e b. Se não, continuamos
o processo: subtraímos r1 um número inteiro de vezes de r0 de modo que sobre um
segmento de comprimento r2 com r2 < r1 , e assim sucessivamente.

Exemplo 5.7 Sejam a e b segmentos de 15 e 4 unidades, respectivamente. Nesse caso, b


não mede a; se subtrairmos b três vezes de a, obtemos um segmento r0 de comprimento
3, que não mede b.

a r0

Se subtraímos r0 de b, obtemos um segmento r1 de comprimento 1.

b r1

r0

Como r1 mede r0 temos que a maior medida comum de a e b é a unidade. ¢

Note que, ao trocarmos a palavra segmentos por números e a palavra mede por
divide no processo descrito por Euclides, obtemos o algoritmo com o qual estamos
acostumados a calcular o máximo divisor comum de dois números. No Exemplo 5.7
temos:

15 = 3 · 4 + 3
4 = 1·3+1
3 = 3·1+0

ou, como escrevemos desde o ensino fundamental:


5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 71

3 1 3 ¾ quocientes

15 4 3 1

3 1 0 ¾ restos

Portanto mdc( a, b) = 1, que é o último resto não-nulo obtido nas divisões sucessivas.

Neste ponto, várias perguntas são pertinentes:

• Este processo sempre termina para quaisquer números a e b? Ou seja, em algum


momento, obteremos um resto nulo?

Veremos que a resposta a esta questão é afirmativa e terá sentido a seguinte pergunta:

• O último resto não-nulo será sempre mdc( a, b)?

Para respondermos a tais perguntas, utilizaremos o resultado a seguir:

Lema 5.8 Se b é não-nulo e a = qb + r, então mdc( a, b) = mdc(b, r ).

Demonstração: Seja d o máximo divisor comum de a e b.


Como r = a − qb (por hipótese) e d divide tanto a quanto b, concluímos que d | r e,
portanto, d | b e d | r.
Por outro lado, se u é um inteiro tal que u | b e u | r então u | a (pois a = qb + r).
Portanto, como d é o máximo divisor comum de a e b, concluímos que u ≤ d, ou seja, d
satisfaz a definição do máximo divisor comum de b e r, como queríamos demonstrar. 2

Reexaminemos então o algoritmo de Euclides. Sejam a e b inteiros positivos e b ≤ a.


Dividindo a por b obtemos

a = q1 b + r1 , com 0 ≤ r1 < b ≤ a

e, pelo lema, mdc( a, b) = mdc(b, r1 ). Se r1 = 0, então mdc( a, b) = mdc(b, 0) = b.

Caso contrário, podemos dividir b por r1 , obtendo

b = q2 r1 + r2 , com 0 ≤ r2 < r1 < b ≤ a

e mdc(b, r1 ) = mdc(r1 , r2 ). Se r2 = 0, então mdc( a, b) = mdc(b, r1 ) = mdc(r1 , 0) = r1 .


72 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Se r2 6= 0, e obtendo r3 6= 0, . . . , rn 6= 0, podemos escrever

a = q1 b + r1 , 0 < r1 < b
b = q2 r1 + r2 , 0 < r2 < r1
r1 = q3 r2 + r3 , 0 < r2 < r1
.. ..
. .
r n −2 = q n r n −1 + r n , 0 < r n < r n −1
r n −1 = q n +1 r n
e então, por aplicação sucessiva do lema,

mdc( a, b) = mdc(b, r1 ) = mdc(r1 , r2 ) = . . . = mdc(rn−1 , rn ) = mdc(rn , 0) = rn .

Observe que, com certeza, obteremos um resto nulo em algum momento desse
processo, já que é decrescente a seqüência

b > r1 > r2 > r3 > . . . > 0

e, entre 0 e b, só existe um número finito de números naturais.


Rigorosamente, aplicamos o Princípio da Indução para formalizar o processo
descrito acima:
Teorema 5.9 (Máximo Divisor Comum – Algoritmo de Euclides)
Sejam a e b dois números naturais não-nulos, com a ≥ b. Dividindo sucessivamente segundo
o algoritmo de Euclides, obtemos:

a = q1 b + r1 , 0 < r1 < b
b = q2 r1 + r2 , 0 < r2 < r1
r1 = q3 r2 + r3 , 0 < r3 < r2
.. ..
. .
r n −2 = q n r n −1 + r n , 0 < r n < r n −1
r n −1 = q n +1 r n .
Temos então que o máximo divisor comum de a e b é rn , o último resto não-nulo obtido nesse
algoritmo. No caso de r1 = 0, então mdc( a, b) = b.
Demonstração: Já vimos que se a = q0 b, então mdc( a, b) = b. Para provarmos o caso
geral, faremos indução sobre o número de passos do algoritmo de Euclides. Para isso,
consideremos a seguinte afirmação: se, ao aplicarmos o algoritmo de Euclides a dois
números, obtivermos o primeiro resto nulo após n + 1 passos, então mdc( a, b) é igual
ao último resto não-nulo obtido, qual seja, o resto rn obtido no passo1 n + 1.
Se n = 1 (isto é, se o primeiro resto nulo ocorre no segundo passo), o Lema 5.8
garante a veracidade da afirmação, pois

mdc( a, b) = mdc(b, r1 ) = mdc(r1 , 0) = r1 .


1 Note que o número de passos é contado pelo índice do quociente q . Assim, no algoritmo apresentado
j
no enunciado do teorema, foram necessários n + 1 passos para se encontrar o primeiro resto nulo; o resto
rn é o máximo divisor comum procurado.
5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 73

Suponhamos, agora, que a afirmação seja verdadeira toda vez que n + 1 passos forem
necessários para obter-se o primeiro resto nulo. Consideremos agora que o primeiro
resto nulo na aplicação do algoritmo de Euclides aos números a e b ocorra após n + 2
passos, isto é,
a = q1 b + r1 , 0 < r1 < b
b = q2 r1 + r2 , 0 < r2 < r1
r1 = q3 r2 + r3 , 0 < r3 < r2
.. ..
. .
r n −2 = q n r n −1 + r n , 0 < r n < r n −1
r n −1 = q n +1 r n + r n +1 , 0 < r n +1 < r n
rn = q n +2 r n +1 .
Queremos provar que mdc( a, b) = rn+1 .

Ora, vemos que o algoritmo de Euclides aplicado aos números b e r1 , produziu o


primeiro resto nulo após n + 1 passos; pela hipótese de indução, mdc(r1 , b) = rn+1 . Mas,
pelo Lema 5.8, temos que mdc( a, b) = mdc(b, r1 ), concluindo assim a demonstração. 2

Observação 5.10 Como, pela proposição 5.4, mdc( a, b) = mdc(| a|, |b|), podemos
também utilizar o algoritmo acima para calcular o máximo divisor comum de inteiros
negativos. ¢

Exemplo 5.11 Vamos calcular o mdc(726, −275). Como o mdc(726, −275) é igual ao
mdc(726, 275), podemos aplicar o algoritmo de Euclides a mdc(726, 275):

726 = 2 · 275 + 176


275 = 1 · 176 + 99
176 = 1 · 99 + 77
99 = 1 · 77 + 22
77 = 3 · 22 + 11
22 = 2 · 11,

ou seja,

2 1 1 1 3 2

726 275 176 99 77 22 11

176 99 77 22 11 0

e, portanto. mdc(726, −275) = 11. ¢


74 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Dizemos que um número c é combinação linear nos inteiros dos números a e b, se


existem inteiros x, y tais que c = xa + yb. É interessante notar, então, que o máximo
divisor comum de 726 e −275 é combinação linear desses números:

11 = 77 − 3 · 22
= 77 − 3(99 − 1 · 77) = 4 · 77 − 3 · 99
= 4(176 − 1 · 99) − 3 · 99 = 4 · 176 − 7 · 99
= 4 · 176 − 7(275 − 1 · 176) = 11 · 176 − 7 · 275
= 11(726 − 2 · 275) − 7 · 275 = 11 · 726 + 29(−275).

A próxima proposição mostra que o que foi feito com 726 e −275 pode ser feito com
quaisquer inteiros a e b; para isto basta percorrer o algoritmo de Euclides no sentido
contrário.

Proposição 5.12 Sejam a e b inteiros não simultaneamente nulos. Então existem inteiros x e y
tais que mdc( a, b) = xa + yb.

Demonstração: No caso de um deles ser nulo, por exemplo b, temos que

mdc( a, b) = mdc( a, 0) = | a| = (±1) a + 0y

para qualquer inteiro y e x = ±1, dependendo de a ser positivo ou negativo.

Se ambos são não-nulos, basta provar o resultado para inteiros positivos. De fato, se
mdc(| a|, |b|) = x | a| + y|b| para certos números x e y, então mdc( a, b) = mdc(| a|, |b|) =
(±) ax + (±)by.

Sejam, então, a e b dois números inteiros positivos. Se b | a, então mdc( a, b) = b =


a.0 + b.1. Se b - a, então mdc( a, b) pode ser calculado pelo algoritmo de Euclides e
a demonstração será feita por indução no número de passos do algoritmo. Para isso,
suponhamos que, ao aplicarmos o algoritmo de Euclides ao números inteiros positivos
a e b, obtemos o primeiro resto nulo após (n + 1) passos e que, nessa situação, existem
inteiros x e y tais que rn = xa + yb (lembre-se que rn = mdc( a, b))

A afirmação é verdadeira se dois passos são necessários2 , pois se r2 = 0, então

a = q1 b + r1 , 0 < r1 < b
b = q2 r1 ,

ou seja,
r1 = a − q1 b = 1a + (−q1 )b.
2 Note que o caso em que apenas um passo é necessário já foi considerado.
5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 75

Suponhamos que a afirmativa seja verdadeira toda vez que n + 1 passos forem
necessários para se obter o primeiro resto nulo. Consideremos inteiros a e b inteiros
tais que, aplicando-se o algoritmo de Euclides a eles, obtemos o primeiro resto nulo
após n + 2 passos:
a = q1 b + r1 , 0 < r1 < b
b = q2 r1 + r2 , 0 < r2 < r1
r1 = q3 r2 + r3 , 0 < r3 < r2
.. ..
. .
r n −2 = q n r n −1 + r n , 0 < r n < r n −1
r n −1 = q n +1 r n + r n +1 , 0 < r n +1 < r n
rn = q n +2 r n +1 .
Logo, aplicando-se o algoritmo de Euclides a b e r1 , obtemos o primeiro resto nulo
após n + 1 passos. Portanto, pela hipótese de indução, existem inteiros w e x tais que

rn+1 = mdc(b, r1 ) = wb + xr1 .

Mas, como a = q1 b + r1 , temos que r1 = a − q1 b; portanto,

rn+1 = wb + x ( a − q1 b) x = xa + (w − q1 x )b,

que é o resultado desejado com y = w − q1 x. 2

Observação 5.13 Notamos inicialmente que os inteiros x e y dados pela Proposição 5.12
não são únicos. De fato, claramente vale 2 = mdc(6, 4). Mas

1 · 6 + (−1)4 = 2 e 3 · 6 + (−4)4 = 2.

Em geral, também não vale a recíproca da Proposição 5.12, pois

2 · 4 + (−2)4 = 4 e mdc(6, 4) 6= 4.

Entretanto, se existirem inteiros x e y tais que xa + yb = 1, então mdc( a, b) = 1 (veja


o Exercício 8). Esse é o único caso em que a recíproca da Proposição 5.12 é verdadeira
(veja o Exercício 9). ¢

Observe que, se p for um inteiro primo que não divide o número inteiro a, então
mdc( a, p) = 1 (veja o Exercício 2). Esse fato e a proposição acima nos permitem dar
uma demonstração mais elegante do Corolário 4.16, visto no capítulo anterior:

Corolário 5.14 Seja p um número primo. Se p | ab e p - a, então p | b.

Demonstração: Como mdc( a, p) = 1, existem inteiros x e y tais que xa + yp = 1.


Multiplicando-se essa igualdade por b obtemos:

xab + ypb = b.
76 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Como p | ab e p | ypb, concluímos que p | b. 2

Apresentamos, a seguir, uma outra caracterização do máximo divisor comum,


muitas vezes utilizada em outros textos como sua definição.

Proposição 5.15 Sejam a e b inteiros não simultaneamente nulos. O inteiro d é o máximo


divisor comum de a e b se, e somente se, d satisfizer as seguintes propriedades:

(i ) d > 0;

(ii ) d | a e d | b;

(iii ) se c ∈ Z é tal que c | a e c | b, então c | d.

Demonstração: Se d = mdc( a, b), então é claro que d satisfaz as propriedades (i ) e (ii ).


Para mostrar (iii ), considere um inteiro c tal que c | a e c | b. Logo, existem inteiros a1
e b1 tais que a = a1 c e b = b1 c. De acordo com a Proposição 5.12, existem inteiros x e y
tais que
d = xa + yb.

Então,
d = xa1 c + yb1 c = c( xa1 + yb1 ),
ou seja, c | d. Isso mostra que mdc( a, b) satisfaz as propriedades (i ) − (iii ).

Devemos agora provar que, se d é um inteiro satisfazendo (i ) − (iii ), então d satisfaz


a Definição 5.1, isto é, é o máximo divisor comum de a e b. Para isto, falta apenas mostrar
que, se c é um inteiro tal que c | a e c | b, então c ≤ d. Mas, uma vez que (iii ) se verifica,
existe um inteiro c1 tal que
d = cc1 = |c||c1 |
(pois d > 0), ou seja,
c ≤ |c| ≤ d,
como queríamos provar. 2

Esta definição equivalente será seguidamente utilizada para a demonstração de


propriedades do máximo divisor comum de dois números inteiros.

Proposição 5.16 Sejam a, b e c inteiros não-nulos. Então vale:

(i ) se c | ab e mdc(b, c) = 1, então c | a;

(ii ) se mdc( a, c) = mdc(b, c) = 1, então mdc( ab, c) = 1;


5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 77
µ ¶
a b
(iii ) se mdc( a, b) = d, então mdc , = 1;
d d
¯
ab ¯
(iv) se a | c e b | c, então ¯ c;
mdc( a, b) ¯
(v) se a | c, b | c e mdc( a, b) = 1, então ab | c.

Demonstração: (i ) Pode ser feita utilizando a demonstração do corolário da proposição


5.12 e ficará como exercício.

Consideremos a afirmativa (ii ). Seja d = mdc( ab, c). Como mdc( a, c) = 1, existem
inteiros x e y tais que
xa + yc = 1
e, portanto,
xab + ycb = b.

Como d | ab e d | c, temos que d | b; portanto, d | b e d | c, o que implica que


d | mdc(b, c) = 1. Como d > 0, concluímos que d = 1.

Para mostrarmos (iii ), seja d = mdc( a, b). Logo, existem inteiros a1 e b1 tais que
a = a1 d e b = b1 d. Por outro lado, também existem inteiros x e y tais que

d = xa + yb.

Assim,
d = xa1 d + yb1 d.
Dividindo essa igualdade por d, obtemos

a b
1 = xa1 + yb1 , ou seja 1 = x +y .
d d
De acordo com a Observação 5.13, podemos concluir que
µ ¶
a b
1 = mdc , ,
d d

verificando a propriedade (iii ).

Seja d = mdc( a, b). Então existem inteiros x e y tais que

xa + yb = d.

Multiplicando por c,
xac + ybc = dc.
78 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

A hipótese de (iv) garante que existem inteiros a1 e b1 tais que

c = aa1 e c = bb1 .

Portanto,
xa(bb1 ) + yb( aa1 ) = dc,
ou seja,
ab( xb1 + ya1 ) = dc.
Uma vez que ab
d | c se, e somente se, existe m ∈ Z tal que dc = mab, completamos a
demonstração de (iv). (Note que ab
d ∈ Z)

As propriedades (i ) e (v) ficarão a cargo do leitor. (Veja o exercício 10.) 2

No ensino básico, aprendemos que o máximo divisor comum de dois inteiros


positivos a e b é o número obtido ao se tomar o produto de todos os fatores primos
comuns de a e b, cada um desses fatores sendo escolhido com o menor dos expoentes
que aparece nas fatorações de a e b. Finalizaremos esta seção demonstrando esse fato.

Proposição 5.17 Sejam a e b inteiros positivos não simultaneamente nulos, com decomposições
em fatores primos dadas por

a = p1m1 · · · pm s k1 kt
s q1 · · · q t ,

b = p1n1 · · · pns s r1`1 · · · ru`u ,

em que os primos pi , q j , rk são todos distintos (i ∈ {1, . . . , s}, j ∈ {1, . . . , t} e k ∈ {1, . . . , u})
e todos os expoentes são positivos. Então,

mdc( a, b) = p1x1 · · · psxs ,

em que xi = min{mi , ni }, para i = 1, . . . , s.


Demonstração: Seja
d = p1x1 · · · psxs .
Vamos mostrar que d satisfaz as condições da Proposição 5.15. Claramente d > 0.
Como xi ≤ mi e xi ≤ ni (para i = 1, . . . , s), temos que

a = a1 d, em que a1 = p1m1 − x1 · · · pm
s
s − xs k1
q1 · · · qut t
e
b = b1 d, em que b1 = p1n1 − x1 · · · pns s − xs r1`1 · · · ru`u ,
mostrando que d | a e d | b.
5.2. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM 79

Se c | a e c | b temos, pelo Teorema Fundamental da Aritmética, que c pode ser


escrito como

c = p1e1 · · · pess
em que 0 ≤ ei ≤ min{mi , ni }, para i = 1, . . . , s.

Como ei ≤ xi (para i = 1, . . . , s), temos que

d = p1x1 · · · psxs = ( p1e1 · · · pess )( p1x1 −e1 · · · psxs −es = cp1x1 −e1 · · · psxs −es ),

ou seja, c | d. Isso conclui a demonstração. 2

5.2 M ÍNIMO M ÚLTIPLO C OMUM


Vimos, no parágrafo anterior, que se a e b são inteiros não simultaneamente nulos,
então existe o maior divisor comum de a e b e que é possível calculá-lo através do
algoritmo de Euclides. Analogamente, se a e b são não-nulos, podemos considerar os
múltiplos comuns deles, por exemplo: ± ab, ±2ab, ±3ab, . . . O menor inteiro positivo
que seja múltiplo tanto de a quanto de b (o qual existe, pelo Princípio da Boa Ordenação)
é chamado mínimo múltiplo comum de a e b:

Definição 5.18 Sejam a e b inteiros não-nulos. Um inteiro m é mínimo múltiplo comum de


a e b, se m satisfaz as seguintes propriedades:
(i ) m > 0;
(ii ) a | m e b | m;
(iii ) se c ∈ Z é tal que a | c, b | c e c > 0, então m ≤ c.
Se m é mínimo múltiplo comum de a e b, escrevemos m = mmc( a, b) ou simplesmente
m = [ a, b], quando não houver dúvidas quanto à notação.

(Novamente estamos antecipando a unicidade do mínimo múltiplo comum de a e b com


a notação m = mmc( a, b).)

Exemplo 5.19 Se a = −6 e b = 15, então mmc(−6, 15) = 30. Com efeito, o conjunto
dos múltiplos de −6 é M−6 = {0, ±6, ±12, ±18, ±24, ±30, . . .}, e o dos múltiplos de 15
é M15 = {0, ±15, ±30, ±45, ±60, . . .}. Portanto,

M−6 ∩ M15 = {0, ±30, ±60, . . .},

donde mmc(−6, 15) = 30. ¢

A demonstração da próxima proposição ficará a cargo do leitor (veja o Exercício 4).


80 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Proposição 5.20 Sejam a e b são inteiros não-nulos. Então:


(i ) mmc( a, b) ≥ max{| a|, |b|};
(ii ) é único o mmc( a, b);
(iii ) mmc( a, b) = mmc(b, a);
(iv) mmc( a, b) = mmc(| a|, |b|).

É possível dar uma definição equivalente de mínimo múltiplo comum (do mesmo
modo que foi feito para o máximo divisor comum) substituindo a terceira propriedade
de sua definição por outra, que envolva apenas divisibilidade:

Proposição 5.21 Sejam a e b inteiros não nulos. Um inteiro m é o mínimo múltiplo comum de
a e b se, e somente se, satisfaz:
(i ) m > 0;
(ii ) a | m e b | m;
(iii ) se c ∈ Z é tal que a | c e b | c, então m | c.
Demonstração: Se m = mmc( a, b), basta provar que m satisfaz a condição (iii ) do
enunciado deste resultado. Seja c um inteiro tal que a | c e b | c. Temos, pelo Lema
da Divisão de Euclides, que
c = qm + r, com 0 ≤ r < m.

Logo, r = c − qm. Como c e m são múltiplos de a e b, temos que r é múltiplo tanto de


a quanto de b. Pela definição de mínimo múltiplo comum temos, se r > 0, que m ≤ r, o
que é absurdo. Portanto, concluímos que r = 0, ou seja, m | c.

Reciprocamente, se m é um inteiro satisfazendo as condições (i ) − (iii ) acima, para


mostrarmos que m = mmc( a, b), basta verificarmos que, se c é um inteiro tal que c > 0,
a | c e b | c, então m ≤ c. Com efeito, pela condição (iii ) acima, temos que m | c, ou
seja, c = qm para algum q ∈ Z. Como m > 0 e c > 0, então q > 0, isto é, q ≥ 1. Logo
c = qm ≥ m, como queríamos demonstrar. 2

No ensino básico, aprendemos que o mínimo múltiplo comum de dois inteiros


positivos a e b é o número obtido ao se tomar o produto de todos os fatores primos
comuns de a e b, cada um desses fatores sendo tomado com o maior dos expoentes
que aparece nas decomposições de a e b. Para simplificarmos a notação utilizada na
demonstração desse resultado, escreveremos as decomposições de a e b com exatamente
os mesmos fatores primos, permitindo assim a existência de expoentes nulos. Por
exemplo, 20 = 22 · 30 · 5 e 15 = 20 · 3 · 5.
5.2. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM 81

Proposição 5.22 Sejam a e b inteiros positivos, com decomposições em fatores primos como
descritas acima:
r
a = p1r1 p2r2 · · · pkk

s
b = p1s1 p2s2 · · · pkk ,

em que cada fator pi é um número primo distinto, ri ≥ 0 e si ≥ 0 (para i = 1, . . . , k). Então

t
mmc( a, b) = p1t1 · · · pkk ,

em que ti = max{ri , si }.

Demonstração: Seja m = mmc( a, b). Como m é múltiplo de a, todos os fatores primos


p1 , . . . , pk aparecem na fatoração de m, com expoentes maiores ou iguais a r1 , . . . , rk ,
respectivamente. Analogamente, como m também é múltiplo de b, os expoentes de
p1 , . . . , pk na fatoração de m são maiores ou iguais a si , . . . , sk , respectivamente. Mais
t
geralmente, qualquer múltiplo comum c de a e b é da forma c = q( p1t1 · · · pkk ), em que q
é um inteiro e ti ≥ max{ri , si }.)

Além disso, todo inteiro dessa forma é múltiplo comum de a e b, pois podemos
escrevê-lo como

t −r k
c = aq( p1t1 −r1 · · · pkk ) e c = bq( p1t1 −s1 · · · ptkk −sk ),
em que os expoentes ti − ri e ti − si ≥ 0 são não-negativos, para todo i = 1, . . . , k.
Portanto, o menor múltiplo comum positivo de a e b é obtido quando temos q = 1 e
ti = max{ri , si } para i = 1, . . . , k. 2

Observação 5.23 Para calcularmos o mínimo múltiplo comum de 15 e 20, no ensino


básico, utilizávamos o algoritmo

20 , 15 2
10 , 15 2
5 , 15 3
5 , 5 5¡
¡
1 , 1 60

que é uma conseqüência imediata da proposição anterior. ¢


82 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Existe uma estreita relação entre o máximo divisor comum e o mínimo múltiplo
comum de dois inteiros não-nulos. Essa relação possibilita estabelecer propriedades de
um deles a partir das propriedades do outro.

Proposição 5.24 Se a e b são inteiros não-nulos, então


| ab|
mmc( a, b) = .
mdc( a, b)
| ab|
Demonstração: Se d = mdc( a, b), certamente d é um inteiro; como a 6= 0, b 6= 0 e
| ab|
d > 0, temos que > 0. Além disso, como d é divisor de a e b, existem inteiros a1 e b1
d
tais que a = a1 d e b = b1 d. Logo

| ab|
= | a1 ||b1 |d = ± a|b1 | = ±| a1 |b,
d
| ab|
mostrando que é múltiplo
d ¯ de a e b. ¯ Mas, se c é um múltiplo de a e b, a Proposição
¯ | ab| ¯
5.16 (iv) garante que ab
d ¯ c, donde d ¯ c. Portanto, pela Proposição 5.22, temos que
| ab|
d = mmc( a, b). 2

5.3 E XERCÍCIOS
1. Demonstre a Proposição 5.4.

2. Mostre que, se p é primo e p - a, então mdc( a, p) = 1.

3. O que acontece com a afirmação da Proposição 5.17, se não existirem fatores


primos em comum na decomposição de a e b?

4. Verifique as propriedades de mínimo múltiplo comum dadas pela Proposição


5.20.

5. Utilize o algoritmo de Euclides para calcular d = mdc( a, b) e escrever d = ax + by,


sendo:

(a) a = 232 e b = 136;


(b) a = 187 e b = 221;
(c) a = −25 e b = 5;
(d) a = −39 e b = 17.

Aplicando a Proposição 5.24, calcule então o mínimo múltiplo comum dos pares
a e b dados acima.

6. (a) Calcule mdc(1865, 1861) sem fazer contas.


5.3. EXERCÍCIOS 83

(b) Mostre que o mdc( a, b) divide a − b.


(c) Mostre que mdc( a, b) = mdc( a − b, b).

7. Mostre que dois inteiros consecutivos são sempre primos entre si.

8. Mostre que, se existem inteiros x e y tais que ax + by = 1, então mdc( a, b) = 1.

9. Se d = ax + by, é verdade que d = mdc( a, b)? Para que valores de d isso é verdade?
Justifique.

10. Mostre os ítens (i ) e (v) da Proposição 5.16.

11. Se d = mdc( a, b) e x e y são tais que d = ax + by, mostre que mdc( x, y) = 1.

12. Mostre que ( a, b) = ( a, b + ax ) para todo x ∈ Z.

13. Mostre que, para todo k ∈ Z, tem-se mdc(4k + 3, 5k + 4) = 1.

14. Se mdc(n, 6) = 1, mostre que 12 | (n2 − 1).

15. Sejam a e b inteiros não nulos e m > 0 um natural. Mostre que:

(a) mdc(ma, mb) = m mdc( a, b);


(b) mmc(ma, mb) = m mmc( a, b).

16. Sejam a e b inteiros não nulos tais que mdc( a, b) = 1. Então, para todo inteiro
m > 0, mdc( am , bm ) = 1.

17. Sejam a e b inteiros não nulos. Mostre que mdc( a + b, a − b) ≥ mdc( a, b).

18. (a) Mostre que, se a e b são inteiros não simultaneamente nulos, então o mdc( a, b)
é o menor elemento de

S = { ax + by : x, y ∈ Z, ax + by > 0}.

(b) Mostre que mdc( a, b) é o único divisor comum de a e b que se escreve como
combinação linear desses números.

Podemos estender a definição de máximo divisor comum de dois números inteiros para
o caso de vários números inteiros:

Definição 5.25 Sejam a1 , . . . , an ∈ Z não todos nulos. Dizemos que d ∈ Z é um máximo


divisor comum de a1 , . . . , an se:

(i ) d > 0;
(ii ) d | ai para todo i = 1, . . . , n;
(iii ) se c ∈ Z é tal que c | ai (i = 1, . . . , n), então c | d.
84 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

19. (a) Para n ≥ 3, usando indução mostre que

mdc( a1 , . . . , an ) = mdc( a1 , mdc( a2 , . . . , an )).

(b) Se d = mdc( a1 , . . . , an ), mostre que existem inteiros α1 , . . . , αn ∈ Z tais que

d = α1 a1 + . . . + α n a n .
Bait al-Hikmá
No século VII D.C. uma nova civilização surgiu no oriente. Menos de
um século após a conquista de Meca pelo profeta Maomé, em 630, os árabes
haviam conquistado todo o Oriente Médio e se expandido, em direção ao leste,
até a Índia e a Ásia central, e para o oeste, avançado rapidamente pelo norte
da África, atravessado o estreito de Gibraltar, e dominado Portugal e Espanha,
aonde chegaram em 711, só tendo sido detidos na França, em 732.
Em 766, o califa Al-Mansur fundou a cidade de Bagdá, destinada a ser a
nova capital do seu califado. Terminadas as guerras de conquista, ali floresceu
um exuberante centro comercial e intelectual. Um dos seus sucessores, o Califa
Al-Mamun (813-833) fundou a Bait al-Hikmá (casa da sabedoria) que foi, por
mais de duzentos anos, um centro de pesquisa e de reprodução do conhecimento
no mundo antigo, cuja importância não pode ser superestimada.
Enquanto a Europa, sob o domínio da igreja, vivia a Idade Média, época de
ignorância e obscurantismo, os árabes cultuaram a civilização grega, traduzindo
para o árabe todas as grandes obras produzidas pelos gregos. Para ficar apenas
na matemática e na física, Os Elementos, de Euclides, e as obras de Arquimedes e
Apolônio chegaram até nós graças a estas traduções.
Mas esta civilização não se limitou a preservar o conhecimento grego.
Surgiram aí importantes matemáticos, que deram uma contribuição notável à
matemática da época. O maior deles foi Muhammad ibn Musa Al-Kwarizmi
(∼ 780-850). Al-Kwarismi escreveu dois livros que tiveram grande importância
para a história da matemática. O primeiro, traduzido para o latim com o título
Algorithmi de numero indorum, explicava o sistema indiano de numeração, com o
uso do zero, e descrevia vários algoritmos aritméticos. O segundo, Hisab al-jabr
wal-muqabala (a ciência da redução e da comparação) faz um estudo da equação
de segundo grau, tratando geometricamente os vários casos possíveis, já que os
números negativos não eram conhecidos.
Quando a Europa começa a despertar das trevas da Idade Média, as
traduções árabes e as contribuições inovadoras de Al-Kwarismi e outros vão
desempenhar papel fundamental no novo período que se seguirá, penetrando
na Europa de então através da Espanha, que vivia um período de grande
prosperidade, aonde se dava a convivência pacífica entre cristãos, muçulmanos
e judeus. É aí que é feita boa parte da tradução das obras do árabe para o latim,
que assim ganha toda a Europa, contribuindo para o início de um novo período:
a Renascença.
Ainda hoje persistem sinais desta influência e desta história na cultura
ocidental: Al-Kwarismi, traduzido para o latim como algorithmi, deu origem
à palavra algoritmo e seu livro Al-jabr à palavra álgebra, ambas presentes em
todas as línguas modernas.
CAPÍTULO 6

EQUAÇÕES DIOFANTINAS
LINEARES

6.1 I NTRODUÇÃO
Em quase todas as partes do mundo encontramos quebra-cabeças e adivinhações
que possuem um conteúdo matemático. Existe um tipo de problema que aparece
frequentemente nesses quebra-cabeças, cuja estudo constitui parte da teoria dos
números. Esses problemas são denominados problemas lineares indeterminados, por
razões que ficarão claras a seguir.

Um dos textos mais antigos contendo esse tipo de problemas foi encontrado na
Europa e chegou até nossos dias: é um manuscrito provavelmente do século X.
Acredita-se que ele seja uma cópia de uma coleção de quebra-cabeças preparada por
Alcuin de York (735-804) para o rei Carlos Magno (742-814). O problema que nos
interessa é o seguinte:

Quando 100 alqueires (medida antiga para cereais) de grãos são distribuídos entre 100
pessoas, de modo que cada homem receba 3 alqueires, cada mulher 2 alqueires e cada criança
1
2 alqueire, qual é o número de homens, mulheres e crianças que participou da distribuição?

Para formular matematicamente esse problema, sejam x, y e z, respectivamente,


o número de homens, mulheres e crianças participantes da distribuição. Então as
condições dadas podem ser escritas como

x + y + z = 100,
(6.1)
3x + 2y + 12 z = 100.

Como veremos adiante, existem várias soluções para esse problema; entretanto,
Alcuin apresenta somente a solução

x = 11, y = 15 e z = 74.

86
6.2. RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 87

O sistema (6.1) é claramente equivalente1 ao sistema

x + y + z = 100,
5x + 3y = 100

de onde concluímos que


z = 100 − ( x + y)
100 − 3y (6.2)
x = .
5

Vemos, portanto, que qualquer escolha de y nos fornece um valor correspondente


para x e que esses dois valores determinam um valor para z.

Entretanto, pelas condições descritas no problema, a escolha das soluções está


naturalmente restrita aos inteiros positivos. Equações desse tipo, ou seja, equações
cujas soluções estão restritas a algum conjunto particular de números, como os números
inteiros, inteiros positivos ou inteiros negativos, racionais, etc., são chamadas equações
diofantinas. Esse nome é devido ao matemático grego Diofanto (cerca de 200-284),
que se interessou em resolver problemas cujas soluções fossem números inteiros ou
racionais. Determinado que as soluções buscadas são, por exemplo, inteiras, outros
tipos de equações diofantinas são: x2 + y2 = z2 , x2 + 2y2 = 1, x4 − y4 = z4 .

Trabalharemos aqui com a mais simples das equações diofantinas: procuramos


soluções inteiras de uma equação linear em duas variáveis com coeficientes inteiros.
Mais precisamente, estudaremos equações da forma ax + by = c, com a, b, c ∈ Z, a e b
não sendo simultaneamente nulos.

É bom observar que, apesar das equações serem chamadas diofantinas, não foi
Diofanto quem primeiro se preocupou em encontrar todas as soluções de uma tal
equação. Aparentemente, o primeiro a dar uma solução geral da equação diofantina
linear foi o hindu Bramagupta (cerca de 598-670), que a resolveu baseando-se no
algoritmo de Euclides, um método praticamente equivalente ao que utilizamos hoje
em dia.

6.2 R ESOLUÇÃO DE E QUAÇÕES D IOFANTINAS L INEARES


Uma equação diofantina linear em duas variáveis é uma expressão da forma

ax + by = c,

na qual a, b, c são inteiros, com a e b não simultaneamente nulos e cujas soluções estão
restritas ao conjunto dos números inteiros. Uma solução dessa equação é então um par
de inteiros ( x0 , y0 ) tal que ax0 + by0 = c.
1 Some duas vezes a primeira à segunda equação!
88 CAPÍTULO 6. EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Conforme veremos a seguir, mesmo impondo restrições às soluções, essas podem ser
indeterminadas, no sentido de serem várias ou mesmo infinitas. Por outro lado, pode
até acontecer de não existirem soluções.

Certamente muitas equações diofantinas podem ser resolvidas por tentativa. Era
essa, provavelmente, a maneira mais utilizada na Idade Média. Em muitos problemas
as possibilidades são limitadas, de modo que não são necessárias muitas tentativas.

Exemplo 6.1 Vamos encontrar todas as soluções inteiras positivas da equação 15x +
12y = 96.

Ora, essa equação é equivalente a

5x + 4y = 32,

ou seja,
32 − 4y
x= .
5
32−4y
Como estamos restritos aos inteiros positivos, devemos ter y > 0 e x = 5 > 0;
assim, devemos ter y > 0 e 32 − 4y > 0 e, portanto, 0 < y < 8. Tomando sucessivamente
y ∈ {1, 2, . . . , 7}, calculamos o valor correspondente de x:

28 12
y=1 ⇒ x= , y=5 ⇒ x= ,
5 5
24 8
y=2 ⇒ x= , y=6 ⇒ x= ,
5 5
4
y=3 ⇒ x = 4, y=7 ⇒ x= ,
5
16
y=4 ⇒ x=.
5
Vemos, então, que existe uma única solução: x = 4 e y = 3. ¢

Exemplo 6.2 A equação diofantina 2x − 4y = 5 não possui solução.

Com efeito, suponhamos, por absurdo, que ( x0 , y0 ) seja uma solução dessa equação,
isto é:
2x0 − 4y0 = 5,
ou ainda,
5 + 4y0
x0 = .
2
Como o numerador dessa fração é um número ímpar para qualquer inteiro, o
numerador não é divisível por 2; ou seja, x0 não é inteiro. Portanto, a equação dada
não possui soluções inteiras. ¢
6.2. RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 89

Vimos, no exemplo acima, que uma equação diofantina linear pode não possuir
soluções. A seguir mostraremos que, se ela possui uma solução, então ela possui
infinitas:

Proposição 6.3 Se ( x0 , y0 ) é uma solução da equação diofantina linear ax + by = c, então o


par ( x0 + bt, y0 − at) também é solução dessa equação, para qualquer inteiro t.

Demonstração: Como ( x0 , y0 ) é solução da equação

ax + by = c,
temos que ax0 + by0 = c. Assim, para qualquer inteiro t, vale:

a( x0 + bt) + b(y0 − at) = ax0 + abt + by0 − abt = ax0 + by0 = c,


ou seja, ( x0 + bt, y0 − at) também é solução da equação. 2

Exemplo 6.4 Como vimos no Exemplo 6.1, o par (4, 3) é solução da equação 15x + 12y =
96. Logo, pela Proposição 6.3, para qualquer inteiro t,

x = 4 + 12t
y = 3 − 15t

também é solução. Observe que, no Exemplo 6.1, mostramos que o único valor de t para
o qual x e y são ambos positivos é t = 0. ¢

Usamos o método de tentativa para encontrar uma solução particular da equação


dada no Exemplo 6.1. Esse é, muitas vezes, o melhor caminho a seguir e então,
pela proposição 6.3, obtemos infinitas soluções. Mas, antes de procurar uma solução
particular, é conveniente saber se essa existe. O resultado a seguir dá a condição
necessária e suficiente para a existência de soluções de uma dada equação diofantina
linear.

Proposição 6.5 A equação diofantina linear ax + by = c possui solução se, e somente se, o
máximo divisor comum de a e b divide c.

Demonstração: Seja d = mdc( a, b). Se d | c, então c = dm para algum inteiro m; além


disso, existem inteiros x0 e y0 tais que ax0 + by0 = d. Logo,

ax0 m + by0 m = dm = c
e, portanto, (mx0 , my0 ) é uma solução da equação.

Reciprocamente, suponhamos que ( x0 , y0 ) seja uma solução da equação, isto é:

ax0 + by0 = c.
90 CAPÍTULO 6. EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Como d | a e d | b, então d | ( ax0 + by0 ) = c. 2

Em vista desse resultado, verifica-se facilmente que a equação diofantina dada no


exemplo 6.2 não possui solução.

Observação 6.6 Já vimos que o algoritmo de Euclides para o cálculo do máximo divisor
comum de a e b é também um algoritmo para o cálculo dos inteiros x0 e y0 tais que
ax0 + by0 = mdc( a, b). Portanto, a demonstração da proposição anterior fornece um
método para a obtenção de uma solução particular de uma dada equação. ¢

Exemplo 6.7 Vamos encontrar uma solução particular da equação 5x + 3y = 100.

Como mdc(5, 3) = 1, essa equação possui solução; nosso primeiro passo é encontrar
inteiros x0 e y0 tais que 5x0 + 3y0 = 1. Pelo algoritmo de Euclides

5 = 1 · 3 + 2,
3 = 1 · 2 + 1,
2 = 1 · 2,

ou seja,
1 = 3 − 1 · 2 = 3 − 1(5 − 1 · 3) = 5(−1) + 3 · 2.
Logo,
5(−100) + 3(200) = 100
e então (−100, 200) é uma solução da equação. ¢

Resolver uma equação diofantina significa encontrar todos os pares de inteiros que a
satisfazem. Lembremos que, caso exista a solução, a Proposição 6.3 nos dá uma maneira
de obtermos infinitas soluções; mas ela não garante que aquelas sejam todas. O próximo
resultado nos dá a solução geral de uma dada equação.

Proposição 6.8 Seja ( x0 , y0 ) uma solução particular da equação diofantina linear ax + by = c,


em que ab 6= 0. Então qualquer solução inteira dessa equação é dada por

x = x0 + kb1
y = y0 − ka1 ,

em que a1 = da , b1 = db , d = mdc( a, b) e k é um inteiro qualquer.

Demonstração: Consideremos a equação diofantina

ax + by = c, com ab 6= 0. (6.3)
6.2. RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 91

Em primeiro lugar mostraremos que, se ( x0 , y0 ) é solução dessa equação, então o


par ( x0 + kb1 , y0 − ka1 ) também é solução, para qualquer inteiro k. Com efeito, como
a = a1 d e b = b1 d temos

a( x0 + kb1 ) + b(y0 − ka1 ) = ax0 + akb1 + by0 − kba1


= ax0 + by0 + ( a1 d)kb1 − k(b1 d) a1
= ax0 + by0 = c.

Vamos agora mostrar que, se ( X, Y ) é solução da equação (6.3), então existe um


inteiro k tal que

X = x0 + kb1
Y = y0 − ka1 .

De fato, se ( x0 , y0 ) e ( X, Y ) são soluções de (6.3), então

ax0 + by0 = aX + bY ⇒ a ( x 0 − X ) = b (Y − y 0 ) ⇒ a1 d( x0 − X ) = b1 d(Y − y0 ),

isto é,

a1 ( x0 − X ) = b1 (Y − y0 ). (6.4)

Como b1 divide o lado direito de (6.4), b1 também divide o lado esquerdo dessa
igualdade. Mas a1 e b1 são primos entre si, donde b1 | ( x0 − X ). Logo, existe um inteiro
k tal que

x0 − X = kb1 ,

ou seja,

X = x0 − kb1 .

Substituindo em (6.4), obtemos

a1 (kb1 ) = b1 (Y − y0 ),

isto é,

a1 kb1 = b1 (Y − y0 ).

Como b1 6= 0, então a1 k = Y − y0 e, portanto,

Y = y0 + ka1 . 2

Observação 6.9 Na proposição acima supusemos ab 6= 0. Entretanto, se a ou b é nulo,


o problema é trivial. Por exemplo, se a = 0, a equação se reduz a by = c, cuja solução
geral é dada por x qualquer e y = bc , se b | c. ¢
92 CAPÍTULO 6. EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Exemplo 6.10 Vamos agora resolver o problema proposto por Alcuin de York,
apresentado na Seção 6.1.

O problema é encontrar todas as soluções inteiras e positivas do sistema de equações


lineares

x + y + z = 100
1
3x + 2y + z = 100
2

ou, equivalentemente,

x + y + z = 100
5x + 3y = 100.

No Exemplo 6.7 obtivemos a solução particular (−100, 200) da equação diofantina

5x + 3y = 100.

Portanto, pela Proposição 6.8, a solução geral dessa equação é

x = −100 + 3k
y = 200 − 5k,

já que d = mdc(5, 3) = 1.

Logo, exigir que x > 0 e y > 0 é o mesmo que resolver o par de desigualdades

−100 + 3k > 0 e 200 − 5k > 0,

cuja solução é
k > 33 e k < 40.

Por outro lado,


z = 100 − ( x + y) = 2k

e então temos as seguintes possibilidades:

k = 34 ⇒ x = 2, y = 30 e z = 68
k = 35 ⇒ x = 5, y = 25 e z = 70
k = 36 ⇒ x = 8, y = 20 e z = 72
.
k = 37 ⇒ x = 11, y = 15 e z = 74
k = 38 ⇒ x = 14, y = 10 e z = 76
k = 39 ⇒ x = 17, y =5 e z = 78.
¢
6.3. EXERCÍCIOS 93

6.3 E XERCÍCIOS
1. Determine o menor inteiro positivo que deixa restos 16 e 27 quando dividido por
39 e 56, respectivamente.
2. Determine duas frações positivas que tenham 13 e 17 para denominadores e cuja
305
soma seja igual a 221
3. Ache a solução geral e uma solução positiva da equação 12740x + 7260y = 60.
4. (a) Ache a solução geral de 69x + 111y = 9000.
(b) Encontre todas as soluções positivas dessa equação.
5. Encontre a solução geral, caso exista, das seguintes equações diofantinas lineares:
(a) 15x + 27y = 1;
(b) 5x − 6y = −1;
(c) 15x − 51y = 41;
(d) 5x + 6y = 1;
(e) 2x + 3y = 4.
6. Encontre as soluções inteiras de:
(a) x + y = 2;
(b) 15x + 16y = 17;
7. Encontre as soluções inteiras positivas de:
(a) 2x + y = 2;
(b) 6x + 15y = 51.
8. Encontre as soluções inteiras negativas de:
(a) 6x − 15y = 51;
(b) 6x + 15y = 51.
9. Encontre todas as soluções positivas de:
½
x + y + z = 31
x + 2y + 3z = 41

10. Uma caixa contém besouros e aranhas. Existem 46 patas na caixa; quantas são dos
besouros?
11. Divida 100 em 2 parcelas positivas, de modo que uma seja divisível por 7 e a outra
por 11 (Euler).
12. Encontre todos os valores positivos de x e y que sejam soluções da equação
indeterminada 7x + 19y = 1921 de modo que a soma x + y seja a menor possível.
O último teorema de Fermat
A equação diofantina mais conhecida é a equação

x n + yn = zn ,

em que estamos procurando números inteiros que a satisfaçam. Por exemplo, se


n = 2, os inteiros 3, 4, 5 constituem um terno de soluções, bem como, os inteiros
6, 8, 10. Na verdade, não é difícil ver que existe um número infinito de soluções
para n = 2.
Sempre podemos encontrar soluções triviais para a equação acima, a saber,
x = 0 e y = ±z ou y = 0 e x = ±z. A pergunta, se é possível encontrar soluções
não triviais para a equação diofantina acima para n ≥ 3, possui uma das histórias
mais fascinantes da matemática. Pierre de Fermat (1601-1665), advogado francês,
que tinha a matemática como passatempo, dedicou-se ao estudo da matemática
grega, tendo obtido muitos resultados interessantes em teoria dos números. É
também considerado um dos inventores da geometria analítica. Fermat deixou
anotado à margem do seu exemplar da Aritmética, de Diofanto, que a equação

x n + yn = zn

não possui soluções não-triviais para n ≥ 3 e que a demonstração deste resultado,


que ficou conhecido como o Último Teorema de Fermat e que ele afirmava
conhecer, seria dada em outra oportunidade, já que não havia espaço suficiente
na margem daquele livro.
Em vão, durante séculos, muitos dos melhores matemáticos trabalharam
no Último Teorema de Fermat procurando, inicialmente, a demonstração que
Fermat afirmara haver descoberto e posteriormente, desenvolvendo métodos
novos para chegar ao resultado, já que as tentativas infrutíferas de encontrar uma
solução elementar para o problema faziam crer que a demonstração de Fermat
não era correta.
No século XVIII ficou claro que o problema estava relacionado com a
existência da fatoração única em vários domínios, de maneira semelhante ao
Teorema Fundamental da Aritmética ou ao Teorema 9.32, sobre a unicidade da
fatoração de polinômios. Foi Euler quem resolveu o problema para n = 3, em
1753.
Só no final do século XX é que avanços substanciais foram obtidos
no problema, levando à sua solução final nos anos 90, em circunstâncias
emocionantes. Em 1983, o matemático alemão G. Faltings (1954- ) provou que o
número de soluções para n ≥ 3 era finito. Restava então provar que este número
finito era zero. Em 1986, no congresso internacional de matemática em Berkeley,
nos EE.UU., Faltings recebeu a medalha Fields, a maior honraria existente em
matemática, por seu trabalho sobre o último teorema de Fermat.
Em junho de 1993, o Prof. Andrew Wiles (1953- ), da universidade de
Princeton, ao final de uma série de 3 palestras na universidade de Cambridge,
anunciou que havia provado o Último Teorema de Fermat. Wiles havia
trabalhado 10 anos em segredo no problema e nada fazia antever que ao final
da série este seria o resultado demonstrado.

Assim sendo, grande foi o furor provocado entre os presentes quando, à


medida que a série de palestras ia chegando ao final, Wiles ia se aproximando da
prova da chamada conjectura de Tanyama-Weil, que todos ali presentes sabiam
ser equivalente ao Último Teorema de Fermat. Chegado o grande dia, o auditório
em Cambridge foi insuficiente para todos os matemáticos, de posse de suas
máquinas fotográficas, interessados em testemunhar o grande momento.

A este clímax seguiu-se um anti-clímax. Quando Wiles submeteu


à comunidade científica o correspondente trabalho escrito, para que fosse
escrutinado pelos maiores especialistas da área e em seguida publicado,
verificou-se que havia uma afirmativa no trabalho que não se sabia se era
verdadeira. Todo o trabalho, portanto, dependia de se provar a veracidade
daquela afirmação. Durante meses, Wiles trabalhou de maneira incansável para
conseguir uma demonstração do resultado, sem sucesso. Como muitas tentativas
anteriores de se demonstrar o Último Teorema de Fermat haviam fracassado em
circunstâncias semelhantes, muitos chegaram a pensar que este seria o destino
do trabalho de Wiles e que o Último Teorema permaneceria como uma fronteira
intransponível da matemática.

Wiles então propôs a Richard Taylor (1962- ), um jovem matemático


inglês, que o ajudasse na demonstração do resultado. Trabalhando juntos, eles
conseguiram, não a demonstração daquela afirmação duvidosa, mas sim evitá-la.
Finalmente, em maio de 1995, a publicação especializada Annals of Mathematics
publica o artigo original de Wiles com a prova incompleta e a correção por Wiles
e Taylor. Estava assim concluída a história do Último Teorema de Fermat.
CAPÍTULO 7

CONGRUÊNCIAS

É impossível avançar no estudo dos números inteiros sem introduzir a teoria


de congruências, cujo desenvolvimento está intimamente relacionado ao nome do
grande matemático alemão Carl Friedrich Gauss (1777 - 1855). Sua contribuição à
teoria dos números foi essencial e seu trabalho mais importante sobre o assunto é o
livro Disquisitiones arithmeticae, publicado em 1801. Em seu primeiro capítulo, Gauss
desenvolve a álgebra das congruências e apresenta algumas aplicações, como a "prova
dos nove fora". A introdução de congruências torna natural a introdução de um novo
"sistema" numérico, no qual são introduzidas operações de adição e multiplicação:
os conjuntos Zm . Nesse conjunto, utilizando resultados devidos a Fermat e Euler,
somos capazes de obter resultados surpreendentes: sem efetuar as operações envolvidas
podemos facilmente obter o resto da divisão de um número extraordinariamente grande
por outro número – como em 71010 dividido por 23, por exemplo.

7.1 D EFINIÇÃO E P ROPRIEDADES


Em várias situações, os números inteiros nos interessam somente em relação ao resto
que eles deixam ao serem divididos por um determinado inteiro m. Isto ocorre quando
consideramos fenômenos periódicos, como nos exemplos abaixo.
Exemplo 7.1 Queremos determinar o horário que chegaremos a um certo destino,
sabendo que essa viagem dura, com paradas e pernoites, 73 horas e que o horário de
partida é às 17:00 h. Para isso, basta obter o resto da divisão de 73 + 17 = 90 por 24, já
que o dia tem 24 horas:
90 = 24 · 3 + 18.
Assim, o horário de chegada será às 18:00 horas. ¢

Exemplo 7.2 Comprei um carro e vou pagá-lo em 107 prestações mensais. Se estamos
em março, em qual mês terminarei de pagá-lo?
Aqui a repetição se dá de 12 em 12 meses. Considerando a numeração usual
dos meses, temos que março corresponde a 3. Somando 3 a 107, obtemos 110, que
corresponde a fevereiro, pois 110 = 9 · 12 + 2. ¢

96
7.1. DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES 97

Exemplo 7.3 (A "prova dos nove fora"). Esta é uma regra bastante antiga para a
verificação dos cálculos aritméticos da adição e da multiplicação: deve-se somar os
algarismos e efetuar a operação correspondente na soma dos algarismos, de forma que o
resultado final seja expresso com um algarismo. Por exemplo, no caso da multiplicação,
temos

3111 3+1+1+1 = 6
×
323 3+2+3 = 8
907523 9 + 0 + 7 + 5 + 2 + 3 = 26 2+6 = 8

6
×
8
48 4 + 8 = 12 1+2 = 3

Somando os algarismos dos números a serem multiplicados, encontramos 6 e 8.


Efetuando a multiplicação entre esses números e somando os algarismos da resposta,
chegamos a 3. Por outro lado, somando os algarismos do pretenso resultado da
multiplicação, chegamos a 8. Como os resultados não coincidem, a multiplicação foi
feita erroneamente.

Ao somarmos os algarismos de um número estamos, na verdade, calculando o resto


de sua divisão por 9, como veremos no que se segue. Assim, de

3111 = 9a + 6, 323 = 9b + 8, 48 = 9c1 + 12 = 9c + 3,


temos

3111 · 323 = (9a + 6)(9b + 8) = 9(9ab + 8a + 6b) + 48 = 9(9ab + 8a + 6b + c) + 3.

Portanto, o resto da divisão de 3111 · 323 por 9 tem que ser igual a 3; caso contrário,
o resultado obtido pela multiplicação está errado.

Vejamos, então, porque somarmos os algarismos de um número corresponde a


efetuar a divisão desse por 9. Para qualquer i > 0, temos 10i = 9bi + 1 (veja o Exercício
8 do Capítulo 3) e, portanto ai · 10i = 9ci + ai . Assim, por exemplo,

3111 = 3 · 103 + 1 · 102 + 1 · 10 + 1 = (múltiplo de 9) + 3 + 1 + 1 + 1


= (múltiplo de 9) + 6,
ou seja, o resto da divisão de 3111 por 9 é igual a 6.

Entretanto, nem sempre a utilização da prova dos nove fora garante a correção
da operação efetuada. No caso em que o resultado obtido e o resultado correto
98 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

deixem o mesmo resto quando divididos por 9, nada podemos concluir. Por exemplo,
a multiplicação de 123 por 31 dá como resultado 3813. Se a operação fosse feita
incorretamente e apresentasse o resultado de 3111, teríamos

123 1+2+3 = 6 6
× ×
31 3+1 = 4 4
3111 3+1+1+1 = 6 24 2+4 = 6

Como tanto 3813 como 3111 deixam resto 6 quando divididos por 9, a prova dos
nove fora é satisfeita, apesar da operação ter sido feita de maneira errada. ¢

No exemplo 7.1, gostaríamos de identificar os inteiros que deixam o mesmo resto


quando divididos por 24. Assim, se agora são 5 horas, daqui a 24 horas serão novamente
5 horas. Gostaríamos então de identificar 5 com 29, números que deixam o mesmo resto
quando divididos por 24. Teríamos, nesse caso, 24 tipos de inteiros: os que deixam resto
0, 1, 2, . . ., 22 e 23 quando divididos por 24.

No exemplo 7.2 gostaríamos de identificar dois inteiros que deixam o mesmo resto
quando divididos por 12. De fato, se estamos no mês 3 (março), daqui a 12 meses
estaremos novamente em março. Assim, gostaríamos de identificar 3 com 3 + 12 = 15.
Note que esses números deixam resto 3 quando divididos por 12. Nesse exemplo, temos
12 tipos de inteiros: os que deixam resto 0, 1, . . . e 11 quando divididos por 12.

No exemplo 7.3, vimos que não é possível detectar o erro numa multiplicação pela
"prova dos nove fora", caso o resultado obtido e o resultado correto deixem o mesmo
resto quando divididos por 9. Assim, gostaríamos de identificar todos os números que
deixam o mesmo resto quando divididos por 9.

A noção de congruência permite fazer essa identificação. Começamos com o


seguinte resultado básico, que mostra que nosso objetivo é alcançado na definição de
congruência, que será dada mais abaixo.

Proposição 7.4 Os inteiros a e b deixam o mesmo resto quando divididos pelo inteiro m 6= 0 se,
e somente se, m divide ( a − b).

Demonstração: Se a e b deixam o mesmo resto r quando divididos por m, então

a = qm + r e b = tm + r, em que 0 ≤ r < |m|

para certos inteiros q e t. Logo


a − b = (q − t)m,
ou seja,
m | ( a − b ).
7.1. DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES 99

Reciprocamente, se m | ( a − b), existe k ∈ Z tal que

a = b + km.

Por outro lado, o Lema da Divisão de Euclides garante que existem inteiros q e r tais
que
a = qm + r, com 0 ≤ r < |m|.
Logo,
b + km = qm + r
e, portanto,
b = (q − k)m + r, com 0 ≤ r < | m |.
A unicidade do resto no Lema da Divisão de Euclides garante que r é o resto da divisão
de b por m. 2

Definição 7.5 Seja m um inteiro fixo não-nulo. Dizemos que os inteiros a e b são congruentes
módulo m, se m divide a diferença a − b. Nesse caso, escrevemos a ≡ b (mod m).

Dados a, b ∈ Z e 0 6= m ∈ Z, para provar que a ≡ b (mod m) temos então, pela


Proposição 7.4, duas alternativas: mostrar diretamente que m | a − b, ou seja, exibir um
inteiro k tal que a − b = km, ou então mostrar que a e b deixam o mesmo resto quando
divididos por m.

Exemplo 7.6 Temos que 90 ≡ 18 (mod 24), pois 90 = 3 · 24 + 18. Também, 3111 ≡ 3813
(mod 9), pois 3111 e 3813 deixam resto 6 quando divididos por 9. Finalmente, −2 ≡ 2
(mod 4), pois 4 | (−2 − 2). ¢

A notação a ≡ b (mod m), introduzida por Gauss em sua obra Disquisitiones


arithmeticae, é convenientemente semelhante à igualdade. Apresentamos o seguinte
resultado básico, cuja demonstração será deixada a cargo do leitor:

Proposição 7.7 Sejam m um inteiro não-nulo e a, b e c inteiros quaisquer. Então a congruência


módulo m satisfaz:

(i ) a ≡ a (mod m) (propriedade reflexiva);

(ii ) se a ≡ b (mod m), então b ≡ a (mod m) (propriedade simétrica);

(iii ) se a ≡ b (mod m) e b ≡ c (mod m), então a ≡ c (mod m) (propriedade transitiva).

Uma relação entre pares de elementos de um determinado conjunto (por exemplo,


a igualdade de números racionais ou a congruência módulo m) é chamada relação de
100 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

equivalência se ela satisfaz as propriedades reflexiva, simétrica e transitiva. Assim, a


proposição anterior mostra que a congruência módulo m é uma relação de equivalência.

Também o próximo resultado é de demonstração imediata:

Proposição 7.8 Sejam a, b inteiros quaisquer e m um inteiro não-nulo. Então:

(i ) a ≡ b (mod 1);

(ii ) a ≡ 0 (mod m) se, e somente se, m | a;

(iii ) a ≡ b (mod m) se, e somente se, a ≡ b (mod − m).

Como conseqüência do ítem (iii ) da Proposição acima, na congruência módulo m


podemos supor sempre que m > 0. É o que faremos de agora em diante. Isso implica
que podemos identificar um inteiro qualquer a com o seu resto na divisão por m:

Proposição 7.9 Todo inteiro a é congruente módulo m a exatamente um dos valores:

0, 1, 2, 3, . . . , m − 1.

Demonstração: Se a é um inteiro qualquer e m > 0 então, pelo Lema da Divisão de


Euclides, existem inteiros q e r tais que

a = qm + r, com 0 ≤ r < m − 1.

Como q e r são univocamente determinados, temos o resultado. 2

Exemplo 7.10 Se a é um inteiro qualquer e m = 2, temos apenas duas possibilidades: se


a for par,
a ≡ 0 (mod 2);
se a for ímpar,
a≡1 (mod 2). ¢

A próxima proposição continua a mostrar que muitas propriedades válidas para a


igualdade de números inteiros são também verdadeiras para a congruência módulo m:

Proposição 7.11 Seja m um inteiro positivo fixo. Então:

(i ) se a ≡ b (mod m) e a0 ≡ b0 (mod m), então

( a + a0 ) ≡ (b + b0 ) (mod m) e aa0 ≡ bb0 (mod m);


7.1. DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES 101

(ii ) se a ≡ b (mod m) então, para qualquer inteiro k, temos que

( a + k) ≡ (b + k) (mod m) e ak ≡ bk (mod m);

(iii ) se a ≡ b (mod m) e k > 0, então

ak ≡ bk (mod mk).

Demonstração: Faremos aqui apenas parte do ítem (i ), deixando o restante como


exercício.

Se a ≡ b (mod m) e a0 ≡ b0 (mod m), então existem inteiros k e t tais que a = b + km


e a0 = b0 + tm. Logo,

aa0 = bb0 + btm + b0 km + ktm2 ⇒ aa0 − bb0 = m(bt + b0 k + ktm),


ou seja,
aa0 ≡ bb0 (mod m). 2

Observação 7.12 As propriedades acima mostram bem a conveniência da notação


utilizada para denotar congruência. Certamente é bem mais natural aceitar o resultado:

a≡b (mod m) e a0 ≡ b0 (mod m) ⇒ aa0 ≡ bb0 (mod m),

do que:
m | ( a − b) e m | ( a0 − b0 ) ⇒ m | ( aa0 − bb0 ). ¢

A demonstração do seguinte corolário será deixada a cargo do leitor (veja os


Exercícios 2 e 6).

Corolário 7.13 Considere f ( x ) = an x n + . . . + a1 x + a0 . Se a ≡ a0 (mod m), então


f ( a) ≡ f ( a0 ) (mod m).

É possível utilizar a notação e as propriedades da congruência módulo m para dar


novas demonstrações dos critérios de divisibilidade apresentados no Capítulo 3. Por
exemplo,

Teorema 7.14 (Critério de Divisibilidade por 9)


Seja a = an an−1 . . . a1 a0 = an · 10n + . . . + a1 · 10 + a0 a representação de um número na
base 10. Temos que 9 divide a se, e somente se, 9 divide a soma de seus dígitos.
102 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Demonstração: Como 10 ≡ 1 (mod 9) então, pelo Corolário 7.13, temos que 10k ≡ 1
(mod 9) para todo k ≥ 0. Novamente pelo Corolário 7.13, concluímos que
a = an · 10n + . . . + a1 · 10 + a0 ≡ ( an + . . . + a1 + a0 ) (mod 9).

Ou seja, a é congruente módulo 9 à soma de seus dígitos. Logo, 9 divide a se, e


somente se 9 divide an + . . . + a1 + a0 . 2

Exemplo 7.15 Nenhum número da forma 8n + 7 pode ser escrito como a soma dos
quadrados de três inteiros. Mais precisamente, se k = 8n + 7 para certo inteiro n, então
não existem inteiros a, b e c tais que

k = a2 + b2 + c2 .

De fato, se k = 8n + 7, então k ≡ 7 (mod 8). Por outro lado, se fosse k = a2 + b2 + c2


para inteiros a, b e c, então teríamos

a2 + b2 + c2 ≡ 7 (mod 8).
Que valores o quadrado de um inteiro pode assumir módulo 8? Se m é um inteiro, então
m é congruente a um único elemento rm ∈ {0, 1, . . . , 7}. Mas então m2 ≡ rm
2 (mod 8).

Verificamos imediatamente:

rm = 0 ⇒ m2 ≡0 (mod 8),
rm = 1 ⇒ m2 ≡1 (mod 8),
rm = 2 ⇒ m2 ≡4 (mod 8),
rm = 3 ⇒ m2 ≡1 (mod 8),
rm = 4 ⇒ m2 ≡0 (mod 8),
rm = 5 ⇒ m2 ≡1 (mod 8),
rm = 6 ⇒ m2 ≡4 (mod 8),
rm = 7 ⇒ m2 ≡1 (mod 8).

Como não há maneira de combinar os quadrados de a2 , b2 e c2 de modo a produzir um


número congruente a 7: se for a2 ≡ 4 (mod 8), então claramente não podemos tomar b2
e c2 congruentes a 0 ou 1, pois a soma seria congruente a um número no máximo igual
a 6. Se tomarmos também b congruente a 4, a soma a2 + b2 é congruente a 0 módulo 8
e, como não há número cujo quadrado seja congruente a 7 módulo 8, a2 + b2 + c2 6≡ 7
(mod 8). Isso mostra o afirmado. ¢

Uma propriedade que é válida quando lidamos com a igualdade de números mas
que não é válida no caso da congruência módulo m é a lei do cancelamento: se ab ≡ ac
(mod m), não é necessariamente verdade que b ≡ c (mod m). Com efeito,
3·4 ≡ 3·8 (mod 12)
7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 103

mas
4 6≡ 8 (mod 12).

Nosso próximo resultado nos dá condições em que a lei do cancelamento pode ser
utilizada no caso de congruências:

Proposição 7.16 Se ac ≡ bc (mod m) e mdc(c, m) = 1, então a ≡ b (mod m).

Demonstração: Se ac ≡ bc (mod m), então m | ( a − b)c. Como mdc(c, m) = 1, temos


m | ( a − b), isto é, a ≡ b (mod m). 2

Entretanto, se mdc(c, m) 6= 1, o melhor resultado que conseguimos é o seguinte, cuja


demonstração segue imediatamente de propriedades já vistas:
³ m´
Corolário 7.17 Se ac ≡ bc (mod m) e mdc(c, m) = d, então a ≡ b mod .
d
Também deixamos a cargo do leitor as seguintes propriedades, a respeito de
congruências em diferentes módulos e regras para cancelamento.

Proposição 7.18 Sejam a e b inteiros quaisquer e sejam m, d, r e s inteiros positivos.

(i ) Se a ≡ b (mod m) e d | m, então a ≡ b (mod d);


(ii ) se a ≡ b (mod r ) e a ≡ b (mod s), então a ≡ b (mod mmc(r, s));
³ ´
(iii ) se ra ≡ rb (mod m), então a ≡ b mod mdcm(r,m) ;

(iv) se ra ≡ rb (mod rm), então a ≡ b (mod m).

7.2 C LASSES DE C ONGRUÊNCIA


A congruência módulo m permite a identificação de todos os números que deixam
o mesmo resto quando divididos por m. Essa identificação nos permite a criação de
outros "sistemas" numéricos. É o que veremos a seguir.

Definição 7.19 Sejam m um inteiro fixo e a um inteiro qualquer. Denotamos por [ a]m a classe
de congruência de a módulo m, isto é, o conjunto formado por todos os inteiros que são
congruentes a a módulo m:

[ a]m = { x ∈ Z : x ≡ a (mod m)}.


104 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Exemplo 7.20 Seja m = 12. Se a = 3, então

[ a]12 = { x ∈ Z : x ≡ 3 (mod 12)}


= { x ∈ Z : 12 | ( x − 3)}
= { x ∈ Z : x = 12k + 3 para algum k ∈ Z}
= {. . . , −21, −9, 3, 15, . . .}.

Por outro lado,


[15]12 = { x ∈ Z : x ≡ 15 (mod 12)}.

Como 15 ≡ 3 (mod 12), então x ≡ 15 (mod 12) se, e somente se, x ≡ 3 (mod 12).
Logo,
[15]12 = { x ∈ Z : x ≡ 3 (mod 12)} = [3]12 . ¢

Observação 7.21 Nesta seção precisaremos mostrar a igualdade de alguns conjuntos,


como no exemplo anterior. Gostaríamos de observar que, para mostrar que dois
conjuntos quaisquer são iguais, devemos mostrar que eles possuem os mesmos
elementos. Assim, A = B se, e somente se, A ⊂ B (todo elemento de A é elemento
de B) e B ⊂ A (todo elemento de B é elemento de A). ¢

Proposição 7.22 Sejam a e b inteiros quaisquer e m um inteiro positivo. Então

(i ) a ∈ [ a]m para qualquer m;

(ii ) a ≡ b (mod m) se, e somente se, [ a]m = [b]m ;

(iii ) [ a]m = [r ]m para algum r ∈ {0, 1, 2, . . . , m − 1}.

Demonstração: Como a ≡ a (mod m) para qualquer m, temos que a ∈ [ a]m , mostrando


( i ).

Mostraremos agora que, se a ≡ b (mod m), então [ a]m = [b]m . De fato, se x ∈ [ a]m ,
então x ≡ a (mod m). Como a ≡ b (mod m), deduzimos que x ≡ b (mod m), ou seja,
x ∈ [b]m , mostrando que [ a]m ⊂ [b]m . A demonstração da inclusão [b]m ⊂ [ a]m é similar
e ficará a cargo do leitor.

Reciprocamente, suponhamos que [ a]m = [b]m . Como a ∈ [ a]m , então a ∈ [b]m , ou


seja, a ≡ b (mod m), completando a prova de (ii ).

Se a é um inteiro qualquer então, pelo Lema da Divisão de Euclides, temos que

a = qm + r, com 0 ≤ r ≤ m − 1,

ou seja, a ≡ r (mod m). Logo, pelo ítem (ii ) mostrado acima, temos que [ a]m = [r ]m ,
com 0 ≤ r ≤ m − 1. 2
7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 105

Segue-se da proposição anterior que existem exatamente m classes de congruências


módulo m, a saber:
[0] m , [1] m , . . . , [ m − 1] m ,
já que estas classes são todas distintas.

Denotamos por Zm o conjunto formado por todas as classes de congruência módulo


m. Assim,
Zm = {[0]m , [1]m , . . . , [m − 1]m }.

Exemplo 7.23 O conjunto Z2 possui dois elementos, a saber,

[0]2 = {b ∈ Z : b = 2k} = {. . . , −4, −2, 0, 2, 4, . . .},

que são os inteiros pares, e

[1]2 = {b ∈ Z : b = 2k + 1} = {. . . , −3, −1, 1, 3, 5, . . .},

que são os inteiros ímpares.

Como
[0]2 = [−2]2 = [4]2
e
[1]2 = [3]2 = [−5]2 ,
podemos escrever

Z2 = {[0]2 , [1]2 } = {[−2]2 , [3]2 } = {[4]2 , [−5]2 } = . . .


¢

Definição 7.24 Um elemento qualquer b de uma classe de congruência [r ]m é chamado um


representante da classe de congruência [r ]m .

Se b está numa classe de congruência [r ]m , então, como já vimos, [r ]m = [b]m ;


portanto, qualquer representante de uma classe determina completamente essa classe
e, reciprocamente, uma classe de congruência pode ser nomeada por qualquer um de
seus representantes. Geralmente utilizamos os menores representantes positivos ou
não-negativos para nomear as classes. Por exemplo, se estamos considerando as horas
do dia geralmente escolhemos os representantes 0, 1, 2, . . . , 12, . . . , 23. Se estivermos
considerando os meses do ano utilizamos 1, 2, . . . , 12 para representar os meses de
janeiro a dezembro, respectivamente.

Vamos agora introduzir em Zm operações de adição e multiplicação, que têm um


comportamento semelhante às operações usuais dos números inteiros.
106 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Exemplo 7.25 Já vimos que Z2 = {[0]2 , [1]2 }, em que [0]2 é o conjunto dos números
pares e [1]2 é o conjunto dos números ímpares. Sabemos que

inteiro par + inteiro par = inteiro par,


inteiro ímpar + inteiro ímpar = inteiro par,
inteiro ímpar + inteiro par = inteiro ímpar.

Para salientar o contexto em que estamos trabalhando, denotaremos a operação de


adição em Z2 por ⊕. Com essa notação, as igualdades acima podem ser escritas como

[0]2 ⊕ [0]2 = [0]2


[1]2 ⊕ [1]2 = [0]2
[1]2 ⊕ [0]2 = [1]2 . ¢

A introdução de uma operação em Z12 aparece naturalmente quando consideramos


o tempo. Se uma pessoa, com um relógio que marca as horas de 1 a 12, chega ao trabalho
às 8 horas e trabalha durante 6 horas sem interrupção, então ela sai do trabalho às 2
horas, ou seja, no relógio 8 + 6 = 2. Esta adição faz sentido, pois o relógio divide o
tempo em classes de congruência módulo 12: duas horas t1 e t2 têm a mesma leitura no
relógio, se elas diferem por um múltiplo de 12 horas. Na verdade, temos que

[8]12 ⊕ [6]12 = [8 + 6]12 = [2]12 .

As operações acima podem ser estendidas para Zm , definindo-se

[ a]m ⊕ [b]m = [ a + b]m .

Entretanto, como um elemento de Zm possui várias representações, precisamos ter


certeza que o resultado obtido independe do representante utilizado. Por exemplo, em
Z24 temos que [73]24 = [1]24 . Portanto, [17]24 ⊕ [73]24 e [17]24 ⊕ [1]24 devem dar o
mesmo resultado. Com efeito, pela regra acima, temos que

[17]24 ⊕ [73]24 = [90]24

e
[17]24 ⊕ [1]24 = [18]24 .
Mas,
90 = 3 · 24 + 18,
ou seja,
[90]24 = [18]24 .
Assim, nesse caso concreto, verificamos que ao somarmos duas classes de
equivalência, o resultado obtido independe do representante [73]24 ou [1]24 utilizado ao
se efetuar a operação. Precisamos mostrar que isso acontece para elementos arbitrários
de Zm .
7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 107

Proposição 7.26 Sejam [ a]m , [ a0 ]m , [b]m e [b0 ]m elementos de Zm , com [ a]m = [ a0 ]m e


[b]m = [b0 ]m . Então
[ a + b]m = [ a0 + b0 ]m .
Demonstração: Se [ a]m = [ a0 ]m e [b]m = [b0 ]m , então a ≡ a0 (mod m) e b ≡ b0
(mod m), isto é: m | ( a0 − a) e m | (b0 − b). Portanto, m | [( a0 − a) + (b0 − b)], ou
seja, m | [( a0 + b0 ) − ( a + b)]. Logo, ( a + b) ≡ ( a0 + b0 ) (mod m), o que significa que
[ a + b]m = [ a0 + b0 ]m . 2

Definição 7.27 A operação de adição em Zm é definida por

[ a]m ⊕ [b]m = [ a + b]m .

Observação 7.28 É comum abreviar a notação de classe de congruência escrevendo-se


[ a]m como [ a], quando estiver claro que estamos trabalhando com elementos de um
determinado Zm .

Em outros textos, a notação de adição em Zm é denotada simplesmente por +.


Assim, [ a]m + [b]m significa [ a]m ⊕ [b]m . ¢

Exemplo 7.29 As tabelas de adição para Z2 , Z3 , Z4 , e Z5 são:

Z2 : ⊕ [0] [1] Z4 : ⊕ [0] [1] [2] [3]


[0] [0] [1] [0] [0] [1] [2] [3]
[1] [1] [0] [1] [1] [2] [3] [0]
[2] [2] [3] [0] [1]
[3] [3] [0] [1] [2]

Z3 : ⊕ [0] [1] [2] Z5 : ⊕ [0] [1] [2] [3] [4]


[0] [0] [1] [2] [0] [0] [1] [2] [3] [4]
[1] [1] [2] [0] [1] [1] [2] [3] [4] [0]
[2] [2] [0] [1] [2] [2] [3] [4] [0] [1]
[3] [3] [4] [4] [1] [2]
[4] [4] [0] [1] [2] [3]
¢

Como as tabelas acima são simétricas em relação à diagonal principal, temos que a
adição em Zi (i ∈ {2, 3, 4, 5}) é comutativa. Na verdade, para qualquer m, a adição em
Zm é comutativa. Isso é conseqüência imediata da comutatividade da adição em Z:

[ a]m ⊕ [b]m = [ a + b]m = [b + a]m = [b]m ⊕ [ a]m .


108 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

De maneira análoga, mostramos que a adição em Zm é associativa, isto é:

([ a]m ⊕ [b]m ) ⊕ [c]m = [ a]m ⊕ ([b]m ⊕ [c]m ),

e possui elemento neutro, que é [0]m , pois

[ a ] m ⊕ [0] m = [ a + 0] m = [ a ] m = [0 + a ] m = [0] m ⊕ [ a ] m .

Pelas tabelas apresentadas no Exemplo 7.29, vemos que, nesses conjuntos, todos os
elementos possuem simétrico em relação à adição (o [0] aparece em todas as linhas).
Observe que, em Z5 ,
−[3] = [2] e − [1] = [4].
Em geral, o simétrico de um elemento [ a]m de Zm , que será denotado por −[ a]m , é
dado por
−[ a]m = [− a]m = [m − a]m .
Com efeito,
[ a]m ⊕ [− a]m = [ a − a]m = [0]m .
É fácil verificar que o simétrico de um determinado elemento em Zm é único. De
fato, se [ a]m ⊕ [b]m = [0]m = [ a]m ⊕ [b0 ]m , então

[b]m = [b]m ⊕ [0]m = [b]m ⊕ ([ a]m ⊕ [b0 ]m ) = ([b]m ⊕ [ a]m ) ⊕ [b0 ]m = [0]m ⊕ [b0 ]m = [b0 ]m ,

de acordo com a associatividade e comutatividade da adição em Zm .

Tendo definido uma operação de adição em Zm , é natural perguntarmos sobre a


possibilidade de definir uma operação de multiplicação de maneira análoga à adição, ou
seja, através da expressão [ a]m ¯ [b]m = [ ab]m . Antes de passarmos à definição formal,
consideremos o seguinte exemplo:

Exemplo 7.30 Já vimos que os elementos de Z2 podem ser identificados com os


números pares e os números ímpares.

inteiro par × inteiro par = inteiro par,


inteiro par × inteiro ímpar = inteiro par,
inteiro ímpar × inteiro ímpar = inteiro ímpar.

Denotando a multiplicação em Z2 por ¯, podemos então escrever a tabela acima


como
[0]2 ¯ [0]2 = [0]2
[0]2 ¯ [1]2 = [0]2
[1]2 ¯ [1]2 = [1]2 . ¢

A operação de multiplicação em Zm , tal qual em Z2 , só estará bem definida, se for


independente dos representantes escolhidos em cada classe de equivalência. É o que
provaremos a seguir.
7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 109

Proposição 7.31 Sejam [ a]m , [ a0 ]m , [b]m , [b0 ]m ∈ Zm , com [ a]m = [ a0 ]m e [b]m = [b0 ]m .
Então,
[ ab]m = [ a0 b0 ]m .
Demonstração: Queremos mostrar que m | ( a0 b0 − ab), se m | ( a0 − a) e m | (b0 − b).
Observe que m | ( a0 − a)b e m | (b0 − b) a0 . Portanto,

m | [( a0 − a)b + (b0 − b) a0 ].

Mas ( a0 − a)b + (b0 − b) a0 = a0 b0 − ab. Logo, [ a0 b0 ]m = [ ab]m . 2

Definição 7.32 A operação de multiplicação em Zm é definida por

[ a]m ¯ [b]m = [ ab]m .

Como no caso da adição em Zm , muitos textos usam simplesmente a notação


[ a]m [b]m ao invés de [ a]m ¯ [b]m .
Exemplo 7.33 As tabelas de multiplicação para Z2 , Z3 , Z4 , e Z5 são

Z2 : ¯ [0] [0] Z4 : ¯ [0] [1] [2] [3]


[0] [0] [0] [0] [0] [0] [0] [0]
[1] [0] [1] [1] [0] [1] [2] [3]
[2] [0] [2] [0] [2]
[3] [0] [3] [2] [1]

Z3 : ¯ [0] [1] [2] Z5 : ¯ [0] [1] [2] [3] [4]


[0] [0] [0] [0] [0] [0] [0] [0] [0] [0]
[1] [0] [1] [2] [1] [0] [1] [2] [3] [4]
[2] [0] [2] [1] [2] [0] [2] [4] [1] [3]
[3] [0] [3] [1] [4] [2]
[4] [0] [4] [3] [2] [1]
¢

É fácil ver que a operação de multiplicação definida em Zm é comutativa:

[ a]m ¯ [b]m = [ ab]m = [ba]m = [b]m ¯ [ am ].

De modo análogo verifica-se que ela é associativa:

([ a]m ¯ [b]m ) ¯ [c]m = [ a]m ¯ ([b]m ¯ [c]m )


110 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

e possui elemento neutro, [1]m :

[ a ] m ¯ [1] m = [ a ] m .
Observação 7.34 Gostaríamos de observar que vários resultados obtidos anteriormente
podem ter uma nova redação, por meio da utilização da notação de classes de
congruência, já que a ≡ b (mod m) se, e somente se, [ a]m = [b]m .

Por exemplo, consideremos o critério de divisibilidade por 9. Seja, portanto,


an an−1 . . . a1 a0 a representação de um número inteiro na base 10. Então, pelas
propriedades de adição e multiplicação em Z9 , temos que:

[( an an−1 · · · a1 a0 )]9 = [ an · 10n + an−1 · 10n−1 + . . . + a1 · 10 + a0 ]9 =


= [ an ]9 ¯ [10n ]9 ⊕ [ an−1 ]9 ¯ [10n−1 ]9 ⊕ . . . ⊕ [ a1 ]9 ¯ [10]9 ⊕ [ a0 ]9 =
= [ a n ]9 ¯ [1 ]9 ⊕ [ a n −1 ]9 ¯ [1 ]9 ⊕ . . . ⊕ [ a 1 ]9 ¯ [1] 9 ⊕ [ a0 ] 9 =
= [ a n ] 9 ⊕ [ a n −1 ] 9 ⊕ . . . ⊕ [ a 1 ] 9 ⊕ [ a 0 ] 9 =
= [( an + an−1 + . . . + a1 + a0 )]9 ,
já que [10n ]9 = [1]9 . Portanto, a diferença entre um inteiro qualquer e a soma de seus
dígitos é um múltiplo de 9, de onde segue-se o resultado. ¢

Observação 7.35 As horas em um relógio analógico são usualmente marcadas em


divisões de 12 horas. Se agora são 4h, daqui a 12h serão novamente 4h. Usualmente
utilizamos os inteiros de 1 a 12 para isso, mas poderíamos substituir 12 por 0, de
modo a termos os possíveis restos de divisão de um número por 12. Dessa maneira
estabelecemos um modelo concreto para Z12 , modelo esse que pode ser estendido para
Zm , com 0 < m ∈ Z. Ao invés de dividirmos um círculo em 12 partes iguais (como no
caso do relógio), o dividimos em m partes iguais. A cada inteiro a corresponde, após
divisão por m, um resto entre 0 e m − 1 e cada inteiro pode ser identificado com um
desses restos. As operações de adição e multiplicação em Zm são compatíveis com esse
modelo. ¢

Observando a tabela de multiplicação em Z4 , dada no Exemplo 7.33, vemos que o


produto do elemento [2] pelos outros elementos de Z4 ou é o próprio [2], ou é o elemento
neutro [0]. Portanto, não existe elemento [ a] ∈ Z4 tal que [ a] ¯ [2] = [1]. Definimos:

Definição 7.36 Um elemento [ a]m ∈ Zm é invertível, se existe [b]m ∈ Zm tal que

[ a ] m ¯ [ b ] m = [1] m .
Se [ a]m ¯ [b]m = [1]m , chamamos [b]m inverso de [ a]m .

Exemplo 7.37 Em Z2 , o elemento [1] é invertível. Em Z3 , todos os elementos não-nulos


são invertíveis. Em Z4 , somente os elementos [1] e [3] são invertíveis. Em Z5 , todos os
elementos distintos do elemento neutro são invertíveis. ¢
7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 111

Lema 7.38 Se [ a]m ∈ Zm for invertível, então seu inverso é único. Denotamos o inverso de
[ a]m por [ a]− 1
m .

Demonstração: Suponhamos que [ a]m ¯ [b]m = [1]m e [ a]m ¯ [b0 ]m = [1]m . Então, uma
vez que a multiplicação em Zm é associativa e comutativa, concluímos que
¡ ¢
[b]m = [b]m ¯ [1]m = [b]m ¯ [ a]m ¯ [b0 ]m = ([b]m ¯ [ a]m ) ¯ [b0 ]m = [b0 ]m . 2

Gostaríamos, então, de determinar quando um elemento [ a]m ∈ Zm é invertível.


Temos a seguinte caracterização dos elementos invertíveis de Zm :

Teorema 7.39 Um elemento [ a]m ∈ Zm é invertível se, e somente se, mdc( a, m) = 1.


Demonstração: Temos

mdc( a, m) = 1 ⇔ ∃ x, y ∈ Z : ax + my = 1 ⇔ [ ax + my]m = [1]m


⇔ [ ax ]m ⊕ [my]m = [1]m ⇔ [ ax ]m = [1]m ,
⇔ [ a ] m ¯ [ x ] m = [1] m . 2

Observação 7.40 Uma pergunta que pode ser feita a respeito do enunciado do teorema
acima é se quaisquer elementos da classe de [ a]m e m possuem o mesmo máximo divisor
comum. Mais precisamente, se mdc( a, m) = 1 e [ a]m = [ a0 ]m , então mdc( a0 , m) = 1?

A resposta é, naturalmente, afirmativa. De fato, se mdc( a0 , m) = d e [ a]m = [ a0 ]m ,


então existe um inteiro k tal que a = a0 + km. Como d é um divisor de a0 e de m, d
também é um divisor de a. Logo d divide o máximo divisor comum de a e m, isto é,
d | 1. Portanto, d = 1. (Note que a demonstração do Teorema 7.39 também implica esse
fato!) ¢

Observação 7.41 Dada a importância do Teorema 7.39 e considerando que o leitor


possa ainda não se sentir confortável com a utilização de classes de equivalência na
demonstração da implicação "⇐", apresentamos uma outra prova dessa.

Se existe [ x ]m tal que [ a]m ¯ [ x ]m = [1]m , temos que m | ( ax − 1), isto é, existe um
inteiro k tal que ax − km = 1, o que significa que mdc( a, m) = 1. ¢

Note que o produto de dois elementos invertíveis módulo m é um elemento


invertível. De fato, se [ a]m e [b]m são elementos invertíveis, claramente

[b]− 1 −1 −1 −1
m ¯ [ a]m = [ a]m ¯ [b]m

é o inverso de [ ab]m . (Verifique também esse fato mostrando que mdc( ab, m) = 1.)
112 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Exemplo 7.42 Vamos obter os inversos de todos os elementos invertíveis de Z12 .

Pelo Teorema 7.39, os únicos elementos invertíveis de Z12 são [1], [5], [7] e [11].
(Estamos denotando [ x ] ao invés de [ x ]12 ) Como o inverso de um elemento invertível
é também um elemento invertível, para obter o inverso de [7]−1 basta então testarmos
os outros elementos invertíveis. Como [7] ¯ [1] = [7], [7] ¯ [5] = [35] = [−1] = [11],
[7] ¯ [7] = [49] = [1], vemos que o inverso de [7] é o próprio [7].

Procedendo da mesma maneira, verificamos que [1]−1 = [1], [5]−1 = [5] e [11]−1 =
[11]. Quer dizer, cada elemento invertível de Z12 é seu próprio inverso!

Entretanto, esse método pode ser muito extenuante, se m for grande. O Teorema
7.39 fornece uma outra maneira para calcularmos [7]−1 . De fato, escrevemos mdc(7, 12)
como combinação linear de 7 e 12. Assim, pelo algoritmo de Euclides,
12 = 1·7+5
7 = 1·5+2
5 = 2·2+1
2 = 2 · 1.
Portanto, verificamos que
1 = 3 · 12 − 5 · 7
e, portanto,
[1] = [−5] ¯ [7].
Assim, [7 ] −1 = [−5] = [7]. ¢

Exemplo 7.43 Se p é um número primo, então todos os elementos não-nulos de Z p são


invertíveis: [1] p , . . . , [ p − 1] p . ¢

A introdução das operações de adição e multiplicação em Zm nos possibilita


trabalhar com as classes de equivalência nesse conjunto como se elas fossem números
inteiros. Mas é preciso ficar atento, pois nem todas as regras da aritmética são válidas
em Zm . Por exemplo, não devemos esperar que a lei do cancelamento seja verdadeira
em Zm , já que ela não vale para a relação de congruência, como já foi visto na seção
anterior.

Com efeito, se [ a]m ¯ [c]m = [b]m ¯ [c]m , em que [c]m 6= [0]m , então [ ac]m =
[bc]m , ou seja, m | ( a − b)c e m - c. Daí não podemos concluir que m | ( a − b),
ou equivalentemente, que [ a]m = [b]m . Como vimos na Proposição 7.16, para essa
conclusão é preciso supor que mdc(c, m) = 1, ou seja, que [c]m é invertível. Nesse
caso, multiplicando pelo inverso de [c], obtemos imediatamente:
Teorema 7.44 (Lei do Cancelamento em Zm )
Se [ a]m ¯ [c]m = [b]m ¯ [c]m e [c]m é invertível, então
[ a]m = [b]m .
7.3. OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON 113

7.3 O S T EOREMAS DE F ERMAT, E ULER E W ILSON


(Esta seção é opcional, e sua apresentação fica a critério do professor.)

Consideremos uma congruência módulo m. Definimos:

Definição 7.45 Um sistema completo de resíduos módulo m, abreviadamente SCRm , é um


conjunto de m inteiros, cada um sendo um representante de cada classe de equivalência módulo
m. Um sistema reduzido de resíduos módulo m, abreviadamente SRRm , é um conjunto
formado por todos os elementos de um SCRm que são primos com m. Isto é, um SRRm é um
conjunto formado com um representante de cada classe de Zm que é invertível.

Exemplo 7.46 Considerando a congruência módulo 5, {0, 1, 2, 3, 4} e {0, 6, 7, 8, 9} são


sistemas completos de resíduos, enquanto {1, 2, 3, 4} e {6, 7, 8, 9} são sistemas reduzidos
de resíduos. ¢

Tendo em vista a Observação 7.40, vemos que qualquer SRRm possui exatamente
o mesmo número de elementos. Mais do que isso, suponhamos que um sistema
reduzido de resíduos módulo m possua n elementos. Consideremos então um conjunto
de elementos invertíveis com n elementos, tal que quaisquer de seus elementos não é
congruente a outro elemento do conjunto. Então esse conjunto também é um SRRm
(veja o Exercício 20).

Lema 7.47 Seja p um número primo. Então os únicos elementos de Z p que são iguais ao seu
inverso são 1 e p − 1.

Demonstração: Examinemos as soluções da equação

[ a ] ¯ [ a ] = [1].

Se [ a] ¯ [ a] = [1], temos que p | a2 − 1, isto é, p | ( a − 1)( a + 1). Como p é primo,


devemos ter p | ( a + 1) ou p | ( a − 1). Mas, como 1 ≤ a ≤ p − 1, temos que a = 1 ou
a = p − 1. Isso prova o afirmado. 2

O próximo resultado é, de certa forma, extraordinário, uma vez que dá condições


necessárias e suficientes para que um inteiro positivo seja primo. Contudo, uma vez
que o fatorial de um número grande é um número imenso, a aplicação prática desse
resultado é muito restrita...

Teorema 7.48 (Wilson)


Um número p é primo se, e somente se, ( p − 1)! ≡ −1 (mod p).

Demonstração: Suponhamos que p seja primo. Então R = {1, 2, . . . , p − 1} é um SRR p


e todos os elementos do conjunto {[1], [2], . . . , [ p − 1]} são invertíveis.
114 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Pelo Lema 7.47, apenas 1 e p − 1 são iguais ao seu inverso em Z p . Afirmamos que

[2] ¯ [3] ¯ . . . ¯ [ p − 2] = [1]. (7.1)

De fato, o inverso de [2] está em {[3], . . . , [ p − 2]}. Assim, [2] multiplicado por seu
inverso é igual a [1] módulo p. Retirando [2] e seu inverso do produto em (7.1), obtemos
o conjunto R1 , no qual o argumento pode ser repetido: o inverso de [3] (se [2]−1 6= [3])
está no conjunto R1 e o produto desses números é igual a [1] módulo p.

Multiplicando os dois lados de (7.1) por [ p − 1] obtemos:

[2] ¯ [3] ¯ . . . ¯ [ p − 2] ¯ [ p − 1] = [ p − 1],


isto é,
[( p − 1)!] = [ p − 1].
Como [ p − 1] = [−1], concluímos que ( p − 1)! ≡ −1 (mod p).

Suponhamos agora que

(n − 1)! ≡ −1 (mod n). (7.2)

Queremos mostrar que n é um número primo. Suponhamos que n = ab, com a 6= n.


Como a equação (7.2) implica n | ((n − 1)! + 1), vemos que a | ((n − 1)! + 1). Mas a é
um dos fatores de (n − 1)!, de modo que a | (n − 1)! e, daí, que a | 1, ou seja, a = 1. Isso
implica que n é um número primo. 2

Observação 7.49 Apesar de o Teorema 7.48 ser conhecido como Teorema de Wilson
(1741-1793), seu enunciado já era conhecido por Leibniz (1646-1716) e sua primeira
demonstração foi feita por Lagrange (1736-1813), em 1773. ¢

Já mostramos duas maneiras de encontrar o inverso de um elemento em Zn no


Exemplo 7.42. Entretanto, nenhuma delas é satisfatória se m for grande. Vamos agora
apresentar uma maneira muito mais efetiva de calcular o inverso de um elemento
invertível em Zm .
Definição 7.50 A função Φ de Euler de um inteiro m é o número de inteiros positivos menores
do que |m| que são primos com m. Em outras palavras, Φ(m) é igual ao número de elementos de
um SRRm .

Exemplo 7.51 Temos que Φ(6) = 2, pois apenas 1 e 5 são primos com 6 e menores do
que 6. Da mesma forma, Φ(10) = 4, Φ(5) = 4, Φ(8) = 4. ¢

Um resutado importante na teoria dos números é devido a Fermat. Entre outras


aplicações, ele nos fornece uma maneira muito simples de encontrar o inverso de um
elemento não-nulo de Z p , no caso em que p é primo.
7.3. OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON 115

Teorema 7.52 (Pequeno Teorema de Fermat)


Seja p um primo e a um inteiro não-divisível por p. Então

a p −1 ≡ 1 (mod p).

Um corolário imediato do Pequeno Teorema de Fermat nos fornece o inverso módulo


p de [ a] p ∈ Z p , [ a] p 6= [0] p . Como a p−1 = aa p−2 , temos imediatamente:

Corolário 7.53 Seja p um número primo e [0] 6= [ a] ∈ Z p . Então

[ a ] −1 = [ a p −2 ] .

Algumas vezes o Pequeno Teorema de Fermat é enunciado de uma maneira alternativa:


Corolário 7.54 Seja p um número primo. Então

ap ≡ a (mod p).
Demonstração: Se mdc( a, p) = 1, o resultado segue-se do Pequeno Teorema de Fermat
ao multiplicarmos ambos os lados da congruência por a. Se mdc( a, p) = p, então a ≡ 0
(mod p) e, portanto, a p ≡ 0 (mod p). Assim, temos sempre a p ≡ a (mod p). 2

Exemplo 7.55 Aplicando o Pequeno Teorema de Fermat, vamos obter os inversos de


todos os elementos invertíveis de Z7 .

Temos
[ 2 ] − 1 = [ 25 ] = [ 23 ] ¯ [ 22 ] = [ 22 ] = [4];
−1 5 2 2
[3] = [3 ] = [3 ] ¯ [3 ] ¯ [3] = [2] ¯ [2] ¯ [3] = [5];
−1 − 1
[6] = [−1] = [(−1)5 ] = [−1] = [6].

Assim, [2]−1 = [4], [3]−1 = [5], [4]−1 = [2], [5]−1 = [3] e [6]−1 = [6]. (Note que o
cálculo de [6]−1 , feito acima, era desnecessário.) ¢

Ao invés de demonstrarmos o Pequeno Teorema de Fermat, provaremos uma


generalização desse resultado, publicada por Leonard Euler em 1747, que determina o
inverso de todo elemento invertível de Zm . (Veja o Exercício 19 para uma demonstração
direta do Pequeno Teorema de Fermat).

Teorema 7.56 (Euler)


Se mdc( a, m) = 1, então aΦ(m) ≡ 1 (mod m).
Demonstração: Sejam Φ(m) = n e {r1 , r2 , . . . , rn } um SRRm com {r1 , r2 , . . . , r N } ⊂
{0, 1, 2, . . . , m − 1}.

Afirmamos que { ar1 , . . . , arn } é outro SRRm . De fato, como a e ri são invertíveis, ari
é invertível para todo i = 1, . . . , n. Além disso, suponhamos que ari ≡ ar j . Pela lei do
116 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

cancelamento em Zm , obtemos então que ri ≡ r j . Como 0 < ri , r j < n, deduzimos então


que i = j.

Assim, cada elemento de { ar1 , . . . , arn } deve ser congruente a um (e só um) elemento
de {r1 , . . . , rn }. Logo,

[ ar1 ] ¯ [ ar2 ] ¯ . . . ¯ [ arn ] = [r1 ] ¯ [r2 ] ¯ . . . ¯ [rn ],

ou seja,
[ a n ] ¯ [r1 . . . r n ] = [ r1 . . . r n ].
Como mdc(ri , m) = 1 ∀ i, temos também mdc(r1 . . . rn , m) = 1. Portanto, aplicando
a lei do cancelamento em Zm , obtemos [ an ] = [1], isto é, an ≡ 1 (mod m). 2

Note que o Pequeno Teorema de Fermat é uma conseqüência imediata do Teorema


de Euler pois, se p é primo, Φ( p) = p − 1 (veja o Exemplo 7.43). Além disso, o Teorema
de Euler garante que o inverso de [ a]m em Zm é dado por [ aΦ(m)−1 ]m .

À primeira vista, o Teorema de Euler não nos parece um resultado muito


interessante: se m é muito grande, Φ(m) também é; assim, aΦ(m)−1 é uma potência
grande de a e parece ser difícil obter y ∈ {0, . . . , m − 1} que seja congruente a [ aΦ(m)−1 ]m .
Na prática, esse problema é facilmente resolvido:

Exemplo 7.57 Se m = 17, o Teorema de Euler (ou o Pequeno Teorema de Fermat)


garante que o inverso de [3] em Z17 é [315 ]. Uma vez que 33 = 27, vemos que 33 ≡ 10
(mod 17). Daí segue-se que [36 ]17 = [102 ]17 = [−2]17 e, portanto, [312 ]17 = [4]17 . Assim,
[312 ]17 ¯ [33 ]17 = [4]17 ¯ [10]17 , isto é,

[315 ]17 = [40]17 = [6]17 .


¢

Antes de prosseguirmos, apresentamos uma outra aplicação do Teorema de Euler:

Exemplo 7.58 Vamos determinar o resto da divisão de 1159 por 20. Como Φ(20) = 8,
o Teorema de Euler garante que 118 ≡ 1 (mod 20), isto é, [118 ]20 = [1]20 . Como
59 = 7 · 8 + 3, vemos que 1159 = (118 )7 · 113 . Mas [(118 )7 ]20 ≡ [1]20 , de modo que
[1159 ]20 ≡ [113 ]20 . Como [113 ]20 ≡ [11]20 , concluímos que 1159 deixa resto 11 quando
dividido por 20. ¢

Como vimos, o Teorema de Euler resolve o problema de encontrar o inverso de um


elemento invertível de Zm . Mas ele coloca um outro problema: como obter Φ(m) se
m for grande? Tentar contar os números primos com m e menores do que ele não é
uma tarefa promissora...Estudaremos algumas propriedades da função Φ que facilitam
enormemente nossa tarefa.
7.3. OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON 117

Lema 7.59 A função Φ : N → N de Euler é multiplicativa, isto é,

Φ(nm) = Φ(n)Φ(m),

se mdc(n, m) = 1.
Demonstração: Vamos dispor todos os números inteiros de 1 a nm em forma de tabela:

1 m + 1 2m + 1 . . . ( n − 1) m + 1
2 m + 2 2m + 2 . . . ( n − 1) m + 2
.. .. .. ..
. . . ... .
m 2m 3m ... nm.

Note que cada coluna é um sistema completo de resíduos módulo m e cada linha um
sistema completo de resíduos módulo n (veja o Exercício 21).

Para r ∈ {1, . . . , m} (quer dizer, r está na primeira coluna), suponhamos que


mdc(m, r ) = d. Se d > 1, nenhum elemento da linha r

r m+r 2m + r ... (n − 1)m + r.


é primo com mn. De fato, como d | m e d | r, temos que todos os elementos dessa linha
são divisíveis por d. Como d | mn, nossa afirmação está provada.
Em outras palavras, só podemos encontrar elementos primos com mn nas linhas cujo
primeiro elemento é primo com m. Quantas dessas linhas existem? Ora, por definição,
Φ(m) linhas. Mas cada uma dessa Φ(m) linhas é um SCRn . Quanto elementos primos
com n existem num SCRn ? Exatamente Φ(n). Assim, existem exatamente Φ(m)Φ(n)
elementos primos com mn na tabela dada. Isso prova o resultado. 2

Para calcular Φ(m) via fatoração de m em fatores primos, precisamos ainda do


Lema 7.60 Seja p um número primo. Então

Φ ( p n ) = p n −1 ( p − 1 ).

Demonstração: Os inteiros positivos menores que pn que não são primos com pn são
exatamente os múltiplos de p:

p, 2p, ..., pn−1 p.

Como existem pn−1 múltiplos de p nessas condições, vemos que

Φ ( p n ) = p n − p n −1 = p n −1 ( p − 1 ) ,

o que prova nosso resultado. 2

Sintetizamos nossos resultados:


118 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Teorema 7.61 Suponhamos que a decomposição de n ∈ N em fatores primos seja

n = p1e1 · · · pess .

Então
Φ(n) = p1e1 −1 ( p1 − 1) p2e2 −1 ( p2 − 1) · · · pess −1 ( ps − 1).

Exemplo 7.62 Temos que Φ(96) = 32. De fato, 96 = 25 · 3. Como Φ(25 ) = 24 (2 − 1) =


24 e Φ(3) = 2, o fato de Φ ser multiplicativa garante que Φ(96) = 24 · 2 = 25 = 32. ¢

7.4 O T EOREMA C HINÊS DO R ESTO


(Esta seção é opcional, e sua apresentação fica a critério do professor.)

Retomaremos agora o estudo de equações diofantinas lineares, considerando


sistemas de tais equações. Utilizando a notação de congruência, começamos com dois
exemplos e uma breve recapitulação de resultados já apresentados (compare o Teorema
7.65, abaixo, com as Proposições 6.5 e 6.8).

Exemplo 7.63 Vamos resolver a congruência 3x ≡ 1 (mod 5). Uma vez que [3] ¯ [2] =
[6] = [1], vemos que [3]−1 = [2]. Logo, multiplicando a congruência por 2, obtemos
6x ≡ 2 (mod 5), ou seja, x ≡ 2 (mod 5). ¢

Exemplo 7.64 A equação 6x ≡ 4 (mod 8), após aplicação do Corolário 7.17, conduz à
equação 3x ≡ 2 (mod 4). Como 32 ≡ 1 (mod 4), o inverso de [3]4 é o próprio [3]4 .
Assim, 3x ≡ 2 (mod 4) implica x ≡ 6 ≡ 2 (mod 4). Mas quais são as soluções da
equação inicial?

Ora, se x é solução de 6x ≡ 4 (mod 8), então x ≡ 2 (mod 4). Quer dizer, x = 2 + 4k,
em que k ∈ Z. Quantos são os elementos dessa forma em {0, 1, . . . , 7}? É claro que 2
e 6 são os únicos elementos da forma 2 + 4k nesse conjunto. Portanto, as soluções de
6x ≡ 4 (mod 8) são x ≡ 2 (mod 8) e x ≡ 6 (mod 8). ¢

Teorema 7.65 A congruência linear ax ≡ b (mod m) é solúvel se, e somente se, mdc( a, m) |
b. Além disso, se x0 é solução de ax ≡ b (mod m), então x 0 também é solução dessa equação se,
m
e somente se, x0 ≡ x 0 (mod m1 ), em que m1 = . Em particular, ax ≡ b (mod m)
mdc( a, m)
possui mdc( a, m) soluções não-congruentes.

Demonstração: Começamos mostrando uma equivalência: ax ≡ b (mod m) tem


solução se, e somente se, a equação diofantina linear ax + my = b também tiver. De
fato,

∃ x ∈ Z : ax ≡ b (mod m) ⇔ m | (b − ax ) ⇔ ∃ x, y ∈ Z : ax + my = b.
7.4. O TEOREMA CHINÊS DO RESTO 119

Uma vez que mdc( a, m) divide o lado esquerdo de ax + my = b, essa equação só terá
solução quando mdc( a, m) dividir o lado direito, isto é, se mdc( a, m) | b.

Suponhamos agora que mdc( a, m) | b. Se a = a1 mdc( a, m), m = m1 mdc( a, m) e


b = b1 mdc( a, m), o Corolário 7.17 garante que
a1 x ≡ b1 (mod m1 ).
Reciprocamente, se a1 x ≡ b1 (mod m1 ), então a Proposição 7.11 garante que
mdc( a, m) a1 x ≡ mdc( a, m)b1 (mod mdc( a, m)m1 ), isto é, ax ≡ b (mod m). Em outras
palavras, mostramos que x é solução de ax ≡ b (mod m) se, e somente se, x for solução
de a1 x ≡ b1 (mod m1 ).

Mas a1 x ≡ b1 (mod m1 ) possui uma única solução: como mdc( a1 , m1 ) = 1, a1 possui


inverso a1−1 . Logo [ a1−1 b1 ]m1 é a única solução dessa equação e quaisquer soluções x0 , x 0
de ax ≡ b (mod m) são congruentes a a1−1 b1 módulo m1 .
Finalmente, se d = mdc( a, m), afirmamos que
x0 , x0 + m1 , x0 + 2m1 , x0 + ( d − 1) m1
são todas as soluções não-congruentes de ax ≡ b (mod m). Claramente, x0 + jm1 para
todo j = 0, . . . , d − 1 é solução dessa equação, pois x0 + jm1 ≡ x0 (mod m1 ). E essas
soluções são as únicas soluções de a1 x ≡ b1 (mod m1 ) que são distintas módulo m. Isso
completa a demonstração. 2

Vamos agora considerar um sistema de congruências lineares. O Teorema Chinês


do Resto, resolvido num caso particular pelo mestre Sun (∼ 300 D.C.) e, no caso geral,
por Qin Jiuchao (1202-1261) nos apresenta um algoritmo em que, sob certas condições,
resolve um tal sistema. Antes de enunciar esse resultado, vamos introduzir a notação
que será usada em seu enunciado, bem como algumas observações iniciais.

Sejam m1 , . . . , mk inteiros primos entre si dois a dois (isto é, mdc(mi , m j ) = 1, se


i 6= j). Definimos
M = m1 . . . mk = mmc(m1 , . . . , mk ).
M
Denotaremos por ni o inteiro . Observe que mdc(ni , mi ) = 1; portanto, ni x ≡ 1
mi
(mod mi ) tem solução `i . Observe também que mi | n j , se i 6= j, isto é, n j ≡ 0 (mod mi ),
se i 6= j.
Teorema 7.66 (Teorema Chinês do Resto)
Suponhamos que, para todo i ∈ {1, 2, . . . , k }, tenhamos mdc( ai , mi ) = 1. Então, para
quaisquer b1 , . . . , bk , o sistema
a1 x ≡ b1 (mod m1 )
a2 x ≡ b2 (mod m2 )
.. ..
. .
a k x ≡ bk (mod mk )
120 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

admite solução
x0 = c1 n1 `1 + c2 n2 `2 + · · · + c k n k ` k ,
em que ci é uma solução de ai x ≡ bi (mod mi ).
Além disso, se y é outra solução desse sistema, então y ≡ x0 (mod M ), em que M =
m1 m2 · · · mk . Reciprocamente, se y ≡ x0 (mod M ), então y também é solução do sistema
dado.

Antes de demonstrarmos o Teorema Chinês do Resto, apresentamos o

Exemplo 7.67 Vamos resolver o sistema

3x ≡ 5 (mod 4)
2x ≡ 3 (mod 5)
4x ≡ 2 (mod 3)

Verificamos imediatamente que as hipóteses do Teorema Chinês do Resto estão


satisfeitas.

Nesse caso, temos:

M = m1 m2 m3 = 60, n1 = 15, n2 = 12 e n3 = 20.

Vamos agora achar os inversos `1 , `2 e `3 . Para isso, resolvemos as congruências


[ni ]mi ¯ [`i ]mi = [1]mi , com i = 1, 2, 3. Como os módulos envolvidos são pequenos, as
soluções `i podem ser obtidas por tentativa:

[15]4 ¯ [`1 ]4 ≡ [1]4 ⇒ [3]4 ¯ [`1 ]4 ≡ [1]4 ⇒ [`1 ]4 ≡ [3]4 .


[12]5 ¯ [`2 ]5 ≡ [1]5 ⇒ [2]5 ¯ [`2 ]5 ≡ [1]5 ⇒ [`2 ]5 ≡ [3]5 .
[20]3 ¯ [`3 ]3 ≡ [1]3 ⇒ [2]3 ¯ [`3 ]3 ≡ [1]3 ⇒ [`3 ]3 ≡ [2]3 .

Agora vamos encontrar as soluções c1 , c2 e c3 de cada uma das equações do sistema.


Temos que c1 resolve 3x ≡ 5 (mod 4). Por tentativa, vemos que c1 = 3 resolve essa
equação. Do mesmo modo, obtemos c2 = 4 e c3 = 2.

Pelo Teorema Chinês do Resto, uma solução do sistema é

x0 = c1 m1 `1 + c2 m2 `2 + c3 m3 `3 = 3 · 15 · 3 + 4 · 12 · 3 + 2 · 20 · 4 = 439.

A solução geral do sistema é 439 + 60k em que k ∈ Z. ¢

Observação 7.68 Se mdc( ai , mi ) 6= 1, e mdc( ai , mi ) - bi , o sistema não tem solução,


de acordo com o que vimos no Teorema 7.65. Por outro lado, se mdc( ai , mi ) 6= 1, e
mdc( ai , mi ) - bi , o mesmo teorema garante que o Teorema Chinês do Resto ainda pode
ser aplicado. ¢
7.4. O TEOREMA CHINÊS DO RESTO 121

Demonstração do Teorema Chinês do Resto: Mostraremos primeiro que x0 é solução


do sistema, isto é, que ai x0 ≡ bi (mod mi ) para todo i = 1, 2, . . . , k. Temos que
a i x0 = a i ( c1 n1 `1 + · · · + c i n i ` i + . . . + c k n k ` k ).

Para i 6= j, temos mi | n j e, portanto, ai c j n j ` j ≡ 0 (mod mi ). Assim, ai x0 ≡ ai ci ni `i


(mod mi ). Mas ni `i ≡ 1 (mod mi ) e, consequentemente, ai x0 ≡ ai ci (mod mi ). Mas
ai ci ≡ bi (mod mi ). Concluímos então que ai x0 ≡ bi (mod mi ), como desejado.

Seja y outra solução do sistema. Para todo i = 1, . . . , k temos, então, ai x0 ≡ bi


(mod mi ) e ai y ≡ bi (mod mi ), ou seja, ai x0 ≡ ai y (mod mi ). Como mdc( ai , mi ) = 1,
isso implica que y ≡ x0 (mod mi ) e, portanto, y ≡ x0 (mod M ), de acordo com a
Proposição 7.18.

Reciprocamente, se y ≡ x0 (mod M ), claramente vale y ≡ x0 (mod mi ) para todo


i = 1, 2, . . . , k e, portanto, y também é solução do sistema. 2

Observação 7.69 O Teorema Chinês do Resto possui inúmeras aplicações: ele é


utilizado em criptografia (veja [5], p. 126), na resolução de congruências quadráticas
ax2 + bc + c ≡ 0 (mod m) (veja [7], p. 82), etc. ¢

Outro método de resolver um sistema de congruências lineares é resolver as


equações duas a duas. A vantagem deste método é que os módulos considerados não
precisam ser primos entre si dois a dois.
Considere o sistema
a1 x ≡ b1 (mod m1 )
a2 x ≡ b2 (mod m2 )
.. ..
. .
a k x ≡ bk (mod mk ).
Se mdc( ai , mi ) | bi , já vimos que, após divisão de cada equação por mdc( ai , bi ),
recaímos em congruências do tipo a0 x ≡ b0 mod m0 , com mdc( a0 , m0 ) = 1. Assim,
vamos considerar que ai = 1 para todo i = 1, . . . , k, pois [ ai ]mi é invertível. Quer dizer,
ao invés de considerarmos o sistema acima, vamos considerar

x ≡ b10 (mod m1 )
x ≡ b20 (mod m2 )
.. ..
. .
x ≡ bk0 (mod mk ),

em que bi0 = bi · ai−1 e ai−1 ∈ [ ai−1 ]mi .

A congruência x ≡ b1 (mod m1 ) é satisfeita por todo x da forma x = b1 + m1 u1 , com


u1 ∈ Z qualquer. Por sua vez, a congruência x ≡ b2 (mod m2 ) é satisfeita por todo x
da forma b2 + m2 u2 , com u2 ∈ Z qualquer. Portanto, para encontrarmos uma solução
122 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

comum às duas primeiras equações do sistema, devemos resolver a equação diofantina


nas incógnitas u1 e u2 :
b1 + m1 u1 = b2 + m2 u2 .
Achada uma solução x 0 dessa equação diofantina, a solução geral do sistema

x ≡ b10 (mod m1 )
x ≡ b20 (mod m2 )

é dada por x = x 0 + u0 m12 em que m12 = mmc(m1 , m2 ) e u0 ∈ Z é qualquer.


Para se achar uma solução comum às três primeiras equações repetimos então o
método: resolvemos a equação diofantina nas incognitas u0 e u3 :

x 0 + u0 m12 = a3 + m3 u3

e assim sucessivamente.

Exemplo 7.70 Vamos resolver o sistema

12x ≡ 6 (mod 22)


9x ≡ 18 (mod 24)
4x ≡ −1 (mod 15).

Esse é equivalente ao sistema

6x ≡ 3 (mod 11)
3x ≡ 6 (mod 8)
4x ≡ −1 (mod 15).

Resolvemos separadamente cada uma das equações:

6x ≡ 3 (mod 11) ⇔ x ≡ 6 (mod 11).


3x ≡ 6 (mod 8) ⇔ x ≡ 2 (mod 8).
4x ≡ −1 (mod 15) ⇔ x ≡ −4 (mod 15).

Assim, basta resolvermos o sistema

x ≡ 6 (mod 11)
x ≡ 2 (mod 8)
x ≡ −4 (mod 15).

A solução geral da primeira equação é 6 + 11u com u ∈ Z, enquanto a solução geral


da segunda equação é 2 + 8t, com t ∈ Z. Resolvemos então a a equação diofantina

6 + 11u = 2 + 8t,

obtendo a solução particular u = −12 e t = −16. Assim, 6 + 11(−12) = −126 é uma


solução comum às duas primeiras equações do sistema e a solução geral do sistema
7.5. EXERCÍCIOS 123

formado pelas duas primeiras equações é −126 + k88, em que k ∈ Z. (Note que
88 = mmc(8, 11).)

Para achar uma solução comum a todas as equações do sistema, resolvemos a


equação diofantina:
−126 + 88k = −4 + 15s,
que tem k = 122 · 7 = 854 e s = 41 · 122 = 5002 como solução particular. Assim, uma
solução particular do sistema é −126 + 88 · 854 = 75026 e sua solução geral é

75026 + (8 · 11 · 15)k = 75026 + 1320k,

em que k ∈ Z. ¢

7.5 E XERCÍCIOS
1. Suponha que a ≡ b (mod m) e c ≡ d (mod m). Mostre que ax + cy ≡ bx + dy
(mod m) para quaisquer x, y ∈ Z.
2. Mostre que, se a ≡ b (mod m), então an ≡ bn (mod m) para todo inteiro positivo
n.

3. Mostre a Proposição 7.7.

4. Mostre a Proposição 7.8

5. Mostre a Proposição 7.11.

6. Mostre o Corolário 7.13.

7. Mostre o Corolário 7.17.

8. Mostre a Proposição 7.18.

9. Se a = (72)6 + (72)5 + 2, mostre que 7 | a.

10. Demonstre o critério de divisibilidade por 11 usando congruências.

11. Ache o resto da divisão de a = 531 · 2 · (31)2 por 7.

12. Resolva as congruências:

(a) 3x ≡ 3 (mod 5);


(b) 3x ≡ 1 (mod 6);
(c) 3x ≡ 3 (mod 6).

13. Encontre todos os inteiros x, com 0 ≤ x < n, satisfazendo as congruências módulo


n dadas abaixo. Se a congruência não possuir solução, justifique.
124 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

(a) n = 6 e 3x ≡ 4 (mod n);


(b) n = 6 e 4x ≡ 2 (mod n);
(c) n = 6 e 4x ≡ 3 (mod n);
(d) n = 7 e 4x ≡ 3 (mod n);
(e) n = 11 e 5x ≡ 1 (mod n);
(f) n = 25 e 5x ≡ 5 (mod n);
(g) n = 50 e 2x ≡ 18 (mod n).

14. Resolva as congruências:

(a) x2 ≡ 4 (mod 13);


(b) x2 ≡ 4 (mod 6).

15. Ache as soluções de

(a) [2142]238 ¯ [ x ]238 = [442]238 ;


(b) [14]77 ¯ [ x ]77 = [21]77 ;
(c) [1239]154 ¯ [ x ]154 = [6]154 .
9 7
16. Ache o algarismo das unidades dos números 99 e 77 .
1000
17. Ache os dois últimos algarismos de 77 .

18. Determine o resto da divisão de 2150 por 7.

19. Seja p um número primo positivo.

(a) Mostre que ( a + b) p ≡ a p + b p (mod p).


(b) Demonstre, por indução, que a p ≡ a (mod p) para todo inteiro a, o que
constitui o Corolário 7.54.
(c) Conclua, então, o Pequeno Teorema de Fermat.

20. Suponhamos que Φ(m) = n. Seja S = {r1 , . . . , rn } um conjunto com as seguintes


propriedades:

(a) mdc(ri , m) = 1 para todo i = 1, . . . , n;


(b) ri ≡ r j (mod m) implica i = j.

Mostre que S é um SRRm .

21. Na demonstração do Lema 7.59, mostre que cada coluna do arranjo de números
de 1 a nm é um sistema completo de resíduos módulo m e que cada linha é um
sistema completo de resíduos módulo n.
7.5. EXERCÍCIOS 125

22. Para n = p1e1 · · · pess , mostre que


µ ¶µ ¶ µ ¶
1 1 1
Φ(n) = n 1 − 1− ··· 1− .
p1 p2 ps

23. Se n é um inteiro positivo, mostre que

∑ Φ(d) = n.
d|n

24. Verifique que 1 + 2 = (3/2)Φ(3), 1 + 3 = (4/2)Φ(4), 1 + 2 + 3 + 4 = (5/2)Φ(5),


1 + 5 = (6/2)Φ(6), 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 = (7/2)Φ(7), 1 + 3 + 5 + 7 = (8/2)Φ(8).
A que conclusão você é levado depois de examinar esses dados?

25. Se mdc( a, m) = 1, mostre que toda solução x de

x ≡ caΦ(m)−1 (mod m)

satisfaz ac ≡ c (mod m).

26. Ache todos os elementos a ∈ Z34 tais que a2 = a.

27. Mostre que


2( p − 3) ! ≡ −1 (mod p),
se p é um primo maior do que 5.

28. Seja p um número primo. Mostre que, se r! ≡ (−1)r (mod p), então

( p − r − 1)! ≡ −1 (mod p).

29. Considere o sistema


a1 x ≡ b1 (mod m1 )
a2 x ≡ b2 (mod m2 )
.. ..
. .
a k x ≡ bk (mod mk ),
sem supor que mdc(mi , m j ) = 1 para todo i, j = 1, . . . , k com i 6= j. Suponha que o
sistema tenha solução x0 . Mostre que y é também solução se, e somente se, y ≡ x0
(mod M), em que onde M = mmc(m1 , m2 , . . . , mk ).

Definição 7.71 Um anel é um conjunto R com duas operações, "+" e "·" (chamadas "adição" e
"multiplicação", respectivamente), que satisfazem as seguintes propriedades, para todos a, b, c ∈
R:

(i ) a adição é comutativa: a + b = b + a;
(ii ) a adição é associativa: a + (b + c) = ( a + b) + c;
126 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

(iii ) existe 0 ∈ R tal que a + 0 = a. Esse elemento é um elemento neutro;


(iv) para (− a) ∈ R tal que a + (− a) = 0 ∈ R. O elemento (− a) é um elemento simétrico de
a;

(v) a multiplicação é associativa: a · (b · c) = ( a · b) · c;


(vi ) a multiplicação distribui-se com relação à adição: a · (b + c) = a · b + a · c e (b + c) · a =
b · a + c · a.

Se, adicionalmente, às propriedades (i ) − (vi ), a multiplicação em R satisfizer (para todos


a, b ∈ R)

(vii ) a · b = b · a,
dizemos que R é um anel comutativo.
Se, adicionalmente, às propriedades (i ) − (vi ) e todo a ∈ R

(viii ) existe 1 ∈ R tal que 1 · a = a · 1 = a,


dizemos que R é um anel com unidade e 1 é uma unidade em R.

25. Verifique se os seguintes conjuntos, com as operações usuais de adição e


multiplicação, são anéis. Em caso afirmativo, diga também se eles são comutativos
e se possuem unidade.

(a) N;
(b) Z;
(c) Q;
(d) R;
(e) Zm ;
(f) F = { f : R → R};
(g) P = {. . . , −4, −2, 0, 2, 4, . . .};
(h) Mn×n , o conjunto das matrizes reais n × n.

26. Seja R um anel. Mostre que:

(a) o elemento neutro e o simétrico são únicos;


(b) se R possui unidade, essa unidade é única;
(c) para todo a ∈ R, −(− a) = a;
(d) se a + x = a + y para x, y, a ∈ R, então x = y;
(e) para todo a ∈ R, 0 · a = a · 0 = 0.
Descobrindo números primos
Em 1801, em seu livro Disquisitiones Arithmeticae – um marco na história da
teoria dos números –, Gauss observou que o problema de distinguir números
primos de números compostos é um dos mais importantes e úteis da aritmética.
Já na Grécia antiga, se utilizava o chamado crivo de Eratóstenes para resolver
este problema (veja p. 53).
O problema com o crivo de Eratóstenes é que ele depende de maneira
exponencial do comprimento do número. Na prática, isso significa que,
utilizando este método, é impossível determinar se um número grande é primo
ou não, mesmo utilizando os computadores mais sofisticados da atualidade. Para
se ter uma idéia da ordem de grandeza do problema, suponha dado um número
primo de 100 algarismos. Supondo que um computador executa 1010 divisões
por segundo, que é mais rápido que os existentes atualmente, levaríamos 1031
anos para descobrir que o número é primo utilizando esse método. No entanto,
a idade do universo é de cerca de 2.1011 anos!
Surge assim o problema de encontrar um algoritmo que determine se
um número é primo, cujo tempo de execução dependa polinomialmente do
comprimento do número e não exponencialmente, como o crivo de Eratóstenes.
Ainda na época de Gauss, o Pequeno Teorema de Fermat foi utilizado para
analisar o problema. Como foi visto neste capítulo, o Pequeno Teorema de Fermat
afirma que, se p é primo, então a p−1 ≡ 1 (mod p). Infelizmente, a recíproca do
teorema é falsa: se an−1 ≡ 1 (mod n), o número n pode se primo ou composto.
Assim, o Pequeno Teorema de Fermat pode ser utilizado apenas para afirmar que
determinados números não são primos.
Com o surgimento dos computadores e utilização dos números primos na
criptografia – informações são codificadas utilizando números primos gigantes
(por exemplo, o número de um cartão de crédito para envio pela internet) –
cresceu o interesse pelo problema.
Surgiram então algoritmos utilizando teorias matemáticas sofisticadas (tais
como curvas elípticas ou variedades abelianas) que determinam se um número
é primo, ou não. E ainda algoritmos que dizem, com enorme probabilidade, se
um número é ou não é primo. Depois de um período de mais de dez anos em
que nenhum avanço significativo foi obtido, causou grande comoção no meio
científico o anúncio, no dia 4 de agosto de 2002, que 3 jovens pesquisadores
do Instituto Indiano de Tecnologia, Manindra Agrawal (1966- ), Neeraj Kayal
(1980- ) e Nitin Saxena (1981- ) descobriram um algoritmo determinístico e em
tempo polinomial para decidir se um número é primo ou não. A maior surpresa
talvez tenha sido que dois dos descobridores estavam apenas iniciando seus
estudos de doutorado, se formaram em computação e utilizaram apenas métodos
elementares em teoria de números para chegar ao resultado.
CAPÍTULO 8

DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Neste capítulo estudaremos o conjunto de polinômios em uma variável com


coeficientes reais ou complexos, munido das operações de adição e de multiplicação.
Faremos um paralelo com o conjunto dos números inteiros, visto anteriormente, e
obteremos resultados equivalentes ao Lema da Divisão de Euclides, ao Algoritmo de
Euclides para o cálculo do máximo divisor comum, etc. Muitos argumentos utilizados
em capítulos anteriores serão válidos aqui.

8.1 C ORPOS
Um dos resultados que vamos obter para o conjunto dos polinômios é análogo ao
algoritmo da divisão para os inteiros. Para introduzi-lo, precisamos observar que os
coeficientes dos polinômios envolvidos devem satisfazer certas propriedades como,
por exemplo, devem possuir inverso multiplicativo (ou recíproco). Enquanto em Z os
únicos elementos que possuem recíproco são 1 e −1, em Q ou em R qualquer número
não-nulo tem tal propriedade.

Reunimos todas as propriedades necessárias para o conjunto dos coeficientes na


definição abaixo.

Definição 8.1 Seja K um conjunto cujos elementos podem ser adicionados e multiplicados.
Dizemos que K é um corpo se, para quaisquer a, b e c em K, as seguintes propriedades são
satisfeitas:

(i ) ( a + b) + c = a + (b + c) (associatividade da adição);
(ii ) a + b = b + a (comutatividade da adição);
(iii ) existe um elemento em K, denotado por 0, tal que a + 0 = a (elemento neutro);
(iv) para cada a ∈ K, existe um único x ∈ K tal que a + x = 0. O elemento x é denotado por
(− a) (simétrico ou inverso aditivo);
(v) ( ab)c = a(bc) (associatividade da multiplicação);

128
8.1. CORPOS 129

(vi ) ab = ba (comutatividade da multiplicação);


(vii ) existe um elemento em K, denotado por 1, tal que 1a = a (unidade);
(viii ) a(b + c) = ab + ac (distributividade da multiplicação com relação à adição);
(ix ) para cada 0 6= a ∈ K, existe um único elemento x ∈ K − {0} tal que ax = 1. O elemento
1
x é denotado por a−1 ou (recíproco ou inverso).
a
Exemplo 8.2 Os conjuntos Q e R com as operações usuais de adição e multiplicação são
corpos. (Veja o Exercício 1.) ¢

Como veremos adiante, vários resultados sobre polinômios terão um enunciado


mais simples quando estendermos o conjunto dos números reais ao conjunto C dos
números complexos, isto é, ao conjunto dos números da forma a + bi, com a, b ∈ R,
em que i2 = −1. Provavelmente, o leitor está mais familiarizado com os números
reais do que com os complexos, por isto faremos uma rápida revisão das propriedades
dos números complexos. (Historicamente, os números complexos só foram bem
compreendidos e aceitos no início do século XIX.)

Pode-se pensar em C como o conjunto dos vetores no plano, com a + bi


correspondendo ao vetor que vai da origem até o ponto de coordenadas ( a, b):

i 6

( a, b)
µ
¡
¡
¡ a + bi
¡ -

Todo número real a pode ser visto como um número complexo através da
identificação a = a + 0i. Na verdade, se z = a + bi, dizemos que a é a parte real de
z e que b é a parte imaginária de z.

Se z1 = a + bi e z2 = c + di, definimos a igualdade z1 = z2 se, e somente se, a = c e


b = d. As operações usuais de adição e multiplicação são definidas por:

z1 + z2 = ( a + c ) + ( b + d ) i
z1 z2 = ( ac − bd) + ( ad + bc)i.

O número complexo a − bi é chamado conjugado do número z = a + bi e denotado


por z = a + bi. Temos que, para qualquer número complexo z,
130 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

zz = ( a + bi )( a − bi ) = a2 + b2 ,

que é um número real não-negativo. O módulo do numero complexo z = a + bi é


definido por p

|z| = zz = a2 + b2 .

Exemplo 8.3 No conjunto C dos números complexos, com as operações usuais de


adição e multiplicação, o elemento neutro é 0 = 0 + 0i, a unidade é 1 = 1 + 0i e o
simétrico do número a + bi é (− a) + (−b)i. Se o número complexo z = a + bi é não-
nulo (donde a 6= 0 ou b 6= 0), o seu recíproco é dado por

1 1 a − bi a b
= = = 2 − i.
z a + bi ( a + bi )( a − bi ) a + b2 a2 + b2

A verificação que o conjunto dos números complexos munido dessas operações é um


corpo decorre das definições dadas e das propriedades correspondentes dos números
reais e ficará a cargo do leitor. (Veja o Exercício 4.) ¢

O conjunto Z dos inteiros não é um corpo, pois a propriedade (ix ) falha. Entretanto,
é um fato conhecido que, além das propriedades (i ) − (viii ), Z não possui divisores de
zero, isto é, seus elementos satisfazem a propriedade
( x ) se ab = 0, então a = 0 ou b = 0.

Definição 8.4 Dizemos que um conjunto D é um domínio de integridade se ele satisfizer as


propriedades (i ) − (viii ) e a propriedade ( x ).

Portanto, o conjunto Z é um domínio de integridade.

8.2 P OLINÔMIOS : D EFINIÇÕES E O PERAÇÕES


Os primeiros exemplos de funções reais vistos nos cursos de cálculo são as funções
como p( x ) = x2 − 5x + 1, p( x ) = 2x − 1, p( x ) = −5, etc. De modo geral, estudam-se as
funções do tipo
p ( x ) = a n x n + a n −1 x n −1 + . . . + a 1 x + a 0
em que an , . . . , a0 são números reais dados e n é um inteiro ≥ 0, que a cada elemento
x ∈ R associa o número real p( x ), dado pela expressão acima. A adição ou o produto
de funções reais é definida como a função que associa a cada x a soma ou o produto dos
valores dessas funções em x. Em outras palavras, se

p ( x ) = a n x n + a n −1 x n −1 + . . . + a 1 x + a 0

e
q( x ) = bm x m + bm−1 x m−1 + . . . + b1 x + b0 ,
8.2. POLINÔMIOS: DEFINIÇÕES E OPERAÇÕES 131

então

( p + q)( x ) = p( x ) + q( x )
= ( an x n + an−1 x n−1 + . . . + a1 x + a0 ) + (bm x m + bm−1 x m−1 + . . . + b1 x + b0 ).

Se m ≥ n, agrupando os termos correspondentes, obtemos

( p + q)( x ) = bm x m + . . . + bn+1 x n+1 + ( an + bn ) x n + . . . + ( a1 + b1 ) x + ( a0 + b0 ). (8.1)

Analogamente,

( pq)( x ) = p( x )q( x )
= ( an x n + an−1 x n−1 + . . . + a1 x + a0 )(bm x m + bm−1 x m−1 + . . . + b1 x + b0 )
= an bm x n+m + . . . +(a0 bi + a1 bi−1 + . . . + ai b0) xi + . . . +(a0 b1 + a1 b0) x + a0 b0 (8.2)

Ao trabalharmos com polinômios, todas essas operações são feitas formalmente, isto
é, sem nos preocuparmos com o fato de p( x ) poder ser interpretado como uma função:

Definição 8.5 Um polinômio p na variável x com coeficientes num corpo K é uma expressão
da forma
p = a n x n + a n −1 x n −1 + . . . + a 1 x + a 0
em que an , . . . , a0 ∈ K, n ≥ 0 é um inteiro, ai = 0 para todo i > n e x é um símbolo formal. Os
números ai são chamados coeficientes do polinômio p.
Dizemos que o polinômio p é igual ao polinômio q dado por

q = bm x m + bm−1 x m−1 + . . . + b1 x + b0

se, e somente se, todos os coeficientes correspondentes são iguais. Portanto, se m > n, então

a0 = b0 , a1 = b1 , . . . , an = bn e bn+1 = bn+2 = . . . = bm = 0.

O conjunto de todos os polinômios na variável x com coeficientes em K é denotado por K[ x ].

Se p é um polinômio e c é um elemento de K, então

p ( c ) = a n c n + a n −1 c n −1 + . . . + a 1 c + a 0

também é um elemento de K. Portanto, p ∈ K[ x ] define uma função

p:K→K

que a cada elemento c ∈ K associa o número p(c) ∈ K. Dizemos então que p( x ) é


a função polinomial associada ao polinômio p. Quando K = R, esses dois conceitos
132 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

podem ser identificados. Entretanto, para certos corpos K, é possível termos polinômios
distintos cujas funções polinomiais associadas são idênticas (veja o Exercício 10).

O corpo K está contido em K[ x ]: um elemento c de K pode ser visto como o


polinômio p = 0x n + . . . + 0x + c, que é chamado polinômio constante.

Se definirmos a adição e a multiplicação em K[ x ] pelas equações (8.1) e (8.2), é fácil


ver que o polinômio nulo
0 = 0x n + . . . + 0x + 0
é o elemento neutro e que o polinômio constante p = 1 é a unidade.

Para calcularmos os coeficientes do produto pq, podemos utilizar o seguinte


dispositivo prático: colocamos numa tabela todos os coeficientes ai de p e b j de q como
abaixo, calculamos todos os produtos ai b j e somamos os produtos em cada diagonal no
sentido sudoeste-nordeste, obtendo assim os coeficientes do polinômio produto pq.
@ q bm ... b5 b4 b3 b2 b1 b0
p@@

an an bm . . . an b5 an b4 an b3 an b2 an b1 an b0
.. .. .. .. .. .. .. .. ..
. . . . . . . . .

a5 a5 bm . . . a5 b5 a5 b4 a5 b3 a5 b2 a5 b1 a5 b0

a4 a4 bm . . . a4 b5 a4 b4 a4 b3 a4 b2 a4 b1 a4 b0

a3 a3 bm . . . a3 b5 a3 b4 a3 b3 a3 b2 a3 b1 a3 b0

a2 a2 bm . . . a2 b5 a2 b4 a2 b3 a2 b2 a2 b1 a2 b0

a1 a1 bm . . . a1 b5 a1 b4 a1 b3 a1 b2 a1 b1 a1 b0

a0 a0 bm . . . a0 b5 a0 b4 a0 b3 a0 b2 a0 b1 a0 b0

Com um pouco de prática, contudo, a utilização de uma tabela como a apresentada


acima é completamente desnecessária. Para obtermos os termos de grau 5, por exemplo,
basta somarmos todos os produtos dos coeficientes cuja soma é igual a 5:
5
a0 b5 + a1 b4 + a2 b3 + a3 b2 + a4 b1 + a5 b0 = ∑ ai b5−i .
i =0

Definição 8.6 Se p ∈ K[ x ] é um polinômio não-nulo dado por

p = a n x n + . . . + a1 x + a0 ,
8.3. LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES 133

dizemos que o grau de p é n, denotado gr( p) = n, se an 6= 0 e ai = 0 para todo i > n.

Não se define o grau do polinômio nulo. (Em alguns livros costuma-se convencionar
que gr(0) = −1.)

Exemplo 8.7 As constantes não-nulas são polinômios de grau zero. Os polinômios de


grau 1 são polinômios da forma p = ax + b, com a 6= 0. (As funções polinomiais que
lhes são associadas são chamadas funções afins.) Os polinômios de grau 2 são da forma
p = ax2 + bx + c, com a 6= 0. (As funções polinomiais que lhes são associadas são
chamadas funções quadráticas.) ¢

É fácil ver que K[ x ], com as operações de adição e multiplicação definidas acima, é


um domínio de integridade (veja o Exercício 6). Que K[ x ] não tem divisores de zero é
conseqüência do nosso próximo resultado:

Proposição 8.8 Se p e q são polinômios não-nulos, então pq é não-nulo e


gr( pq) = gr( p) + gr(q).
Demonstração: Denotemos por c j , j ∈ N, os coeficientes do produto pq. Sabemos que
c j = ∑ ai bk . Para que tenhamos j > n + m, devemos ter i > n ou k > m. Como
i +k= j
gr( p) = n e gr(q) = m, temos ai = 0 para i > n, e bk = 0 para k > m. Logo c j = 0
para todo j > k + m. Por outro lado, an bm 6= 0, o que implica cn+m 6= 0. Assim,
gr( pq) = n + m = gr( p) + gr(q). 2

Observação 8.9 O fato essencial na demonstração da Proposição 8.8 é que, se an 6= 0


e bm 6= 0, então an bm 6= 0, ou seja, que K é um domínio de integridade. Assim a
Proposição 8.8 é verdadeira não somente em K[ x ], mas também para polinômios com
coeficientes em Z (veja o Exercício 8). ¢

8.3 L EMA DA D IVISÃO DE E UCLIDES


O fato de podermos associar a cada polinômio não-nulo um inteiro não-negativo
(o seu grau) tem conseqüências importantes: podemos usar o Princípio da Indução de
modo semelhante ao utilizado em Z.

A primeira conseqüência desse fato é a existência de um resultado análogo ao


Lema da Divisão de Euclides para números inteiros. Na verdade, muitos argumentos
utilizados nos Capítulos 3, 4 e 5 para os inteiros Z, também serão válidos em K[ x ],
quando K for um corpo.
134 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Teorema 8.10 (Lema da Divisão de Euclides)


Sejam f e g polinômios em K[ x ], com g 6= 0. Então existem polinômios q e r em K[ x ] tais
que
f = qg + r,
em que r = 0 ou gr(r ) < gr( g).
Demonstração: Temos três casos a considerar:

(1) f = 0; (2) f 6= 0 e gr( f ) < gr( g); (3) f 6= 0 e gr( f ) ≥ gr( g).

No primeiro caso, como 0 = 0g + 0, basta tomar q = r = 0. No segundo caso, como


f = 0g + f e, por hipótese, gr( f ) < gr( g), basta tomar q = 0 e r = f .

Para mostrarmos o terceiro caso, utilizaremos indução no grau de f . Quando


tivermos gr( f ) = 0, podemos concluir que gr( g) = 0. Mas isso quer dizer que f e g
são polinômios constantes e ambos não-nulos. Assim, f = a0 6= 0, g = b0 6= 0 e
a0
a0 = b0 + 0.
b0

Quer dizer, basta tomar q = ( a0 /b0 ) ∈ K e r = 0.

Mostrado o primeiro passo no argumento da indução, consideremos agora o caso


em que gr( f ) ≥ 1. Sejam m = gr( f ) e n = gr( g), com

f = a m x m + . . . + a1 x + a0 e g = bn x n + . . . + b1 x + b0 ,

com m ≥ n.

Suponhamos, por indução, que o resultado seja válido para todo polinômio de grau
menor do que m e maior do que ou igual a n.

Consideremos o polinômio (note que bn 6= 0)


am m−n
h= f− x g. (8.3)
bn

Observe que abmn x m−n g é um polinômio de grau m, cujo coeficiente do termo de maior
grau é am . Se h = 0 ou gr(h) < gr( g), como

am m−n
f = x g + h,
bn
am m−n
basta tomar q = bn x e r = h.
8.3. LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES 135

Se, por outro lado, h 6= 0 e gr(h) ≥ gr( g), podemos aplicar a hipótese de indução
em h, pois gr(h) ≤ m − 1 = gr( f ) − 1. Logo, existem polinômios q0 e r0 tais que
h = q0 g + r0 , em que r0 = 0 ou gr(r0 ) < gr( g).

Substituindo em (8.3), vem


am m−n
q0 g + r0 = f − x g
bn
o que acarreta
µ ¶
am m−n
f = q0 + x g + r0 ,
bn
am m−n
em que r0 = 0 ou gr(r0 ) < gr( g). Basta então tomar q = q0 + bn x e r = r0 . 2

A demonstração dada acima é construtiva e o argumento usado para obter h


constitui o primeiro passo no algoritmo da divisão polinomial. O algoritmo consiste
na repetição sucessiva desse argumento, até que se obtenha ou o polinômio nulo ou um
de grau menor do que o do divisor.

Exemplo 8.11 Se f = 2x3 − 1 e g = x + 3, vamos determinar o quociente e o resto da


divisão euclidiana de f por g.

Temos que

m = gr( f ) = 3, n = gr( g) = 1, am = 2 e bn = 1.
Logo
am m−n 2 am m−n
x = x2 = 2x2 x g = 2x2 ( x + 3) = 2x3 + 6x2
bn 1 bn
e
am m−n
h= f− x g = (2x3 − 1) − (2x3 + 6x2 ) = −6x2 − 1.
bn

O procedimento acima pode parecer misterioso, mas, na verdade, é esse o algoritmo


que utilizamos desde o ensino fundamental. Na prática, adotamos o seguinte
dispositivo

f - 2x3 + 0x2 + 0x − 1 x+3 ¾ g


− abmn x m−n g - −2x3 − 6x2 2x2

h - −6x2 + 0x − 1
136 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Como o grau de h ainda é maior do que o de g, repetimos o processo. Assim temos:

2x3 + 0x2 + 0x − 1 x+3


−2x3 − 6x2 2x2 − 6x + 18

−6x2 + 0x − 1
+6x2 + 18x
18x − 1
−18x − 54
−55

Logo, o quociente é q = 2x2 − 6x + 18 e o resto é r = −55. ¢

Corolário 8.12 São únicos os polinômios q e r obtidos no teorema anterior.

Demonstração: Suponhamos que se tenha

f = q1 g + r1 e f = q2 g + r2 ,

com
gr(ri ) < gr( g) ou ri = 0 para i = 1, 2.

Subtraindo as duas expressões para f obtemos

r2 − r1 = (q1 − q2 ) g.

Se r2 − r1 6= 0, então gr(r2 − r1 ) < grg e q1 − q2 6= 0, já que g 6= 0. Mas então


obtemos uma contradição, pois

gr(r2 − r1 ) < gr( g) e gr(r2 − r1 ) = gr ((q2 − q1 ) g) ≥ gr( g).

Devemos então ter, necessariamente, r2 − r1 = 0, o que implica q2 − q1 = 0 (pois


g 6= 0), provando assim a unicidade. 2

Trataremos agora o caso em que a divisão é exata (isto é, o resto r é nulo) e


apresentaremos algumas propriedades de divisibilidade.

Definição 8.13 Sejam f , g ∈ K[ x ]. Dizemos que g divide f ou que f é múltiplo de g, se


existe q ∈ K[ x ] tal que f = qg.
Se g divide f , escrevemos g | f . Se g não divide f , escrevemos g - f .
8.3. LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES 137

Exemplo 8.14 Sejam g = x + 1 e f = − x2 + 1 em R[ x ]. Como

− x2 + 1 = (− x + 1)( x + 1)

e (− x + 1) ∈ R[ x ] temos que g | f . ¢

Exemplo 8.15 O polinômio f = x2 + 1 pode ser visto como elemento de R[ x ] ou de


C[ x ], por exemplo. Como elemento de C[ x ], f possui divisores de grau 1, pois podemos
escrever

x2 + 1 = ( x + i )( x − i ).

Entretanto, como elemento de R[ x ], f não possui divisores de grau 1. Com efeito,


suponhamos, por absurdo, que g = ax + b (com a 6= 0) seja um divisor de f , isto é,

x2 + 1 = ( ax + b)h em que h ∈ R[ x ].

Como gr( f ) = 2 e gr( g) = 1, temos que gr(h) = 1, ou seja, h = a1 x + b1 , com


a1 , b1 ∈ R e a1 6= 0. Logo,

x2 + 1 = ( ax + b)( a1 x + b1 ).

Assim, deveríamos ter aa1 = 1, bb1 = 1 e ab1 + a1 b = 0. Entretanto, tal sistema não
possui solução real. Absurdo. ¢

Exemplo 8.16 Seja c ∈ K[ x ] uma constante não nula. Então, para qualquer f ∈ K[ x ],
temos que c divide f . Com efeito, seja

f = a n x n + . . . + a1 x + a0 , em que ai ∈ K.

ai
Como c 6= 0, temos que c ∈ K para qualquer i = 0, . . . , n. Logo

f = cq,
em que
an n a a0
q= x +...+ 1x + ∈ K[ x ].
c c c

Portanto, os polinômios de grau zero (isto é, as constantes não-nulas) desempenham


em K[ x ] um papel análogo ao dos inteiros 1 e −1 em Z. As constantes não-nulas são
chamadas de divisores triviais de um polinômio. ¢
138 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Proposição 8.17 Sejam f , g, h ∈ K[ x ] polinômios quaisquer. Então vale:


(i ) f | f ;
(ii ) se f | g e g | h, então f | h.
(iii ) se f | g e f | h, então f | ( pg + qh) para quaisquer p, q ∈ K[ x ];
(iv) se f e g são não-nulos, f | g e g | f , então existe uma constante não-nula c ∈ K tal que
f = cg.

Demonstração: Consideremos a propriedade (iv). Suponhamos que f | g e g | f .


Então existem polinômios q1 , q2 ∈ K[ x ] tais que

g = q1 f e f = q2 g. (8.4)

Assim,

g = q1 q2 g, com q1 6 = 0 e q2 6= 0.

Portanto,

gr( g) = gr(q1 q2 ) + gr( g) ⇒ gr(q1 q2 ) = 0 ⇒ gr(q1 ) + gr(q2 ) = 0


⇒ gr(q1 ) = 0 e gr(q2 ) = 0.

Logo q2 = c 6= 0. Tendo em vista a equação (8.4), concluímos que f = cg com c 6= 0,


completando a prova de (iv).
As provas das três primeiras propriedades seguem-se facilmente da definição e
ficarão a cargo do leitor (veja o Exercício 18). 2

8.4 M ÁXIMO D IVISOR C OMUM


Nesta seção daremos a definição de máximo divisor comum de dois polinômios com
coeficientes em um corpo K, assim como provaremos a sua existência e unicidade, do
mesmo modo como foi feito para os números inteiros.

Definição 8.18 Um polinômio p = an x n + . . . + a1 x + a0 ∈ K[ x ] de grau n é mônico, se


an = 1.

Exemplo 8.19 Existe um único polinômio mônico de grau 0, a saber, p = 1. Os


polinômios mônicos de grau 1 em K[ x ] são da forma p = x + a. ¢
8.4. MÁXIMO DIVISOR COMUM 139

Definição 8.20 Sejam f , g ∈ K[ x ] polinômios não simultaneamente nulos. Dizemos que


d ∈ K[ x ] é um máximo divisor comum de f e g se:
(i ) d é mônico;
(ii ) d | f e d | g;
(iii ) se q ∈ K[ x ] é tal que q | f e q | g, então q | d.
Se d é um máximo divisor comum de f e g, escrevemos d = mdc( f , g).

(Para sermos rigorosos, na notação d = mdc( f , g), estamos antecipando a unicidade


do máximo divisor comum dos polinômios f e g. Essa unicidade será garantida mais
abaixo.)

Exemplo 8.21 Se f = 2x + 2 ∈ R[ x ] e g = x2 − 1 ∈ R[ x ], o polinômio d = x + 1 ∈ R[ x ]


é um máximo divisor comum de f e g.

De fato, d = x + 1 é um polinômio mônico. Além disso, como f = 2d e g = ( x − 1)d,


temos que d | f e d | g.

Suponhamos agora que q ∈ R[ x ] é tal que q | f e q | g. Então existe h ∈ R[ x ] tal que


f = qh. Como gr( f ) = 1, concluímos que gr(q) = 0 ou gr(q) = 1.

No primeiro caso, temos q ∈ R − {0}, isto é, q = c 6= 0 e, portanto, q | d.

No segundo caso, temos q = ax + b e h = c, em que a, c 6= 0. Temos também que


b 6= 0, pois f não é múltiplo de x. Segue-se então da igualdade f = qh que ac = bc = 2.
Como c 6= 0, concluímos que a = b, ou seja, q = a( x + 1). Portanto, d = x + 1 = 1a q, isto
é, q | d. ¢

A seguir, como foi feito para números inteiros, vamos demonstrar a existência e
a unicidade do máximo divisor comum dos polinômios não simultaneamente nulos
f , g ∈ K[ x ].

Teorema 8.22 Se f , g ∈ K[ x ] não são simultaneamente nulos, então o máximo divisor comum
de f e g existe e é único.
Demonstração: Começaremos mostrando a unicidade. Para isso, suponhamos que
existam d1 , d2 ∈ K[ x ] tais que

d1 = mdc( f , g) e d2 = mdc( f , g).

Como d1 = mdc( f , g), concluímos que d2 | d1 , pois d2 | f e d2 | g. Analogamente,


verificamos que d1 | d2 .
140 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Mas, pela Proposição 8.17 (iv), existe c ∈ K, c 6= 0, tal que d2 = cd1 . Como d1 e d2
são mônicos, concluímos que c = 1 e, portanto, d1 = d2 .

Para demonstrar a existência, suponhamos g não-nulo. Logo, pelo Lema da Divisão


de Euclides para polinômios (Teorema 8.10), existem q1 , r1 ∈ K[ x ] tais que

f = q1 g + r1 , com gr(r1 ) < gr( g) ou r1 = 0.

Se r1 = 0, então g satisfaz as propriedades (ii ) e (iii ) da definição do máximo divisor


comum de f e g. Dividindo g pelo coeficiente de seu termo de maior grau, obtemos um
polinômio mônico.

Se r1 6= 0, então existem polinômios q2 , r2 ∈ K[ x ] tais que

g = q2 r1 + r2 , com gr(r2 ) < gr(r1 ) ou r2 = 0.

Se r2 = 0, então r1 satisfaz as propriedades (ii ) e (iii ) da definição do máximo


divisor comum de f e g. Obtemos um polinômio mônico como acima: dividimos r1
pelo coeficiente de seu termo de maior grau.

Se r2 6= 0, então

r1 = q3 r2 + r3 , com gr(r3 ) < gr(r3 ) ou r3 = 0.


Continuando este processo obtemos:

f = q1 g + r1 , com gr(r1 ) < gr( g)


g = q2 r1 + r2 , com gr(r2 ) < gr(r1 )
r1 = q3 r2 + r3 , com gr(r3 ) < gr(r2 )
.. ..
. .
rn−2 = qn rn−1 + rn , com gr(rn ) < gr(rn−1 )
r n −1 = q n +1 r n .

Sabemos que, necessariamente, existe n ∈ N tal que rn+1 = 0, pois

gr( g) > gr(r1 ) > gr(r2 ) > · · · ≥ 0.

Afirmamos que, se rn+1 = 0, então o polinômio rn satisfaz as condições (ii ) e (iii ) da


definição do máximo divisor comum de f e g. (A demonstração deste fato é idêntica à
demonstração do resultado análogo para números inteiros.) De fato, observando essa
seqüência de igualdades de baixo para cima, vemos que rn | rn−1 , rn | rn−2 (pois divide
o lado direito da igualdade), . . . , rn | g, rn | f . Além disso, se q | f e q | g, considerando
essa seqüência de igualdades de cima para baixo, vemos que q | rn .
8.4. MÁXIMO DIVISOR COMUM 141

Se rn não for mônico, dividimos esse polinômio pelo coeficiente de seu termo de
maior grau, isto é, definimos
1
rn0 = rn ,
an
em que an é o coeficiente do termo de maior grau de rn . Assim, rn0 = mdc( f , g). 2

Observe que a condição (i ) da definição do máximo divisor comum de dois


polinômios foi imposta justamente para garantir sua unicidade. A demonstração
apresentada é construtiva, isto é, ela nos fornece uma maneira prática para determinar o
máximo divisor comum dos polinômios f e g. Esse algoritmo é o algoritmo de Euclides
para o cálculo do máximo divisor de dois polinômios e é análogo ao usado para
calcular o máximo divisor comum de dois números inteiros. Note que a demonstração
apresentada mostra que se g | f , então mdc( f , g) = ( a1n ) g, em que an é o termo de maior
grau de g.

Exemplo 8.23 Se f = x4 + x3 + 2x2 − 2 e g = x2 + x + 3 estão em R[ x ], então, pelo


algoritmo anterior, temos

f = ( x 2 − 1) g + ( x + 1), r1 = x + 1
g = x (³x + 1) ´+ 3, r2 = 3
x 1
x + 1 = 3 3 + 3 + 0, r3 = 0.

O último resto não-nulo obtido nesse processo é r2 = 3, que não é um polinômio


mônico. Logo, mdc( f , g) = 1. ¢

Exemplo 8.24 Consideremos agora os polinômios

f = x4 + x3 + x2 + 2x + 1 e g = x3 + x2 + x + 1

em R[ x ]. Como antes, temos

f = xg + ( x + 1), r1 = x + 1
2
g = ( x + 1)( x + 1) + 0, r2 = 0.

Como x + 1 é mônico, então d = x + 1 é o máximo divisor comum de f e g. ¢

Vimos que, para números inteiros, o máximo divisor comum de dois números a e b
escreve-se como combinação linear de a e b. Um resultado análogo para polinômios é
dado no corolário abaixo.

Corolário 8.25 Se d ∈ K[ x ] é máximo divisor comum de f e g, então existem a, b ∈ K[ x ] tais


que
d = a f + bg.
142 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Demonstração: Também nesse caso a demonstração é análoga àquela feita para


números inteiros. No curso dessa demonstração, vamos nos referir à prova da existência
e unicidade do máximo divisor comum de dois polinômios (Teorema 8.22).

Se g | f , ou seja, se r1 = 0, o Teorema 8.22 nos garante que


1
d = mdc( f , g) =
g,
an
em que an é o coeficiente do termo de maior grau de g. Logo,
1 1
d = mdc( f , g) = g = g + 0 · f,
an an
que é uma combinação linear de f e g.

Se r1 6= 0, então foi mostrado no Teorema 8.22 que


1
d=rn ,
an
em que rn é o último resto não-nulo obtido quando se aplica o algoritmo de Euclides
aos polinômios f e g. Logo, se mostrarmos que qualquer um dos ri0 s se escreve como
combinação linear de f e g, o corolário estará demonstrado.

De acordo com o Teorema 8.22, temos que

r1 = f − q1 g
é uma combinação de f e g (com a = 1 e b = −q). Suponhamos, por indução, que para
todo i ≤ n − 1, ri seja combinação linear de f e g. Em particular temos:

r n −1 = a n −1 f + bn −1 g
e
rn−2 = an−2 f + bn−2 g,
em que an−1 , bn−1 , an−2 , bn−2 ∈ K[ x ]. Como (veja a demonstração do Teorema 8.22)

r n = r n −2 − q n r n −1 ,
então

r n = ( a n − 2 f + bn −2 g ) − q n ( a n −1 f + bn − 1 g )
= ( an−2 − qn an−1 ) f + (bn−2 − qn bn−1 ) g.

Tomando

a n = a n −2 − q n a n −1
8.4. MÁXIMO DIVISOR COMUM 143

bn = bn − 2 − q n bn − 1 ,
obtemos o resultado afirmado. 2

Exemplo 8.26 (Continuação do Exemplo 8.22) Já mostramos, ao calcular o máximo


divisor comum dos polinômios f = x4 + x3 + 2x2 − 2 e g = x2 + x + 3, que o último
resto não-nulo obtido no algoritmo de Euclides foi r2 = 3 e que mdc( f , g) = 1. O
algoritmo de Euclides então nos dava

3 = g − x ( x + 1)
= g − x [ f − ( x 2 − 1) g ]
= (− x ) f + ( x3 − x + 1) g.

Logo,
µ ¶ µ ¶
1 1 3 1 1
1= − x f+ x − x+ g,
3 3 3 3
³ ´ ³ ´
isto é, a = − 13 x e b = 13 x3 − 31 x + 13 . ¢

Os polinômios a e b do corolário acima não são únicos. (Verifique isso com raciocínio
análogo ao apresentado para números inteiros.) Também não podemos garantir que, se
h ∈ K[ x ] se escreve como combinação linear de f e g, então h = mdc( f , g).

Proposição 8.27 Sejam f , g, h ∈ K[ x ]. Então vale:

(i ) se f | gh e mdc( f , g) = 1, então f | h;
(ii ) se f | h, g | h e mdc( f , g) = 1, então f g | h.
Demonstração: Consideremos (i ). Se mdc( f , g) = 1, então existem a, b ∈ K[ x ] tais que

a f + bg = 1,
e, portanto,

a f h + bgh = h.

Como f | f e f | gh (por hipótese), então

f | ( a f h + bgh),
ou seja,
144 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

f | h.

Para mostrar (ii ), como mdc( f , g) = 1, existem a, b ∈ K[ x ] tais que

a f + bg = 1,
e, como antes,

a f h + bgh = h. (8.5)

Como f | h e g | h, existem polinômios f 0 , g0 ∈ K[ x ] tais que

h = f f0 e h = gg0 .

Substituindo essas expressões em (8.5), obtemos

a f ( gg0 ) + bg( f f 0 ) = h,
ou seja,

f g( ag0 + b f 0 ) = h,
isto é, f g | h. 2

8.5 M ÍNIMO M ÚLTIPLO C OMUM


Agora apresentaremos a definição de mínimo múltiplo comum e relacionaremos os
conceitos de máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum de dois polinômios.

Definição 8.28 Sejam f , g ∈ K[ x ] polinômios não-nulos. Um mínimo múltiplo comum de


f e g é um polinômio m ∈ K[ x ] tal que

(i ) m é mônico;
(ii ) f | m e g | m;
(iii ) se h ∈ K[ x ] é tal que f | h e g | h, então m | h.
Se m é um mínimo múltiplo comum de f e g, escrevemos m = mmc( f , g).
(Como já feito anteriormente, nessa notação estamos antecipando a unicidade do
mínimo múltiplo comum de dois polinômios.)
A existência e unicidade do mínimo múltiplo comum de dois polinômios decorre do
seguinte resultado:
8.5. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM 145

Proposição 8.29 Sejam f = an x n + . . . + a1 x + a0 , g = bm x m + . . . + b1 x + b0 ∈ K[ x ]


polinômios de graus n e m, respectivamente. Então
fg
mmc( f , g) = .
an bm (mdc( f , g))
Demonstração: Seja
fg
h= .
an bm (mdc( f , g))

Vamos mostrar que h ∈ K[ x ] satisfaz a definição do mínimo múltiplo comum de f e


g. Denotando d = mdc( f , g), temos que d | f ; assim, f = f 1 d, com f 1 ∈ K[ x ]. Então

f 1 dg f g
h= = 1 ,
a n bm d a n bm
isto é,

h = c f 1 g , c ∈ K , f 1 ∈ K[ x ] , g ∈ K[ x ] ,
donde h ∈ K[ x ]. Afirmamos que h é mônico. De fato, a1n f e b1m g são mônicos. Como
o produto de polinômios mônicos é um polinômio mônico, vemos que dh é mônico.
Como d também é mônico, concluímos o afirmado.

fg g g
Temos também que f | h, pois h = = f , com ∈ K[ x ].
a n bm d a n bm d a n bm d
Analogamente, g | h.

Suponhamos agora que s ∈ K[ x ] satisfaça

f |s e g | s.
Queremos mostrar que h | s, ou seja, que existe q ∈ K[ x ] tal que

fg
s = qh = q ,
a n bm d
isto é, que
sd = q1 f g, com q1 ∈ K[ x ].

Como d =mdc( f , g), existem polinômios a, b ∈ K[ x ] tais que

d = a f + bg.

Portanto,
sd = sa f + sbg.

Como f | s e g | s, existem polinômios a1 e b1 em K[ x ] tais que


146 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

s = a1 f e s = b1 g.

Logo,

sd = b1 ga f + a1 f bg
ou seja,

sd = (b1 a + a1 b) f g = q1 f g,
mostrando o afirmado. Isso conclui a demonstração. 2

8.6 E XERCÍCIOS
1. Verifique que R e Q, com as operações usuais de adição e multiplicação, são
corpos, mas que R \ Q não é. Verifique também que N e Z, com essas mesmas
operações, não são corpos.

2. Sejam z1 , z2 , . . . , zn números complexos. Mostre que:

(a) z1 + z2 + . . . + zn = z1 + z2 + . . . + zn ;
(b) z1 · z2 · . . . · zn = z1 · z2 · . . . · zn ;
(c) (z1 ) = z1 ;
(d) z1 = z1 ⇔ z1 ∈ R.

3. Calcule i1023 .

4. Mostre que C, com as operações definidas no texto, é um corpo.

5. (a) Mostre que F = { f : R → R} com as operações de adição e multiplicação de


funções não é um um corpo;
(b) O conjunto F acima, com as operações de adição e composição de funções é
um corpo?

6. (a) Mostre que, se K é um corpo, então K é um domínio de integridade;


(b) Mostre que, se K é um corpo, então K[ x ] é um domínio de integridade.

7. Mostre que o conjunto M2×2 das matrizes 2x2 com coeficientes reais e com as
operações usuais de adição e multiplicação de matrizes não é um domínio de
integridade.

8. Seja Z[ x ] o conjunto dos polinômios em uma variável com coeficientes em Z.


Mostre que Z[ x ] é um domínio de integridade.
8.6. EXERCÍCIOS 147

9. Considere Z4 = {0, 1, 2, 3} com as operações de adição ⊕ e multiplicação


definidas no Capítulo 7.

(a) Mostre que Z4 possui divisores de zero, isto é, existem x, y ∈ Z4 tais que
x ¯ y = 0 com x 6= 0 e y 6= 0.
(b) Se Z4 [ x ] é o conjunto de polinômios na variável x com coeficientes em Z4 ,
mostre que Z4 [ x ] também possui divisores de zero.

10. Considere Z5 = {0, 1, 2, 3, 4} com as operações usuais de adição ⊕ e


multiplicação ¯.

(a) Mostre que Z5 , com essas operações, é um corpo.


(b) Se Z5 [ x ] é o conjunto dos polinômios na variável x com coeficientes em Z5 ,
mostre que os polinômios

p = x5 e q=x

são diferentes, mas que as funções polinomiais

Z5 → Z5 Z5 → Z5
p: e q:
x → x5 x → x

são iguais. Lembre-se que a notação an significa a · a · . . . · a (n vezes).

11. Se m for um inteiro maior ou igual a dois, seja Zm = {0, 1, 2, . . . , m − 1} com as


operações usuais de adição e multiplicação.

(a) Mostre que Zm satisfaz as propriedades (i ) − (viii ) da Definição 8.1.


(b) Mostre que (Zm , ⊕, ¯) é um corpo se, e somente se, m for um número primo.
Lembre-se que m é primo se, e somente se, mdc( a, m) = 1 para todo a tal que
1 ≤ a ≤ m − 1.

12. Seja f = an x n + . . . + a1 x + a0 um polinômio com coeficientes inteiros. Se a ≡ a0


(mod m), mostre que f ( a) ≡ f ( a0 ) (mod m).
13. Seja f ∈ K[ x ], com gr( f ) ≥ 1. Mostre que não existe g ∈ K[ x ] tal que f q = 1.

14. Sejam
p = ( a2 − 1) x 4 + ( a + 1) x 3 + x 2 − 2
e
q = ( a + 3) x 3 + ( a2 − 4) x 2 + ( a + 1) x − 1
polinômios em R[ x ]. Determine todos os valores possíveis para os graus de p, q,
p + q, p − q e pq.

15. Sejam p e q os polinômios do Exercício 14. Determine todos os valores possíveis


para os graus do quociente e do resto da divisão de p por q.
148 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

16. Determine o quociente e o resto da divisão de p por q, sendo:

(a) p = 7x5 − 3x3 + x − 1 e q = x2 − 2x + 1;


(b) p = 14 x6 + 3x4 − 53 x2 e q = − x2 + x;
(c) p = x2n+1 − 5x2n + 4x2n−1 (n ∈ N) e q = x2 + 1.
17. Verifique se p é divisível por q, sendo:

(a) p = x2 + 1 eq = x − i, em C[ x ];

(b) p = x3 + x2 − 2x − 2 e q = x − 2, tanto em C[ x ] como em R[ x ];
(c) p = x2n − 2x2 + 1, n∈N e q = x2 − 1, em C[ x ], R[ x ] e Q[ x ].

18. Demonstre as propriedades (i ) − (iii ) da Proposição 8.17.

19. Calcule o máximo divisor comum de f e g, sendo f = 2x5 − x4 − x3 + 4x2 − 1 e


g = 2x4 − x3 − x2 + 2x + 1.

20. Sejam f = x4 + 2x3 − 6x − 9 e g = 3x4 + 8x3 + 14x2 + 8x + 3.

(a) Ache mdc( f , g).


(b) Determine também polinômios a, b ∈ R[ x ] tais que mdc( f , g) = a f + bg.

21. Encontre o máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum de

( x − 2)3 ( x − 3)4 ( x2 + 1) e ( x − 1)( x − 2)( x − 3)3

em C[ x ] e em R[ x ].

22. Mostre que os polinômios a e b do Corolário 8.25 não são únicos.

23. Mostre que se h ∈ K[ x ] se escreve como combinação linear de f e g ∈ K[ x ], então


h não é necessariamente igual ao máximo divisor comum de f e g.

24. Sejam f , g ∈ K[ x ] e d = mdc( f , g).

(a) Mostre que, para toda constante c ∈ K, c 6= 0, o polinômio cd satisfaz as


condições (ii ) e (iii ) da definição do máximo divisor comum de f e g;
(b) Mostre que, se 0 6= h ∈ K satisfaz as condições (ii ) e (iii ) da definição de
máximo divisor comum, então existe uma constante não-nula c ∈ K tal que
h = cd.

Podemos estender a definição de máximo divisor comum de dois polinômios para o


caso de vários polinômios:
Definição 8.30 Sejam f 1 , . . . , f n ∈ K[ x ] polinômios não todos nulos. Dizemos que d ∈ K[ x ] é
um máximo divisor comum de f 1 , . . . , f n se:
(i ) d é mônico;
8.6. EXERCÍCIOS 149

(ii ) d | f i para todo i = 1, . . . , n;


(iii ) se q ∈ K[ x ] é tal que q | f i (i = 1, . . . , n), então q | d.

24. (a) Para n ≥ 3, usando indução, mostre que

mdc( f 1 , . . . , f n ) = mdc( f 1 , mdc( f 2 , . . . , f n )).

(b) Se d = mdc( f 1 , . . . , f n ), mostre que existem polinômios α1 , . . . , αn ∈ K[ x ] tais


que
d = α1 f 1 + . . . + α n f n .
CAPÍTULO 9

RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Neste capítulo apresentaremos alguns resultados específicos sobre polinômios.


Mostraremos, tal como fizemos com números inteiros e sua decomposição como
produto de fatores primos, que podemos decompor um polinômio em fatores mais
simples, que chamaremos fatores irredutíveis. Mostraremos também a relação entre a
existência de raízes e a existência de fatores de grau um na decomposição do polinômio.
Além disso, resolveremos equações de segundo e terceiro graus.

9.1 R AÍZES E FATORAÇÃO


Definição 9.1 Se f ∈ K[ x ] e a ∈ K, dizemos que a é uma raiz de f , se a função polinomial
associada a f se anula em a, isto é, se f ( a) = 0.

Exemplo 9.2 Se f = x2 + 1 ∈ R[ x ], então f não possui raízes reais pois, para todo a ∈ R,
temos que a2 + 1 ≥ 1, ou seja, f ( a) 6= 0. Entretanto, considerando f como elemento de
C[ x ], ele possui duas raízes, a saber: a = i e a = −i. ¢

Lema 9.3 Se f ∈ K[ x ] e a ∈ K, então o resto na divisão euclidiana de f por x − a é f ( a).

Demonstração: Sabemos, pelo algoritmo da divisão de Euclides, que existem


polinômios q e r ∈ K[ x ] tais que

f = ( x − a)q + r,

em que r = 0 ou gr(r ) = 0. Ou seja, r é constante.


Calculando o valor de f em a, temos

f ( a ) = ( a − a ) q ( a ) + r ( a ) = r ( a ).

Como r é constante, temos que

r = r ( a ) = f ( a ). 2

150
9.1. RAÍZES E FATORAÇÃO 151

O lema acima acarreta imediatamente o seguinte resultado sobre a existência de


fatores de grau um de f , cuja demonstração será deixada para o leitor (veja o Exercício
2).
Teorema 9.4 (Teorema da Raiz)
Sejam f um polinômio com coeficientes em K e a ∈ K. Temos que x − a divide f se, e
somente se, a é raiz de f .

Exemplo 9.5 Na divisão euclidiana de f = 2x3 − 1 por g = x + 3, o resto r é dado por:


r = f (−3) = 2(−3)3 − 1 = 2(−27) − 1 = −55.
Aplique o algoritmo de Euclides e confira o resultado. ¢

Observação 9.6 (O algoritmo de Briot-Ruffini)


Um dispositivo prático para dividir um polinômio f por um polinômio de grau um,
x − u, é dado pelo algoritmo de Briot-Ruffini, que apresentaremos a seguir:

Sejam f = a0 x n + a1 x n−1 + · · · + an−1 x + an ∈ K[ x ] e u ∈ K. Se


q = b0 x n−1 + b1 x n−2 + · · · + bn−1 e r = bn
são, respectivamente, o quociente e o resto na divisão euclidiana de f por x − u, então
b0 = a0 e bi = ubi−1 + ai para i = 1, 2, . . . , n.
De fato, como
f = ( x − u)q + r
e
( x − u)q + r = ( x − u)(b0 x n−1 + b1 x n−2 + · · · + bn−1 ) + bn
= b0 x n + (b1 − ub0 ) x n−1 + · · · + (bn−1 − ubn−2 ) x + (bn − ubn−1 ),
obtemos as seguintes igualdades:
b0 = a0 , b1 − ub0 = a1 , . . . , bn−1 − ubn−2 = an−1 e bn − ubn−1 = an .
Daí
b0 = a0 , b1 = ub0 + a1 , . . . , bn−1 = ubn−2 + an−1 e bn = ubn−1 + an .

Na prática, o algoritmo de Briot-Ruffini pode ser efetuado da seguinte maneira:

a0 a1 a2 ··· a n −1 an

u ua0 ub1 ··· ubn−2 ubn−1

a0 ua0 + a1 ub1 + a2 ··· ubn−2 + an−1 ubn−1 + an


b0 b1 b2 bn − 1 bn
¢
152 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Exemplo 9.7 Determinar o quociente e o resto da divisão de p = 3x4 − x2 + 2x − 5 por


x − 2.

3 0 −1 2 −5

2 3·2+0 6·2−1 11 · 2 + 2 24 · 2 − 5

3 6 11 24 43

coeficientes de q resto

Então q = 3x3 + 6x2 + 11x + 24 e r = 43. ¢

Corolário 9.8 Um polinômio não-nulo f ∈ K[ x ], de grau n, possui no máximo n raízes.


Demonstração: Será feita por indução em n = gr( f ).

Se n = 0, então f é um polinômio constante e não-nulo, portanto não possui raízes.

Suponhamos agora que gr( f ) = n > 0 e que o resultado seja verdadeiro para todo
polinômio de grau n − 1.

Se f não possui raízes, nada temos a demonstrar. Caso contrário, se a ∈ K é uma


raiz de f , então existe g ∈ K[ x ] tal que
f = ( x − a) g,
donde gr( g) = n − 1.

Pela hipótese de indução, g possui no máximo (n − 1) raízes. Como qualquer outra


raiz de f (caso exista) é raiz de g, temos que f possui no máximo n raízes. 2

Definição 9.9 Sejam f ∈ K[ x ] e a ∈ K. Dizemos que a é uma raiz de de multiplicidade m


de f , em que m ≥ 1, se ( x − a)m divide f e ( x − a)m+1 não divide f . Se m ≥ 2, dizemos que a
é uma raiz múltipla de f .

Definição 9.10 Se f = an x n + . . . + ai xi + . . . + a1 x + a0 é um polinômio em K[ x ], então


definimos a derivada (formal) de f como sendo o polinômio, com coeficientes em K, dado por

f 0 = nan x n−1 + . . . + iai xi−1 + . . . + 2a2 x + a1 .


Para quaisquer polinômios f e g em K[ x ], valem as regras de derivação (já vistas nos cursos de
Cálculo):
9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 153

(i ) Se f = c ∈ K então f 0 = 0;
(ii ) ( f + g)0 = f 0 + g0 ;
(iii ) ( f g)0 = f g0 + f 0 g;

Proposição 9.11 Seja f ∈ K[ x ]. Temos que a ∈ K é raiz múltipla de f se, e somente se, a é
raiz comum de f e f 0 .

Demonstração: Se a for uma raiz múltipla de f , então podemos escrever


f = ( x − a)2 q, com q ∈ K[ x ].
Logo,
f 0 = 2( x − a ) q + ( x − a )2 q 0 ( x )
e, portanto,
f 0 ( a) = 0.
Reciprocamente, se a for raiz de f , então
f = ( x − a)q.

Logo,
f 0 = ( x − a)q0 + q.
Como a é raiz de f 0 , temos
0 = f 0 ( a ) = q ( a ).
Pelo Teorema da Raiz, o polinômio ( x − a) divide q, donde
q = ( x − a)h,
e, então,
f = ( x − a)2 h,
mostrando assim que a é raiz múltipla de f . 2

9.2 O T EOREMA F UNDAMENTAL DA Á LGEBRA


O corpo C do números complexos foi criado para conter as raízes de polinômios com
coeficientes reais. Por exemplo, o polinômio p = x2 +√1 não possui raízes reais. Mas,
quando visto como polinômio em C, possui a raiz i = −1.

Na verdade, qualquer polinômio de grau ≥ 1 com coeficientes complexos possui


raízes complexas. Esse é o conteúdo do Teorema Fundamental da Álgebra que foi
provado por Gauss em 1798, em sua tese de doutoramento.
154 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Teorema 9.12 (Teorema Fundamental da Álgebra)


Todo polinômio p em C[ x ] de grau ≥ 1 possui pelo menos uma raiz complexa.

São conhecidas muitas demonstrações desse teorema, mas todas elas envolvem
conceitos não-algébricos. A prova dada por Gauss em sua tese de doutoramento baseia-
se, em parte, em considerações geométricas. É possível demonstrá-lo utilizando alguns
resultados básicos sobre funções de duas variáveis reais ou de variáveis complexas.
Não apresentaremos a demonstração desse resultado, que foge ao escopo deste texto,
mas pode ser encontrada em livros de análise complexa.

Apesar de o Teorema Fundamental da Álgebra garantir a existência de uma raiz


complexa para todo polinômio, ele não nos indica como encontrá-la. No caso de um
polinômio de grau 2, f = ax2 + bx + c, com a, b, c ∈ C, podemos obtê-la facilmente.
Com efeito, µ ¶
2 2 b c
f = ax + bx + c = a x + x + .
a a
Completando os quadrados, temos
µ ¶2
2b c b b2 − 4ac
x + x+ = x+ − .
a a 2a 4a2
Escrevendo ∆ = b2 − 4ac (denominado discriminante do polinômio f ), obtemos
µ ¶2 Ã √ !2
b c b ∆
x2 + x + = x+ − =
a a 2a 2a
à √ !à √ !
b− ∆ b+ ∆
= x+ x+ ,
2a 2a
√ √
b− ∆ b+ ∆
e, portanto, vemos que x1 = − e x2 = − são raízes complexas de f .
2a 2a
Note que essa expressão para as raízes do polinômio f já nos foi apresentada no ensino
fundamental.

Definição 9.13 Uma equação algébrica é uma equação da forma p( x ) = 0, em que p é uma
função polinomial.

No nosso contexto atual, resolver uma equação significa encontrar todas as suas
raízes em C. A resolução da equação quadrática ax2 + bx + c = 0 pelo método
de completar os quadrados, como fizemos acima, era conhecido desde o tempo dos
babilônios. Já as soluções das equações cúbicas e quárticas foram obtidas no século XVI
pelos matemáticos italianos da Renascença. Em 1542, Cardano (1501-1576) publicou, no
livro Ars Magna, a resolução da equação geral de terceiro grau e também o método de
seu discípulo Ferrari (1522-1566) de redução de uma equação geral de quarto grau para
uma de terceiro. Antes de passarmos à apresentação da solução geral das equações de
terceiro grau, começaremos por alguns exemplos mais simples:
9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 155

Exemplo 9.14 Uma raiz do polinômio x3 − 8 é óbvia: x = 2. Podemos fatorar esse


polinômio
x3 − 8 = ( x − 2)( x2 + 2x + 4)
e então aplicar o método dado acima para encontrar as raízes do polinômio x2 + 2x + 4.
Calculando essas raízes, vemos que
√ √
x1 = 2, x2 = −1 − 3i e x3 = −1 + 3i

são as raízes do polinômio x3 − 8. ¢

Uma maneira direta de encontrar raízes de polinômio x n − c (em que c é uma


constante complexa), é utilizar a fórmula que dá as raízes n-ésimas de um número
complexo. Relembramos rapidamente esses resultados.

Qualquer número complexo não-nulo z = x + iy pode ser escrito em sua forma polar
ou trigonométrica:
z = |z|(cos θ + isen θ ),
p
em que |z| = x2 + y2 ∈ R e θ é o ângulo no intervalo (−π, π ] dado por:
x y
cos θ = e sen θ = .
|z| |z|

É possível provar que, se

z = |z|(cos θ + isen θ )

é a forma polar do número complexo z, então ele possui n raízes n-ésimas complexas:
q µ ¶
n θ + 2kπ θ + 2kπ
zk = |z| cos + isen ,
n n
p
em que k = 0, 1, . . . , n − 1 e n |z| é a n-ésima raiz real do número real positivo |z|.
Exemplo 9.15 As raízes do polinômio x3 − 8 podem ser facilmente obtidas pelo método
acima. De fato, para determiná-las precisamos resolver a equação x3 = 8. Como
8 = 8(cos 0 + isen 0), as raízes são dadas por
µ ¶
0 + 2kπ 0 + 2kπ
xk = 2 cos + isen ,
3 3

para k = 0, 1 e 2. ¢

Apresentaremos agora a solução geral das equações cúbicas.

Seja
f = x3 + ax2 + bx + c,
156 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

em que a, b, c ∈ C.

Podemos eliminar o termo do segundo grau fazendo a mudança de ¡ variável


¢ y =
x + 3a , que é equivalente a x = y − a/3. De fato, definindo g(y) = f y − 3a = f ( x ),
obtemos o polinômio na variável y

g = y3 + py + q,

a2 ba 2a3
em que p = b − e q = c− + .
3 3 27

Para obtermos as raízes de g, escrevemos y = u + v. A equação

y3 + py + q = 0 (9.1)

transforma-se então em
(u + v)3 + p(u + v) + q = 0,
ou seja,
u3 + v3 + (3uv + p)(u + v) + q = 0.

Se encontrarmos números u e v satisfazendo



 u3 + v3 = − q
p
 uv = − ,
3
então u + v será solução da equação (9.1) e, consequentemente, u + v − ( a/3) será uma
raiz de f , de acordo com a mudança de variável efetuada.

p3
Note que, se uv = − p/3, então u3 v3 = − . Isso quer dizer que procuramos
27
números u e v tais que

3 3 3 3 p3
u + v = −q e u v =− .
27

Portanto, u3 e v3 são soluções da equação do segundo grau

p3
t2 + qt − = 0.
27
Logo, r
−q q2 p3
u3 = + +
2 4 27
e r
−q q2 p3
v3 = − + .
2 4 27
9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 157

Para obtermos a raiz procurada u + v, basta então encontramos as três raízes


cúbicas de u (ou então de v) e, por meio da igualdade uv = − p/3, determinar o valor
correspondente de v (respectivamente, de u).

Exemplo 9.16 Vamos determinar as raízes da equação cúbica


y3 − 3y − 1 = 0.
Neste caso, temos p = −3, q = −1 e sabemos que, se y = u + v é solução dessa
equação, então u3 (ou v3 ) é solução da equação quadrática
t2 − t + 1 = 0
e u, v estão relacionados por
−3
uv = − = 1.
3
As soluções da equação quadrática são

1 ± 3i
t= .
2

1 + 3i
Tomando u3 = e escrevendo na forma polar
2
h π πi
u3 = 1 cos + isen ,
3 3
cujas raízes cúbicas complexas são
π π
u0 = cos + isen
9 9
7π 7π
u1 = cos + isen
9 9
13π 13π
u2 = cos + isen .
9 9
Como uv = 1, temos que
1 u
v= = = u,
u | u |2
já que |u| = 1.

Portanto,
v0 = u0 , v1 = u1 , v2 = u2
e as raízes da equação dada são
π
y0 = u0 + u0 = 2 cos ,
9

y1 = u1 + u1 = 2 cos ,
9
13π
y2 = u2 + u2 = 2 cos .
9
158 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Observe que todas as raízes são reais, com y0 positiva e y1 , y2 negativas.

Se tivéssemos escolhido u3 como a outra raiz da equação quadrática, teríamos


√ · ¸
3 1 3 −π −π
u = − i = 1 cos + isen ,
2 2 3 3
e obteríamos as raízes cúbicas
−π −π π π
ue0 = cos + isen = cos − isen = u0 = v0
9 9 9 9
5π 5π 13π 13π
ue1 = cos + isen = cos − isen = u2 = v2
9 9 9 9
11π 11π 7π 7π
ue2 = cos + isen = cos − isen = u1 = v1 .
9 9 9 9
Achando ve0 , ve1 e ve2 correspondentes, as raízes da equação cúbica original seriam
escritas como ye0 = y0 , ye1 = y2 e ye2 = y1 . ¢

Não vamos apresentar aqui a solução da equação geral de quarto grau. Essa pode
ser encontrada, por exemplo, em [15].

Entretanto, não há como se resolver a equação geral de quinto grau. Mais


precisamente, existem equações de grau maior do que ou igual a 5 que não são solúveis
por radicais, isto é, não existe uma fórmula que expresse suas raízes em função de seus
coeficientes, utilizando apenas as operações de adição, subtração, multiplicação, divisão
e extração de raízes n-ésimas, tal como no caso das equações de terceiro e quarto graus.
Esse importante resultado foi provado no século XIX por Abel (1802-1829) e Galois
(1811-1832).

Em geral, as raízes de um polinômio podem ser obtidas apenas aproximadamente. A


determinação aproximada das raízes de um polinômio constitui uma parte importante
da análise numérica.

Apesar de não sabermos calcular explicitamente as raízes de um polinômio qualquer


temos o seguinte resultado, que é uma conseqüência direta do Teorema Fundamental da
Álgebra e cuja demonstração será deixada a cargo do leitor (veja o Exercício 8):

Corolário 9.17 Seja f um polinômio em C[ x ] de grau n ≥ 1. Então ele possui n raízes


a1 , . . . , an ∈ C (não necessariamente distintas). Isto é, ele pode ser fatorado como

f = k ( x − a1 ) . . . ( x − a n ),

com k ∈ C.

Já vimos que existem polinômios em R[ x ] que não possuem raiz real. O próximo
resultado relaciona raízes complexas desses polinômios:
9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 159

Lema 9.18 Seja f um polinômio em R[ x ] de grau n ≥ 1. Se α = a + bi, com b 6= 0, é raiz de f


então α = a − bi também é raiz de f .

Demonstração: Se f = an x n + . . . + a1 x + a0 , então

f ( α ) = a n α n + . . . + a1 α + a0 = 0

e
0 = f ( α ) = a n α n + . . . + a1 α + a0 .
Como a0 , a1 , . . . , an ∈ R temos que ai = ai para todo i. Assim, pelas propriedades de
conjugação de números complexos,

0 = f ( α ) = a n α n + . . . + a1 α + a0 = f ( α ),

mostrando que f (α) = 0. 2

Assim, as raízes que não são reais de um polinômio em R[ x ] aparecem aos pares.
Como conseqüência, essas raízes darão origem a termos quadráticos na sua fatoração:

Teorema 9.19 Seja f um polinômio com coeficientes reais e grau ≥ 1. Então existem polinômios
f 1 , . . . , f n ∈ R[ x ], n ≥ 1, tais que
f = f1 · · · fn ,
em que cada f i tem grau 1 ou é quadrático com discriminante negativo.

Demonstração: Será feita por indução em d = gr ( f ).

Se d = 1, nada há a demonstrar.

Seja f um polinômio de grau d, com d ≥ 2. Suponhamos que o resultado seja


verdadeiro para todo polinômio de grau s, com 1 ≤ s ≤ d − 1.
Se f possui uma raiz real, então

f = ( x − a) g em que gr ( g) = d − 1.

Portanto, pela hipótese de indução, g se escreve na forma acima e, consequentemente,


o mesmo acontece com f .

Se f não possui raiz real então, pelo Lema 9.18, existe α = a + bi com b 6= 0, tal que
α e α são raízes de f . Logo,

h = ( x − α)( x − α) = ( x − a)2 + b2

é um polinômio com coeficientes reais. Pelo Lema da Divisão de Euclides, existem


q, r ∈ R[ x ] tais que
f = hq + r, com r = a1 x + a0 .
160 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Substituindo α nessa equação, temos

f ( α ) = h ( α ) q ( α ) + r ( α ).

Como α é raiz de f e h, obtemos


r (α) = 0,
ou seja,
a1 α + a0 = 0, com a0 , a1 ∈ R e α ∈ C \ R.

Logo, a0 = a1 = 0 e, portanto r = 0, mostrando que

f = hq,

com q ∈ R[ x ] e gr (q) = d − 2.

Se d = 2, então q é constante e o teorema está provado.

Se d − 2 ≥ 1, então, pela hipótese de indução, q possui uma fatoração como acima e,


consequentemente, o mesmo acontece com f . 2

Uma conseqüência imediata desse resultado, cuja demonstração deixaremos a cargo


do leitor (veja o Exercício 9), é o seguinte
Corolário 9.20 Todo polinômio f ∈ R[ x ], de grau ímpar, possui pelo menos uma raiz real.

No caso particular em que os coeficientes do polinômio f são números inteiros,


temos um critério que permite identificar se f possui raízes racionais:

Proposição 9.21 Seja f = an x n + . . . + a1 x + a0 um polinômio de grau n ≥ 1 com coeficientes


a
inteiros. Se é uma raiz racional de f , com mdc( a, b) = 1, então a | a0 e b | an .
b
a
Demonstração: Se é uma raiz de f , temos que
b
an a n −1 a
an + a n − 1 + · · · + a 1 + a0 = 0.
bn b n −1 b
Portanto,
an an + ban−1 an−1 + · · · + bn−1 a1 a + bn a0
=0 (9.2)
bn
e, colocando a em evidência, obtemos

ak + bn a0 = 0,

em que k = an an−1 + · · · + bn−1 a1 . Portanto, a | bn a0 e, como mdc( a, b) = 1, concluímos


que a | a0 .
9.3. FATORAÇÃO EM POLINÔMIOS IRREDUTÍVEIS 161

De maneira análoga, colocando b em evidência na igualdade (9.2) e fazendo j =


an−1 an−1 + · · · + bn−1 a0 , obtemos

an an + bj = 0,

donde concluímos, de maneira análoga, que b | an . 2

A Proposição 9.21 nos oferece candidatos possíveis de serem raízes racionais do


polinômio. Entretanto, pode acontecer que nenhum desses candidatos seja efetivamente
uma raiz do polinômio.

Em especial, quando o polinômio for mônico, a Proposição 9.21 toma uma forma
mais conhecida:

Corolário 9.22 Seja f = x n + an−1 x n−1 + . . . + a1 x + a0 um polinômio de grau n ≥ 1 com


coeficientes inteiros. Se a ∈ Z é raiz de f , então a | a0 .

Exemplo 9.23 Vamos determinar as raízes racionais de

f = 3x3 + 2x2 − 7x + 2.

De acordo com a Proposição 9.21, as possíveis raízes racionais de f são:

1 2
± , ± , ±2 e ± 1.
3 3
Substituindo esses valores em f , verificamos que apenas

1
−2, 1 e
3
são raízes de f . Como f tem grau igual a 3, essas são todas as raízes de f . ¢

9.3 FATORAÇÃO EM P OLINÔMIOS I RREDUTÍVEIS


Os polinômios irredutíveis desempenham em K[ x ] papel análogo ao dos números
primos na fatoração dos inteiros. Já vimos a fatoração de polinômios quando K = C e
K = R. Nesta seção consideraremos o caso em que K é um corpo arbitrário.

Definição 9.24 Dizemos que um polinômio p ∈ K[ x ] é irredutível sobre K se, e somente se,

(i ) gr( p) > 0;
(ii ) se p se escreve como um produto p = f g, em que f , g ∈ K[ x ], então necessariamente
gr( f ) = 0 ou gr( g) = 0.

Se gr( p) ≥ 1 e p não for irredutível sobre K, dizemos que ele é redutível sobre K.
162 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Como vimos anteriormente (veja o Exemplo 8.16), as constantes não-nulas dividem


qualquer polinômio em K[ x ]. Portanto, se c ∈ K é uma constante não-nula, então
f ∈ K[ x ] admite a fatoração trivial
µ ¶
1
f =c f .
c

Assim, os polinômios irredutíveis são aqueles que apenas possuem fatorações


triviais.

Exemplo 9.25 Independente do corpo K, qualquer polinômio de grau 1 é irredutível


em K[ x ]. Com efeito, seja p = ax + b ∈ K[ x ] um polinômio de grau 1. Obviamente ele
satisfaz (i ) e, se p = gh, então
1 = gr( g) + gr(h).
Logo, gr( g) = 0 ou gr(h) = 0. ¢

Exemplo 9.26 O polinômio f = x3 − 1 ∈ R[ x ] é redutível sobre R. De fato,

gr ( f ) = 3 > 0 e f = ( x − 1)( x2 + x + 1).


¢

Exemplo 9.27 Se considerarmos o polinômio p = x2 + 1, em R[ x ] ele é irredutível


enquanto que, considerado em C[ x ], ele é redutível, como visto no Exemplo 8.15:
p = ( x + i )( x − i ).
Assim, a irredutibilidade de um polinômio depende do corpo considerado. ¢

Exemplo 9.28 O polinômio p = x2 − 2 é irredutível sobre Q, pois – como se verifica


imediatamente – ele não possui raízes racionais. ¢

Já vimos que os únicos polinômios irredutíveis sobre C são os polinômios de grau


1, enquanto os polinômios irredutíveis sobre R são os de grau 1 ou os de grau 2 com
discriminante negativo. Em um corpo arbitrário K temos o seguinte resultado:

Teorema 9.29 Todo polinômio em K[ x ], de grau maior do que ou igual a 1, é irredutível ou se


escreve como produto de polinômios irredutíveis.

Demonstração: A demonstração será feita por indução no grau do polinômio.

O resultado é verdadeiro para polinômios de grau 1, pois estes são irredutíveis.

Seja f um polinômio de grau n e suponhamos o resultado verdadeiro para


polinômios de grau menor do que n.
9.3. FATORAÇÃO EM POLINÔMIOS IRREDUTÍVEIS 163

Se f é irredutível não há nada a fazer.

Se f é redutível, então existem polinômios g, h ∈ K[ x ] tais que

f = gh,

com gr( g) > 0 e gr(h) > 0. Como gr( f ) = gr( g) + gr(h) e gr( f ) = n, temos que
gr( g) < n e gr(h) < n.

Pela hipótese de indução, g e h se escrevem como produto de polinômios irredutíveis


(ou são irredutíveis). Portanto, f também pode ser escrito como produto de polinômios
irredutíveis. 2

Note que a demonstração apresentada é análoga à do resultado correspondente para


inteiros.

Se p ∈ K[ x ] é irredutível e f ∈ K[ x ] divide p, então f = c ou f = cp, para alguma


constante não-nula c ∈ K (veja o Exercício 14). No caso de números inteiros, temos
que, se p é primo e a ∈ Z divide p, então a = ±1 ou a = ± p. Assim, os polinômios
constantes não-nulos desempenham em K[ x ] papel análogo ao dos elementos {−1, 1}
em Z. (Observe que {−1, 1} é o conjunto dos elementos invertíveis de Z, assim como
os polinômios constantes não-nulos são os elementos invertíveis de K[ x ].)

A analogia entre números primos em Z e polinômios irredutíveis em K[ x ] é


salientada também no seguinte resultado:

Proposição 9.30 Sejam p, f , g ∈ K[ x ], com p irredutível. Se p | f g, então p | f ou p | g.


Demonstração: Suponhamos que p | f g e que p - f . Então f e p são primos entre si, isto
é, mdc( f , p) = 1 (veja o Exercício 14).

Logo existem polinômios a, b ∈ K[ x ] tais que

a f + bp = 1.

Multiplicando esta igualdade por g, temos:

a f g + bpg = g.

Como p | f g e p | p, concluímos que p | g. 2

O próximo resultado é uma generalização da proposição anterior e sua


demonstração pode feita por indução (veja o Exercício 15):
Corolário 9.31 Seja p ∈ K[ x ] um polinômio irredutível. Se p divide o produto f 1 f 2 . . . f n , em
que cada f i ∈ K[ x ] e n ≥ 1, então p divide um dos fatores f i .
164 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Mostramos anteriormente que todo número inteiro a pode ser escrito de maneira
única como
a = ±1p1 . . . pn ,
em que p1 , . . . , pn são números primos positivos. Se não tivéssemos exigido que os
primos fossem positivos, teríamos unicidade a menos de sinal (por exemplo, 6 = 2 · 3 e
6 = (−2)(−3)).

Da mesma forma, polinômios podem ser decompostos de maneira única em fatores


irredutíveis, a menos de multiplicação por constantes. Aqui temos novamente os
polinômios de grau zero desempenhando o mesmo papel dos inteiros ±1 (unidades).
Por exemplo, em R[ x ],
³x ´
x2 + 5x + 6 = ( x − 2)( x − 3) = − 1 (2x − 6).
2
Observe que, toda vez que p for um polinômio irredutível em K[ x ] e c ∈ K uma
constante não-nula, então cp também será irredutível sobre K (veja o Exercício 12).

Portanto, se p = an x n + . . . + a1 x + a0 for um polinômio irredutível sobre K,


então (1/an ) p é um polinômio mônico e irredutível. Apresentaremos a unicidade da
fatoração em polinômios irredutíveis em termos de polinômios mônicos. (Lembre-se
que a existência de uma fatoração foi provada no Teorema 9.29.)

Teorema 9.32 (Unicidade da Fatoração)


Seja f um polinômio em K[ x ] não-constante. Então f pode ser escrito de maneira única como

f = cp1 . . . pn ,

em que c ∈ K é uma constante e p1 , . . . , pn ∈ K[ x ] são polinômios mônicos irredutíveis sobre


K.

Demonstração: Considere a afirmativa P(n): se um polinômio em K[ x ], não-constante,


possui uma decomposição em n fatores mônicos irredutíveis, então essa decomposição
é única, a menos da ordem dos fatores.
A afirmativa é obviamente verdadeira para n = 1.

Suponhamos a afirmativa verdadeira para n − 1 e consideremos um polinômio f que


possui uma decomposição em n fatores:

f = cp1 p2 . . . pn ,

em que pi é mônico irredutível para todo i e c ∈ K.


Se f = kq1 q2 . . . qt é outra decomposição de f com k ∈ K e q j ∈ K[ x ] mônico
irredutível (1 ≤ j ≤ t), então

f = cp1 p2 . . . pn = kq1 q2 . . . qt .
9.4. DECOMPOSIÇÃO EM FRAÇÕES PARCIAIS 165

Devemos ter c = k, pois essas constantes são iguais ao coeficiente do termo de maior
grau de f . Além disso, como p1 | q1 q2 . . . qt , decorre do Corolário 9.31 que p1 | qi para
algum i. Reordenando os fatores, se necessário, podemos supor que p1 | q1 . Como q1
é irredutível e p1 não é constante, concluímos que p1 = q1 , pois ambos polinômios são
mônicos (veja o Exercício 14).

Cancelando as constantes c = k e os polinômios p1 = q1 em ambos os lados da


igualdade, chegamos a
p2 . . . p n = q2 . . . q t .
Tomando h = p2 . . . pn , temos duas fatorações para h, uma delas com n − 1 fatores
mônicos irredutíveis. A hipótese de indução pode ser aplicada: concluímos que n = t e,
após reordenação dos termos, se necessário, que pi = qi para i = 2, . . . , n. Isso implica
imediatamente o afirmado. 2

Da mesma forma que nos inteiros, podemos agrupar os polinômios iguais na


fatoração de um polinômio f ∈ K[ x ] e escrevê-la como
f = cp1e1 p2e2 . . . prer ,
em que pi 6= p j se i 6= j e ei é um inteiro positivo, denominado multiplicidade do fator
pi . Quando ei > 1, dizemos que pi é um fator múltiplo de f .

Se f possui um fator de grau um múltiplo, sabemos que a a raiz correspondente é


uma raiz múltipla de f .

Exemplo 9.33 Em R[ x ],
f = ( x 2 + 2)2 ( x + 1)3
tem x2 + 2 e x + 1 como fatores irredutíveis múltiplos e −1 como raiz de multiplicidade
3 de f . ¢

9.4 D ECOMPOSIÇÃO EM F RAÇÕES PARCIAIS


Uma aplicação interessante do Teorema da Unicidade da Fatoração é a
decomposição de uma função racional com coeficientes reais em uma soma de funções
racionais mais simples, que podem ser integradas. Apresentaremos a demonstração
desse resultado, conhecido como decomposição em frações parciais, que é utilizado nos
cursos de Cálculo.

Definição 9.34 Uma função racional com coeficientes no corpo K é uma expressão da forma
f
,
g
em que f , g ∈ K[ x ] e g 6= 0. O conjunto das funções racionais com coeficientes em K é denotado
por K( x ).
166 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

f p
Dizemos que duas funções racionais e são iguais se
g q
f q = pg em K[ x ].
(Note que trata-se de uma igualdade de polinômios, já definida anteriormente.)
A adição e multiplicação de funções racionais são definidas por:
f p f q + gp f p fp
+ = e · = .
g q gq g q gq
f
Observe que qualquer polinômio f pode ser visto como a função racional e, assim,
1
podemos considerar K[ x ] ⊂ K( x ). É fácil ver que, com essas operações, K( x ) é um
corpo contendo K[ x ] (veja o Exercício 19).

Apesar de empregarmos o termo "função racional", é bom observar que os elementos


de K( x ) não estão sendo considerados como funções em K, mas simplesmente como
f
expressões formais (da mesma forma que os polinômios). Só é possível associar a a
g
f (x)
função nos pontos x ∈ K em que g( x ) 6= 0.
g( x )

Nos restringiremos às funções racionais próprias (isto é, aquelas em que o


numerador possui grau menor do que o do denominador), pois toda função racional
pode ser decomposta numa soma de um polinômio mais uma função racional própria:
se gr( f ) ≥ gr( g), então f = qg + r, em que r = 0 ou gr(r ) < gr( g), o que implica
f r
= q+ ,
g g
r
e é função racional própria.
g

Queremos mostrar agora a seguinte resultado:


f
Teorema 9.35 Se ∈ K( x ) é própria e g = ab, com a, b ∈ K[ x ] e mdc( a, b) = 1, então a
g
f
função racional pode ser escrita na forma
g
p1 p
+ 2,
a b
p1 p2
em que p1 , p2 ∈ K[ x ] e
e também são próprias.
a b
Demonstração: Sejam a1 , b1 ∈ K[ x ] tais que a1 a + b1 b = 1. Então, f = f a1 a + f b1 b e,
portanto,
f fb fa p p
= 1 + 1 = 1 + 2,
ab a b a b
9.4. DECOMPOSIÇÃO EM FRAÇÕES PARCIAIS 167

com p1 = f b1 e p2 = f a1 .

f
Como é própria, temos gr( f ) < gr( a) + gr(b).
ab

Defina r1 como a soma dos termos de p1 com grau menor do que o grau de a e defina
s1 como a soma dos termos de p1 com grau maior do que ou igual ao grau de a. Então
p1 = r1 + s1 .

Analogamente, defina r2 como a soma dos termos de p2 com grau menor do que o
grau de b e defina s2 como a soma dos termos de p2 com grau maior do que ou igual ao
grau de b. Então p2 = r2 + s2 .

A igualdade
f p p
= 1+ 2
ab a b
nos leva à ap2 + bp1 = f , o que nos dá
( as2 + bs1 ) + ( ar2 + br1 ) = f .
Mas todos os termos que aparecem em as2 + bs1 têm grau maior do que ou igual ao
grau de ab e, portanto, maior do que o grau de f . Por outro lado, todos os termos que
aparecem em ar2 + br1 têm grau menor do que o grau de ab, e portanto, não se cancelam
com nenhum termo de ( as2 + bs1 ). Devemos ter então ar2 + br1 = f e as2 + bs1 = 0, o
que nos dá
f r r
= 1 + 2,
ab a b
em que as duas últimas funções racionais são próprias, como queríamos. 2

Por indução, podemos demonstrar o seguinte resultado (veja o Exercício 20)


f
Corolário 9.36 Se ∈ K( x ) é própria e g = a1 a2 . . . an , com ai ∈ K[ x ] e mdc( ai , a j ) = 1
g
(i 6= j), então
f p p pn
= 1 + 2 +···+ ,
a1 a2 . . . a n a1 a2 an
pi
com pi ∈ K[ x ] e próprias.
ai
Deixamos a cargo do leitor também a demonstração do seguinte resultado (veja o
Exercício 21), cuja prova pode ser feita por indução e é análoga à demonstração do
Teorema de Representação de um Número em uma Base. Note que o afirmado equivale
à "representação de p na base q":
Corolário 9.37 Dados p, q ∈ K[ x ], com gr(q) ≥ 1, então existem r0 , . . . , rk ∈ K[ x ] tais que
p = r k q k + p k −1 q k −1 + . . . + r 1 q + r 0 ,
em que gr(ri ) < gr(q) ou ri = 0.
168 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Seja g = q1e1 . . . qenn a decomposição de g ∈ K[ x ] em polinômios irredutíveis, com


qi 6= q j e ei igual à multiplicidade do fator qi . Nesse caso, o Corolário 9.36 nos garante
que
f p p pn
= e11 + e22 + . . . + en ,
g q1 q2 qn
em que todos as parcelas envolvidas são próprias. Em vista desse fato, basta
considerarmos as funções racionais próprias da forma
p
,
qe

em que q é irredutível. Mas, se p = rk qk + rk−1 qk−1 + . . . + r1 q + r0 , temos então


imediatamente que
p r r r
e
= e−k k + . . . + e−1 1 + 0e .
q q q q
Observe que, na decomposição em frações parciais acima, o maior valor do expoente
de q é igual a e.

Restringiremos agora a nossa atenção às funções racionais em R( x ). Como vimos,


os polinômios irredutíveis sobre R são os de grau 1 ou os de grau 2 sem raízes reais.
Portanto, toda função racional própria com coeficientes reais pode ser decomposta em
uma soma de parcelas do tipo
a
,
(cx + d)k
em que a, c, d ∈ R e k é um natural positivo, ou do tipo

ax + b
,
(cx2 + dx + e)k

em que a, b, c, d, e ∈ R, k é um natural positivo e o polinômio cx2 + dx + e não possui


raízes reais.

Todas as demonstrações apresentadas aqui são construtivas e podemos utilizá-las


para determinar a decomposição de uma função racional qualquer. Mas, na prática,
determinamos a decomposição em frações parciais como no exemplo abaixo:

Exemplo 9.38 Considere a função racional própria

f 3x4 + 5
= .
g x ( x 2 + 1)2

f
Sabemos que pode ser escrita como
g

f ax + b cx + d e
= 2 + 2 2
+ .
g x + 1 ( x + 1) x
9.5. EXERCÍCIOS 169

Então,
f ( a + e) x4 + bx3 + ( a + c + 2e) x2 + (b + d) x + e
= .
g x ( x 2 + 1)2
Igualando os coeficientes dos numeradores, obtemos a = −2, b = d = 0, c = −8 e
e = 5. ¢

9.5 E XERCÍCIOS
1. Mostre que as funções f , g : R → R dadas por f ( x ) = sen x e g( x ) = cos x, não
são funções polinomiais.

2. Demonstre o Teorema 9.4.

3. Verifique se a ∈ K é raiz do polinômio p ∈ K[ x ], sendo:

(a) p = x5 − 3x4 + 5x3 − 7x2 + 6x − 2 ∈ R[ x ] e a = 1;


(b) p = x2n + 1 ∈ C[ x ], n ∈ N e a = −1;
(c) p = x2n + 1, ∈ R[ x ], n ∈ N e a = −1.

4. Usando o Teorema Fundamental da Aritmética, mostre que p = 30x n − 91 não


tem raiz racional para nenhum inteiro n > 1.

5. Verifique se a é raiz múltipla de p ∈ K[ x ] e, se for, determine a sua multiplicidade:

(a) p = 4x3 + 8x2 − 3x − 9 ∈ R[ x ], a = − 32 ;


(b) p = x4 − 1 ∈ C[ x ], a = i.

6. Determine a e b reais tais que p = x5 − 5ax + b seja divisível por ( x − 1)2 .

7. Resolva as equações cúbicas:

(a) x3 + 3x + 5 = 0;
(b) x3 + 2x2 + 4x + 2 = 0;
(c) x3 + 3x + 1 = 0.

8. Demonstre o Corolário 9.17.

9. Demonstre o Corolário 9.20.

10. Demonstre o Corolário 9.22.

11. (a) Seja f ∈ C[ x ] tal que f (i ) = f (−i ) = 0. Determine o resto da divisão de f por
x2 + 1.
(b) Faça o ítem ( a) no caso em que f ∈ R[ x ].
170 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

12. Mostre que, se p ∈ K[ x ] é irredutível e c ∈ K uma constante não-nula, então cp é


irredutível sobre K.
f f
13. Mostre que se f = cp1e1 . . . penn e g = kp11 . . . pnn são as decomposições de f e g em
fatores mônicos irredutíveis, com ei ≥ 0 e f i ≥ 0, então:

(a) mdc( f , g) = p1r1 p2r2 . . . prnn , em que ri = min{ei , f i };


(b) mmc( f , g) = p1s1 p2s2 . . . psnn , em que si = max{ei , f i }.

14. Sejam p, f ∈ K[ x ], com p irredutível.

(a) Se f | p, mostre que f é uma constante ou f é uma constante vezes p.


(b) Se p - f , então mdc( p, f ) = 1.

15. Demonstre o Corolário 9.31.

16. O polinômio p = 6x3 + 10x2 + 30x + 8 ∈ R[ x ] fatora-se como

p = ( x + 2)( x + 4)(3x + 1)

ou µ ¶
1
p = 3( x + 2)( x + 4) x + .
3
Porque isso não contradiz a unicidade da fatoração (Teorema 9.32)?

17. Fatore cada um dos seguintes polinômios em produtos de polinômios irredutíveis


sobre Q, R, C:

(a) p = x4 − 1;
(b) p = x4 + 1;
(c) p = x4 − 4x2 − x + 2;
(d) p = x2 + 1;
(e) p = 4x3 + 4x2 − 5x − 3.

18. Mostre que:

(a) se p ∈ R[ x ] e gr( p) ≥ 3, sendo gr( p) ímpar, então p é redutível.


(b) em C[ x ], nenhum polinômio de grau n ≥ 2 é irredutível.

19. Prove que K( x ) é um corpo contendo K[ x ].

20. Demonstre o Corolário 9.36.

21. Demonstre o Corolário 9.37.

22. Escreva os polinômios nas bases dadas:

(a) x5 na base x + 1;
9.5. EXERCÍCIOS 171

(b) ( x2 + 3x + 1)4 na base x + 2;


(c) ( x2 + 3x + 1)4 na base x2 + x + 1.

23. Decomponha em frações parciais:


x+1
(a) ;
( x − 1)( x + 2)
1
(b) ;
( x + 1)( x2 + 2)
x2 + 4
(c) ;
( x + 1)2 ( x − 2)( x + 3)
24. Mostre que existem infinitos polinômios irredutíveis em K[ x ], para todo corpo K.
Solubilidade de Equações
A teoria de equações possui uma longa e bela história. Ainda na antiguidade,
foram estudadas as equações do segundo grau. As equações do terceiro e quarto
graus foram muito estudadas na Renascença.

Da mesma maneira que os árabes consideraram vários casos da equação


do segundo grau, por não conhecerem os números negativos, também os
renascentistas consideraram os vários casos da equação do terceiro grau. O
primeiro a resolver um dos casos, a saber, a equação x3 + cx = d, foi Scipione
Del Ferro, um professor da Universidade de Bolonha. Um discípulo seu,
Antonio Maria Fiore, também professor em Bolonha e conhecedor do trabalho
do mestre, desafiou o matemático Tartaglia para um duelo, em que cada um dos
contendentes proporia 30 problemas matemáticos. Fiore propôs seus problemas
tendo como base a equação que sabia resolver. Tartaglia, prevendo que o duelo
seria baseado na equação cúbica, descobriu sua solução e venceu o duelo, ao
resolver os problemas propostos por Fiore e propor outros problemas que não
recaiam na cúbica. Tartaglia não divulgou suas descobertas sobre a fórmula
daquela equação do terceiro grau, esperando utilizar o seu segredo para vencer
outros duelos.

Surge então, um matemático milanês, Gerolamo Cardano, que planejava


escrever uma obra definitiva sobre a solução das equações do terceiro e quarto
graus. Ele pede a Tartaglia que contribua com os seus estudos. Tartaglia
inicialmente se recusa mas, depois de muita insistência, divulga sua solução para
Cardano, depois deste último fazer um juramento solene de que não divulgaria
o segredo. Inicialmente Cardano cumpre o juramento, mas posteriormente,
trabalhando com seu aluno Ludovico Ferrari, Cardano resolve os outros casos
que seus antecessores não puderam resolver, bem com descobre a solução para
a equação do quarto grau. Neste momento Cardano se sentiu desobrigado
do juramento feito a Trataglia e publica um estudo completo das equações do
terceiro e quarto graus no livro Ars Magna publicado em 1545, em que ele dava
crédito a Tartaglia por suas descobertas. (Veja [12] para outras informações sobre
a história da teoria de equações.)

A partir daí surge o problema de tentar encontrar as soluções para equações


de grau superior a quatro. Grandes matemáticos tentaram encontrar a solução
por radicais da equação geral do quinto grau, tal como havia sido feito para as de
graus 2, 3 e 4. O primeiro que tentou provar a inexistência desse tipo de solução
foi o matemático italiano Paolo Ruffini, em 1798, mas sua demonstração ficou
incompleta. Foi o matemático norueguês Niels Abel (1802-1829) o primeiro a
demonstrar a inexistência de uma solução por radicais para a equação do quinto
grau.
A maior contribuição à teoria de equações foi dada pelo matemático francês
Evariste Galois (1811-1832), que apresentou critérios para decidir se uma
determinada equação, de qualquer grau, é ou não solúvel por radicais. Galois
teve uma vida curta e infeliz e morreu em circunstâncias misteriosas em um
duelo – que alguns afirmam ter razões políticas, e outros, amorosas. Não
conseguiu ser aprovado no vestibular da Escola Politécnica, a melhor da França
à época, apesar de duas tentativas. Em sua última noite de vida, talvez prevendo
o pior, escreveu um manuscrito em que expunha a sua teoria de equações. Este
trabalho, que não foi imediatamente reconhecido, talvez porque seu autor fosse
um desconhecido, talvez pelo arrojo das idéias para a época, consagrou Galois
como um dos maiores matemáticos do século XIX.

Neste trabalho, desempenha papel importante o chamado grupo da equação,


definido pela primeira vez por Galois. Esse grupo, no caso da equação completa
de grau n, é o grupo de permutações de n letras. Galois caracteriza então a
solubilidade de uma equação por radicais em termos do grupo da equação.

Com a morte de Galois, seus trabalhos caíram no esquecimento e a


comunidade matemática só tomou conhecimento deles ao serem publicados por
Liouville em 1846. Um dos primeiros livros-texto contendo a teoria de Galois foi
escrito por Camille Jordan (1838-1922), em 1870. Foi neste livro, e em alguns dos
seus trabalhos que o antecederam, que Jordan introduziu muitas das noções da
moderna teoria de grupos, uma contribuição que já estava esboçada no trabalho
seminal de Galois.

Com efeito, de todas as contribuições de Galois neste trabalho escrito à véspera


de sua morte, talvez a noção mais importante, e que mais influência terá na
matemática do final do século XIX e de todo o século XX, é a noção de estrutura
algébrica, em particular, grupos e corpos. Vários foram os matemáticos que,
sob a influência de Galois, desenvolveram estas estruturas em vários graus
de abstração e sofisticação. Cayley (1821-1895) estudou grupos abstratamente
e classificou alguns grupos finitos. Kronecker (1823-1891) estudou os corpos
de uma maneira mais explícita que Galois, que já havia considerado como
adjuntar um elemento a um corpo para formar o que conhecemos hoje como uma
extensão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] G.E. Andrews: Number Theory, W.B. Saunders, Philadelphia, 1971.

[2] F. Bornemann: Prime is in P, Notices of the AMS, Vol.50, No 5, maio de 2003.

[3] C. B. Boyer: A History of Mathematics, Princeton University Press, Princeton, 1985.

[4] L. Childs: A Concrete Introduction to Higher Algebra, Springer-Verlag, New York,


1979.

[5] S. C. Coutinho: Números Inteiros e Criptografia RSA, IMPA, Rio de Janeiro, 2000.

[6] R. Courant e H. Robbins: Qué es la Matemática , una exposición elemental de sus ideas
y métodos, Aguilar, Madrid, 1955.

[7] U. Dudley: Elementary Number Theory, Freeman, San Francisco, 1969.

[8] A. Garcia e Y. Lequain: Álgebra: um curso de introdução IMPA, Rio de Janeiro, 1988.

[9] A. Gonçalves: Introdução à Álgebra, IMPA, Rio de Janeiro,1979.

[10] T. L. Heath: A History of Greek Mathematics, Dover, New York, 1981.

[11] G. Ifrah: História Universal dos Algarismos, vol. 1, Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1997.

[12] V. J. Katz: A History of Mathematics, HarperCollins Collee Publishers, 1993.

[13] E. Landau: Vorlesungen über Zahlentheorie, 3 volumes, Leipzig,1927

[14] E. Landau: Teoria Elementar de Números, trad. Paulo Henrique Viana, Editora
Ciência Moderna, Rio de janeiro,2002.

[15] C. G. T. de A. Moreira: Uma solução das equações de 3o e 4o graus., Rev. do Prof. de


Mat. 25,1994.

[16] I. Niven: Números: racionais e irracionais, SBM, 1984.

[17] O. Ore: Number Theory and its History, Mc Graw-Hill, New York, 1948.

[18] C. P. Milies e S. P. Coelho: Números: uma introdução à matemática, Edusp, São Paulo,
2000.

175
176 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[19] S. Sidki: Introdução à Teoria dos Números, Colóquio Brasileiro de Matemática, IMPA,
Rio de Janeiro, 1975.

[20] J. E. Schockley: Introduction to Number Theory, Holt, Rinehart and Winston, New
York, 1967.

[21] I. S. Sominsky: The Method of Mathematical Induction, Mir Publishers, Moscow, 1975.

[22] D. J. Struik: A Concise History of Mathematics, Dover, New York, 1948.


ÍNDICE REMISSIVO

afirmações equivalentes, 25 discriminante de um polinômio de grau 2,


Agrawal, M., 127 154
Al-Kwarism, 85 divisor
algarismo, 4 comum, 68
algoritmo de zero, 130
de Briot-Ruffini, 151 números inteiros, 38
de Euclides polinômios, 136
para divisão de polinômios, 135 divisores triviais, 137
para o mdc de dois inteiros, 72 domínio de integridade, 130
para o mdc de dois polinômios, 141
equação algébrica, 154
anel, 125
equação diofantina, 87
com unidade, 126
linear em duas variáveis, 87
comutativo, 126
solução de uma, 87
Eratóstenes
base de um sistema de numeração, 4
crivo de, 53
binômio de Newton, 29
Euclides, 49
Briot-Ruffini
lema da divisão
algoritmo de, 151
para números inteiros, 37
para números naturais, 34
Cardano, G., 172
para polinômios, 134
classe de congruência
expressão decimal
módulo m, 103
finita, 60
representante de uma, 105
infinita, 60
combinação linear nos inteiros, 74
conjectura de Goldbach, 9 fórmula de Stiefel, 29
conjunto Faltings, G., 94
limitado inferiormente, 22 Fermat, 94
limitado superiormente, 31 números primos de, 13
corpo, 128 pequeno teorema de Fermat, 115
cota inferior, 22 último teorema de, 94
critério de divisibilidade fração irredutível, 61
por 2, 42 função
por 9, 42, 101 afim, 133
por 11, 43 polinomial, 131
crivo de Eratóstenes, 53 quadrática, 133
racional, 165
dízima periódica, 45 funções racionais

177
178 ÍNDICE REMISSIVO

adição de, 166 números naturais


igualdade de, 166 lema da divisão
multiplicação de, 166 unicidade, 35
Newton
Galois, E., 173 binômio de, 29
Gauss, 65 número
Goldbach complexo
conjectura de, 9 forma polar, 155
composto, 51
indução, 10, 13
primo, 51
demonstração por, 14
números
hipótese de, 15
complexos, 129
primeira forma, 13
adição de, 129
formulações equivalentes, 17, 18
conjugado, 129
segunda forma, 20
igualdade de, 129
inverso
multiplicação de, 129
em Zm , 110
parte imaginária, 129
em um corpo, 129
parte real, 129
Kayal, N., 127 compostos, 51
ímpares, 38
lei do cancelamento inteiros
em Zm , 112 lema da divisão, 37
lema da divisão de Euclides máximo divisor comum, 83
para números inteiros, 37 máximo divisor comum, 68
para números naturais, 34 primos entre si, 68
unicidade, 35 naturais
para polinômios, 134 lema da divisão, 34
pares, 38
máximo divisor comum primos, 51
algoritmo de Euclides de Fermat, 13
para o mdc de dois inteiros, 72 de Mersenne, 59
para o mdc de dois polinômios, 141 gêmeos, 54
de dois números inteiros, 68 negativos, 57
de dois polinômios, 139
de vários inteiros, 83 operações em Zm
de vários polinômios, 148 adição, 107
menor elemento, 22 multiplição, 109
Mersenne, 59
números primos de, 59 polinômio, 131
mínimo múltiplo comum coeficientes de um, 131
de dois inteiros, 79 constante, 132
de dois polinômios, 144 fator múltiplo, 165
múltiplo fatoração trivial, 162
de um número inteiro, 36 função polinomial, 131
de um número natural, 33 grau de um, 133
ÍNDICE REMISSIVO 179

irredutivel, 161 da representação de um número em


mônico, 138 uma base, 40
multiplicidade de um fator, 165 da unicidade da fatoração de um
raiz de multiplicidade m, 152 polinômio, 164
raiz de um, 150 de Euler, 115
raiz múltipla, 152 do número primo, 55
redutível, 161 fundamental da álgebra, 154
polinômios fundamental da aritmética, 56
adição de, 132 pequeno teorema de Fermat, 115
igualdade de, 131 sobre soluções de uma congruência
lema da divisão, 134 linear, 118
máximo divisor comum, 139, 148
valor absoluto, 36
multiplicação de, 132
princípio Wiles, A., 95
da boa ordenação, 22
da indução matemática
primeira forma, 13
segunda forma, 20
do menor inteiro, 22
progressão
aritmética, 26
geométrica, 26

relação de equivalência, 100


resíduos módulo m
sistema completo de, 113
sistema reduzido de, 113

Saxena, N., 127


sistema completo de resíduos, 113
sistema reduzido de resíduos, 113
Stiefel
relação de, 29

Tartaglia, 172
Taylor, R., 95
teorema
chinês do resto, 119
da divisão euclidiana
para números inteiros, 37
para números naturais, 34
para polinômios, 134
da existência de fatoração de um
polinômio, 162
da raiz, 151

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