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Matrícula: 2017684494
Belo Horizonte
2018.
Autocontrole, coesão e o piscinão de Ramos do Guamá
Apresentação
Entre os anos de 2005 e 2007 trabalhei na Fundação Papa João XXIII (Funpapa),
instituição que visa promover o amparo social de jovens, crianças e idosos e que
“desenvolve atividades de amparo e proteção de populações que vivem em situação de
risco pessoal e social causados pela pobreza, abandono ou isolamento familiar” 1. Fui
professor de Artes Visuais e trabalhei com crianças e jovens nas faixas etárias entre 4 a
7 anos e 11 a 17 respectivamente. O local, onde funcionava um dos projetos da Funpapa
chamado “Agente Jovem”, era conhecido como Lar Fabiano de Cristo, entidade espírita
com uma de suas sedes na capital, Belém do Pará.
Não acredito que seja comum - dado que eu trabalhava em outras escolas na
época - ver uma criança de 6 anos dizendo que ia me matar, ou simular uma postura
corporal adulta (de enfrentamento), falando que ia pedir para o pai “meter uma azeitona
na minha barriga”. Imagino que este tipo de comportamento era específico, dado as
condições sociais que estas crianças viviam e o que elas, depois fui saber, presenciavam
dentro de suas casas e na comunidade, como falaremos mais a frente.
Marcel Mauss escreveu o prefácio do livro Sua Alteza Real, do escritor alemão
Thomas Mann. Neste prefácio ele nos dizia que o príncipe é alguém de gestos
extraterrenos, alguém imbuído de movimentos lentos, singularizados, calculados e nada
parecidos com o da plebe. Imagino que essa constatação tenha seu contraponto naqueles
que vivem na marginalidade, na periferia e na criminalidade, contudo, mesmo com
posturas corporais que remitiam a pessoas muito perigosas, percebi que muitos desses
jovens eram o contrário do que aparentavam. Se misturavam a bandidagem, mas não
eram bandidos, andavam, falavam e se vestiam como se o fossem, para poder andar no
bairro sem ser importunado, sem ser “multado” (ter de “emprestar” dinheiro a algum
malandro local), ou “levar o guelo” (ser furtado).
Outro fator para além da questão familiar, que ajuda muito a compreender o
porquê da maior parte desses jovens caírem na marginalidade, era o fato de que o bairro
não tinha nenhuma estrutura, era cheio de casas destruídas, sujo, sem quadras
poliesportivas, sem praças e nem centro cultural. O que existia ali era o Lar Fabiano de
Cristo com suas oficinas e cursos para todas as idades e um CRAS 2 da Funpapa, nada
mais. O bairro naturalmente sofria segregação, pois era tachado de antro de marginais
pela população belenense e motivo de pilheria. Era afastado do centro da cidade e cheio
de feiras abertas em qualquer lugar, até no meio da rua disputando lugar com os carros,
isso ajudava a reforçar estereótipos, preconceitos e receios sobre o bairro.
2.Um CRAS é um centro de atendimento de jovens que também oferta oficinas e capacitação para os
professores da rede FUNPAPA.
Por outro lado, o bairro era coeso também nas relações entre os vizinhos, por
exemplo, quando íamos fazer os acompanhamentos na casa das famílias dos jovens e
das crianças, atravessávamos as palafitas3 e chegávamos até as moradias, que por vezes,
eram da medida de um quarto, e nele viviam mãe, pai e filhos (geralmente, dois ou três),
nesses quartos as fronteiras entre um cômodo e outro era um lençol estendido do teto ao
chão, isso dividia a cozinha da cama das crianças e da cama da mãe e do pai (quando
havia um pai em casa, pois na maioria dos casos, a casa era sustentada pela mãe ou pela
avó). Essa fronteira quase inexistente e permeável também funcionava entre as casas,
geralmente umas coladas às outras. Então quando íamos a uma das casas, tínhamos de
passar por dentro de várias outras para chegar na casa que queríamos, e em cada casa
tínhamos de parar para tomar um cafezinho.
Os níveis de coesão social entre esses vizinhos era muito grande, a intimidade e
a privacidade, contudo, eram inexistentes, pois as paredes eram de madeira e as vezes
víamos o que estava ocorrendo no vizinho pela fresta das tábuas. Percebi o quanto as
portas eram abertas a todo momento, e o quanto de gente vinha ali para pegar alguma
coisa emprestada: café, açúcar, panelas, DVDs, etc, a todo momento, durante todos os
anos em que trabalhei lá, era a mesma coisa: havia uma coesão social entre a
comunidade que estilhaçava os liames da privacidade, quando alguém perdia um objeto,
por exemplo, víamos nisso o funcionamento da eficácia coletiva, pois não demorava
muito para saber onde tal objeto estava.
Esse tipo de situação, por sua vez, em vez de ser vista como exótica ou cafona e
até mesmo feio visualmente, resulta em um flagrante processo de redesenho dos valores
da sociedade brasileira de elite, mas ao avesso.
Segundo Bárbara:
Essa sabedoria particular, que fala Wagner, que encontra-se por trás dessa estética
vulgar para a maior parte das pessoas, talvez estabeleça laços e vínculos que estendem a
roda de samba até tarde da noite. É o que faz de qualquer espaço físico um agregador,
quando não há predisposição da prefeitura ou do governo, há pela necessidade,
predisposição da comunidade para promover espaços de convívio, mesmo que sejam
ajambrados, improvisados, etc.
No caso do bairro do Guamá, não havia uma associação, tão pouco havia coesão
suficiente para gerar uma, os grupos eram muito distintos, e os problemas no bairro se
avolumavam. Contudo, um dos moradores teve uma ideia: abrir sua casa aos domingos
para receber as pessoas em sua piscina ao preço de R$ 1,00 por pessoa. A piscina era
bem pequena e ao redor dela, lajotas vermelhas saiam, por vezes, do chão. Pessoas
vinham de todo o Guamá para o piscinão, entre elas, bandidos, vendedores de coxinhas
de frango oleosas, vendedores de picolés caseiros, moças que gostavam de se bronzear e
muitas crianças, a ponto de não se ver o fundo da piscina de tanta gente dentro dela,
todos esses atores ficavam juntos na mesma água, o glutinum mundi4 que une.
A frequência dessas interações, todos os domingos, foram resultando em maior
frequência de contato entre pessoas que antes não se falavam, a princípio me disseram
que ocorriam muitas brigas de gangues na saída do domingo na piscina, mas depois essa
fase passou, e a interação logrou resultado de forma espontânea. Resultado: bandidos
começaram a respeitar o dia de lazer e não mais brigavam entre si, gangues começaram
a se afastar de confrontos diretos e constantes, vizinhos começaram a se reconhecer e
interagir. Entre papéis de seda gordurosos de coxinhas de frango, flutuando na água da
piscina cheia de óleo de bronzear dos corpos femininos, a macharada bebia litros de
cerveja e escutava muito tecnobrega, juntos. As fotos de Wagner servem também para
que tenhamos uma ideia ilustrativa do ambiente, dos comportamentos e das posturas.
Alguns grupos se formaram ali dentro: grupos para concertos coletivo de telhados
até grupos para remendar ruas que estavam com o asfalto esburacado, vários se
dispuseram a ajudar. A ausência de controle formal do Estado foi substituído por
vigilantes que de bicicleta rodavam algumas ruas para vigiar. Uma associação foi criada
e hoje sei que existe uma praça pequena no bairro, fruto dos pedidos dessa associação, a
praça Benedito Monteiro.
Hoje as crianças brincam nesta praça, um espaço que ajudou a modificar a auto
imagem do bairro. Hoje eu percebo que, o local por vezes promove ambientes propícios
a constituição de interações, essas interações podem gerar outros dispositivos de
encontros: jogos de cartas, rodas de samba, divisão de lanche entre pessoas que
acabaram de se conhecer, etc, tudo isso parece constituir zonas proximais entre aqueles
que antes não se conheciam, constituir coesão social para assim, não ter de retirar as
pessoas do lugar, por ele não ter condições de ser ocupado, mas sim, melhorar o lugar
para ofertar qualidade de vida aquela pessoa que vive ali a décadas.
4.Glutinun Mundi é um termo utilizado pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, segundo ele, é “uma
força impessoal, um fluxo vital, no qual cada um e cada coisa participa numa misteriosa correspondência
atractiva.” (MAFFESOLI, 2001, p. 32)
REFERÊNCIAS
SITES
http://corporalidades.com.br/site/2015/04/05/brasilia-teimosa-de-barbara-wagner/ acessado
em 02.11.2018 as 12h05.