Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CDD: 149.7
Resumo: este artigo retoma a Teodiceia de Leibniz à luz das críticas tecidas por Kant, em seu Sobre o
insucesso de todas as tentativas filosóficas em matéria de teodiceia, com o objetivo de aquilatar se e em
que medida a teodiceia elaborada por Leibniz estaria sujeita à crítica kantiana.
Palavas-chave: Leibniz, Kant, teodiceia, causa divina, justiça, doutrina
Abstract: This paper is consecrated to examine Leibniz' Theodicy in the light of Kant's criticism
exposed in his About the failure of all philosophical essay in the theodicy, in order to evaluate whether
and to what extent Leibniz's theodicy is subjected to kantian objections.
Keywords: Leibniz, Kant, teodiceia, divine cause, justice, doctrine
1 Tradução: Vivianne de Castilho Moreira. Este texto foi publicado pela pri-
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
144 Paul Rateau
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 145
4 Ibid., p. 1393.
5 Ibid., p. 1403.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
146 Paul Rateau
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 147
por isso, inocentar Deus ("A Causa de Deus defendida por Sua justiça" 9 ) e
despertar em nós um amor sincero e puro. A justiça de Deus é Sua
justificação, Sua própria apologia 10 : ela é imediatamente "justificante",
pois justifica aquele que a possui em grau supremo e que governa todos
os espíritos observando as regras do direito universal.
A teodiceia somente pode ser uma defesa porque ela é em
primeiro lugar uma doutrina. Esse primado do aspecto doutrinal
impede de ver nela uma simples resposta ad hominem ou uma defesa
circunstancial, elaborada ad hoc para responder às objeções de Bayle,
como certas declarações de Leibniz, narrando as condições da redação
dos Ensaios, poderiam dar a entender 11 . A defesa apoia-se sobre uma
metafísica perfeitamente constituída, um tratado da bondade de Deus,
da liberdade do homem e da origem do mal, como indica o subtítulo da
obra de 1710. A despeito de sua conexão, as duas faces, a defensiva e a
doutrinal, da teodiceia não devem ser confundidas, porque cada uma
delas obedece a regras e a finalidades próprias, e colocam em jogo
espécies totalmente distintas de argumentos.
A primeira é propriamente refutativa e ilustra a famosa
declaração do prefácio: "é a causa de Deus que se defende" 12 . Ela
compreende, como veremos, dois tipos de defesa (uma "negativa",
outra "positiva" ou supererrogatória), nas quais se encontram
empregados argumentos fundados sobre a mera presunção, a
ignorância do detalhe, o provável ou ainda sobre sobre a experiência,
9 Causa Dei Asserta per justitiam ejus, GP VI, 437. Grifo nosso. Théodicée, préface,
GP VI, 37: "Et quant à l’origine du mal par rapport à Dieu, on fait une Apolo-
gie de ses perfections, qui ne releve pas moins sa sainteté, sa justice et sa bon-
té, que sa grandeur, sa puissance et son independance".
10 Cf. o rascunho de prefácio da Théodicée, publicado por G.Grua: "Theodicée ou
apologie de la justice de Deus [et des attributs qui s’y rapportent] par les notions qu’il nous
en a données" (Grua, 495).
11 Cf. Théodicée, préface, GP VI, 39; Carta A Thomas Burnett (30 de outubro de
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
148 Paul Rateau
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 149
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
150 Paul Rateau
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 151
que diz respeito ao "detalhe das razões que levaram Deus a permitir esses
males". Mas ele nega a consequência de "que as objeções que se fez a
esse respeito não possam ser resolvidas" 20 , visto que cabe ao opositor
demonstrar positivamente, em conformidade com as regras da disputa, a
imperfeição divina:
Car il est possível que Deus ait de telles raisons [de permettre les
maux], quoyque nous ne puissions pas les marquer. Et celuy qui veut
mettre en avant une objection qui ne se puisse point resoudre, doit
prouver qu’il est impossible que Deus ait ces raisons. C’est à dire il faut
qu’il apporte un argument qui infere l’imperfection de Deus de la
permission du mal, et qui soit tel qu’on n’y puisse point repondre
comme il faut ; c’est à dire il faut que cet argument soit en bonne
forme, et, quant à la matiere, il faut que toutes les propositions soyent
ou accordées ou prouvées par un autre argument de même nature 21 .
20 Ibid., 63.
21 Ibid.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
152 Paul Rateau
[…] il paroit que M. Bayle y demande un peu trop, il voudroit qu’on luy
montrât en detail, comment le mal est lié avec le melhor projet possível
de l’univers ; ce qui seroit une explication parfaite du phenomene : mas
nous n’entreprenons pas de la donner, et n’y sommes pas obligés non
plus, car on n’est point obligé à ce qui nous est impossible dans l’etat
où nous sommes : il nous suffit de faire remarquer que rien n’empêche
qu’un certain mal particulier ne soit lié avec ce qui est le melhor en
general. Cette explication imparfaite, et qui laisse quelque chose à
decouvrir dans l’autre vie, est suffisante pour la solution des objections, mas
non pas pour une comprehension de la chose 23 .
blema da eleição); e Diálogo efetivo, Grua, 366: "B. – Ainsi il faut croire que
Deus n’auroit point permis le péché ny créé les creatures dont il sçavoit
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 153
qu’elles pecheroient, s’il n’avoit sçu le moyen d’en tirer un bien incomparable-
ment plus grand que le mal qui en arrive. A. – Je souhaiterais de sçavoir quel
est ce grand bien. B. – Je puis asseurer qu’il est, mas ne puis en expliquer le
detail. Pour cela, il faudroit connoistre l’harmonie generale de l’univers, au lieu
que nous n’en connoissons qu’une tres petite partie. C’est icy où l’exclamation
de S. Paul a lieu".
25 Reponse aux reflexions contenues dans la seconde Edition du Dictionnaire Critique de
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
154 Paul Rateau
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 155
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
156 Paul Rateau
que faz valer que, quanto ao resto, "todas as objeções tomadas a partir
do fluxo das coisas, em que observamos imperfeições, não são
fundadas senão sobre falsas aparências" 30 .
A essa altura, ele cumpriu todos os seus deveres, de sorte que a
defesa "negativa" basta para terminar a controvérsia. Os argumentos
que poderá alegar depois em favor da perfeição do mundo e de sua
ordem, da bondade e da sabedoria divinas deverão, por conseguinte, ser
considerados como supeererrogatórios. Eles constituem a defesa
"positiva", que consiste em avançar sobre o terreno do opositor (aquele
da experiência e das aparências 31 ) a fim, de uma parte, de reduzir as
objeções desta última parte dos argumentos contrários 32 , de outra
parte, de mostrar as marcas e os indícios a posteriori que a natureza
proporciona da harmonia, assim como as razões que há para concluir
que a soma dos bens deve se sobrepor à dos males no nível universal.
É preciso notar que o defensor não é obrigado a conduzir essa
segunda defesa e que, para Leibniz, os argumentos que ela desenvolve,
ainda que mais probatórios que aqueles produzidos pelo adversário,
não valem como demonstrações. Certamente, eles oferecem, no plano
dos fenômenos, uma forte presunção em favor da harmonia universal e
da justiça divina, mas seu objetivo não é confirmar positivamente teses
estabelecidas a priori no nível doutrinal. Seu papel permanece
essencialmente defensivo, e nenhum deles visa provar a unidade da
sabedoria "moral" com a sabedoria "artística" do Criador no mundo.
30 Théodicée, Discours préliminaire, § 44, GP VI, 75.
31 Bayle considera, com efeito que, do ponto de vista a posteriori, as aparências
advogam em favor do maniqueísmo, hipótese que, por "absurda e contraditó-
ria" (filosoficamente insustentável e contrária à teologia revelada), explica bem
melhor a experiência do que o conhecimento a priori, contudo verdadeiro, da
unicidade do primeiro princípio infinitamente bom e perfeito (cf. Dictionnaire
historique et critique, artigo "Pauliciens").
32 Nós identificamos três principais: a instância de possibilidade, o argumento
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 157
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
158 Paul Rateau
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 159
Il suffit donc pour aneantir l’objection, de faire voir qu’un mundo avec
le mal pouvoit être melhor qu’un mundo sans mal : mas on est encor
allé plus avant dans l’ouvrage, et l’on a même montré que cet universo
doit être effectivement melhor que tout autre universo possible 37 .
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
160 Paul Rateau
qu’elles naissent les unes des autres" (Discours touchant la méthode de la certeza et
l’art d’inventer, Ak VI, 4 A, 959).
40 De libertate, contingentia et serie causarum, providentia, Ak VI, 4 B, 1655-
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 161
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
162 Paul Rateau
Existentias est propositio haec: Deus vult eligere perfectissimum. Haec propositio
demonstrari non potest, est omnium propositionum facti prima, seu origino
omnis existentiae contingentis. Idem omnino est dicere Deum esse liberum, et
dicere hanc propositionem esse principium indemonstrabile. Nam si ratio reddi posset
hujus primi divini decreti, eo ipso Deus hoc non libere decrevisset. Dico ergo
hanc propositionem comparari posse identicis. Ut enim ista A est A, seu res sibi
ipsi aequalis est demonstrari non potest, ita ista: Deus vult perfectisssimum. Haec
propositio est origo transitus a possibilitate ad existentiam creaturarum". Ver
também: Extraits de Petau, Grua, 336; Extraits de Twisse, Grua, 351.
45 Cf. Discours de métaphysique, § 13, Ak VI, 4 B, 1549: as proposições contin-
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 163
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
164 Paul Rateau
52 Cf. GP III, 32-33; Causa Dei, § 38, GP VI, 444; § 66, 448-449.
53 Cf. distinção entre explicar, provar, compreender e sustentar, in: Théodicée, Discours
préliminaire, § 5, GP VI, 52.
54 Ver supra nota 27.
55 Sobre o modo ficcional, a fábula de Sextus indica os limites da empreitada
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 165
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
166 Paul Rateau
eterna", in: De libertate, fato, gratia Dei, Ak VI, 4 B, 1612; a fábula de Sextus que
encerra a Théodicée (§§ 413-417, GP VI, 361-365).
59 Cf. Théodicée, préface, GP VI, 31.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.
O Ensaio de Teodiceia Leibniziano e a Crítica de Kant 167
60 Théodicée, Discours préliminaire, § 44, GP VI, 75. Ver também: Examen religionis
christianae, Ak VI, 4 C, 2402: "Com efeito, o conhecimento das coisas propor-
ciona as mais poderosas delícias dos espíritos, e como eles [os santos] contem-
plam mais de perto a sageza e aperfeição divinas, é de se crer que lhes é permi-
tido agora mais próximos dos segredos da providência, que eles admiravam de
longe quando estavam ligados a um corpo, e que o governo muito justo de
Deus, objeto antes de sua crença, eles o conhecem agora, o que, penso, não pde
ser compreendido sem o conhecimento das coisas singulares que se passam
entre os homens" ("Mentium enim potissimas delitias facit cognitio rerum, et
cum ipsae Divinam Sapientiam ac perfectionem propius intueantur, credibile
est ad providentiae arcana, quae in corpore existentes eminus admirabantur,
nunc propius admitti, et gubernationem Dei justissimam creditam illis antea
nunc cognitam esse, quod sine notitia rerum singularium quae inter homines
geruntur intelligi opinor non potest"). Grifos nossos.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 21, n. 1, p. 143-167, jan.-jun. 2011.