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4 História
Nelson Schapochnik
documentos até então não compulsados, ele registrava na obra Relatos dos Tempos Mero-
víngios (1851) que: “As pessoas disseram que a meta do historiador era recontar, e não
provar; eu não sei, mas estou certo que em história, o melhor tipo de prova, o mais capaz
de impressionar e convencer todas as mentes, que permite a menor desconfiança e deixa as
menores dúvidas, é a narração completa” (apud BANN, 1994, p. 58).
Ao afastar a “desconfiança” e a “dúvida” através da imersão total nas fontes para delas
extrair a verdade do passado, Thierry lançava mão de uma poderosa estratégia cognitiva
e retórica. Do ponto de vista cognitivo, o texto histórico deveria estar embasado num
sólido repertório documental e, do ponto de vista retórico, a própria narrativa deveria ser
tomada como prova autovalidativa daqueles eventos narrados, criando a ilusão de uma
reatualização do passado por meio do ocultamento do narrador e dar, assim, a impressão
de os “fatos falarem por si mesmos”.
Não por acaso, Thierry referiu-se ao seu próprio trabalho por meio de uma metáfora
(“o trabalho de Penélope”) que traduzia o processo de composição da trama do tex-
to histórico. “Tentando novas combinações”, “fazendo e desfazendo incessantemente”
foram expressões por ele empregadas para se referir às exigências de um novo padrão de
escrita da história. O sonho de Michelet como historiador fora um sonho de autor: criar
uma nova linguagem ou, como ele mesmo escreveu, “arriscar uma nova linguagem... a
linguagem de um jeito sério e carinhoso de Rabelais”.
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Esta clivagem entre a prática da história e o fazer literário foi tomada, pelos
historiadores da segunda metade do século XIX, como uma premissa necessária
para não macular a sua reputação acadêmica ou científica recém-adquirida. Esse
deslocamento incluía ao menos três pressupostos, respectivamente, de ordem episte-
mológica, ontológica e metodológica, a saber: que o conhecimento histórico não só
era possível, mas implicava a consagração da verdade; a existência de um passado
fixo e determinado; e, finalmente, que esse conhecimento seria acessível por meio da
aplicação de um método apropriado.
fato de recopiar ou transcrever implicava uma operação de seleção e combinação que alte-
rava o estatuto originário dessas reminiscências textuais do passado. Longe de aceitarem os
“dados”, os historiadores os constituíam. Roland Barthes (1988, p. 156) denominou “efeito
de real” a esta tentativa de compreender a realidade (o referente da linguagem) para além da
própria linguagem. De acordo com o crítico, o documento em si é privado de significação,
ele não faz mais do que repetir continuamente que tal fato aconteceu.
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pontos da Europa, condenando o “imperialismo” da histó-
ria política, e apontando para a necessidade de embasar
a produção do conhecimento histórico em novas bases
metodológicas e na investigação das estruturas socioeco-
nômicas das sociedades do passado.
Um bom índice desse descontentamento pode ser apreen-
dido num texto de François Simiand, economista e sociólogo
de formação durkheimiana, publicado em 1903 na Revista de Síntese. No artigo intitu-
lado “Método histórico e ciências sociais”, ele condenava os “três ídolos da tribo dos
historiadores”: o “ídolo político”, isto é, “a eterna preocupação com a história política, os
fatos políticos, as guerras etc., que conferem a esses eventos uma exagerada importância”;
o “ídolo individual”, a exaltação de reis, militares de alta patente, “heróis” ou “grandes
homens”; e ainda o “ídolo cronológico”, que expressava “o hábito de perder-se nos estu-
dos das origens” (SIMIAND, 2003, p. 111-115).
A crítica de Simiand era parte do questionamento da noção de progresso e, ao mesmo
tempo, afirmação de um projeto de constituição de uma ciência social positiva. Nesta
perspectiva, o fato isolado não significaria nada, pois ele teria de ser inserido numa série
que possibilitasse determinar padrões ou leis explicativas do seu movimento. A dimensão
temporal não mais constituiria o arcabouço restritivo de referência de uma cronologia
linear; ela tornaria possível estudar variações e recorrências, servindo como um labora-
tório para a pesquisa que se declarava de início comparativa. A classificação dos fatos
sociais conduziu à identificação de sistemas estáveis ou, nas palavras de Simiand, “se os
estudos dos fatos humanos tendem a oferecer explicações no sentido científico da pala-
vra... seu propósito principal é identificar relações estáveis, bem definidas... que podem
aparecer entre os fenômenos”. Não parece ser equivocado afirmar que o conjunto de
pressupostos dos Annales, movimento que encabeçará a batalha institucional e intelec-
tual pela renovação dos estudos históricos na França, está virtualmente contido nesta
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No ano de 1929, um pequeno grupo de jovens professo-
res da Universidade de Estrasburgo lançou-se numa aven-
tura vitoriosa de publicar uma revista denominada Anna-
les d’histoire économique et sociale. Seu comitê editorial
congregava os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, o
geógrafo Albert Demangeon, o sociólogo Maurice Halbwa-
chs, o economista Charles Rist e ainda o cientista político
André Siegried. O intuito do grupo era promover uma nova
abordagem, atuando inicialmente no campo da história
social e econômica, marcadamente interdisciplinar.
Mesmo correndo o risco de simplificações, podemos indi- Universidade de Estrasburgo
car os debates e combates travados neste contexto através de
um jogo de contrastes reproduzido no quadro abaixo:
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4 Culto dos “heróis”, dos grandes homens e das elites. Tendência à abordagem dos processos sociais, com
destaque para as ações de sujeitos coletivos, dos
anônimos e de homens ordinários.
5 Exigia-se do profissional uma sólida erudição e Embora não rejeitassem os protocolos da historio-
o uso do aparato crítico derivado das chamadas grafia do século XIX, enfatizaram a necessidade de
“ciências auxiliares da história” (diplomacia, heráldi- um diálogo com as demais disciplinas. A “utopia
ca, paleografia, numismática) a ser empregado na da história total” passava necessariamente pela
crítica interna e externa das fontes. interdisciplinaridade (economia, geografia, sociolo-
gia, antropologia, demografia, psicologia, linguística).
6 Concepção de tempo homogêneo, unívoco, linear Ênfase na vigência de múltiplas temporalidades
e progressivo, que se expressava no emprego da com a introdução de análises que passaram a
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sucessão cronológica. apreender ritmos e durações distintas. Para além do
tempo do acontecimento (cronológico), passaram
a explorar o tempo mediano das “conjunturas e
ciclos” e o tempo mais lento da “longa duração”.
7 Eurocentrismo e etnocentrismo. A ascensão de novos paradigmas (Geografia
humana, Vidal de La Blache; Sociologia, Émile
Durkheim e Maurice Halbwachs; Antropologia,
Marcel Mauss; Lingüística, Saussure) contribuiu para
novas maneiras de abordar a história.
A positividade desses estudos pode ser apreendida na copiosa produção dos pais-fun-
dadores da revista como também na daqueles historiadores que se agregaram ao núcleo
precursor. Sob a palavra de ordem da interdisciplinaridade, os annalistas passaram a
imprimir novos padrões de investigação, onde se observa o emprego da quantificação e
de uma perspectiva comparativista. Os domínios da história estenderam-se principalmen-
te pelas veredas da história econômica, da história social e da história demográfica, sendo
abordadas quer por um recorte macroespacial quer na perspectiva das monografias que
abordavam a história local ou regional.
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Revolução Francesa de 1789, a Ernest Labrousse ao enfocar a crise da econo-
mia de subsistência na Europa pré-industrial ou, ainda, a interpretação de Pierre
Vilar sobre as alterações na economia europeia decorrentes do fluxo de metais
oriundos da América.
c) O conceito de estrutura empregado por Fernand Braudel é ambíguo e não
apresenta o mesmo sentido empregado por Saussure nos estudos linguísti-
cos, ou por Lévi-Strauss no campo da antropologia. Nos trabalhos de Brau-
del, o conceito denota um arranjo entre os vários níveis de análise, dando
a impressão de uma totalidade (conforme definição de Braudel, tratava-se
de uma “articulação, uma arquitetura... uma realidade que o tempo utiliza
mal e veicula longamente”), em vez de uma visão efetivamente sistêmica que
prescinde da sincronia e da diacronia.
Para além das conquistas metodológicas e da renovação historiográfica, o fato é que
no contexto do pós-guerra Febvre promoveu a institucionalização dos Annales com a
criação, em 1947, da VI Seção da Escola Prática de Altos Estudos dedicada às ciências
sociais. A partir desse momento, a revista transformou-se no órgão oficial de uma corren-
te historiográfica que gradativamente assumia a feição de uma “igreja ortodoxa”. Sob a
liderança de Febvre, auxiliado por amigos e discípulos que passaram a ocupar posições
estratégicas na organização, esses intelectuais conquistaram o establishment acadêmico
francês e, não raro, as missões culturais capitaneadas pelo grupo em diversas instituições
de ensino superior na Europa, nos EUA e na América Latina contribuíram para a hegemo-
nia deste movimento.
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mológico da história”. O resultado imediato deste processo de “tomada de consciência
pelos historiadores do relativismo de sua ciência” (LE GOFF, 1976, p. 12) correspondeu
a uma mudança de perspectiva e um inequívoco alargamento das fronteiras do campo.
A passagem da investigação das estruturas socioeconômicas empreendida pela geração
de Febvre e Braudel para o plano das mentalidades e do imaginário recebeu, por parte
de Michel Vovelle, a bela designação “do porão ao sótão” (VOVELLE, 1987, p. 22).
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École des Annales não tem outra definição, senão que ela é as pessoas que eu
encontro de manhã no elevador. O que existe de comum entre Le Roy Ladu-
rie, Le Goff, eu, Richet ? Como podem nos identificar sob a mesma etiqueta,
dizendo: eles são da mesma escola?” (FURET, 1988, pp. 151-152)
Referências bibliográficas
BANN, Stephen. Analisando o discurso da história. As invenções da história. São Paulo:
Ed. Unesp, 1994.
BARTHES, Roland. O discurso da história. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense,
1988.
BLOCH, Marc. Uma introdução à história. Lisboa: Publicações Europa-América, 1974.
FEBVRE, Lucien. Frente ao vento. Manifesto dos novos Annales. Combates pela história
v.1. Lisboa: Presença, 1978a.
______. Viver a história. Palavras de iniciação. Combates pela história v.1. Lisboa: Pre-
sença, 1978b.
FURET, François. O historiador e a história (entrevista concedida a Aspásia Camargo).
Estudos Históricos nº 1. Rio de Janeiro, 1988.
HARTOG, François. L'oeil de l'historien et la voix de l'histoire. Communications nº 43.
Paris, 1986.
LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. Apresentação. História: Novos Problemas. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1976.
SIMIAND, François. Método histórico e ciência social. Bauru: Edusc, 2003.
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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Ampliando o conhecimento
Para uma avaliação da chamada “Escola dos Annales”, veja: BURKE, Peter. A escola dos
Annales 1929-1989. A revolução francesa na historiografia. São Paulo: Ed.Unesp,
1991. Nesta obra, o autor delineia as principais correntes e apresenta o movimento
por meio de uma continuidade geracional. Para a compreensão de outra perspectiva
que enfoca a descontinuidade e a vigência de distintos paradigmas, consulte REVEL,
Jacques. “História e Ciências Sociais: os paradigmas dos Annales”. A invenção da
sociedade. Lisboa: Difel, 1991.
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