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Área: Direito Tributário e Justiça Social (XV)

A Justiça fiscal como instrumento de Justiça social aos portadores de


necessidades especiais (p.n.e.)
Lucas Bevilacqua 1

Sumário: 1. Introdução- o Estado que temos e o Estado que queremos, 2. Aplicação da


teoria dos Direito Fundamentais no Estado Fiscal, 3. Direito Tributário “por princípios” e
Sistema Constitucional Tributário, 4. Renda líquida e Mínimo Existencial à categoria de
Direito Fundamental, 5. Tributação como ação afirmativa aos portadores de necessidades
especiais, 6. Considerações Finais e 7. Referências Bibliográficas.

Resumo: Pretende-se com o presente estudo apresentar a tributação a partir da


perspectiva dos direitos fundamentais sociais, servindo como instrumento de ação
afirmativa a contemplar os portadores de necessidades especiais (p.n.e.). A partir da
compreensão do direito “por princípios” pretende-se divulgar a cultura dos direitos
humanos de forma a garantir-se efetividade ao princípio constitucional da dignidade da
pessoa humana (art.1º, III, CRFB/1988) aos portadores de necessidades especiais
(p.n.e.). É justamente nesse sentido que, propõe-se ao final do presente trabalho, a
tributação como um mecanismo de efetivação de direitos sociais, utilizando-se da
tributação com instrumento de adimplemento do princípio da indivisibilidade dos direitos
humanos garantindo-se direitos sociais aos portadores de necessidades especiais.
PALAVRAS-CHAVES: Direitos Humanos, ações afirmativas, tributação, portadores
necessidades especias, Princípios Constitucionais.
Abstract: This work intends to show the taxation as a way to warranty social rights to
disabilities, an affirmative action by taxation. Since the understanding the law by principles
the paper also intends to contribute to develop the human rights culture in order to
warranty the effective of the constitutional principle of dignity (art.1º, III, in the Federal
Constitution of 1988) to disabilities. It’s in this way that in conclusion it’s showed the
taxation as a mechanism to observe the indivisibility principle of human rights to
disabilities.
KEY-WORDS: Human rights, affirmative actions, taxation, disabilities, Constitutional
principles.

1
Procurador do Estado de Goiás e Professor de Direito Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Goiás (2006/7) e do Curso Axioma Jurídico (lucas.bevilacqua@gmail.com).

1
1. Introdução - o Estado que temos e o Estado que queremos:

A fim de percorrer-se a trajetória traçada essencial é compreendermos algumas


noções elementares do conceito atual de Estado que temos, o que, indiscutivelmente, nos
indicará as funções a serem desempenhadas pelo Estado. Basicamente podemos definir
o Estado brasileiro como um Estado Social, fiscal, democrático de direito. Acresce-se
ainda a este conceito o caractere de um Estado Subsidiário. De modo a compreender-se
a tributação sob o influxo dos Direitos Humanos, essencial é sabermos no que consiste
cada um desses caracteres que compõe o conceito do Estado atual e as funções a
desempenhar-se.
Em primeiro, vive-se hoje em um Estado de Direito. A própria evolução do Estado -
da monarquia à República, pelas mãos da burguesia que instituiu o primado da lei- vem a
garantir a instituição de um Estado Fiscal. O Estado passa a financiar-se não mais,
exclusivamente, de receitas patrimoniais, mas, sim, preponderantemente, mediante
receitas tributárias. Tributos esses que instituídos mediante lei. Nasce aqui o princípio da
legalidade tributária. Vige, a partir de então, a teoria do tributo consentido: “no taxation
without representation”. O Estado Fiscal é justamente a face financeira do Estado de
Direito.
Com a edição das Constituições Sociais, Mexicana (1917) e Weimar (1919), como
fruto das pressões sociais, o Estado passa a assumir uma função de maior assistência
social incumbindo-lhe o desenvolvimento e implantação de políticas públicas de saúde,
educação, moradia, lazer e cultura. Certamente que, com a onda do neoliberalismo, os
princípios de um Estado social são mitigados, dando origem, assim, ao conceito de um
Estado Subsidiário.
O Estado Subsidiário consiste basicamente na atuação estatal exclusivamente em
funções de soberania (executiva, legislativa e judiciária) e naquelas onde a iniciativa
privada revele-se insuficiente. Conforme leciona a doutrina de DI PIETRO 2 , não há que se
confundir o Estado Subsidiário com o Estado mínimo. A diferença que reside é que no
Estado mínimo o Estado não atua, ainda que a iniciativa privada revele-se ineficiente.
Todos esses basilares caracteres do Estado atual que compõe seu conceito, aqui
trazidos de maneira elementar, repercutem diretamente na atividade financeira do Estado
de arrecadação de receitas. Realizado breve esboço, incumbi-nos, ainda, tecermos
algumas modestas considerações a propósito das metas de ajuste fiscal impingidas ao

2
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2001.

2
Estado brasileiro. Num contexto de globalização, de integração de mercados, e
interdependência mundial, organismos internacionais de crédito impingem aos países
periféricos, em especial, metas de ajuste fiscal afim de redução dos constantes déficits
públicos. Ainda arraigados ao postulado de inesgotabilidade dos recursos públicos o
administrador público é surpreendido com metas de arrecadação e contingencimanto de
despesas de modo a proporcionar-se equilíbrio fiscal.
É justamente nesse contexto que é editada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC
nº101/00) que vem a demandar, sobretudo, dos entes federados um ajuste fiscal ainda
mais disciplinado implicando no contingenciamento de despesas destinadas à programas
sociais a comprometer a finalidade precípua do Estado de promoção do bem comum.
Por conseguinte, observa-se em geral um mau zelo do Estado com grupos
historicamente periféricos a exemplo dos portadores de necessidades especiais (p.n.e.)
em função da ausência de políticas de Estado à promover de fato a garantia de seus
direitos sociais a permitir definitivamente sua inclusão no núcleo da sociedade.

2. A Aplicação da Teoria dos Direitos Fundamentais no Estado Fiscal

O conceito de direitos humanos é elaborado a partir da própria evolução histórica,


razão pela qual as linhas retro fazem-se por imprescindíveis. 3 Ao falar-se em direitos
humanos, a fim de extirparmos qualquer confusão terminológica, essencial é se apontar o
que os diferencia dos direitos fundamentais. Numa relação espécie-gênero, podemos
dizer que os direitos fundamentais são espécies do gênero direitos humanos. Os direitos
fundamentais são os direitos humanos positivados no texto da Constituição Federal.
À guisa de esclarecimento acrescente-se que o Direito Tributário encontra-se sob o
influxo não só dos direitos fundamentais, mas sim de todos direitos humanos. Todavia,
considerando que o objetivo do presente trabalho é apresentar uma proposta de
efetivação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana o título apresenta-
se, assim, apropriado.
A doutrina jusfundamental é quase unânime em afirmar que a origem dos direitos
fundamentais reside nos direitos naturais. Tratando acerca do conceito de justiça no
direito tributário ZILVETTI é assaz em afirmar que “há de se ter o consenso, portanto, de
que o homem não nasce com direitos naturais definidos. 4 ”

3
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.São Paulo: Saraiva, 2004.
4
ZILVETI, Fernando Aurélio. Princípios de Direito Tributário e a Capacidade Contributiva. São Paulo: Quartier
Latin, 2004.

3
A concepção atual de direitos fundamentais está umbilicalmente ligada aos
princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade. O texto
constitucional ao prever a dignidade da pessoa humana como fundamento da República
Federativa do Brasil assegura não apenas o direito a vida, mas, o direito a uma vida
digna. Doutrina 5 e jurisprudências ainda oscilam na fixação de quais os direitos que
estariam compreendidos na noção de vida digna. Porém, certo é que aí estariam também
compreendidos os direitos sociais oscilando apenas quanto a sua abrangência.
Particularmente, por meio de uma compreensão sistemática do texto constitucional,
entende-se que estariam compreendidas no princípio da dignidade da pessoa humana as
garantias aos direitos a moradia, saúde, assistência, acesso à justiça, lazer e ao trabalho.
Tratando-se a propósito do âmbito de abrangência dos direitos fundamentais
essencial é apresentar-se as características da universalidade e da indivisibilidade dos
direitos fundamentais. A doutrina constitucional emancipatória, a exemplo de Flávia
PIOVESAN e Antonio Augusto Cançado TRINDADE, elevam a característica da
indivisibilidade 6 à posição de princípio, de forma, a desempenhar toda uma normatividade
no sistema constitucional.O princípio da indivisibilidade proclama que a pessoa humana
deve ser atendida tanto em seus direitos individuais como nos direitos sociais, onde
estariam compreendidos também os direitos econômicos e culturais.
O principio em comento surge em reação à uma visão equivocada da teoria
geracionista dos direitos humanos, que classifica os direitos em gerações. Em uma
primeira geração estariam contidos os direitos individuais, na segunda geração os direitos
sociais e na terceira geração os direitos transindividuais, como o direito ao um meio-
ambiente equilibrado. Torna-se inconcebível tal teoria ao momento que consideramos os
direitos humanos indivisíveis, sendo dever do Estado contemplar todos esses direitos de
forma simultânea e plena. 7
A propósito da teoria geracionista Paulo Gustavo Gonet BRANCO nos esclarece
que essa tricotomia diz respeito apenas à diferença de momentos em que esses direitos
surgem:
“Não se deve incorrer no equivoco de supor que uma geração haja
suplantado a outra. Os direitos de cada geração persistem válidos

5
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia dos princípios constitucionais: o principio da dignidade da pessoa humana. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003.
6
A propósito do princípio da indivisibilidade vale conferir o trabalho “O Princípio da Indivisibilidade dos Direitos
Humanos aos Portadores de Necessidades Especiais” apresentada pelo autor como relatório final do Programa de
Iniciação Científica, Convênio UFG/CNPq, (PIVIC, 2003-4), sob orientação do Prof. Dr. Eriberto Francisco Bevilaqua
Marin
7
TRINDADE, Antônio A.C.. Tratado internacional de Direitos Humanos. 1ª edição. Porto Alegre: Sérgio Fabris
Editor, 1993.

4
juntamente com os direitos da geração seguinte(...) A visão dos
direitos fundamentais em termos de gerações indica o caráter
cumulativo da evolução desses direitos no tempo. Não se deve
deixar de situar todos os direitos num contexto de unidade e
indivisibilidade. 8 ”

A compreensão dos direitos fundamentais a partir do princípio da indivisibilidade


repercute sobremaneira no Direito Tributário, até então, arraigado tão só a direitos
fundamentais individuais. A própria evolução na doutrina da relação entre o Sistema
Tributário Nacional e os Direitos Fundamentais retrata isso com nitidez.
Realizando breve escorço a propósito do conteúdo do Sistema Tributário para a
doutrina, ÁVILA 9 aponta que o primeiro autor a tratar acerca da vinculação entre o
sistema tributário e os direitos fundamentais foi Geraldo ATALIBA 10 , tratando
notadamente os direitos fundamentais de liberdade e de propriedade. Em seguida,
CARRAZA aprimorando a análise sistemática do direito tributário realiza uma descrição
da relação entre a tributação e os princípios constitucionais estruturantes “que mantém
íntima relação com as regras de competência, sobretudo o princípio republicano (e sua
relação com a capacidade contributiva); o princípio federativo, o princípio da
irretroatividade, o princípio da legalidade e o princípio da segurança jurídica (e sua
vinculação com os direitos fundamentais).” Percebe-se que todas esses estudos dizem
respeito a direitos fundamentais de primeira geração preocupando-se, exclusivamente, o
resguardo da liberdade e da propriedade.
Conforme nos indica ÁVILA, a significação fundamental do princípio da igualdade
somente veio com obra do Prof. José Souto Maior BORGES, todavia ainda circunscrita ao
aspecto da justiça fiscal, chegando a afirmar o seguinte: “O princípio da igualdade não
está apenas no texto da Constituição; o princípio da igualdade é a Constituição.” E mais:
“A maior limitação ao poder de tributar é o princípio da igualdade.”
Concluindo acerca da relação do sistema tributário e dos direitos fundamentais
servimo-nos da lição de ÁVILA que coloca com propriedade que as limitações ao poder
de tributar expostas pela doutrina são, preponderantemente, as limitações negativas,
identificam-se limitações como restrições. Olvida-se, assim, das limitações positivas (por
exemplo, concordância pratica), das limitações de segundo grau (por exemplo
proporcionalidade) ou do significado de outras normas constitucionais que instituem

8
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio MÁRTIRES, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
9
ÁVILA, Humberto B., Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.
10
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário. São Paulo:RT, 1968.

5
valores positivos (por exemplo, princípios e direitos fundamentais) deixando de serem
profundamente investigados no campo tributário. A propósito do assunto e com o fito de
dar estribo a proposta aqui enunciada, oportuna é a transcrição do trecho a seguir:

“A própria expressão “limitação” conduz à uma descrição


prioritariamente circunscrita à dimensão negativa, sem que outras
normas, que instituem diretrizes positivas e possuem apenas uma
eficácia mediata relativamente ao poder de tributar, sejam dignas da
devida atenção (dignidade humana, proteção da família,
desenvolvimento regional, etc.)”

Tal orientação aliada à compreensão contemporânea do princípio constitucional da


igualdade em sua acepção material, i.é, de garantir-se e promover-se uma igualdade não
só perante a lei, mas, uma igualdade substancial e efetiva, é a indicação da nova tarefa
do Estado no exercício de seu poder de tributar. Ou seja, é utilizar-se da atividade
financeira do Estado de arrecadação de receitas como meio de promoção dos direitos
sociais de forma a propiciar-se, assim, efetivação aos princípios constitucionais da
igualdade e da dignidade da pessoa humana.
O princípio constitucional da igualdade, aliado à compreensão de que a limitação
que desempenha no exercício do poder de tributar compreende a diretriz positiva da
dignidade da pessoa humana, exerce função de destaque na busca de justiça, seja fiscal,
seja social conforme verificar-se-á em secção a seguir na qual trataremos da renda
líquida e do mínimo existencial.
A aplicação da proposta de utilização da tributação como mecanismo de promoção
social é incompatível com a doutrina tributária clássica arraigada ao fenômeno da
subsunção tributária e das normas tributárias interventivas. A fim de dar cabo a proposta
aqui indicada essencial é compreendermos o direito tributário como uma ciência valorativa
que se encontra incerta num sistema permeado por valores e princípios.

3. Direito tributário “por princípios” e Sistema Constitucional Tributário

A partir da compreensão da evolução do Estado e do Novo Constitucionalismo, a


própria teoria do direito modifica-se diante da insuficiência da teoria positivista. O
positivismo tornou-se fadado em face dos novos desafios que a ciência do direito

6
enfrenta. Nesse contexto, os princípios, como espécies normativas que são, revelam-se
como importantes ferramentas de interpretação e aplicação da norma constitucional. 11
Utiliza-se aqui dos ensinamentos da doutrina constitucionalista que oscila na
indicação das funções dos princípios o que, todavia, não desmerece a essencialidade
desses na aplicação da norma constitucional. Doutrina tradicional clássica de
BONAVIDES nos indica que os princípios possuem uma função fundamentadora,
supletiva e interpretativa. BARROSO, representando doutrina de vanguarda, indica, em
outras palavras que os princípios têm a função de garantir unidade ao sistema, condensar
valores e condicionar a atividade do intérprete na aplicação da norma.
Realizando estudo mais denso a propósito da teoria dos princípios, tecendo crítica
construtiva acerca do modismo que se tornou a discussão em torno dos princípios e seu
confronto com as regras, ÁVILA introduz na doutrina nacional terceira espécie normativa.
Aduz o professor gaúcho, abeberando-se na doutrina tedesca, que a “interpretação de
qualquer objeto cultural submete-se a algumas condições essenciais, sem as quais o
objeto não pode sequer ser apreendido. A essas condições especiais dá-se o nome de
postulados.” O autor aponta duas espécies de postulados: os postulados normativos
hermenêuticos, que são destinados à compreensão em geral do direito, e os postulados
normativos aplicativos, cuja função é estruturar a sua aplicação concreta.
Basicamente os postulados consistem em metanormas que desempenham a
função de instituição de critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do
objeto da aplicação. Esclarece o autor que “sempre que se está diante de um postulado
normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à
interpretação de outras normas.”
A fim de extirpar-se qualquer dúvida conceitual acerca do que consiste tal espécie
normativa, oportuna é a transcrição de conclusão de ÁVILA:

“Os postulados normativos são normas imediatamente metódicas,


que estruturam a interpretação e aplicação de princípios e regras
mediante a exigência, mais ou menos específica, de relações entre
elementos com base em critérios”.

Superada essa abordagem teórica essencial é condensarmos tais ensinamentos ao


campo prático, que se revelam precipuamente no campo dos direitos fundamentais do
contribuinte, seja nos princípios de segurança: legalidade (art.150, I), irretroatividade

11
BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e Aplicação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004.

7
(art.150, III, a), anterioridade (art.150,III, b), anterioridade nonagesimal (art.150, III, c);
seja nos princípios de justiça tributária: isonomia (art.150, II), capacidade contributiva
(art.145, §1º), não-diferença tributária (art. 152), vedação à isenção heterônoma (art.151,
III), uniformidade (151, I e II).
Como assinalado anteriormente não se pretende com o presente trabalho tratar
acerca dos direitos fundamentais do contribuinte in spei. O intuito aqui é apenas de alertar
que os direitos fundamentais no campo tributário não se limitam apenas àqueles previstos
nos incisos do art.150 e seguintes. O próprio caput do dispositivo nos enuncia que sem
prejuízos de outras garantias asseguradas ao contribuinte é vedado o exercício da
competência tributária em desacordo com os princípios ali enunciados.
Nesse sentido, por meio de uma interpretação literal seguida de uma interpretação
teleológica, conclui-se que as limitações constitucionais ao poder de tributar (LCPT),
sejam os princípios constitucionais tributários sejam as imunidades tributárias, não se
limitam às garantias previstas nos art.150 e seguintes. Daí então a necessidade de
compreensão do Sistema Tributário Nacional como um Sistema integrado por regras e
princípios que se imbricam.
A propósito das limitações constitucionais ao poder de tributar (LCPT) vale
esclarecer que os princípios constitucionais tributários consistem em direitos
fundamentais que limitam o exercício da competência tributária, daí então sua
proclamação de elevação à categoria de Direitos Fundamentais. Já as imunidades
tributárias são limitações à própria competência tributária, tanto que, Paulo de Barros
CARVALHO 12 , senão o maior um dos maiores tributaristas, afirma que a imunidade
tributária é uma regra de (in)competência tributária. Tal esclarecimento se faz por
necessário tão só para excluir-se a hipótese de proclamação da imunidade como um
direito fundamental. Pois, veja como exemplo, a norma que prevê a imunidade recíproca
(art.150, VI, a) que nada diz respeito a um direito fundamental. Há de considerar-se,
todavia, que o princípio federativo, substrato da imunidade recíproca, está umbilicalmente
ligado ao princípio da separação dos poderes que, por sua vez, é essencial para garantia
dos direitos fundamentais. A imunidade não é em si um direito fundamental, mas sim um
instrumento que permite o exercício dos direitos fundamentais. Nesse sentido, e
considerando que a finalidade precípua do Estado é a garantia dos direitos fundamentais,
assim sentencia ÁVILA: “ ...a causa justificativa da imunidade é facilitar por meio da
exclusão de encargos tributários a consecução de finalidades que devem ser atingidas
pelo próprio Estado.”

12
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2004.

8
Ainda a propósito das limitações constitucionais ao poder de tributar, reitere-se
que limitações não estabelecem apenas o dever de abstenção, mas também o dever de
ação e de composição. Tratando acerca do tema ÁVILA coloca que o princípio da
dignidade da pessoa humana demanda do Estado a conservação do mínimo vital à
existência digna do contribuinte e que o princípio da solidariedade social exige que o
Estado proteja minorias e avalie o interesse dos outros como seu próprio interesse.
Trataremos a seguir justamente a propósito da incidência do princípio da dignidade no
Direito Tributário para, em seguida, tratarmos acerca da tributação como mecanismo de
promoção social de forma a adimplirmos com o princípio da indivisibilidade dos direitos
fundamentais.

4. A Renda Líquida e o Mínimo Existencial à categoria de Direito Fundamental

Como consectário do princípio democrático, e no anseio de justiça tem-se, o


princípio da igualdade, que no Direito Tributário pode ser visto como a regra de “tributar
desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualem” 13 . O alcance da justiça e
democracia no campo do direito tributário realiza-se por meio da compreensão do
Sistema Tributário Nacional (STN) como um conjunto de regras e princípios integrados
que se interagem, uma idéia própria de Sistema. Paulo de Barros CARVALHO assinala
que o sistema constitucional tributário empreende uma construção harmoniosa e
conciliadora ( ...)E, ao faze-lo, enuncia normas que são verdadeiros princípios, tal o valor
que são portadoras, permeando, penetrando e influenciando um número inominável de
outras regras que lhe são subordinadas.”
A compreensão do STN como um Sistema que vai muito além do capítulo I, do
Título VI, da Constituição da República Federativa do Brasil (art.145-162), é
imprescindível de forma a possibilitar-se um Direito Tributário integrado por princípios e
postulados que indicam a necessidade de tutela da Renda Líquida, para as pessoas
jurídicas-contribuintes, e do Mínimo Existencial, ao cidadão-contribuinte.
A elevação da Renda Líquida à categoria de Direito Fundamental encontra
respaldo no próprio princípio constitucional da livre iniciativa, eleito pelo constituinte de
1988 como fundamento da República Federativa do Brasil (art.1º, IV, CRFB/88). É
justamente nesse sentido, e garantindo efetividade ao princípio constitucional da isonomia
tributária, que o poder constituinte derivado reformador dispôs tratamento tributário
diferenciado e favorecido às micro e pequenas empresas (EC nº42/03, art.146, III, d,

13
BARBOSA, Rui. Oração dos Moços. Rio de Janeiro, 1949,(f.33)

9
CRFB/88). A propósito do assunto ÁVILA leciona que tal tratamento visa implementar a
justiça tributária por meio da consideração da capacidade contributiva e, em segundo
lugar, “implementar finalidades extrafiscais de desenvolvimento de setores e atividades
não devidamente desenvolvidas por meio de estímulo ao crescimento das atividades de
microempresas e de empresas de pequeno porte.”
Na busca de adimplir a Justiça Distributiva o Estado deve proporcionar
primeiramente uma justiça fiscal de onde obterá meios para realizar a justiça social,
conforme esclarece ZILVETI, “não se quer propor uma seqüência temporal entre justiça
fiscal e justiça social, mas uma precedência sistemática.”
Diante da observância dessa conclusão é que a justiça social acaba por muitas das
vezes a ser relegada a um segundo plano implicando, assim, num “abrasileiramento” 14 de
alguns princípios constitucionais a exemplo da igualdade, da dignidade da pessoa
humana (art.1º, III, CRFB/88) e da redução das desigualdades sociais (art.3º, III,
CRFB/88).
Ainda utilizando-se das lições do filósofo alemão, HABERMAS, verifica-se então
que “a realidade social descaracteriza o sistema normativo e desacredita as instituições
que deveriam garantir a igualdade.” É na busca de efetividade aos direitos fundamentais,
sobretudo a partir da concepção atual de garantia dos direitos de segunda e terceira
geração, que propõe-se a utilização do poder estatal de tributar como ferramenta de
garantia dos direitos fundamentais.
É justamente nesse sentido de utilizar-se o tributo como instrumento de auxílio na
efetivação dos direitos fundamentais de terceira geração, a exemplo do meio ambiente,
que se instituiu em alguns Estados o “ICMS ecológico”. Aderindo à cultura de efetivação
dos direitos humanos o ICMS Ecológico é, simplesmente, uma mudança nos critérios para
a distribuição das parcelas constitucionais do ICMS que cabem aos municípios. Um
instrumento econômico posto à disposição da proteção do meio ambiente. Os municípios,
pelos critérios do ICMS Ecológico, têm maior participação na distribuição das parcelas
constitucionais do ICMS em função de critérios de proteção ao meio ambiente, como o
investimento em saneamento básico.
Todavia, as iniciativas do Estado de utilizar-se de seu poder de tributar como
ferramenta de efetivação dos direitos fundamentais garantindo-se, assim, justiça social
ainda são tímidas diante do quadro social que vige no país. É na busca de garantia dos

14
HABERMAS, Jurgen, Wahrheit und Rechtfertigung, Philosophiische Aufsatze, Francoforte-no-meno, 1999, p.299:
“Nesses países, a realidade social desmente a validade de normas para cuja implementação faltam os pressupostos
fáticos e vontade política. Uma tendência análoga ao “abrasileiramento” poderia alastrar-se até nas democracias
estabelecidas do ocidente.”

10
direitos fundamentais de segunda geração, sob a diretriz do princípio da indivisibilidade
dos direitos humanos, que propõe-se neste trabalho a tributação como ação afirmativa
estatal.

5. Tributação como ação afirmativa aos portadores de necessidades especiais


(p.n.e.)

Diante da necessidade de promover-se justiça fiscal e, simultaneamente, justiça


social, os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana são importantes
ferramentas de fundamentação de ações afirmativas.
As ações afirmativas são medidas adotadas tanto pelo poder público como pela
sociedade civil com o fito de romper com a discriminação estrutural através de programas
inclusivos a grupos historicamente marginalizados, a exemplo dos portadores de
necessidades especiais. A Profª Flávia PIOVESAN, aguerrida na luta pelos direitos
fundamentais, assim define as ações afirmativas;“Trata-se de medidas concretas que
viabilizam o direito à igualdade, com a crença de que a igualdade deve se moldar no
respeito à diferença e a diversidade. Através dela transita-se da igualdade formal para a
igualdade substancial.” De acordo com as lições de PIOVESAN, a concretização do
direito à igualdade importa a implementação de duas estratégias: o combate à
discriminação e a promoção da igualdade, considerando que ambas não podem ser
dissociadas. Ou seja, além de normas proibitivas de comportamentos discriminatórios
(discriminação negativa) devemos nos atentar para aquelas que prescrevem uma
discriminação positiva de maneira a incluir os grupos historicamente marginalizados ao
núcleo da sociedade.
Os portadores de necessidade especiais correspondem a parcela significativa da
população brasileira, no mundo correspondem a 10% da população conforme pesquisa
realizada pela Organização Mundial da Saúde. 15 Apesar da emergência de uma ética
universal no sentido de respeito e integração da pessoa portadora de necessidades
especiais, como consectário de um processo de especificação do sujeito de direito,
verifica-se a ausência de políticas públicas efetivas de inclusão do p.n.e.
Exemplo de ação afirmativa utilizando-se do poder de tributar do Estado é a
garantia de isenção de IPI à portadores de necessidades especiais na aquisição de
veículo automotor como medida de garantia de acessibilidade à essa minoria facilitando,

15
Jornal O Popular, 18.01.2004, p.4.

11
assim, sua inclusão social (Lei nº10.741/03). Dentre pesquisa 16 realizada oportuna é
transcrição de trecho de decisão paradigmática do Ministro Luiz Fux, do STJ, que retrata
o Estado-Juiz como agente de garantia de ações afirmativas na busca de inclusão de
minorias:

CONSTITUCIONAL.TRIBUTÁRIO.IPI.ISENÇÃO NA COMPRA DE
AUTOMÓVEL. DEFICIENTE FÍSICO IMPOSSIILITADO DE DIRIGIR.
AÇÃO AFIRMATIVA. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEX
MITIOR
(...)Como de sabença, as ações afirmativas, fundadas em
princípios legitimadores dos interesses humanos reabre o dialogo
pós-positivista entre o direito e a ética, tornando efetivos os princípios
constitucionais da isonomia e da proteção da dignidade da pessoa
humana, cânones que remontam as mais antigas declarações
Universais dos Direitos do Homem. Enfim, é a proteção da própria
humanidade, centro que hoje ilumina o universo jurídico, após a tão
decantada e aplaudida mudança de paradigmas do sistema jurídico,
que abandonando a equalização dos direitos optou, axiologicamente,
pela busca da justiça e pela pessoalização das situações
consagradas na ordem jurídica. Deveras, negar a pessoa portadora
de deficiência física a política fiscal que consubstancia verdadeira
positive action significa legitimar violenta afronta aos princípios da
isonomia e da defesa da dignidade da pessoa humana... 17

As limitações constitucionais positivas, que estabelecem um dever de ação, devem


ser protegidas em especial pelo Estado, porém, não apenas por ele. Fala-se aqui ao que
a doutrina constitucionalista 18 denomina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais
que nos indica que também os particulares devem agir de acordo com os princípios
constitucionais fundantes, a exemplo da dignidade da pessoa humana, de forma a
contribuir com o Estado por meio do desempenho de suas atividades para maior
efetividade das limitações do poder estatal. Acerca do assunto leciona ÁVILA:

16
Cf. CABIANCA, Lucas Bevilacqua. A deficiência visual sob a ótica da Constituição Federal. Revista do Ministério
Público do Estado de Goiás. MP-GO, Goiânia, v.VIII, n.12, p.97-104, dez.2005.
17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Isenção na compra de automóveis- deficiente físico impossibilitado de dirigir-
ação afirmativa. RESP 567873, MG., Rel Min. Luiz Fux , 1ª turma.
18
BARROSO, Luis Roberto. Nova Interpretação Constitucional. (Org.) Rio de Janeiro: Renovar.2001.

12
“... as limitações não pressupõem apenas uma relação estática
entre particular e Estado, mas várias relações recíprocas,
ativas e passivas dos particulares entre si, deles frente ao
Estado e frentes econômicas e sociais radicadas na própria
sociedade. O conceito de limitações, com isso, vê-se ampliado
19
e enriquecido substancialmente.”

Verifica-se então que agente de ações afirmativa não é apenas o Estado, mas
também, toda a coletividade. Incumbe ao Estado promover ações afirmativas que
incentivem a iniciativa privada na promoção dos direitos sociais de grupos historicamente
marginalizados a exemplo dos negros, deficientes e idosos.
Da mesma forma que a Constituição prevê um tratamento diferenciado e favorecido
a micro e pequenas empresas com fito de implementar justiça tributária e, como finalidade
extrafiscal, fomentar o desempenho de atividades pouco desenvolvidas pelas mesmas,
propõe-se aqui o uso da tributação como instrumento de fomento de ações afirmativas.
Exemplo que há é no programa de fomento à industrialização do Estado de Goiás (Lei
nº13.591/00 e Dec nº5.262/00) que condiciona como fator de desconto do ICMS o
emprego de portadores de necessidades especiais e idosos em mais de 5% do total de
vagas. A partir da aplicação do princípio de interpretação constitucional da máxima
efetividade da norma (HESSE), sobretudo ao considerar que a matéria aqui versada é de
direitos fundamentais, devemos empreender a interpretação que tal percentual refere-se
além das vagas já exigidas pela legislação federal (Dec. nº3.298/99).

6. Considerações Finais

Considerando os esclarecimentos preliminares a propósito do Estado atual e das


funções que desempenha verifica-se que o Estado subsidiário afasta-se a cada vez mais
de seus afazeres sociais, olvidando-se de sua finalidade precípua que a garantia dos
direitos fundamentais.
Diante do exposto, a partir da compreensão da teoria dos direitos fundamentais
aliada ao conceito de limitação positiva da tributação (ÁVILA), apresenta-se a atividade
financeira do Estado de arrecadação de receitas como uma eficaz ferramenta na garantia
dos direitos sociais aos portadores de necessidade especial, promovendo-se, assim,
justiça social através de justiça fiscal.

19
ÁVILA, op cit 2004:73

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