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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

CDD: 149.7

O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 1


PAUL RATEAU
Centre d’Histoire des Systèmes de Pensée Moderne
Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne
PARIS, FRANÇA
paul.rateau@univ-paris1.fr

Resumo: este artigo retoma a Teodiceia de Leibniz à luz das críticas tecidas por Kant, em seu Sobre o
insucesso de todas as tentativas filosóficas em matéria de teodiceia, com o objetivo de aquilatar se e em
que medida a teodiceia elaborada por Leibniz estaria sujeita à crítica kantiana.
Palavas-chave: Leibniz, Kant, teodiceia, causa divina, justiça, doutrina

Abstract: This paper is consecrated to examine Leibniz' Theodicy in the light of Kant's criticism
exposed in his About the failure of all philosophical essay in the theodicy, in order to evaluate whether
and to what extent Leibniz's theodicy is subjected to kantian objections.
Keywords: Leibniz, Kant, teodiceia, divine cause, justice, doctrine

No opúsculo intitulado Sobre o insucesso de todas as tentativas


filosóficas em matéria de teodiceia (1791), Kant dedica-se a uma dupla tarefa:
uma negativa, crítica, de mostrar o fracasso da teodiceia como
empreendimento racional de defesa da sageza divina, e outra, positiva,
prática, de pôr um termo definitivo a esse "processo" pretendido pela
razão diante de si própria, substituindo ao ensaio especulativo estéril e
ilegítimo o que ele denomina a teodiceia "autêntica". A crítica kantiana
consiste, no mesmo movimento, em desqualificar todas as teodiceias

1 Tradução: Vivianne de Castilho Moreira. Este texto foi publicado pela pri-

meira vez em francês no volume: L’idée de teodiceia de Leibniz à Kant: héritage,


transformations, critiques, série de artigos editada por P. Rateau, Studia Leibnitiana,
Sonderheft 36, Franz Steiner Verlag, 2009.

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passadas e mesmo futuras ou possíveis (atacando a ideia diretora que


sustenta todas, em lugar de refutar tal ou tal tentativa particular 2 ), e a
consumar, de alguma maneira, o fim de toda teodiceia, entendido no
duplo sentido de ponto final e de objetivo alcançado, admitindo como
única defesa legítima aquela fundada sobre o conceito a priori de Deus
como ser moral e sábio que nos concede razão prática. A confissão
sincera de nossa ignorância termina a controvérsia e desempenha a
tarefa da teodiceia, revelando ser a defesa mais decisiva, para não dizer
a mais eficaz, sobre o plano da disputa e da teoria (visto que essa
confissão conduz a opor um fim de não acolher objeções) e, ao mesmo
tempo, a mais justa sobre o plano prático, aquela que a probidade
comanda e que, na história de Jó (porta-voz da interpretação
"autêntica"), Deus concorda. A falha das teodiceias existentes não
repousa em que seus autores teriam se mostrado incapazes de
encontrar argumentos racionais mais probatórios. O insucesso não é
nem temporário nem contingente, mas necessário, quaisquer que sejam
os meios e os expedientes utilizados de uma parte e de outra, tais meios
e expedientes não servindo senão para perpetuar indefinidamente o
processo. Também seria vão esperar da razão a descoberta futura de
novos argumentos e realmente conclusivos, suscetíveis de enfim
inocentar a Divindade 3 .

2 Nem o nome de Leibniz, nem o de qualquer outro filósofo aparece no texto,


mesmo que a menção de "Versuche" no título (Über das Misslingen aller philosophis-
chen Versuche in der Theodicee) lembre inevitavelmente os Essais de Théodicée.
3 Sur l’insuccès de toutes les tentatives philosophiques en matière de théodicée, Paris, Galli-

mard, Bibliothèque de la Pléiade, 1985, tome II, p. 1403. Doravante: Sur


l'insuccès. As demais abreviações empregadas neste artigo são: Ak: “Sämtliche
Schriften und Briefe”. Deutschen Akademie der Wissenschaften zu Berlin. GP:
“G. W. Leibniz – Die philosophischen Schriften” (Ed.: Gerhardt, C, I., George
Olms Verlag. Hildesheim, 1996). Grua: “Textes Inédits d'après les manuscrits de la
Bibliothèque provinciale de Hanovre” (Publicados e comentados por Gaston Grua
2ª ed. PUF, Paris, 1998). Théodicée: “Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la
liberté de l'homme et l'origine du mal” (em: GP VI, pp. 21 - 471).

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As duas acusações dirigidas por Kant à teodiceia "doutrinal"


são bem conhecidas. A primeira é, por assim dizer, interna, pois se dirige
aos procedimentos postos em marcha e aos resultados obtidos pela
teodiceia: esta não cumpre suas promessas, visto que não neutraliza as
acusações dirigidas contra Deus extraídas da existência do mal e, mas
geralmente, de tudo o "que há de anti-final no mundo" 4 . A segunda é
externa ao percurso trilhado propriamente falando e constitui o
corolário da crítica ao dogmatismo desenvolvida na Crítica da razão pura:
a teodiceia é o empreendimento ilegítimo de uma razão que desconhece
seus limites, visto que pretende, sem crítica prévia do seu poder de
conhecer, mostrar a unidade no mundo sensível da sabedoria moral de
Deus (conceito fornecido pela razão prática) com Sua sabedoria artística
(conceito sobre o qual a razão especulativa funda a teleologia e a físico-
teologia). Ora, é impossível provar essa unidade (bem como negá-la),
pois "nossa razão é absolutamente impotente para penetrar a relação que
um mundo tal como podemos sempre conhecer por experiência mantém com a
suprema sabedoria" 5 . Um tal saber suporia com efeito o poder de se elevar
ao conhecimento do mundo inteligível a fim de explicar como este seria
o princípio do universo fenomenal.
É evidente que as duas críticas estão ligadas: o insucesso é a
consequência do caráter ilegítimo do percurso. O fracasso é certo
porque a promessa não é cumprível. A razão não pode realizar o que
anuncia, pois ela não pode ter conhecimentos em um domínio (o
suprassensível) em que nenhuma intuição lhe poderia ser dada. A causa
parece então ouvida ... a menos talvez que não mais se encarasse a
teodiceia a partir de seu conceito geral, mas tal como ela pode ser
efetivamente elaborada pelos filósofos na história. O que ela promete
realmente? Quais são sua natureza, o valor e a finalidade dos diferentes
argumentos que ela desenvolve? Abandonando a ideia de teodiceia em

4 Ibid., p. 1393.
5 Ibid., p. 1403.

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favor do exame de uma teodiceia particular, estudaremos em que


medida a crítica de Kant se aplica no caso da teodiceia de Leibniz.

1. As duas faces da teodiceia leibniziana

O ensaio leibniziano não parece conforme ao conceito geral


sob o qual Kant entende subsumir todas as tentativas filosóficas de
teociceia, tanto do ponto de vista de seu objeto, de seu fim, quanto de
seus limites. Qual é com efeito o sentido do neologismo teodiceia,
segundo seu próprio inventor? Nada mais do que significam as duas
palavras gregas reunidas: "a justiça de Deus" 6 . Ante o desprezo de
certos leitores que tomavam a expressão pelo pseudônimo sob o qual o
autor se ocultava, Leibniz foi conduzido a acrescentar os seguintes
esclarecimentos: "minha intenção foi de chamar Teodiceia a própria
doutrina ou a matéria da dissertação, de tal sorte que Teodiceia seja a
doutrina do direito e da justiça de Deus" 7 . A teodiceia não é, portanto,
de início e no sentido estrito uma defesa ou uma apologia da santidade e
da bondade de Deus, cujo objetivo seria inocentar da imputação do
mal: ela designa um atributo divino (a justiça) e a doutrina que expõe
sua natureza e seus princípios. Ela será até mesmo definida "como que
um tipo de ciência" 8 . Em certo sentido, a doutrina deveria bastar por si
e tornar inútil todo (outro) discurso de justificação: pois expor a justiça
divina e enunciar suas leis é ao mesmo tempo, ou antes, precisamente

6 "Ces Essais de Theodicée ou de la justice de Dieu" (carta a Thomas Burnett de

30 de outubro de 1710, GP III, 321). Grifo nosso.


7 A Des Bosses (6 de janeiro de 1712), GP II, 428: "[…] mihi animus fuit doc-

trinam ipsam seu materiam dissertationis Theodicaeam appellare, ita ut Theodicaea


sit doctrina de jure et justitia Dei". Ver também A Greiffencranz (2 de maio de
1715), GP VI, 12 (nota**); GP VI, 463: "Versuch einer Theodicaea oder
Gottrechts-Lehre […]".
8 A Des Bosses (5 de fevereiro de 1712), GP II, 437 « […] est enim Theodica-

ea quasi scientiae quoddam genus ».

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por isso, inocentar Deus ("A Causa de Deus defendida por Sua justiça" 9 ) e
despertar em nós um amor sincero e puro. A justiça de Deus é Sua
justificação, Sua própria apologia 10 : ela é imediatamente "justificante",
pois justifica aquele que a possui em grau supremo e que governa todos
os espíritos observando as regras do direito universal.
A teodiceia somente pode ser uma defesa porque ela é em
primeiro lugar uma doutrina. Esse primado do aspecto doutrinal
impede de ver nela uma simples resposta ad hominem ou uma defesa
circunstancial, elaborada ad hoc para responder às objeções de Bayle,
como certas declarações de Leibniz, narrando as condições da redação
dos Ensaios, poderiam dar a entender 11 . A defesa apoia-se sobre uma
metafísica perfeitamente constituída, um tratado da bondade de Deus,
da liberdade do homem e da origem do mal, como indica o subtítulo da
obra de 1710. A despeito de sua conexão, as duas faces, a defensiva e a
doutrinal, da teodiceia não devem ser confundidas, porque cada uma
delas obedece a regras e a finalidades próprias, e colocam em jogo
espécies totalmente distintas de argumentos.
A primeira é propriamente refutativa e ilustra a famosa
declaração do prefácio: "é a causa de Deus que se defende" 12 . Ela
compreende, como veremos, dois tipos de defesa (uma "negativa",
outra "positiva" ou supererrogatória), nas quais se encontram
empregados argumentos fundados sobre a mera presunção, a
ignorância do detalhe, o provável ou ainda sobre sobre a experiência,

9 Causa Dei Asserta per justitiam ejus, GP VI, 437. Grifo nosso. Théodicée, préface,

GP VI, 37: "Et quant à l’origine du mal par rapport à Dieu, on fait une Apolo-
gie de ses perfections, qui ne releve pas moins sa sainteté, sa justice et sa bon-
té, que sa grandeur, sa puissance et son independance".
10 Cf. o rascunho de prefácio da Théodicée, publicado por G.Grua: "Theodicée ou

apologie de la justice de Deus [et des attributs qui s’y rapportent] par les notions qu’il nous
en a données" (Grua, 495).
11 Cf. Théodicée, préface, GP VI, 39; Carta A Thomas Burnett (30 de outubro de

1710), GP III, 321.


12 Théodicée, préface, GP VI, 38.

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visando reduzir as objeções contra a bondade divina e a perfeição do


mundo extraídas da existência do mal.
A segunda é igualmente dividida em duas partes: a) a parte
teológica trata da "conduta de Deus" (Seu concurso moral e físico para o
mal), mostra que o pecado não Lhe pode ser imputado, e estabelece,
sem contudo demonstrar absolutamente, a existência do melhor
universo possível; b) a parte antropológica mostra a liberdade do homem,
sua responsabilidade no mal e expõe as regras morais de sua ação. Essa
face doutrinal, que pretende oferecer somente razões a priori e
demonstrativas, na realidade compreende argumentos que conferem
uma certeza moral ou ainda "infalível", mas não absoluta.
Na reconstituição teórica que ele propõe da teodiceia, Kant
não distingue o que concerne respectivamente ao discurso doutrinal e
ao discurso defensivo, nem identifica o papel e o alcance exatos das
diversas provas que são avançadas em um e em outro. É certo que ele
reconhece a obrigação firme a que está ligada a defesa: o advogado não
pode voltar atrás durante o processo e alegar "a incompetência do
tribunal da razão humana (exceptionem fori)". Ele vê igualmente o limite
dessa mesma obrigação: com efeito, não se pode exigir da teodiceia que
ela prove a suprema sabedoria de Deus a partir de nossa experiência no
mundo (pois para isso seria preciso a omnisciência 13 ). Mas silencia a
respeito de toda a reflexão conduzida por Leibniz sobre as regras e as
obrigações particulares às quais defensor e opositor devem se submeter
na controvérsia. Ele também não evoca os limites que se impõem
necessariamente à doutrina, na afirmação da perfeição do mundo e no
conhecimento dos fins divinos. Pois os Essais de Théodicée não contêm
somente uma teodiceia, mas, por assim dizer, os princípios de toda
teodiceia, em seus aspectos tanto defensivos quanto doutrinais.

13 Sur l’insuccès, p. 1395.

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2. Objeto e limites da defesa

As regras da defesa são anunciadas quando é examinada a


questão da conformidade da fé com a razão, no Discour préliminaire. Este
último compreende os princípios da verdadeira "arte de disputar" 14 , em
que são citados o papel e os deveres de cada protagonista,
respectivamente do defensor ou respondente (que defende a tese) e do
opositor (que ataca a tese, lançando objeções). A concepção leibniziana
da controvérsia é inspirada na disputatio da Escola e mais ainda no
debate judiciário, em que a questão para o defensor não é provar a
legitimidade de seu direito, "dar sua razão", mas apenas "sustentar
contra as objeções":

[…] un soutenant (respondens) n’est point obligé de rendre razão de sa


these, mas il est obligé de satisfaire aux instances d’un opposant. Un
defendeur en justice n’est point obligé (pour l’ordinaire) de prouver son
droit, ou de mettre en avant le titre de sa possession; mas il est obligé
de repondre aux raisons du demandeur 15 .

A disputa nasce de uma contestação cuja iniciativa cabe, por


definição, ao contraditor. O que está em jogo não é, portanto, examinar
a tese em litígio em si mesma e por si mesma, nem estabelecer provas
positivas, mas julgar a receptibilidade e a solidez dos argumentos
mobilizados contra ela. A objeção é, então, na realidade o principal
objeto do debate, como o é em um processo a acusação, com respeito à
qual cumpre mostrar o caráter fundado, probatório ou não.
O ônus da prova volta-se assim para o opositor; o defensor, na
posição de acusado, beneficia-se da presunção de veracidade até que
seja expressamente convencido da falsidade. Melhor: visto que o
defensor não é obrigado a oferecer garantia da solidez dos
fundamentos de sua tese, ele pode chegar ao ponto de confessar que

14 Ver Théodicée, Discours préliminaire, §§ 57-79, GP VI, 82-97.


15 Ibid., § 58, GP VI, 82.

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não dispõe de prova realmente conclusiva, porque, por exemplo, o que


ele defende não é suscetível de ser demonstrado (é o caso dos mistérios
que podem ser explicados e sustentados, mas que não podem ser
compreendidos 16 ). Inversamente, o adversário somente poderá demovê-lo
apresentando razões contrárias absolutamente decisivas, quer dizer
invencíveis 17 . Uma demonstração é exigível somente do opositor, não
do defensor, que deve se contentar em mostrar a fraqueza ou a falha
dos argumentos de seu adversário, sem ter que entrar no exame dos
seus próprios argumentos.
Contrariamente ao que escreve Kant, portanto, do defensor
não é exigido "consumar a refutação em boa e devida forma de todas as
acusações feitas pela parte adversária" 18 , pois, para que a acusação seja
"indeferida", basta mostrar que a objeção não se sustenta, é vã, mal
fundada, ou contém alguma falha lógica. Cabe ao contraditor produzir
uma refutação adequada da tese sustentada. E a censura por
dogmatismo, acaso não deveria também ser dirigida ao opositor antes
que ao defensor? Sobre o que repousaria afinal a objeção de Bayle?

La maniere d’accorder le mal moral et le mal physique de l’homme avec


tous les attributs de ce seul Principe de toutes choses infiniment parfait
surpasse les lumieres philosophiques ; de sorte que les objections des
Manicheens laissent des difficultés que la razão humaine ne peut
resoudre 19 .

Leibniz concede a primeira proposição, segundo a qual a


conciliação do mal com a perfeição divina excede nossas luzes, apenas no

16 Segundo a distinção estabelecida, ibid., § 5, GP VI, 52.


17 A Jaquelot (6 de outubro de 1706), Grua, 65-66: "Car la demonstration,
qu’est ela autre chose qu’un argument invincible, c’est à dire dont la forme est
bonne, et dont la matiere consiste en propositions ou evidentes ou prouvées
par de semblables argumens jusqu’à ce qu’on vienne aux seules evidentes?";
ver também: Discours préliminaire, § 25, GP VI, 65.
18 Op. cit., p. 1394.
19 Note sur Bayle (verão 1706), Grua, 62.

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que diz respeito ao "detalhe das razões que levaram Deus a permitir esses
males". Mas ele nega a consequência de "que as objeções que se fez a
esse respeito não possam ser resolvidas" 20 , visto que cabe ao opositor
demonstrar positivamente, em conformidade com as regras da disputa, a
imperfeição divina:

Car il est possível que Deus ait de telles raisons [de permettre les
maux], quoyque nous ne puissions pas les marquer. Et celuy qui veut
mettre en avant une objection qui ne se puisse point resoudre, doit
prouver qu’il est impossible que Deus ait ces raisons. C’est à dire il faut
qu’il apporte un argument qui infere l’imperfection de Deus de la
permission du mal, et qui soit tel qu’on n’y puisse point repondre
comme il faut ; c’est à dire il faut que cet argument soit en bonne
forme, et, quant à la matiere, il faut que toutes les propositions soyent
ou accordées ou prouvées par un autre argument de même nature 21 .

A mera consideração da possibilidade de tais razões a nós


desconhecidas não constitui, propriamente falando, uma prova, a não
ser de maneira provisional. Mas ela proporciona uma presunção em favor
da perfeição divina, que vale enquanto ainda não tiver sido provado que
não poderia existir motivos válidos para permitir o mal. Não é
necessário aqui ir mais longe, pois a simples presunção deve passar por
verdade até prova em contrário. Ela é a primeira reação disto que
chamam defesa "negativa". A ignorância do detalhe é a segunda.
O defensor (Leibniz) não tem a pretensão de conhecer nem o
detalhe das razões divinas (que motivaram a Criação), nem o detalhe
das considerações às quais Deus se ateve ao criar (a comparação dos
mundos possíveis em número infinito), nem ainda o detalhe da
harmonia universal (que envolve o infinito). Antes, a pretensão de
conhecer o detalhe vem do opositor (Bayle). Para o defensor, com
efeito, é tão impossível mostrar a priori que "o mal podia ser evitado
sem perder qualquer bem mais considerável" (a antítese), quanto

20 Ibid., 63.
21 Ibid.

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"mostrar a conexão desses males com bens maiores" 22 (a tese), pois


isso ultrapassa nos dois casos as forças da razão humana. Essa
ignorância declarada não constitui um simples expediente retórico que
permite garantir a vitória do respondente no contexto particular da
disputa. Ela define, de acordo conosco, os limites da teodiceia como
defesa que não deve e não pode entrar no detalhe da harmonia universal,
e como doutrina, que não pode, em sua explicação do mal, ir além de
uma certa generalidade e da universalidade dos princípios. Com efeito:

[…] il paroit que M. Bayle y demande un peu trop, il voudroit qu’on luy
montrât en detail, comment le mal est lié avec le melhor projet possível
de l’univers ; ce qui seroit une explication parfaite du phenomene : mas
nous n’entreprenons pas de la donner, et n’y sommes pas obligés non
plus, car on n’est point obligé à ce qui nous est impossible dans l’etat
où nous sommes : il nous suffit de faire remarquer que rien n’empêche
qu’un certain mal particulier ne soit lié avec ce qui est le melhor en
general. Cette explication imparfaite, et qui laisse quelque chose à
decouvrir dans l’autre vie, est suffisante pour la solution des objections, mas
non pas pour une comprehension de la chose 23 .

Na ausência de compreensão perfeita, essa explicação deve


bastar no plano da disputa, mas igualmente no plano doutrinal. O
Discours de métaphysique já o indicava: se estamos embasados para afirmar
em geral que o universo que Deus criou é o melhor, e até mesmo para
declarar que um pecado particular é permitido porque ele "se
recompensa com usura no universo", não podemos, ao menos nesta
vida, penetrar "a admirável economia dessa escolha". E "basta sabê-lo,
sem compreendê-lo" e reconhecer com são Paulo "a profundidade e o
abismo da sabedoria divina, sem buscar um detalhe que envolve
considerações infinitas" 24 . A explicação não pode ser senão a priori,

22 A Jaquelot (6 de outubro de 1706), Grua, 66.


23 Théodicée § 145, GP VI, 196. Grifo nosso.
24 Discours de métaphysique § 30, A VI, 4 B, 1576-1577. Ver também § 31 (pro-

blema da eleição); e Diálogo efetivo, Grua, 366: "B. – Ainsi il faut croire que
Deus n’auroit point permis le péché ny créé les creatures dont il sçavoit

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metafísica, e não pode avançar senão razões gerais da existência do mal.


Ela não poderia ser particular, explicar este mal aqui, encontrado a
posteriori no mundo, nem identificar com certeza o bem superior que ele
permite. Ela responde à questão "por que o mal?", e não à questão "por
que este mal?".
A originalidade da teodiceia, em relação a outras tentativas de
justificação racional do mal, é assumir e manter essa separação entre
um discurso explicativo geral sobre a perfeição do universo, a maneira
como Deus age, e a interpretação que convém fazer dos males
particulares. Nisso ela se distingue por exemplo da explicação estóica:

[…] il semble que la razão de la permission du mal vient des


possibilités eternelles [...]. mas on s’egare, en voulant monstrer en
detail, avec les Stoiciens, cette utilité du mal qui releve le bien, que S.
Augustin a bien reconnue en general, et qui, pour ainsi dire, fait reculer
pour mieux sauter ; car peut-on entrer dans les particularités infinies de
l’Harmonie universelle? 25 .

Ao afirmar que "o detalhe nos ultrapassa", Leibniz se recusa a


mostrar como tal ou tal mal singular entra no melhor plano divino. Ele
rejeita como abusiva toda aplicação particular, de qualquer maneira
"constitutiva" 26 , da tese segundo a qual Deus permite o mal em vista de
um bem maior. Pois uma tal aplicação abre a via para a designação
incerta desse bem.

qu’elles pecheroient, s’il n’avoit sçu le moyen d’en tirer un bien incomparable-
ment plus grand que le mal qui en arrive. A. – Je souhaiterais de sçavoir quel
est ce grand bien. B. – Je puis asseurer qu’il est, mas ne puis en expliquer le
detail. Pour cela, il faudroit connoistre l’harmonie generale de l’univers, au lieu
que nous n’en connoissons qu’une tres petite partie. C’est icy où l’exclamation
de S. Paul a lieu".
25 Reponse aux reflexions contenues dans la seconde Edition du Dictionnaire Critique de

M. Bayle, article Rorarius, sur le système de l’Harmonie preétablie, GP IV, 567.


26 Segundo a distinção kantiana entre constitutivo e regulativo (in: Critique de la

razão pure, "Analytique transcendantale", livre II, chapitre 2, section 3,


Bibliothèque de la Pléiade, tome I, p. 916-917).

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É de necessidade física de qualquer maneira que Deus faça tudo pelo


melhor (ainda que não esteja no poder de nenhuma criatura aplicar essa
proposição universal aos casos singulares, nem de extrair
consequências certas disso com respeito às ações divinas livres) 27 .

Longe, portanto, de oferecer a imagem de um racionalismo


presunçoso e excessivo, a teociceia indica expressamente os limites de
sua explicação. Essa limitação teórica autoriza o defensor (cuja tese se
atém ao geral) a descartar todas as objeções que repousam sobre as
aparências de injustiça e de desordem observadas na pequena porção
do universo em que calha estarmos, alegando essa harmonia universal
que nós não vemos, mas estamos embasados para declarar a mais
perfeita. Trata-se de qualquer maneira de opor uma ignorância a uma
outra: a ignorância "sábia" do defensor, que se declara incapaz de
conhecer o detalhe mas certo da perfeição do todo (certeza estabelecida

27 De natura veritatis, contingentiae et indifferentiae atque de libertate et prae-

determinatione, in: Ak,VI, 4 B, 1520. Notemos que a interpretação do fato


diverge conforme se trata de um bem ou de um mal. Enquanto o mal particu-
lar, objeto de uma permissão divina, não deve dar lugar a nenhuma congetura
concernente ao bem superior que ele condiciona e que Deus quis, é preciso ao
contrário observar todo bem como querido expressamente por Deus: "E em
geral, todas as vezes que vemos uma coisa qualquer apresentar vantagens no-
táveis podemos pronunciar com toda segurança que Deus, quando criou essa
coisa, visto que tinha que conhecê-la e regular seu uso, propôs-se essas vanta-
gens como fim dentre outros" (Animadversiones in partem generalem Principiorum
Cartesianorum, GP IV, 360-361: "Et in universum, quotiescunque rem aliquam
egregias utilitates habere videmus, possumus tuto pronuntiare, hunc inter alios
finem Deo eam rem producenti propositum fuisse, ut illas utilitates praeberet,
cum usum hunc rei et sciverit et procurarit"). O apelo às causas finais deve
então ser prudente, no caso dos males, mas ousado nos caso dos bens. Com
efeito, não se pecaria ppor excesso de "finalismo", e atribuir ao Criador boas
intenções em demasia: o reconhecimento de suas benfeitorias será sempre
aquém do que pode ser conhecido dos desígnios de uma sabedoria infinita e de
uma vontade supremamente boa (Cf. Discours de métaphysique, § 19, A VI, 4 B,
1560-1561).

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O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 155

pela doutrina), a esse pretenso saber que ignora sua própria


insuficiência, o saber do apologista desastrado que pretende justificar
Deus até mesmo no particular, ou ainda aquele do contraditor Bayle
que, por uma generalização abusiva, julga o todo a partir da parte e, na
base desse conhecimento parcial, condena o autor das coisas.

L’objet de Deus a quelque chose d’infini, ses soins embrassent


l’univers : ce que nous en connoissons n’est presque rien, et nous
voudrions mesurer sa sagesse et sa bonté par nostre connoissance.
Quelle temerité, ou plustost quelle absurdité ! Les objections supposent
faux ; il est ridicule de juger du droit quand on ne connoit point le fait.
Dire avec S. Paul : O Altitudo Divitiarum et Sapientiae, ce n’est point
renoncer à la raison, c’est employer plustost les raisons que nous
connoissons, car elles nous apprennent cette immensité de Deus dont
l’Apotre parle : mas c’est avouer nostre ignorance sur les faits ; c’est
reconnaitre cependant, avant que de voir que Deus fait tout le mieux
qu’il est possible, suivant la sagesse infinie qui regle ses actions 28 .

Na defesa "negativa", o defensor desempenha o papel do


"ignorante", papel do qual ele não deve se afastar, nem mesmo quando
é expressamente convidado pelo adversário a se pronunciar sobre o
detalhe da harmonia universal ou os fins últimos de Deus. O apelo à
presunção e à ignorância do detalhe permite-lhe permanecer sempre à
parte do assunto debatido, e não penetrar o fundo da questão,
declarando-se precisamente incapaz de "tocar" nele 29 . Seu contraditor
encontra-se então na posição do dogmático que desconhece os limites
da razão humana, visto que seria preciso, para destruir a tese, elevar-se
a um conhecimento que nos é inacessível e que o defensor afirma
igualmente não possuir. A refutação é, então, impossível, e o defensor
pode legitimamente sair vitorioso da disputa a partir do momento em

28Théodicée, § 134, GP VI, 188.


29Cf. a imagem do céu que é alcançado pela vista e não pelo tato, in: Théodicée,
Discours préliminaire, § 72, GP VI, 91: "Nous pouvons atteindre ce qui est au des-
sus de nous, non pas en le penetrant, mas en le soûtenant; comme nous pou-
vons atteindre le Ciel par la vue, et non pas par l’attouchement".

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
156 Paul Rateau

que faz valer que, quanto ao resto, "todas as objeções tomadas a partir
do fluxo das coisas, em que observamos imperfeições, não são
fundadas senão sobre falsas aparências" 30 .
A essa altura, ele cumpriu todos os seus deveres, de sorte que a
defesa "negativa" basta para terminar a controvérsia. Os argumentos
que poderá alegar depois em favor da perfeição do mundo e de sua
ordem, da bondade e da sabedoria divinas deverão, por conseguinte, ser
considerados como supeererrogatórios. Eles constituem a defesa
"positiva", que consiste em avançar sobre o terreno do opositor (aquele
da experiência e das aparências 31 ) a fim, de uma parte, de reduzir as
objeções desta última parte dos argumentos contrários 32 , de outra
parte, de mostrar as marcas e os indícios a posteriori que a natureza
proporciona da harmonia, assim como as razões que há para concluir
que a soma dos bens deve se sobrepor à dos males no nível universal.
É preciso notar que o defensor não é obrigado a conduzir essa
segunda defesa e que, para Leibniz, os argumentos que ela desenvolve,
ainda que mais probatórios que aqueles produzidos pelo adversário,
não valem como demonstrações. Certamente, eles oferecem, no plano
dos fenômenos, uma forte presunção em favor da harmonia universal e
da justiça divina, mas seu objetivo não é confirmar positivamente teses
estabelecidas a priori no nível doutrinal. Seu papel permanece
essencialmente defensivo, e nenhum deles visa provar a unidade da
sabedoria "moral" com a sabedoria "artística" do Criador no mundo.
30 Théodicée, Discours préliminaire, § 44, GP VI, 75.
31 Bayle considera, com efeito que, do ponto de vista a posteriori, as aparências
advogam em favor do maniqueísmo, hipótese que, por "absurda e contraditó-
ria" (filosoficamente insustentável e contrária à teologia revelada), explica bem
melhor a experiência do que o conhecimento a priori, contudo verdadeiro, da
unicidade do primeiro princípio infinitamente bom e perfeito (cf. Dictionnaire
historique et critique, artigo "Pauliciens").
32 Nós identificamos três principais: a instância de possibilidade, o argumento

de fato e a notoriedade. Para um estudo completo, remetemos à nossa obra La


question du mal chez Leibniz: fondements et élaboration de la Théodicée, Paris, Honoré
Champion, Travaux de philosophie, n°15, 2008, p. 470-476.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 157

Trata-se antes de opor às aparências pretensamente contrárias


"aparências" de bondade e de perfeição mais fortes ainda, de neutralizar
a objeção haurida da experiência do mal, mostrando que esta não
necessariamente advoga em favor de um princípio mau, mas pode
muito bem concordar com a ideia de um Ser único infinitamente sábio,
levado a admitir o mal em vista da mais excelente harmonia geral.
Mostrar o caráter não conclusivo dos argumentos desenvolvidos nessa
parte defensiva da teodiceia não pode portanto bastar para lançar o
descrédito sobre esta última. Afirmar aqui seu fracasso é ainda
manifestar um desconhecimento da finalidade exata da defesa (que não
tem vocação para fornecer provas decisivas, visto que estas concernem
à doutrina), bem como das regras da disputa, segundo as quais
nenhuma derrota do defensor em uma argumentação supererrogatória
pode enfraquecer realmente sua posição nem acarretar correlativamente
a vitória de seu contraditor (visto que esta somente pode ser obtida por
uma refutação em boa e devida forma). Pois, além das objeções novas
dirigidas ao defensor não fazerem senão relançar a controvérsia sem
chegar a encerrá-la (porque elas próprias serão insuficientes), as falhas
da defesa "positiva" não poderiam recolocar em questão os resultados
da defesa "negativa" 33 .

3. Uma doutrina sem demonstração?

A distinção entre as tarefas desenvolvidas respectivamente nos


campos doutrinal e defensivo não significa que eles se opõem como a

33 Mesmo quando se dedica a responder além daquilo a que está estritamente


obrigado, o defensor permanece "resguardado". Se, não contente em repelir a
objeção, ele decide atacar ele próprio seu adversário (como o sitiado que, certo
de suas forças, tenta uma "saída" fora de suas fortificações), sempre lhe é per-
mitido "capitular". Uma batalha feita sobre o campo das aparências e perdida
pelo defensor não poderia abalar o crédito de sua tese (cf. Théodicée, Discours
préliminaire, §§ 75-76, GP VI, 94-95).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
158 Paul Rateau

parte demonstrativa e construtiva (principal), que remete à ciência, se


opõe à parte polêmica e negativa (secundária), que remete à arte das
controvérsias. Esses dois campos da teodiceia são indissociáveis e se
implicam um ao outro, embora a defesa possa aparecer ao mesmo
tempo como o que se segue da doutrina (sobre a qual ela se apoia e na
qual até mesmo se engaja, em particular ao recorrer a argumentos
positivos supererrogatórios 34 ), a título de complemento indispensável, e
como o que conduz a ela, enquanto preâmbulo, sendo a exposição
teórica a única suscetível de colocar um fim definitivo à disputa e a toda
disputa. Pois se no nível da polêmica basta colocar em jogo aparências
contra aparências, presunções contra meras verossimilhanças, no plano
filosófico o triunfo da verdade "completamente nua" requer uma
argumentação demonstrativa. Então se dissiparão as últimas dúvidas e
nem mesmo a experiência dos males particulares abalará as certezas
adquiridas:

C’est ainsi qu’étant assurés par des demonstrations de la bonté et de la


justice de Dieu, nous meprisons les apparences de dureté et d’injustice,
que nous voyons dans cette petite partie de son regne qui est exposée à
nos yeux 35 .

Somente as razões a priori são decisivas:

Une si bonne cause donne de la confiance : s’il y a des apparences


plausibles contre nous, il y a des demonstrations de nostre côté ; et

34 A defesa "positiva", mais ainda que a defesa "negativa", supõe a doutrina

constituída. A instância de possibilidade, o argumento de fato, a notoriedade,


os indícios a posteriori de uma ordem universal e de uma sageza organizadora, o
cálculo global dos bens e dos males se fundam, com efeito, sobre uma certa
concepção de Deus, de Suas perfeições e de suas relações, da harmonia e da
natureza do mal (cuja distinção em metafísicia, física e moral permite compre-
ender uma soma global diferenciada).
35 Discours préliminaire, § 82, GP VI, 98.

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O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 159

j’oserois bien dire à un adversaire : Aspice, quam mage sit nostrum


penetrabile telum 36 .

A teodiceia não é somente a exposição de uma defesa visando


justificar Deus: ela fixa, para além do contexto da disputa, uma
pretensão teórica e uma ambição demonstrativa:

Il suffit donc pour aneantir l’objection, de faire voir qu’un mundo avec
le mal pouvoit être melhor qu’un mundo sans mal : mas on est encor
allé plus avant dans l’ouvrage, et l’on a même montré que cet universo
doit être effectivement melhor que tout autre universo possible 37 .

Ou ainda a carta dirigida a Thomas Burnett:

Il y a aussi par cy par là [dans les Essais de Théodicée] des eclaircissemens


sur mon systême de l’Harmonie préétablie, et sur quantité de matieres
de la Philosophie generale et de la Theologie naturelle, où je pretends
que tout se peut regler demonstrativement, et j’en ay donné les moyens 38 .

Acaso teodiceia leibniziana não revelaria definitivamente sua


verdadeira natureza "dogmática" nessa parte doutrinal que pretende
produzir autênticas demonstrações? Ela não cairia sob o golpe crítico
kantiano sobre todo ensaio racional de justificação da sabedoria e da
bondade divinas, aventurando-se de forma pretensiosa no domínio do
suprasensível?
É preciso primeriamente lembrar que Leibniz não define a
teodiceia como uma ciência, no sentido estrito do termo 39 , mas apenas

36 Théodicée, § 6, GP VI, 106: "Veja o quanto é mais penetrante a nossa lan-

ça" (citação extraída de Virgílio, Eneida, X, 481).


37 Théodicée, Abrégé, I, GP VI, 377. Grifo nosso.
38 A Thomas Burnett (30 de outubro de 1710), GP III, 321. Grifo nosso.
39 A ciência, "conhecimento certo das proposições verdadeiras" (Praecognita ad

encyclopaediam sive scientiam universalem, Ak VI, 4 A, 135), se caracteriza por sua


sistematicidade e pelo caráter demonstrativo de suas asserções. Ela é a organização
das verdades "suivant leurs démonstrations les plus simples, et de la manière

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
160 Paul Rateau

"como que um tipo de ciência". Convém também tomar com certa


circunspecção essas declarações em que o autor anuncia
demonstrações. A segurança de que ele dá mostras pode parecer
excessiva, pois uma demonstração não é uma simples prova, nem um
raciocínio como qualquer outro: demonstrar uma proposição consiste
em fazer aparecer, pela análise dos seus termos, substituindo o definido
por sua definição, a coincidência do predicado com o sujeito, ou a
inclusão do primeiro no segundo 40 . A demonstração supõe que a forma
do raciocínio seja boa, mas também que todas as premissas que entram
em sua matéria sejam perfeitamente provadas (quer dizer, elas próprias
demonstradas) 41 . Somente as verdades de razão podem ser,
propriamente falando, demonstradas, porque, sua análise sendo levada a
seu termo em um tempo finito, a inerência do predicado no sujeito
aparece de forma manifesta: a proposição é reconduzida a proposições
idênticas (da forma A=A). Essas verdades são necessárias, cujo oposto
implica contradição, e de uma certeza absoluta, lógica ou metafísica.
Inversamente, as verdades de fato podem somente ser provadas, pois sua
análise não é jamais consumada, mas engendra um regresso ao infinito.
A resolução dos termos se aproxima tangencialmente da forma
idêntica, mas sem jamais alcançá-la; pois seria preciso, para explicar
perfeitamente o menor contingente, conhecer suas causas e, em virtude
da a ligação de cada coisa com todas as outras, todo o universo, bem
como as razões divinas para criá-lo ao invés de um outro (o que suporia
ainda considerar todos os outros mundos possíveis, com relação aos
quais o nosso foi julgado melhor). Somente Deus é capaz de um tal
conhecimento a priori, que para Ele já não é mas uma demonstração:
Ele não vê o termo da resolução, que não existe, mas abarca em uma

qu’elles naissent les unes des autres" (Discours touchant la méthode de la certeza et
l’art d’inventer, Ak VI, 4 A, 959).
40 De libertate, contingentia et serie causarum, providentia, Ak VI, 4 B, 1655-

1656; Praecognita ad encyclopaediam sive scientiam universalem, Ak VI, 4 A,


135.
41 Discours préliminaire, § 25, GP VI, 65.

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O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 161

intuição única a série infinita das razões 42 . Essas verdades são


contingentes, de modo que outras teriam podido ser verdadeiras em
lugar delas, pois seu oposto é em si possível, e elas proporcionam
apenas uma certeza "moral".
Ora, o mundo e o ato criador pelo qual ele se dá são
contingentes. Se resulta da ideia de Deus que ele é todo perfeito, que a
omnisciência e a bondade devem necessariamente Lhe ser atribuídas (visto
que entram em Sua definição), o resultado de se relacionar esses dois
atributos não diz rspeito a uma necessidade absoluta ou metafísica:
"Ora, essa suprema sabedoria, unida a uma bondade que não é menos
infinita que ela, não pode deixar de escolher o melhor" 43 . Conquanto
seja verdadeiro, certo e infalível que Deus escolheu o melhor, essa
"necessidade" não é tal que torne impossível o que não foi escolhido,
ou que toda outra escolha implique contradição. Deus é livre e Sua
vontade é somente inclinada por seu entendimento, que lhe representa
o melhor. Por conseguinte, a teodiceia não pode demonstrar nem que
Ele escolhe sempre o melhor, nem a fortiori, pela mera consideração de
Sua natureza, que este universo existente é o mas perfeito possível. Não
que ela seja imperfeita ou deficiente, pois a demonstração é impossível
não apenas de fato, uma em virtude da limitação dos nossos
conhecimentos, mas também de direito, para Deus Ele próprio, em razão
da natureza das proposições contingentes.
Uma demonstração exata somente seria possível sob a
condição de que Deus seja submetido à necessidade "bruta" como em
Straton, Hobbes ou Spinoza. O que não tem lugar:

O primeiro princípio das existências é esta proposição: Deus quer escolher


o mas perfeito. Esta proposição não pode ser demonstrada, é a primeira

42 De libertate, contingentia et serie causarum, providentia, Ak VI, 4 B, 1658: "[…] as

verdades contingentes, quer dizer, infinitas, são o objeto da ciência de Deus,


pela qual elas são conhecidas, não certamente por demonstração, o que seria
contraditório, mas por uma visão infalível".
43 Théodicée, § 8, GP VI, 107; ver também GP III, 34-35.

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162 Paul Rateau

de todas as proposições de fato, quer dizer, a origem de toda existência


contingente. É exatamente a mesma coisa que dizer que Deus é livre e
que esta proposição é um princípio indemonstrável. Pois se se pudesse dar a
razão desse primeiro decreto divino, precisamente por isso Deus não
teria decidido livremente. Eu digo, portanto, que esta proposição pode
ser comparada às proposições idênticas. Com efeito, exatamente como
a proposição A é A, ou uma coisa é igual a si própria, a proposição Deu
quer o mas perfeito não pode ser demonstrada. Esta proposição é a
origem da passagem da possibilidade à existência das criatura 44 .

Como caracterizar então o tipo de raciocínio produzido na


parte doutrinal da teodiceia? A argumentação não tem a força de uma
demonstração, que é reservada apenas às verdades necessárias, mas de
uma prova a priori cujo grau de certeza resta por determinar. Seria
preciso considerar como exageradas as declarações do autor alegando
"demonstrações"? Antes, convém reconhecer em Leibniz uma
concepção mas ampla da demonstração, compreendendo, além das
"demonstrações de necessidade" 45 , as demonstrações de "probabilidade",
cujo vigor probatório é variável e estimável 46 . Essa segunda espécie de
demonstração não é conclusiva e diz respeito ao que se pode chamar
uma forma "fraca" de raciocínio, que permanece, contudo, fecunda lá
onde uma análise completa não pode ser realizada: ela é estabelecida
pela coleta das provas (experiências, veerossimilhanças, generalizações

44 De libertate a necessitate in eligendo, Ak VI, 4 B, 1454: "Principium primum circa

Existentias est propositio haec: Deus vult eligere perfectissimum. Haec propositio
demonstrari non potest, est omnium propositionum facti prima, seu origino
omnis existentiae contingentis. Idem omnino est dicere Deum esse liberum, et
dicere hanc propositionem esse principium indemonstrabile. Nam si ratio reddi posset
hujus primi divini decreti, eo ipso Deus hoc non libere decrevisset. Dico ergo
hanc propositionem comparari posse identicis. Ut enim ista A est A, seu res sibi
ipsi aequalis est demonstrari non potest, ita ista: Deus vult perfectisssimum. Haec
propositio est origo transitus a possibilitate ad existentiam creaturarum". Ver
também: Extraits de Petau, Grua, 336; Extraits de Twisse, Grua, 351.
45 Cf. Discours de métaphysique, § 13, Ak VI, 4 B, 1549: as proposições contin-

gentes não dizem respeito a "demonstrações de necessidade".


46 Ver carta a Burnett (1/11 de fevereiro de 1697), GP III, 194.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 163

hipotéticas, presunções) convergendo à mais elevada certeza. A prova a


priori da escolha divina do melhor (desenvolvida na doutrina), por seu
turno, distingue-se dela por não ser extraída das aparências ou do
verossímil. Ela igualmente vale mais que a simples presunção,
admissível até prova em contrário, pois é certa e infalível. E pertence ao
que parece ser uma espécie particular de demonstração, de qualquer
maneira intermediária entre a demonstração de necessidade e a
demonstração de probabilidade.
A afirmação segundo a qual Deus criou o melhor universo
possível é com efeito uma proposição contingente, embora conhecida
pela razão e não pela experiência. Ela concerne ao grau mas elevado do
provável: o que Leibniz chama de "probabilidade infinita ou certeza
moral" 47 , oposta à certeza metafísica cujo contrário implica
contradição. É com efeito moralmente certo o que é "incomparavelmente
mais provável que o contrário" 48 , e é então superior à simples
presunção. O autor prefere contudo falar de certeza "infalível" a
propósito da determinação divina para o melhor, antes que de "certeza
moral", reservando esta última qualificação para inferências a partir da
experiência, da autoridade ou dos testemunhos (assim como a prova da
existência de um Espírito inteligente a partir da beleza do mundo 49 , os
indícios em favor da realidade dos fenômenos 50 , ou os motivos de de
credibilidade em favor da verdade da religião 51 ). Esta certeza "infalível",
fundada sobre uma prova inteiramente a priori, apoia-se sobre uma
47 Demonstrationum catholicarum Conspectus, A VI, 1, 494, c.5; Ad constitu-
tionem scientiae generalis, Ak VI, 4 A, 451; De modo distinguendi phaeno-
mena realia ab imaginariis, Ak VI, 4 B, 1502.
48 Introductio ad Encyclopaediam arcanam, Ak VI, 4 A, 530.
49 Demonstrationum catholicarum Conspectus, Ak VI, 1, 494, c.5; Conversa-

ção do marquês de Pianese com o padre Emery ermitão, Ak VI, 4 C, 2268; De


libertate, fato, gratia Dei, Ak VI, 4 B, 1605.
50 De modo distinguendi phaenomena realia ab imaginariis, Ak VI, 4 B, 1502.
51 Théodicée, Discours préliminaire, § 5, GP VI, 52. Ver também: Contemplatio de

historia literaria statuque praesenti eruditionis, Ak VI, 4 A, 470; A Thomas


Burnett (1/11 de fevereiro de 1697), GP III, 193.

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164 Paul Rateau

necessidade de um gênero particular: a necessidade moral, que é uma


forma de obrigação interna. Deus fará sempre o melhor, não porque
não possa fazer de outro modo, mas porque Ele deve fazê-lo, porque
Ele não pode fazer o que é indigno de Sua perfeição e contrário a Sua
justiça 52 .
Que Deus escolhe sempre o melhor e que o mundo existente é
o mais perfeito dos universos possíveis são proposições estabelecidas a
priori, mas contingentes, que dão uma certeza infalível mas não
absoluta. O uso na parte doutrinal de argumentos não estritamente
demonstrativos, o reconhecimento da ignorância do detalhe e dos
limites inerentes aos argumentos supererrogatórios na parte defensiva
revelam uma teodiceia diferente daquela que Kant critica no opúsculo
de 1791. Uma teodiceia que cumpre suas promessas, se se considera o
que ela verdadeiramente promete, ao invés de lhe atribuir fins que ela
jamais pretendeu querer alcançar, e de lhe reprovar o "fracasso" lá onde
ela jamais anunciou sucesso. Ela explica, prova, mas não pretende nem
compreender 53 absolutamente as razões da permissão do pecado, nem
trazer uma resposta consoladora à consciência aflita, visto que ela se
situa no nível de generalidade que lhe proíbe pronunciar-se sobre o
particular (na medida em que este é um mal 54 ). A penetração infinita e
perfeita do detalhe é remetida à outra vida 55 . A teodiceia não fornece
portanto a resposta definitiva e última ao problema do mal: esta é a
recompensa dos eleitos, para os quais a justiça se mostrará

52 Cf. GP III, 32-33; Causa Dei, § 38, GP VI, 444; § 66, 448-449.
53 Cf. distinção entre explicar, provar, compreender e sustentar, in: Théodicée, Discours
préliminaire, § 5, GP VI, 52.
54 Ver supra nota 27.
55 Sobre o modo ficcional, a fábula de Sextus indica os limites da empreitada

justificadora. Somente quando introduzido no último compartimento que


forma a ponta da pirâmide dos mundos que Teodoro verá como o crime de
Sextus (mal particular) entre no melhor plano ("sert à de grandes choses"),
tornando possível a constituição de "un grand Empire, qui donnera de grands
exemples" (Théodicée, § 416, GP VI, 364).

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O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 165

completamente, tal como ela é (note-se que a compreensão não é, no


rigor, jamais total, mas estende-se ao infinito: também a razão do mal
permanece para os eleitos em parte ainda misteriosa). Ela pode
proporcionar apenas um conhecimento incompleto e geral, ainda que
certo: ela não proporciona essa ciência perfeita, que é reservada a Deus e
da qual os bem aventurados não cessam de se aproximar, mas uma
doutrina, quer dizer, no sentido etimológico, um conhecimento que
pode ser ensinado (doctrina, que procede de doceo, que significa
"ensinamento", e até mesmo "educação"), que é transmissível pela
linguagem e cujo objetivo é a "edificação" 56 dos homens. Ela responde
a uma finalidade antes de tudo prática: destinada a um público mais
amplo do que apenas aquele circunscrito aos sábios (os Essais de
Théodicée não são escritos em latim, mas em língua vulgar), ela visa
suscitar um amor esclarecido por Deus, fundado sobre uma noção justa
da Divindade.
Resta a segunda acusação: a ilegitimidade desse processo
inscrito no contexto da teologia racional, que Kant rejeita em benefício
da teodiceia "autêntica", aquela que produz a razão prática quando
opõe um fim a não acolher todas as objeções contra a sabedoria divina,
em nome de seu conceito de Deus como ser moral e sábio. Como
ilustra a história de Jó que, sem esconder suas dúvidas, confessa com
franqueza sua incapacidade de compreender os fins de Dieu, "a
teodiceia não tem por objeto contribuir para o benefício da ciência, ela
é, antes, um assunto de fé". Na interpretação "autêntica", com efeito,

il ne s’agit pas tant de multiplier les raisonnements que de faire preuve


de sincérité en remarquant l’impuissance de notre raison, et de
l’honnêteté qui consiste à ne pas travestir en les énonçant ses pensées,
fût-ce dans une intention aussi pieuse qu’on pût l’imaginer 57 .

56 Théodicée, préface, GP VI, 47.


57 Op. cit., p. 1408.

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166 Paul Rateau

A teodiceia leibniziana é inconstestavelmente um


empreendimento da razão especulativa. Ela repousa sobre uma
concepção unívoca das noções de bem e de justo, que permite
assegurar que as regras da justiça sejam as mesmas no Céu e sobre a
terra, para Deus e para a criatura racional. Ela apoia-se igualmente
sobre a ideia de uma perfeita conformidade das verdades da fé com
aquelas da razão, todas as verdades formando uma cadeia única e
contínua. O que está acima de nossa razão não está, portanto, abaixo da
Razão, mas é inteligível e portanto compreensível de direito por todo
espírito. A afirmação dessa univocidade e dessa racionalidade una não
poderia contudo justificar a assimilação da teodiceia de Leibniz às
interpretações doutrinais defendidas pelos "amigos" de Jó. Esta
apresenta antes traços comuns com o que Kant nomeia a teodiceia
"autêntica". Nem a defesa, nem a doutrina autorizam uma explicação
dos males experimentados a posteriori, mas convidam ao contrário à
prudência na interpretação do que parece "anti-final". Nem os indícios
visíveis no mundo de uma ordem perfeita e de uma inteligência sábia,
nem os argumentos em favor da prevalência global do bem sobre o
mal, nem mesmo a ideia que temos de Deus e de suas perfeições
permitem verificar de maneira absolutamente certa, na experiência, o
acordo entre os fenômenos tais como aparecem na harmonia universal,
entre o mal particular e os fins divinos. Somente a admissão no
"conselho de Deus" 58 ou a visão beata prometida na outra vida são
suscetíveis de ultrapassar esse limite inerente ao nosso saber. A certeza
na qual culmina a teodiceia não é contudo menos suficiente para
inspirar uma crença (Deus fez tudo da melhor maneira "tanto
absolutamente quanto para nós" 59 ) que certamente nenhuma
experiência pode confirmar de modo indubitável nesta vida, mas que

58 Cf. os bem aventurados autorizados a contemplar "os arquivos da razão

eterna", in: De libertate, fato, gratia Dei, Ak VI, 4 B, 1612; a fábula de Sextus que
encerra a Théodicée (§§ 413-417, GP VI, 361-365).
59 Cf. Théodicée, préface, GP VI, 31.

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O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 167

tampouco algum fato pode refutar, e uma esperança (Ele não


abandonará aqueles que O amam com um amor verdadeiro e sincero),
malgrado as imperfeições aparentes do mundo e as infelicidades a que o
justo está exposto.

Car si nous étions capables d’entendre l’Harmonie universelle, nous


verrions que ce que nous sommes tentés de blâmer, est lié avec le plan
le plus digne d’être choisi ; en un mot nous verrions, et ne croirions pas
seulement, que ce que Deus a fait est le meilleur 60 .

Se a teodiceia é "um assunto de fé", ela não pode estar senão


em uma perfeita continuidade com a razão teórica, como a espera de
um acréscimo de razão, de uma compreensão maior das razões divinas,
como a promessa de um saber que chegaria até ao infinito do detalhe.

60 Théodicée, Discours préliminaire, § 44, GP VI, 75. Ver também: Examen religionis
christianae, Ak VI, 4 C, 2402: "Com efeito, o conhecimento das coisas propor-
ciona as mais poderosas delícias dos espíritos, e como eles [os santos] contem-
plam mais de perto a sageza e aperfeição divinas, é de se crer que lhes é permi-
tido agora mais próximos dos segredos da providência, que eles admiravam de
longe quando estavam ligados a um corpo, e que o governo muito justo de
Deus, objeto antes de sua crença, eles o conhecem agora, o que, penso, não pde
ser compreendido sem o conhecimento das coisas singulares que se passam
entre os homens" ("Mentium enim potissimas delitias facit cognitio rerum, et
cum ipsae Divinam Sapientiam ac perfectionem propius intueantur, credibile
est ad providentiae arcana, quae in corpore existentes eminus admirabantur,
nunc propius admitti, et gubernationem Dei justissimam creditam illis antea
nunc cognitam esse, quod sine notitia rerum singularium quae inter homines
geruntur intelligi opinor non potest"). Grifos nossos.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.

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