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FUNÇÕES SEM PRIMITIVA ELEMENTAR

RICARDO MAMEDE

1. Teoremas de Liouville
O Teorema Fundamental da Cálculo assegura que para uma qualquer função contı́nua
f no intervalo [a, b], a função
Z x
F (x) = f (t)dt, x ∈ (a, b),
a

é uma primitiva de f . Além disso, para uma vasto leque de funções existem técnicas que
permitem escrever a primitiva F (x) à custa de somas de funções simples, ou elementares,
tais como funções racionais, trigonométricas, exponenciais ou logaritmos. Um exemplo
deste tipo de funções é dado pelas funções racionais, cujo integral é ou uma função racional,
ou a soma de uma função racional com um número finito de múltiplos de logaritmos de
funções racionais. Laplace, em 1812, provou este resultado decompondo uma função
racional r(x) = p(x)/q(x), onde p(x) e q(x) são polinómios, em fracções parciais (veja-se
[7]),
m
X bj
r(x) = t(x) + ,
j=1
(x − cj )kj
onde t(x) é um polinómio e bj , cj , kj são constantes, e notando que a primitiva de um
polinómio é também um polinómio, e que a primitiva de um termo 1/(x − cj )kj é ou um
termo desta forma (se kj 6= 1), ou um logaritmo (se kj = 1).
No entanto, para algumas funções mais complicadas tais como
x2 ex x sin(x) ln x
(1.1) e , , ee , , ou 2 ,
x x x +1
já não é possı́vel exprimir as suas primitivas, que existem pelo Teorema Fundamental do
Cálculo, em termos de funções elementares.
Por função elementar na variável x designamos qualquer função que, num número
finito de passos, possa ser construı́da através de funções algébricas, da função exponencial
ou da função logarı́tmica, aplicando as operações de adição, subtracção, multiplicação, di-
visão e composição de funções. Optamos por considerar coeficientes complexos de forma
a incluir as funções trigonométricas elementares e suas inversas no leque de funções ele-
mentares, uma vez que, por exemplo,
eix − e−ix √
sin(x) = e arcsin(x) = −i ln(ix + 1 − x2 ).
2i
O que se aceita como integral de uma dada função tem variado ao longo do tempo.
Os dois “inventores”do cálculo, Newton e Leibniz, tinham abordagens diferentes rela-
tivamente à integração [6]: Newton aceitava integrais como séries infinitas mas rejei-
tava funções transcendentes, tais como exponenciais ou logaritmos. Já Leibniz favorecia
soluções em termos finitos, admitindo o uso de funções transcendentes. Ao longo do
século XVIII as preferências por uma ou outra abordagem dividiam-se, mas à medida

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que o conhecimento das novas funções aumentou, a preferência pelas expressões finitas
prevaleceu.
Foi Joseph Liouville (1809-1882) que estabeleceu a integração em termos finitos como
uma disciplina matemática numa série de artigos publicados entre 1833 and 1841. Após
ter considerado a questão de quando uma função algébrica possui um integral algébrico
[3], Liouville atacou o problema da identificação das funções algébricas que possuem um
integral elementar [4]. Para resolver esta questão, provou em 1834 o que é hoje em dia
designado
R por Teorema de Liouville (1834): se y é uma função algébrica na variável
x e y(x)dx é elementar, então
Z Xn
y(x)dx = t(x) + ki ln ui (x),
i=1

onde k1 , . . . , kn são constantes, e t(x), u1 (x), . . . , un (x) são funções algébricas. Este teo-
rema e as suas generalizações, são a base de praticamente todos os trabalhos feitos nesta
área (para uma visão global veja-se, por exemplo, [8]). A sua prova baseia-se no facto
da derivada de um termo exponencial ser exponencial e da derivada de um termo lo-
garı́tmico de ordem maior do que 1 ser também logarı́tmico. Assim, uma função algébrica
não pode ter termos exponenciais nem logarı́tmicos, excepto se estes últimos aparecerem
como combinações lineares (para mais pormenores veja-se [12, p. 21]).
Em 1935 Liouville generalizou o seu resultado para várias variáveis, aumentando a
classe de funções que se pode provar não ter integral elementar.
Teorema Forte de Liouville (1835). (a) Se f é uma função algébrica nas variáveis
x,y1 , . . .,ym , onde y1 , . . . , ym são funções de x cujas derivadas R dy1 /dx, . . . , dym /dx são
também funções algébricas nas variáveis x, y1 , . . . , ym , então f (x, y1 , . . . , ym ) dx é ele-
mentar se e só se
Z n
X
f (x, y1 , . . . , ym ) dx = u0 + cj ln(uj ),
j=1

onde os cj são constantes e os uj são funções algébricas nas variáveis x, y1 , . . . , ym .


(b) Se f (x, y1 , . . . , ym ) é uma função racional e dy1 /dx, . . . , dym /dx são também funções
racionais nas variáveis x, y1 , . . . , ym , então as funções uj da parte (a) são funções racio-
nais nas variáveis x, y1 , . . . , ym .
A prova deste teorema segue essencialmente os mesmos passos do teorema de 1934
(veja-se [12]). Um caso frequente de aplicação do Teorema Forte de Liouville é sobre uma
função algébrica
f (x, y1 , . . . , y7 ) = F (x, ex , ln x, exp(ex ), ln(ln x), sin(x), cos(x), cos(ex )),
uma vez que
dy1 dy2 1 dy3 dy4 1
= y1 , = , = y1 y3 , = ,
dx dx x dx dx xy2
dy5 dy6 dy7
q
= y6 , = −y5 , and = −y1 1 − y72 ,
dx dx dx
são funções algébricas nas variáveis x, y1 , . . . , y7 .
Um caso particular do Teorema Forte de Liouville é o chamado Teorema Racional de
Liouville que enunciamos de seguida e cuja prova pode ser encontrada em [12, p. 47].
3

Teorema Racional de Liouville. (Liouville R [5], Ritt [12]) Se f e g são funções algébricas
g
na variável x, com g não constante, e se f e dx é elementar, então
Z
f eg dx = Reg ,

para alguma função racional R nas variáveis x, f e g. Em particular, se f e g forem


polinómios, R é uma função racional de x.
Este resultado é um caso particular do Teorema de Liouville, mas é suficientemente
geral para os nossos propósitos nestas notas: mostrar como usar os teoremas de Liouville
para verificar se um dado integral pode, ou não, ser escrito à custa de funções elementares,
e em particular mostrar que as primitivas das funções (1.1) não são funções elementares.
Para leituras complementares sugerimos os textos [2, 12, 8, 9, 10, 11, 13, 14].
Exemplo 1. Se g(x) é um polinómio com grau gr(g) > 1, então
Z
eg(x) dx

não é uma função elementar.


R
Demonstração. Por absurdo, suponhamos que eg(x) dx é uma função elementar. Então,
pelo Teorema Racional de Liouville, temos
Z
eg(x) dx = R(x)eg(x) ,

para alguma função racional R(x). Derivando esta expressão, e dividindo-a por eg(x) ,
obtemos
1 = R0 (x) + R(x)g 0 (x).
Se R(x) = p(x)/q(x), com p(x) e q(x) polinómios primos entre si, a expressão anterior
implica que
(1.2) q(x)(q(x) − p0 (x) − g 0 (x)p(x)) = −p(x)q 0 (x).
Se o grau gr(q) > 0, então o polinómio q(x) possui uma raiz x = α de multiplicidade,
digamos k > 0. Além disso, p(α) 6= 0, pois p(x) e q(x) são primos entre si. Desta forma,
podemos concluir que x = α é uma raiz de multiplicidade pelo menos k do membro
esquerdo de (1.2), mas é raiz de multiplicidade no máximo k − 1 do membro direito de
(1.2). Esta contradição significa que q(x) é uma constante, que podemos assumir ser 1,
pelo que obtemos
g 0 (x)p(x) = 1 − p(x)0 .
Mas esta igualdade
R g(x) é impossı́vel pois gr(g 0 (x)p(x)) ≥ gr(p(x)) > gr(p0 (x)). Conclui-se
assim que e dx não é elementar. 

Em particular, os integrais
Z Z
x2 2
e dx e e−x dx

não são funções elementares. O segundo destes integrais


√ é a chamada função erro erf (x)
(por vezes na sua definição aparece o coeficiente 2/ π). Esta é, essencialmente, uma
“nova”função transcendente que não pode ser expressa usando funções elementares, e que
é usada, em conjunto com as funções elementares, por programas de computação simbólica
como o Maple, Mathematica ou Sage para expressar outros integrais mais complicados.
4 RICARDO MAMEDE

Exemplo 2. Se f (x) é um polinómio com grau gr(f ) ≥ 1, então


ex
Z
dx
f (x)
não é uma função elementar.
ex
R
Demonstração. Pelo Teorema Racional de Liouville, se f (x)
dx fosse elementar, terı́amos
ex
Z
dx = R(x)ex ,
f (x)
para uma certa função racional R(x) = p(x)/q(x), com p(x) e q(x) polinómios primos
entre si. Derivando a equação anterior e dividindo-a por ex , obtemos
1 p0 (x)q(x) − p(x)q 0 (x) + p(x)q(x)
= R0 (x) + R(x) = ,
f (x) q 2 (x)
ou ainda,
(1.3) q(x)(q(x) − f (x)p0 (x) − f (x)p(x)) = −f (x)p(x)q 0 (x).
Se o grau gr(q) > 0, então o polinómio q(x) possui uma raiz x = α de multiplicidade,
digamos k > 0. Além disso, p(α) 6= 0, pois p(x) e q(x) são primos entre si. Desta forma,
se f (α) 6= 0, podemos concluir que x = α é uma raiz de multiplicidade pelo menos k do
o membro esquerdo de (1.3), mas é raiz de multiplicidade no máximo k − 1 do membro
direito de (1.3). Por outro lado, se α fosse raiz de multiplicidade r > 0 do polinómio
f , então da expressão (1.3) concluirı́amos que α seria raiz de multiplicidade k + r − 1
do membro direito desta igualdade, e raiz de multiplicidade k + r do membro esquerdo.
Esta contradição significa que q(x) é uma constante, que podemos assumir ser 1, pelo que
obtemos
f (x)p0 (x) = 1 − f (x)p(x).
Mas esta igualdade é impossı́vel pois gr(f (x)p(x)) > gr(f (x)p0 (x)). 
Z x
e
Concluı́mos assim que o integral dx não é elementar. Muitos outros integrais
x
podem ser reduzidos à forma das funções integrandas dos exemplos anteriores, quer por
mudança de variáveis, quer usando integração por partes, ou ainda por separação das suas
partes reais e imaginárias.

Exemplo 3. 1/ ln x. Se t2 = ln x, então
Z Z
1 2
√ dx = 2et dt.
ln x
Como o segundo membro não é uma função elementar, o mesmo se passa relativamente
ao primeiro membro desta igualdade.
Exemplo 4. xk−1 / ln x, com k 6= 0. Se u = k ln x, então
Z k−1 Z u
x e
dx = du.
ln x u
Como o segundo membro não é uma função elementar, o mesmo se passa relativamente
ao primeiro membro desta igualdade.
5

Exemplo 5. exp(ex ). Se t = ex , então


Z Z t
ex e
e dx = dt.
t
Como o segundo membro não é uma função elementar, o mesmo se passa relativamente
ao primeiro membro desta igualdade.
Exemplo 6. ln(ln x). Usando integração por partes, podemos escrever
Z Z
1
ln(ln x) dx = x ln(ln x) − dx.
lnx
Como o integral de 1/ ln x não é elementar, o mesmo se verifica com o integral de ln(ln x).
Exemplo 7. sin(x)/x. Relembremos que se f (x) = u(x) + iv(x), com u(x) e v(x) funções
reais, então
Z Z Z
Re f (x) dx = Re (f (x)) dx = u(x) dx,
Z Z Z
Im f (x) dx = Im (f (x)) dx = v(x) dx.
R R
Além
R disso, se f (x) dx for elementar, então as suas partes reais e imaginárias u(x) dx
e v(x) dx são também elementares. Pela identidade de Euler eix = cos(x) + i sin(x),
temos sin(x)/x = Im(eix /x). Como eix /x não possui integral elementar, o mesmo se
passa com sin(x)/x.

Terminamos esta secção com outro caso especial do Teorema Forte de Liouville que
permite analisar funções da forma r(x) ln x, com r(x) uma função racional, obtido por
G.H. Hardy [1, p. 50] em 1905 (veja-se também [8]).
R
Teorema de Liouville-Hardy (1905). Se r(x) é uma função racional, então r(x) ln x dx
é elementar se e só se existe uma função racional g(x) e uma constante c tal que r(x) =
c/x + g 0 (x).
Exemplo 8.R Se r(x) = Πnj=1 (x − aj )−1 , com aj constantes não nulas e distintas duas a
duas, então r(x) ln x dx não é uma função elementar.
Demonstração. Pelo teorema anterior, temos de verificar se existe alguma função racional
g(x) e uma constante c tal que g 0 (x) = c/x + r(x). Usando a decomposição de r(x) em
fracções próprias, obtemos
n
X bj
g 0 (x) = c/x + ,
j=1
x − a j

para certas constantes bj . Concluı́mos assim que g(x) = c ln x + nj=1 bj ln(x − aj ) + C não
P
R
é uma função racional, quaisquer que sejam as constantes c e C. Portanto r(x) ln x dx
não é elementar. 
Z Z Z
ln x ln x ln x
Em particular, os integrais dx, 2
dx e dx não são funções
x−a x −1 x2 +Z1
ln x
elementares, qualquer que seja a constante a 6= 0. Notemos que dx = (ln x)2 /2.
x
Este resultado não contradiz o Teorema de Liouville-Hardy uma vez que fazendo c = 1 e
r(x) = 1/x, a função constante g(x) = 0 satisfaz g 0 (x) = r(x) − c/x.
6 RICARDO MAMEDE

2. Apêndice 1: Funções Algébricas e Funções Transcendentes


O conjunto das funções reais de variável real pode ser dividido em duas classes: as
funções algébricas e as funções transcendentes. Uma função y = f (x) diz-se algébrica se
satisfaz uma equação da forma
(2.1) pn (x)y n (x) + pn−1 (x)y n−1 (x) + · · · + p1 (x)y(x) + p0 (x) = 0,
para certos polinómios p0 (x), p1 (x), . . . , pn (x) não todos nulos, e para todo o x no domı́nio
de f . O menor inteiro n para o qual (2.1) se verifica chama-se o grau de f . Uma função
que não é algébrica, ou seja, que não satisfaz qualquer equação da forma (2.1), diz-se
transcendente. Por exemplo, qualquer função racional r(x) = p(x)/q(x), com p(x) e
q(x) polinómios, é algébrica uma vez que satisfaz a equação
q(x)y − p(x) = 0.
Também a função f (x) = |x| é algébrica, pois satisfaz y 2 −x2 = 0. Já a função exponencial,
a função logarı́tmica e as funções trigonométricas são exemplos de funções transcendentes,
como veremos de seguida.
Teorema 1. A função exponencial ex é transcendente.
Demonstração. Suponhamos que ex é algébrica com grau n, e seja
(2.2) pn (x)enx + pn−1 (x)e(n−1)x + · · · + p1 (x)ex + p0 (x) = 0,
onde os Pj (x) são polinómios e o grau gr(pn (x)) é mı́nimo. Derivando (2.2), relativamente
à variável x, e subtraindo desta a equação (2.2) previamente multiplicada por n, obtemos:
p0n (x)enx + p0m−1 − pn−1 e(n−1)x + · · · + (p01 − (n − 1)p1 ) ex + (p00 − np0 ) = 0.


Uma vez que esta última equação ou tem grau menor do que n, ou contradiz a minimali-
dade de gr(pn (x)), obtemos uma contradição. Portanto, podemos concluir que ex é uma
função transcendente. 
Corolário 2. Para qualquer b > 0 e b 6= 1, a função exponencial bx é transcendente.
Demonstração. Assumindo que bx é algébrico (com b 6= e), existem polinómios pn (x),
pn−1 (x), . . . , p0 (x), com n ≥ 1 e pn (x) 6= 0, tal que
pn (x) (bx )n + pn−1 (x) (bx )n−1 + · · · + p1 (x)bx + p0 (x) = 0,
ou, de forma equivalente,
n n−1
(2.3) pn (x) ex ln b + pn−1 (x) ex ln b + · · · + p1 (x)ex ln b + p0 (x) = 0,
é satisfeita para todo o x real. Fazendo a substituição t = x ln b na equação (2.3) obtemos
       
t t n
 t t n−1
 t t t
(2.4) pn e + pn−1 e + · · · + p1 e + p0 = 0.
ln b ln b ln b ln b
Considerando os polinómios qk (t) = pn (t/ ln b), k = 0, 1, . . . , n, temos que qn (t) 6= 0 e
qn (t)ent + pn−1 (t)e(n−1)t + · · · + q1 (t)et + q0 (t) = 0,
o que contradiz o facto de ex ser transcendente. Concluı́mos assim que bx é uma função
transcendente. 
O próximo resultado mostra que um múltiplo não nulo de uma função transcendente é
igualmente transcendente.
7

Proposição 3. Para qualquer constante c 6= 0, a função f (x) é transcendente se e só se


cf (x) é transcendente.
Demonstração. Suponhamos que f (x) é transcendente e que cf (x) é algébrica. Então,
existem polinómios pn (x), pn−1 (x), . . . , p0 (x), com n ≥ 1 e pn (x) 6= 0, tais que
pn (x)cn f n (x) + pn−1 (x)cn−1 f n−1 (x) + · · · + p1 (x)cf (x) + p0 (x) = 0,
para todo o x pertencente ao domı́nio de f (x). Mas então, fazendo qk (x) = ck pk (x),
obtemos a identidade
qn (x)f n (x) + qn−1 (x)f n−1 (x) + · · · + q1 (x)f (x) + q0 (x) = 0,
o que significa que f (x) é transcendente, contradizendo a nossa hipótese. Assim, somos
levados a concluir que cf (x) é transcendente. Reciprocamente, se cf (x) é transcendente,
então pela implicação provada atrás temos que f (x) = (1/c)cf (x) é transcendente. 
Portanto, qualquer múltiplo não nulo cex é uma função transcendente. No entanto, a
soma de funções transcendentes não é, necessariamente, uma função transcendente. Por
exemplo, a soma das funções transcendentes ex e ex é a função transcendente 2ex , mas
a sua diferença ex − ex = 0 é algébrica. No entanto, somar constantes a uma função
transcendente resulta numa função transcendente como veremos de seguida.
Proposição 4. Se a função f (x) é transcendente então 1+f (x) é também transcendente.
Demonstração. Suponhamos que 1 + f (x) é uma função algébrica. Então, existem po-
linómios pn (x), pn−1 (x), . . . , p0 (x), com n ≥ 1 e pn (x) 6= 0, tais que
(2.5) pn (x)(1 + f (x))n + pn−1 (x)(1 + f (x))n−1 + · · · + p1 (x)(1 + f (x)) + p0 (x) = 0,
para todo o x no domı́nio de f . Pelo Teorema Binomial, temos
k  
k
X k j
(1 + f (x)) = f (x),
j=0
j

para k = 0, 1, . . . , n. Substituindo estas expressões na equação (2.5) e factorizando as


potências de f com o mesmo expoente, obtemos uma equação da forma
qn (x)f n (x) + qn−1 (x)f n−1 (x) + · · · + q1 (x)f (x) + q0 (x) = 0,
onde os qk (x) são polinómios e qn (x) = pn (x). Isto significa que f é algébrica, o que
contradiz a nossa hipótese. Portanto, a função 1 + f (x) é transcendente. 
Teorema 5. Uma função f é transcendente se e só se a sua recı́proca 1/f é transcendente.
Demonstração. Suponhamos que f é transcendente. Se a sua recı́proca 1/f é algébrica,
existem polinómios pn (x), pn−1 (x), . . . , p0 (x), com n ≥ 1 e pn (x) 6= 0, tais que
1 1 1
(2.6) pn (x) n + pn−1 (x) n−1 + · · · + p1 (x) + p0 (x) = 0,
f (x) f (x) f (x)
para todo o x pertencente ao domı́nio de 1/f . Multiplicando ambos os membros de (2.6)
por f n (x) obtemos
pn (x) + pn−1 (x)f (x) + · · · + p1 (x)f n−1 (x) + p0 (x)f n (x) = 0,
o que contradiz o facto de f ser transcendente. Reciprocamente, se 1/f é transcendente,
então o seu recı́proco 1/(1/f ) = f é transcendente. 
Podemos agora provar que as funções trigonométricas elementares são transcendentes.
8 RICARDO MAMEDE

Teorema 6. As funções trigonométricas sin(x), cos(x), tan(x), cot(x), sec(x) e csc(x) são
transcendentes.
Demonstração. Vamos provar que sin(x) é transcendente. As provas para cos(x) e tan(x)
são semelhantes. Uma vez que a recı́proca de uma função transcendente é também trans-
cendente, concluı́mos então que cot(x), sec(x) e csc(x) são igualmente transcendentes.
Suponhamos então que sin(x) é algébrica. Então, existem polinómios pn (x), pn−1 (x), . . .,
p0 (x), com n ≥ 1 e pn (x) 6= 0, tais que
(2.7) pn (x) sinn (x) + pn−1 (x) sinn−1 (x) + · · · + p1 (x) sin(x) + p0 (x) = 0,
é satisfeita para todo o x real, com n o grau de sin(x).
Comecemos por supor que p0 (x) = 0. Se n = 1, a equação (2.7) fica reduzida a
p1 (x) sin(x) = 0, pelo que temos p1 (x) = 0 para todo o x 6= kπ, com k inteiro, pois
sin(x) anula-se nestes pontos. Um polinómio de grau, digamos m ≥ 1 tem, pelo Teorema
Fundamental da Álgebra, no máximo m zeros reais. Deste modo temos necessariamente
p1 (x) = 0, o que contradiz o facto de assumirmos que pn (x) 6= 0. Segue que temos de ter
n ≥ 2. Uma vez que estamos a supor que p0 (x) = 0, podemos destacar sin(x) da (2.7) e
obter
pn (x) sinn−1 (x) + pn−1 (x) sinn−2 (x) + · · · + p2 (x) sin(x) + p1 (x) = 0,
o que contradiz o facto de n ser o grau de sin(x). Concluı́mos assim que o polinómio p0 (x)
não pode ser o polinómio nulo, pelo que tem necessariamente um número finito de raı́zes.
Mas uma vez que sin(x) se anula para todo o x = kπ, a equação (2.7) fica reduzida a
p0 (kπ) = 0 para todo o inteiro k, o que contradiz o facto de p0 (x) ter um número finito
de raı́zes. Portanto, a suposição de que sin(x) é algébrico leva a uma contradição, pelo
que podemos concluir que esta função é transcendente. 
Vamos agora mostrar que a função inversa de uma função transcendente é também
transcendente (evidentemente se esta existir). Como consequência deste resultado, con-
cluı́mos que as funções trigonométricas inversas arcsin(x), arccos(x), arctan(x), bem como
a função logaritmo logb (x) são transcendentes.
Teorema 7. Uma função f é transcendente se e só se a sua função inversa f −1 é trans-
cendente.
Demonstração. Seja y = f (x) uma função transcendente com função inversa f −1 (y) = x,
e suponhamos que f −1 é algébrica. Então, existem polinómios pn (y), pn−1 (y), . . . , p0 (y),
com n ≥ 1 e pn (y) 6= 0, tais que
n n−1
pn (y) f −1 (y) + pn−1 (y) f −1 (y) + · · · + p1 (y)f −1 (y) + p0 (y) = 0,
é satisfeita para todo o y no domı́nio de f −1 . Como y = f (x) se e só se f −1 (y) = x, temos
pn (f (x))xn + pn−1 (f (x))xn−1 + · · · + p1 (f (x))x + p0 (f (x)) = 0,
para todo o x no domı́nio de f . Se pk (y) = akmk y mk + akmk −1 y mk −1 + · · · + ak1 y + ak0 , para
k = 0, 1, . . . , n, então
(2.8) pk (f (x))xk = akmk f mk (x)xk + akmk −1 f mk −1 (x)xk + · · · + ak1 f (x)xk + ak0 xk .
Somando as n + 1 igualdades (2.8), temos que o membro esquerdo é zero. Quanto ao
membro direito, após factorizarmos as potências de f com o mesmo expoente, obtemos
uma expressão da forma
0 = qm (x)f m (x) + qm−1 (x)f m−1 (x) + · · · + q1 (x)f (x) + q0 (x),
9

onde os qk (x) são polinómios, m é o máximo dos mk e qm (x) 6= 0. A equação anterior


mostra que f é uma função algébrica, o que é uma contradição. Concluı́mos assim que
f −1 é transcendente. 
Terminamos com a prova de que as funções trigonométricas hiperbólicas sinh(x), cosh(x)
e tanh(x), bem como as suas recı́procas e inversas, são funções transcendentes.
Teorema 8. As funções sinh(x) e cosh(x) são transcendentes.
Demonstração. Vamos provar que sinh(x) é transcendente. A prova para cosh(x) é
análoga. Como sinh(x) = (1/2)(ex − e−x ), pela proposição 3 basta provar que ex − e−x
é transcendente. Por absurdo, suponhamos que ex − e−x é uma função algébrica. Então,
existem polinómios pn (x), pn−1 (x), . . . , p0 (x), com n ≥ 1 e pn (x) 6= 0, tais que
(2.9) pn (x)(ex − e−x )n + pn−1 (x)(ex − e−x )n−1 + · · · + p1 (x)(ex − e−x ) + p0 (x) = 0,
para todo o x real. Pelo Teorema Binomial, temos
k  
x −x k
X k (k−2j)x
(e − e ) = e ,
j=0
j
para k = 0, 1, . . . , n. Substituamos estas expressões na equação (2.9) e multipliquemos
pelos polinómios pk (x). De seguida, factorizemos cada factor emx , notando que a potência
emx com maior inteiro m é enx , e com menor inteiro m é e−nx . A equação (2.9) fica então
q2n (x)enx + q2n−1 (x)e(n−1)x + · · · + qn+1 (x)ex + qn (x)e0x + qn−1 (x)e−x +
(2.10) + · · · + q2 (x)e−(n−2)x + q1 (x)e−(n−1)x + q0 (x)e−nx = 0,
onde cada qk (x) é igual a algum pj (x), ou é a soma de dois ou mais polinómios pj (x), e
portanto é um polinómio, e q2n (x) = pn (x) 6= 0. Multiplicando ambos os membros da
equação (2.10) por enx , obtemos
q2n (x) (ex )2n + q2n−1 (x) (ex )2n−1 + · · · + qn+1 (x) (ex )n+1 + qn (x) (ex )n + qn−1 (x) (ex )n−1 +
+ · · · + q2 (x) (ex )2 + q1 (x)ex + q0 (x) = 0,
o que significa que ex é algébrica: uma contradição. Concluı́mos assim que ex − e−x é
transcendente. 
Teorema 9. A função tanh(x) é transcendente.
sinh(x)
Demonstração. Uma vez que tanh(x) = , podemos escrever
cosh(x)
ex − e−x (ex + e−x ) − 2e−x 2e−x 1
tanh(x) = = = 1 − = 1 + (−2) .
ex + e−x ex + e−x ex + e−x 1 + e2x
x
A função exponencial e2x = (e2 ) é transcendente pelo corolário 2, pelo que 1 + e2x
é também transcendente pela proposição 4. Uma vez que a recı́proca de uma função
transcendente é transcendente, podemos usar as proposições 3 e 4 para concluir que
tanh(x) é transcendente. 
Uma vez que a recı́proca e a função inversa de uma função transcendente é igualmente
transcendente, podemos concluir o seguinte resultado.
Corolário 10. (a) As funções coth(x), sech(x) e csch(x) são transcendentes.
(b) As funções trigonométricas hiperbólicas inversas sinh−1 (x), cosh−1 (x), tanh−1 (x),
coth−1 (x), sech−1 (x) e csch−1 (x) são transcendentes.
10 RICARDO MAMEDE

Referências
[1] G. H. Hardy, The Integration of Functions of a Single Variable, 2nd ed., Cambridge University Tracts
in Mathematics and Mathematical Physics, no. 2, Cambridge, England, 1916.
[2] T. Kasper, Integration in Finite Terms: the Liouville Theory, Mathematics Magazine 53 (1980), pp.
195–201.
[3] J. Liouville, Mémoire sur la détermination des Intégrales dont la valeur est algébrique, J. Ecole
Polytechnique, vol. 14, cahier 22, pp. 124–193, Paris.
[4] J. Liouville, Mémoire sur les Transcendantes Elliptiques de première et de seconde espéce considérées
comme fonctions de leur amplitude, J. Ecole Polytechnique, vol. 14, pp. 37–83, Paris.
[5] J. Liouville, Mémoire sur l’integration d’une classe de fonctions transcendantes, J. Reine Angew.
Math., vol. 13 (1835), pp. 93–118.
[6] C. H. Edwards Jr., The Historical Development of the Calculus, Springer-Verlag, New York, 1979.
[7] R. Mamede, Expansão de uma função racional em fracções parciais. Coimbra 2010. (Disponı́vel em
http://www.mat.uc.pt/ mamede/Artigos/fraccoesparciais.pdf).
[8] E. A. Marchisoto and G-A Zakeri, An invitation to Integration in Finite Terms. The college Mathe-
matics Journal, Vol 25-4 (1994), pp. 295-308.
[9] D. G. Mead, Integration. The American Mathematical Monthly, Vol. 68, No. 2 (1961), pp. 152–156.
[10] R. H. Risch, The problem of integration in finite terms, Transactions of the American Mathematical
Society 139 (1969) 167–189.
[11] R. H. Risch, The solution of the problem of integration in finite terms, Bulletin of the American
Mathematical Society 76 (1970) 605–608.
[12] J. Ritt, Integration in Finite Terms, New York, 1948.
[13] M. Rosenlicht, Liouville’s theorem on functions with elementary integrals, Pacific Journal of Mathe-
matics 24:1 (1968) 153–161.
[14] M. Rosenlicht, Integration in finite terms, American Mathematical Monthly 79:9 (1972) 963–972.

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