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Capítulo 1

SISTEMA DE IDEIAS GERAIS DO DIREITO

Sumário: 1. A Necessidade de um Sistema de Ideias Gerais do Direito. 2. A Introdução ao Estudo do Direito. 3. Outros
Sistemas de Ideias Gerais do Direito. 4. A Introdução ao Estudo do Direito e os Currículos dos Cursos Jurídicos no
Brasil.

1. A NECESSIDADE DE UM SISTEMA DE IDEIAS GERAIS DO DIREITO


O Direito que se descortina aos estudantes, neste primeiro quartel de século, além de exigir
renovados métodos de aprendizado, encontra-se revigorado por princípios e normas, que tutelam os
direitos da personalidade, impõem a ética nas relações, dão prevalência ao social e atribuem aos juízes
um papel ativo na busca de soluções equânimes. Em sua constante mutação, a fim de acompanhar a
marcha da história e conectar-se aos avanços da ciência, o Direito pátrio, entretanto, por vários de seus
institutos, requer adequação à modernidade, desafiando, além da classe política e, em primeiro plano, a
comunidade de juristas, a quem compete oferecer ao legislador os modelos alternativos de leis. É este,
em linhas gerais, o quadro que se apresenta aos iniciantes no aprendizado da Ciência Jurídica.
Identificar o Direito, no universo das criações humanas, situando-o como ordem social dotada de
coerção e, ao mesmo tempo, fórmula de garantia da liberdade, é a grande meta do conjunto de temas que
se abrem à compreensão dos acadêmicos. Antes de iniciarmos a execução deste importante projeto,
impõe-se a abordagem do estatuto metodológico da Introdução ao Estudo do Direito.
O ensino do Direito pressupõe a organização de uma disciplina de base, introdutória à matéria, a
quem cumpre definir o objeto de estudo, indicar os limites da área de conhecimento, apresentar as
características da ciência, seus fundamentos, valores e princípios cardiais. À medida que a ciência
evolui e cresce o seu campo de pesquisa, torna-se patente a necessidade da elaboração de uma disciplina
estrutural, com o propósito de agrupar os conceitos e elementos comuns às novas especializações. No
dizer preciso de Benjamin de Oliveira Filho, a disciplina constitui um sistema de ideias gerais.1 Ao
mesmo tempo que revela o denominador comum dos diversos departamentos da ciência, ela se ocupa
igualmente com a visão global do objeto, na pretensão de oferecer ao iniciante a ideia do conjunto.2
O desenvolvimento alcançado pela Ciência do Direito, a partir da era da codificação, com a
multiplicação dos institutos jurídicos, formação incessante de novos conceitos e permanente ampliação
da terminologia específica, exigiu a criação de um sistema de ideias gerais, capaz de revelar o Direito
como um todo e alinhar os seus elementos comuns. A árvore jurídica, a cada dia que passa, torna-se mais
densa, com o surgimento de novos ramos que, em permanente adequação às transformações sociais,
especializam-se em sub-ramos. Em decorrência desse fenômeno de crescimento do Direito Positivo, de
expansão dos códigos e leis, aumenta a dependência do ensino da Jurisprudência às disciplinas
propedêuticas, que possuem a arte de centralizar os elementos necessários e universais do Direito, seus
conceitos fundamentais, em um foco de menor dimensão.3
Em função dessa necessidade, é imperioso proceder-se à escolha de uma disciplina, entre as várias
sugeridas pela doutrina, capaz de atender, ao mesmo tempo, às exigências pedagógicas e científicas.
Antes de a Introdução ao Estudo do Direito ser reconhecida como a mais indicada, houve várias
tentativas e experiências com a Enciclopédia Jurídica, Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito e
Sociologia do Direito.

2. A INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO


2.1. Apresentação da Disciplina. A Introdução ao Estudo do Direito é matéria de iniciação, que
fornece ao estudante as noções fundamentais para a compreensão do fenômeno jurídico.4 Apesar de se
referir a conceitos científicos, a Introdução não é, em si, uma ciência, mas um sistema de ideias gerais
estruturado para atender a finalidades pedagógicas. Considerando a sua condição de matéria do curso
jurídico, deve ser entendida como disciplina autônoma, pois desempenha função exclusiva, que não se
confunde com a de qualquer outra. Sob este enfoque Luiz Luisi reconhece a autonomia, que “deriva de
seu fim específico: reduzir o Direito a unidade sistemática”.5 Se tomarmos, porém, a palavra disciplina
no sentido de ciência jurídica (v. item 5), devemos afirmar que a Introdução ao Estudo do Direito não
possui autonomia; ela não cria o saber, apenas recolhe das disciplinas jurídicas (Filosofia do Direito,
Ciência do Direito, Sociologia Jurídica, História do Direito, Direito Comparado) as informações
necessárias para compor o quadro de conhecimentos a ser apresentado aos acadêmicos. A cada instante,
na fundamentação dos elementos da vida jurídica, recorre aos conceitos filosóficos, sociológicos e
históricos, sem chegar, porém, a se confundir com a Filosofia do Direito, nem com a Sociologia do
Direito, que são disciplinas autônomas. De caráter descritivo e pedagógico, não “consiste na elaboração
científica do mundo jurídico”, como pretende Werner Goldschmidt, 6 pois o conteúdo que desenvolve não
é de domínio próprio. O que possui de específico é a sistematização dos conhecimentos gerais. Em
semelhante equívoco incorre Bustamante y Montoro, que reconhece na disciplina uma “índole
normativa”.7 Embora de caráter descritivo, a disciplina deve estar infensa ao dogmatismo puro, que tolhe
o raciocínio e a reflexão. O tratamento exageradamente crítico aos temas é também inconveniente, de um
lado porque torna a matéria de estudo mais complexa e de difícil entendimento para os iniciantes e, de
outro lado, porque configura o objeto da Filosofia do Direito. Os temas que envolvem controvérsias e
abrem divergências na doutrina, longe de constituírem fator negativo, habituam o estudante com a
pluralidade de opiniões científicas, que é uma das tônicas da vida jurídica.8 As Institutas de Gaio, do séc.
II a.C., são citadas entre as primeiras obras do gênero Introdução ao Estudo do Direito.

2.2. Objeto da Introdução ao Estudo do Direito. A disciplina Introdução ao Estudo do Direito visa
a fornecer ao iniciante uma visão global do Direito, que não pode ser obtida através do estudo isolado
dos diferentes ramos da árvore jurídica. As indagações de caráter geral, comuns às diversas áreas, são
abordadas e analisadas nesta disciplina. Os conceitos gerais, como o de Direito, fato jurídico, relação
jurídica, lei, justiça, segurança jurídica, por serem aplicáveis a todos os ramos do Direito, fazem parte
do objeto de estudo da Introdução. Os conceitos específicos, como o de crime, mar territorial, hipoteca,
desapropriação, aviso prévio, fogem à finalidade da disciplina, porque são particulares de determinados
ramos, em cujas disciplinas deverão ser estudados. A técnica jurídica, vista em seus aspectos mais
gerais, é também uma de suas unidades de estudo.
Para proporcionar a visão global do Direito, a Introdução examina o objeto de estudo dos principais
ramos, levando os alunos a se familiarizarem com a linguagem jurídica. O estudo que desenvolve não
versa sobre o teor das normas jurídicas; não se ocupa em definir o que se acha conforme ou não à lei,
pois é disciplina de natureza epistemológica, que expressa uma teoria da ciência jurídica. Concluindo,
podemos dizer que ela possui um tríplice objeto:
a) os conceitos gerais do Direito;
b) a visão de conjunto do Direito;
c) os lineamentos da técnica jurídica.

2.3. A Importância da Introdução. Os primeiros contatos do estudante com a Ciência do Direito se


fazem através da Introdução ao Estudo do Direito, que funciona como um elo entre a cultura geral, obtida
no curso médio, e a específica do Direito. O papel que desempenha é de grande relevância para o
processo de adaptação cultural do iniciante.
Ao encetar os primeiros estudos de uma ciência, é comum ao estudante sentir-se atônito, com muitas
dificuldades, em face dos novos conceitos, métodos, terminologia e diante do próprio sistema que
desconhece. É ilustrativo o depoimento de Edmond Picard, nas primeiras páginas de seu famoso livro O
Direito Puro, obra introdutória ao estudo do Direito. Conta-nos o eminente jurista francês a angústia que
sentiu, ao início de seu curso de Direito, com a falta de uma disciplina propedêutica, diante da
“abundância prodigiosa dos fatos” e da dificuldade em relacioná-los; “da ausência de clareza e de
harmonia na visão do Direito”.9 É através da Introdução ao Estudo do Direito que o estudante deverá
superar esses primeiros desafios e testar a sua vocação para a Ciência do Direito.
A importância de nossa disciplina, entretanto, não decorre apenas do fato de propiciar aos estudantes
a adaptação ao curso, de vez que ministra também noções essenciais à formação de uma consciência
jurídica. Além de descortinar os horizontes do Direito pelo estudo dos conceitos jurídicos fundamentais,
a Introdução lança no espírito dos estudantes, em época própria, os dados que tornarão possível, no
futuro, o desenvolvimento do raciocínio jurídico a ser aplicado nos campos específicos do conhecimento
jurídico.10

3. OUTROS SISTEMAS DE IDEIAS GERAIS DO DIREITO


3.1. Filosofia do Direito. A Filosofia do Direito é uma reflexão sobre o Direito e seus postulados,
com o objetivo de formular o conceito do Jus e de analisar as instituições jurídicas no plano do dever
ser, levando-se em consideração a condição humana, a realidade objetiva e os valores justiça e
segurança. Pela profundidade de suas investigações e natural complexidade, os estudos filosóficos do
Direito requerem um conhecimento anterior tanto de filosofia quanto de Direito. Uma certa maturidade no
saber jurídico é indispensável a quem pretende estudar a scientia altior do Direito. Este aspecto já
evidencia a impossibilidade de essa disciplina figurar nos currículos de Direito como matéria
propedêutica. A importância de seu estudo é patente, mas a sua presença nos cursos jurídicos há de se
fazer em um período mais avançado, quando os estudantes já se familiarizaram com os princípios gerais
de Direito (v. item 6).

3.2. Teoria Geral do Direito. Como forma de reação ao caráter abstrato e metafísico da Filosofia
Jurídica, surgiu a Teoria Geral do Direito que, de índole positivista e adotando subsídios da Lógica, é
disciplina formal que apresenta conceitos úteis à compreensão de todos os ramos do Direito. A sua
atenção não se acha voltada para os valores e fatos que integram a norma jurídica e por isso a sua tarefa
não é descrever o conteúdo de leis ou formular a sua crítica. Seu objeto consiste na análise e
conceituação dos elementos estruturais e permanentes do Direito, como suposto e disposição da norma
jurídica, coação, relação jurídica, fato jurídico, fontes formais. Na expressão de Haesaert, a Teoria
Geral do Direito “concerne ao estudo das condições intrínsecas do fenômeno jurídico”.11
Esta ordem de estudo é valiosa ao aprendizado jurídico, contudo carece de importantes unidades que
versam sobre os fundamentos, valores e conteúdo fático do Direito. Daí por que essa disciplina, que
constitui uma grande seção de estudo da Introdução, é insuficiente para revelar aos iniciantes da
Jurisprudentia as várias dimensões do fenômeno jurídico.
A Teoria Geral do Direito surgiu no século XIX e alcançou o seu maior desenvolvimento na
Alemanha, onde foi denominada Allgemeine Rechtslehre. Seus principais representantes foram Adolf
Merkel, Berbohm, Bierling, Binding e Felix Somló.

3.3. Sociologia do Direito. O estudo das relações entre a sociedade e o Direito, desenvolvido em
ampla extensão pela Sociologia do Direito, é um dos temas necessários a uma disciplina introdutória.
Esta, porém, não pode ter o seu conteúdo limitado ao problema da efetividade do Direito, nem
empreender aquela pesquisa em profundidade, a nível de especialização. A Sociologia do Direito não
oferece a visão global do Direito, não estuda os elementos estruturais e constitutivos deste, nem cogita do
problema de sua fundamentação. Além desta série de lacunas, acresce ainda o fato de que o objeto da
Sociologia do Direito não está inteiramente definido e seus principais cultores procuram formar, entre si,
um consenso a este respeito (v. item 6).12

3.4. Enciclopédia Jurídica. A etimologia do vocábulo enciclopédia dá uma visão do que a presente
disciplina pretende objetivar: encyclios paidêia correspondia a um conjunto variado de conhecimentos
indispensáveis à formação cultural do cidadão grego. A Enciclopédia Jurídica tem por objeto a
formulação da síntese de um determinado sistema jurídico, mediante a apresentação de conceitos,
classificações, esquemas, acompanhados de numerosa terminologia. Sem conteúdo próprio, de vez que
procura resumir as conclusões da Ciência do Direito, o que caracteriza a Enciclopédia Jurídica é o
método de exposição dos assuntos, ao dividi-los em títulos, categorias, rubricas, e a tentativa de reduzir
o saber jurídico a fórmulas e esquemas lógicos.
Na prática a Enciclopédia Jurídica não se revelou uma disciplina pedagógica, porque conduz à
memorização, tornando o seu estudo cansativo e sem atingir às finalidades de um sistema de ideias gerais
do Direito. Estendendo o seu estudo aos conceitos específicos, peculiares a determinados ramos da
árvore jurídica, a Enciclopédia Jurídica não evita a dispersão cultural. Querer enfeixar, por outro lado,
todo o panorama da vida jurídica em uma disciplina é pretensão utópica e sem validade científica.13
Como obras mais antigas no gênero, citam-se a de Guilherme Duramti, de 1275, denominada
Speculum Juris, preparada para ser utilizada pelos causídicos perante os tribunais; a Methodica Juris
Utriusque Traditio, de Lagus, em 1543; o Syntagma Juris Universi, de Gregório de Tolosa, de 1617 e a
Encyclopoedia Juris Universi, de Hunnius, em 1638. A Enciclopedia Giuridica, de Filomusi Guelfi, do
final do século XIX, revela a multiplicidade dos temas abordados na disciplina. Além de uma parte
introdutória e uma geral, onde desenvolve, respectivamente, sobre o conceito do Direito e suas relações
com a Moral e aborda o tema da origem do Direito Positivo e o problema das fontes formais, a obra do
notável mestre italiano apresenta uma parte especial, a mais extensa, dedicada aos institutos jurídicos
fundamentais, tanto de Direito Público como de Direito Privado. Nesta parte, o autor faz incursões
demoradas em todos os ramos do Direito, analisando o sistema jurídico italiano. Não obstante o seu
grande valor, essa obra não deve ser catalogada como propedêutica, porque não se limita a analisar os
conceitos gerais do Direito.14

4. A INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO E OS CURRÍCULOS DOS CURSOS JURÍDICOS NO BRASIL


A primeira disciplina jurídica de caráter propedêutico, em nosso País, foi o Direito Natural –
denominação antiga da Filosofia do Direito –, a partir de 11 de agosto de 1827, com a criação dos cursos
jurídicos em São Paulo e em Olinda. Em 1891, com o advento da República, o currículo do curso
jurídico sofreu alterações e a disciplina Direito Natural foi substituída pela Filosofia e História do
Direito, lecionada na primeira série. Em 1895, houve o desmembramento desta disciplina, figurando a
Filosofia do Direito na primeira série e a História do Direito, que pouco tempo sobreviveu, na quinta
série. Já em 1877, Rui Barbosa reivindicava a substituição da disciplina Direito Natural pela Sociologia
Jurídica, em sua “Reforma do Ensino Secundário e Superior”, conforme nos relata Luiz Fernando
Coelho.15
Em 1912, com a reforma Rivadávia Correia, foi instituída a Enciclopédia Jurídica, que permaneceu
como matéria de iniciação durante três anos, sendo posteriormente suprimida pela reforma Maximiliano.
A Filosofia do Direito passou então a ser estudada como disciplina introdutória, lecionada na primeira
série até que, em 1931, com a chamada Reforma Francisco Campos, passou a ser ensinada na última série
e nos cursos de pós-graduação. Em seu lugar, para a primeira série, foi criada a Introdução à Ciência do
Direito. A Resolução n o 3, de 2 de fevereiro de 1972, do então Conselho Federal de Educação, alterou a
sua nomenclatura para Introdução ao Estudo do Direito e a Portaria no 1.886, de 30 de dezembro de
1994, do Ministério da Educação e do Desporto, ao estabelecer novas diretrizes para o curso jurídico,
confirmou o caráter obrigatório da disciplina, passando a denominá-la Introdução ao Direito.
Estão em vigor, a partir de 1o de outubro de 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Graduação em Direito, instituídas pelo Conselho Nacional de Educação, com a Resolução CNE/CES no
9, de 29 de setembro de 2004. A nova orientação pretende assegurar aos acadêmicos “ sólida formação
geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia
jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais ...”.
Diferentemente das fórmulas anteriores, a atual não indica as disciplinas que devam integrar o chamado
Eixo de Formação Fundamental, optando por assegurar aos estudos “conteúdos essenciais sobre
Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia.” Cabe,
assim, às coordenações de curso, a indicação das disciplinas capazes de atender aos objetivos propostos.
Inequivocamente, as disciplinas que se encaixam no perfil delineado do Eixo de Formação
Fundamental, dado o atual nível de nossa cultura e experiência acadêmica, são: Introdução ao Estudo
do Direito, Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito, Introdução à Ciência Política, Economia
Aplicada ao Direito e História do Direito.16

BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL

Ordem do Sumário:

1– Benjamim de Oliveira Filho, Introdução à Ciência do Direito; Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito;
2– Miguel Reale, op. cit.; Mouchet e Becu, Introducción al Derecho;
3– Mouchet e Becu, op. cit.; Benjamim de Oliveira Filho, op. cit.;
4– Luiz Fernando Coelho, Teoria da Ciência do Direito.

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