Você está na página 1de 3

220 RESENHAS

do livro, os dias finais de Leach. Em tre- claramente incluído no gênero da etno-


cho comovente, relata seu contato silen- grafia, o livro não é restrito a um público
cioso com um Leach já sedado, mas que de cientistas sociais e muito menos ao
retinha uma vitalidade que se sentia no dos antropólogos. O estilo do autor pos-
calor de suas mãos. Na cerimônia fune- sibilita aos não especialistas um mergu-
rária singela, como queria Leach, não lho em uma realidade social que não a
foi possível evitar a procissão solene da sua própria, abrindo portas para o con-
capela do King’s College ao portão de tato com o gênero etnográfico. Sua leve-
saída, cuja ordem, Tambiah comenta, za, contudo, não força a análise a abdi-
Leach – o observador de rituais – teria car de sua profundidade e tampouco a
antecipado: o caixão, a família, o Pro- descrição a abrir mão de sua densidade.
vost, o Vice-Provost, convidados e fel- Por outro lado, para os iniciados,
lows por ordem de importância. Aqui, Corpo e Alma estimula a reflexão e a
como implicitamente em todo o livro renovação de temas clássicos do domí-
aliás, a biografia de um se torna, em nio antropológico, tais como a “produ-
parte, autobiografia do outro. ção do corpo”, a “observação partici-
pante” e as “relações interétnicas”, as
relações entre o microcosmo com o
WACQUANT, Loïc. 2002. Corpo e Alma macrocosmo, por exemplo. Ao mesmo
– Notas Etnográficas de um Aprendiz tempo que retoma tópicos canônicos,
de Boxe. Rio de Janeiro: Relume Duma- as abordagens são vastamente inova-
rá. 294 pp. doras.
Veja-se o caso do trabalho de cam-
po. Desnecessário ressaltar o aspecto
Jorge Mattar Villela quase coextensivo existente entre per-
Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ manência em campo e a constituição da
antropologia. Sua afinidade é tal que,
Não se paga necessariamente o preço desde as últimas décadas do século XIX,
da platitude quando se adota o estilo mesmo quando não era considerado fa-
ligeiro e sedutor da escrita. Esta fórmu- tor caracterizante do ofício do antropó-
la prosaica poderia estar gravada no logo, o trabalho de campo começava a
pórtico do livro de Loïc Wacquant. Cor- minar os antigos métodos do evolucio-
po e Alma – Notas Etnográficas de um nismo sociocultural, invadindo os inte-
Aprendiz de Boxe é a etnografia de um resses dos próprios antropólogos evolu-
ginásio de boxe realizada após um pe- cionistas, produzindo etnógrafos cada
ríodo de três anos de trabalho intensivo vez mais aptos a se assenhorar de seus
de campo em Woodlawn, comunidade dados, publicando seus próprios resul-
afro-americana de baixa renda na cida- tados. É bem verdade que alguns an-
de de Chicago. Constituído por três tex- tropólogos do final do século XX puse-
tos independentes – mas indissociáveis ram em crise a observação de campo,
uns dos outros, tal como enfatiza o au- colocaram-na entre parênteses como
tor na apresentação –, o livro é daque- objeto mesmo de reflexão e de dúvida.
les que podem ser lidos em diversos ní- É verdade, também, que atualmente ela
veis de profundidade, segundo o inte- sofre ameaças mais poderosas, porque
resse específico de cada leitor, apresen- mais silenciosas e invisíveis, que a di-
tando um caráter, por assim dizer, plu- luem e confundem com outros métodos
ridimensional. Portanto, embora esteja de pesquisa.
RESENHAS 221

O texto de Loïc Wacquant apresen- corresponde nenhuma experiência a


ta uma novidade, patente já no subtítu- eles transcendente; é uma prática cuja
lo. Nele, o observador que descreve se lógica “só pode ser apreendida na
insere ele próprio como objeto e sujeito ação” (:120).
da observação. As notas etnográficas Misturando observação e experi-
são, ao mesmo tempo, as de um antro- mentação, campo e transformação, Cor-
pólogo em trabalho de campo e as de po e Alma trata do processo de produ-
um aprendiz de boxeador. Além disso, ção não apenas do corpo do boxeador,
o etnógrafo elimina a tradicional cliva- mas também de seu espírito, de um apa-
gem entre o “estar lá” da observação e relho sensório-motor modificado por
o “estar aqui” da redação descritiva/tra- práticas cotidianas minuciosas, invisí-
dutora. Ao lançar mão de longas passa- veis, contínuas, ao mesmo tempo indi-
gens de seu caderno de campo, o autor viduais e coletivas, cujos efeitos são im-
simultaneamente impede-se de falar em perceptíveis a olho nu. Ou para usar as
nome dos outros e transforma a obser- palavras de Wacquant, “esta natureza
vação em ato descritivo. Inverte a fór- particular que resulta do longo proces-
mula tradicional “observação partici- so de inculcação do habitus pugilísti-
pante”, tornando método a já levantada co” (:119). Esse é o entroncamento on-
hipótese de uma “participação obser- de emergem as mais interessantes re-
vante”. Portanto, o observador torna-se flexões que o livro traz. Tratado muitas
um experimentador; a experimentação, vezes como objeto natural, desde que
um meio a serviço da observação. Marcel Mauss o tornou interessante pa-
Na antropologia, os métodos ren- ra as Ciências Sociais, o corpo, na obra
dem-se com freqüência, e com resulta- de Loïc Wacquant, não é exatamente o
dos positivos, ao objeto que se procura alvo de uma progressiva culturalização,
conhecer. Ao definir o aprendizado do mas de uma “remodelação” através das
boxe, Loïc Wacquant mostra que seu práticas disciplinares do gym (:31). É
processo se fixa na “fronteira do que é preciso reconhecer que Wacquant não
dizível” (:60), não é constituído pela esclarece esse ponto e oscila entre o
transmissão de noções, que suporia a corpo desnaturalizado e o corpo como
existência de modelos normativos inde- objeto natural, conforme a definição de
pendentes de sua execução (:61). Por is- Mauss, entre a remodelação e a cultu-
so, fazer ciência do boxe, esta “arte so- ralização do corpo. Modeladoras ou re-
cial”, exige que “mergulhemos nele co- modeladoras, as práticas do ginásio pos-
mo pessoa, que nele se faça a aprendi- sibilitam uma “conversão perceptual,
zagem e que se viva as principais eta- emocional e mental que se efetua sobre
pas desde o interior” (:60). Para Wac- um modo prático e coletivo, sobre a ba-
quant, o boxe é uma prática por exce- se de uma pedagogia implícita e mimé-
lência, segundo a definição proposta tica […] que pacientemente redefine um
por Pierre Bourdieu (:60). Seria possível a um todos os parâmetros da existên-
dizer, com certa licença, que se trata de cia do boxeador” (:23). De todo modo, o
um desses processos formadores do gym, espaço liminar, “antídoto da rua”
que Henri Bergson chamava de “me- (:275), é essa “usina”, esse local “onde
mória contração”, funcionando para se fabricam estas mecânicas de alta
além ou aquém da reflexão racional e precisão que são os boxeadores” (:273).
do domínio da consciência. Ou seja, al- As descrições analíticas da produção
go em que aos atos e às práticas não do corpo culminam quando o “apren-
222 RESENHAS

diz de boxeador” sobe no ringue para cionalistas. Disso o autor fornece diver-
disputar “o maior torneio amador do sas referências ao longo do texto. No
Meio-Oeste” (:25), o Golden Gloves, o caso específico de Corpo e Alma, o alvo
tema do último dos três textos que com- da desmistificação é ligeiramente dife-
põem Corpo e Alma. Local das mistu- rente do que aparece em um artigo an-
ras, o relato da entrada de “Busy” Louie teriormente publicado em Mana (2000).
no ringue conjuga observador, experi- Lá, Loïc Wacquant mostra o mundo dos
mentador e observado, observação, des- boxeadores (apresentado por eles mes-
crição e narração, sem solução de con- mos) como sendo extremamente nega-
tinuidade (:271-293). tivo. O boxeador como o explorado, co-
A fronteira entre natureza e cultura mo um jogador da loteria, constante-
não é a única posta em questão e refle- mente comparado a um animal de cor-
xão pelas análises de Loïc Wacquant. te, a uma prostituta, a uma vítima do
Para ele, a produção do boxeador para vampirismo dos empresários. Nos arti-
o “mais individual dos esportes” só é gos que compõem Corps et Âme, o au-
possível através de práticas coletivas, e tor apresenta-nos o boxe como um meio
“oferece uma superação em ato da an- de fugir da realidade da rua, como uma
tinomia entre o individual e o coletivo” possibilidade, como uma arma contra a
(:35), embora em certos casos hesite en- delinqüência. Da formação do boxea-
tre a superação da dicotomia e sua ad- dor – inculcação da disciplina, remode-
missão: “o paradoxo de um esporte ul- lação espiritual, física e mental – ao bo-
tra-individual cuja aprendizagem é xeador profissional, altera-se a relação
completamente coletiva” (:120, ênfases entre o microcosmo e o macrocosmo.
no original). De modo que, ao menos no Descrição etnográfica, análise so-
vocabulário utilizado e nos referenciais ciológica e experiência literária, Corpo
teóricos, em diversas passagens, coleti- e Alma possibilita ainda ao leitor livrar-
vo e individual permanecem em estado se dos clichês e do imaginário prêt-à-
de mistura, mas como entidades distin- porter criado em torno do universo do
tas. O gym continua essencializado, as- boxe.
sim como o corpo sobre o qual ele tra-
balha, funcionando como “comunidade
moral”, como “sistema de crenças e de
práticas” ao modo de Durkheim, con-
forme citação do próprio autor (:120).
Quanto ao meu elenco de virtudes
desta obra, embora mais ou menos evi-
dente, não será ocioso lembrar que ela
é um exemplo rico de como a antropo-
logia e, sobretudo, o gênero etnográfico
é, ou pode ser em certos casos, um po-
deroso agente desmistificador de um
determinado universo social cujos re-
sultados finais são intensamente difun-
didos. Os boxeadores profissionais são
midiatizáveis o que provoca um sem-
número de discursos sobre o boxe de
cunho e objetivos jornalísticos e sensa-

Você também pode gostar