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Observações sobre os
Grundrisse e a História
dos processos de
trabalho
Benedito Rodrigues de Moraes Neto'

Resumo

Procura-se colocar elementos que possam explicar como a análise das forças
produtivas capitalistas efetuada por Marx nos Grundrisse pode constituir-se numa re-
ferência fundamental para o estudo das forças produtivas no atual momento histórico,
as quais são resultado de grandes mudanças observadas recentemente. Para tanto, são
discutidas as seguintes questões: ajustamento da análise contida nos Grundrisse ao seu
momento histórico (meados do séc. XIX); diferenças entre as análises do processo de
trabalho capitalista nos Grundrisse e no Capital; natureza das forças produtivas ao
longo do séc. XX (indústria de processo contínuo e taylorismo-Iordismo) e seu grau de
ajustamento aos Grundrisse; natureza do revolucionamento ocorrido a partir do final
do séc. XX; forças produtivas no séc. XXI e sua "colagem" aos Grundrisse.
Palavras-chave: forças produtivas, processo de trabalho, maquinaria e grande indús-
tria, taylorisrno-fordisrno.

Introdução

o rebatimento histórico da análise das forças produtivas efetuado nos


Grundrisse está longe de ser trivial. Trata-se, em poucas palavras, de entender
como um texto escrito em meados do século XIX, com o objetivo de dar conta
teórica das forças produtivas especificamente capitalistas geradas pela finali-
zação da Revolução Industrial, pode ser, ao mesmo tempo, o mais importante
referencial teórico para a caracterização das forças produtivas capitalistas do

, Departamento de Economia -- UNESP/ Araraquara

REVISTA Soe. bras. Economia Política, Rio de Janeiro. nº 16, p. 7-31, junho 200S 07
atual momento histórico, resultado de unli!1:·t~.nso processo de desenvolvüTlen- industrial eru. seu momento Il , . StéorICO ..Faaça!
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últimas décadas do século XX.
mente na indústria têxtil, todas as características que permitem ViSLdizLL
O fato de estarmos em terreno complexo jú transparece na frase anterior. ..
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Em primeiro lugar, uma afirmação aparentemente óbvia, como a de que os _ essa visuahzação por parte de Marx que permitiu, a um só tempo, o brilhantis-
Grundrisse teriam COIllO objeto as forças produtivas de seu momento históri- mo ele sua análise das forças produtivas capitalistas, (: sua colocação de que o
co, será motivo de controvérsia, como veremos, Em segundo lugar, também a capitalismo leria sido brilhante ao desenvolver essas forças. Vejamos os dois
afirmação final não só é sujeita a controvérsias, pois há quem sustente que não momentos em seqüência:
existe em curso qualquer mudança significativa nas forças produtivas capita- inicialmente, marquemos o brilhantisrno da análise de Marx. Através de
listas, como exige urna reflexão mais detida. Afinal, se se extrai da análise de raciocínio por absurdo - pois, para ele, "como instrumento, o trabalhador é
Marx que as forças produtivas especificamente ·capitalistas, plenamente ajus- sempre o primeiro entre todos" (ARISTÓTELES, 1995, p. 16) -, Arisióteles
tadas à forma social capitalista, e portanto definitivas
em termos conceituais , afirma em passagem conhecida:
haviam sido alcançadas na segunda metade do século XIX com a introdução
Com efeito, se cada instrumento pudesse, a urna ordem dada ou apenas prcvis-
da maquinaria, como é possível sustentar de forma conceitual a possibilidade
ta, executar sua tarefa (conforme se diz das estátuas de.Dédalo ou das tripeças
de um desenvolvimento tão intenso das mesmas, de caráter até revolucionário, de Vulcano, que iam sozinhas, como disse o poeta, às reuniões dos deuses), se
mais de um século depois? Para expressar de forma mais direta: é possível as lançadeiras tecessem as toalhas por si, se o plectro tirasse espontaneamente
superar historicamente o conceito de máquina? Em terceiro lugar, não há como sons da citara, então os arquitetos não teriam necessidade de trabalhadores,
escapar da seguinte questão: caso se aceite, como deveria ser bastante claro, nem os senhores de escravos, (ARISTÓTELES, 1995, p. 16·17)
que os Grundrisse possuem sua referência histórica no início da segunda me- Ora, o que lemos em Marx deixa marcada a natureza inquestionavelmen-
tade do século XIX, e se aceite também que se ajustam como uma luva à atual te revolucionária daquele momento histórico, o passo histórico absolutamente
base técnica do capital, recentemente transformada de forma intensa, então, o erucial representado por tornar viável que "as lançadeiras tecessem as toalhas
que teria ocorrido ao longo do século XX?
por si". Este fato já está presente no verbete meia, de Diderot, na Enciclopé-
dia, no qual o autor cita, concordando, afirmação de um tal Sr. Perrault:
1. Os Grundrisse e o século XIX
Aqueles que têm gênio suficiente não para inventar coisas idênticas, mas
Iniciemos a reflexão sobre o rebatimento histórico dos Grundrisse Com a para as compreender, caem num profundo espanto perante o número quase
infinito de molas de que se compõe a máquina de fazer meias, e do grande
questão de sua referência histórica: sobre qual realidade do processo de traba-
número dos seus diversos e extraordinários movimentos. Quando se vê
lho Marx colocava seu olhar?
fazer meias, admiram-se a leveza e a destreza das mãos do operário, embo-
. Considerando t~r sido o trabalho escrito em 1857-58, a resposta parece) ra ele faça apenas uma malha de cada vez; como é diferente quando se vê
simples: Marx depositava seu olhar sobre a forma final assumida pelas forças' uma máquina que forma centenas de malhas simultaneamente, quer dizer,
produtivas como resultado da Revolução Industrial, qual seja, a produção à que faz, no mesmo momento, todos os vários movimentos que as mãos só
conseguem fazer em várias horas! Quantas pequenas molas puxam a seda
base da maquinaria. Todavia, como veremos, o próprio Marx se encarregou de
para elas, largando-a, retomando-a, fazendo-a passar de uma malha para
colocar problemas para essa afirmativa aparentemente inquestionáve1. outra de uma forma inexplicável? E tudo isto sem que o operário que mo-
vimenta a máquina compreenda nada, saiba nada, ou sequer sonhe o que se
1.1.A "colagem" dos Grundrisse ao século XIX passa: é nisso que pode ser comparada à mais excelente máquina que Deus
fez. (D' ALEMBERT, et al., 1974, p. 123-124)
Não é projeto fácil argumentar em defesa de algo tão evidente do ponto Sem dúvida, o que realiza Marx é uma elaboração precisa, contundente,
de vista epistemológico: Marx analisava a natureza dos processos de trabalho
de algo que a citação de D' Alembert já deixava antever:

REVIST.A, Soe. bras. Economia Politica, Rio de Janeiro, nO 16, p. 7·31, junho 2005 REViSTA Soe. bras. Economia Política, Rio de Janeiro, nº 16, p. 7-31, junho 2005
/\. máquina já não tem nada de comum CG[n o instrumento dG trabalhador pio subjetivo da divisão do u'ah;.dho. Nela, o processo por inteire' é exami-
indi vidual, Distingue-se por completo du ferramenta CiUC trauxmire a ati v!- nado objetivamente em ~i mesmo. em suas fases componentes e o problc-
dade do trabalhador ao objeto. De rato, a atividade' manifesta-se C1UitO ma de levar a cabo cada um dos P:'(:C(;SSOS parciais e de entrelaçá-tos é
)"';' '~
Lh.US '....
ce '-d:a rnaquma,
omo pene ...nce
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ncanuo ' . a vrgiar
I] operano
.. a acão trans- resolvido COlTI a aplicação l.ecniC~1 da mecânica, da química, etc. (. .. ).
iniiida pela máquina à matérias-prirn::ls, c a protegê-Ia das 'lV'''';'l,'(l'y1 AI{'\: (MARX, í 975, p. 433)
1978, p.218) ~b' ,< " •• c.c . _. ",

Quando a máquina-ferramenta, ao transformar a matéria-prima, executa


A ali vidade do operário, reduzida a uma pura abstração, é em todos os sem ajuda humana todos os movimentos necessários, precisando apenas
sentidos determinada pelo movimento de conjunto das máquinas; o inver- da vigilância do homem para lima intervenção eventual, temos um sistema
so não é verdadeiro. (MARX, 1978, p. 21 y)
automático, suscetível, entretanto, de contínuos aperfeiçoamentos. (MARX,
1975, p. 434-435)
Assi.ll1, o processo de produção deixa de ser um processo de trabalho, no
sentido em que o trabalho constituiria a sua unidade dominante. (MARX
1978, p.219) ,
Ao se pensar, por um lado, na superfluidade do trabalho vivo imediato,
I) conjunto do processo de produção já não está, então, subordinado à
característica crucial do trabalho sob a égide da maquinaria em Marx, e, por
~abilidade do operário; tornou-se uma aplicação tecno!ógica da ciência. outro, na tendência ao "contínuo aperfeiçoamento" do sistema automático,
~MARX, 1978, p.221) chega-se, também como tendência que pode ser extraída imediatamente do
sistema de maquinaria, ao trabalho vivo imediato que efetivamente deve per-
A ciência manifesta-se, portanto, nas máquinas, e aparece como estranha e manecer sob essa forma de organizar a produção. Trata-se de um trabalho de
exterior ao operário. O trabalho vivo encontra-se subordinado ao trabalho gestão de um sistema técnico complexo, trabalho que não pode ser compreen-
m,aterializado, que age de modo autônomo. Nessa altura, o operário é su- dido como trabalho no sentido que lhe é dado usualmente por Marx, qual seja,
perfluo ( ... ). (MARX, 1978, p.221)
de trabalho alienado. Esse ponto extremamente relevante somente é tratado
Depreende-se das citações acima que a maquinaria posta em uso pelo por Marx nos Grundrisse:
capital no século XIX permitiu a Marx visualizar com extrema clareza a forma Trabalharás com o suor de teu rosto !, foi a maldição que Jeová lançou a
mais desenvolvida possível da produção material, qual seja, a que transforma Adão, e é desta maneira, C01110 maldição, que Adam Smith concebe o tra-
o processo produtivo numa "aplicação tecnológica da ciência". Isto também balho. O 'repouso' aparece como o estado adequado, como idêntico à 'li-
está colocado de forma clara em O Capital quando, ao tratar do ajustamento berdade' e à 'fortuna'. Parece estar muito longe de seu pensamento que o
indivíduo, 'em seu estado normal de saúde, vigor, atividade, habilidade e
das bases técnicas às necessidades da forma social capitalista, tratando do per-
destreza' tenha também a necessidade de sua porção normal de trabalho e
curso cooperação simples - manufatura - maquinaria, Marx procura enfatizar da supressão do repouso. ( ... ) Tem razão, sem dúvida, Adam Smith, na
o processo de superação da "barreira orgânica" que, até o surgimento da má- medida em que as formas históricas de trabalho - como trabalho escravo,
qU!~a, colocava limites à expansão da produtividade do trabalho, tão cara ./0 servil, assalariado - sempre se apresentaram
posto exteriormente,
como trabalho forçado, im-
frente ao qual o não-trabalho aparece como 'liberda-
capital: .
de e fortuna'. Isto é duplamente verdadeiro: é verdadeiro com relação a
A máquina-ferramenta é portanto um mecanismo que, ao lhe ser transmiti- este trabalho antitético ['quer dizer, condicionado por uma antítese de classe'
do ~ movimento apropriado, realiza com suas ferramentas as mesmas ope- (ROSDOLSKY, p.474)), e, em conexão com ele, ao trabalho para o qual
raçoes que eram antes realizadas pelo trabalhador com ferramentas seme- ainda não se criaram as condições subjetivas e objetivas para que se torne
lhantes. (MARX, 1975, p.426) trabalho atraente, auto-realização do indivíduo, o que de modo algum sig-
nifica que seja mera di versão, mero entretenimento, como concebia Fourier.
Na manufatura, cada operação parcial tem de ser executávelmanu,Jmente Precisamente, os trabalhos realmente livres, como por exemplo a compo-
pelos operários, trabalhando isolados ou em grupos, com suas ferramen- sição musical, são ao mesmo tempo terrivelmente sérios e exigem o mais
t~s. Se o trabalhador é incorporado a determinado processo foi este antes intenso dos esforços. O trabalho da produção material só pode adquirir
ajustado ao trabalhador. Na produção mecanizada desaparece esse princí- esse caráter (de trabalho realmente livre, emancipado): 1) Se o seu conteú-

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Marx, para OS quais não existe qualquer rebatimenro entre as observações rea-
do se tornar diretumeme social; 2) Se se revestir de UI1! caráter científico e
surgir diretamente C(lirr(· tempo de trabalho geral. Pu," outras palavras se lizada~ nos Grund,-isse sobre a natureza do processo de trabalho capitalista e a
deixar de ser () esforço do homem, simples força de lrabalho natural no realidade de meados do século XTX. Tentaremos inicial-
histórico-produtiva
estado bruto tendo sorrido um determinado treinamento, pura se tornar a mente explicitar essa visão para, a seguir, procurar esclarecer como o próprio
atividade do sujeito que regula todas as forças da natureza no seio do pro-
Marx pode ter colaborado nesse sentido.
cesso de produção. (MARX, 1978, p. il9-120)

1.2. O "d~scolamento" dos Grundris se do século XIX


A incumbência histórica do capital está cumprida, finalmente, pelo desen-
volvi mente das forças produtivas do trabalho, ao que instiga continuamen-
Se não é fácil argumentar em favor da "colagern" dos Grundrisse ao sé-
te o capital, desenvolvimento que alcançou um ponto tal que a posse e a
conservação da riqueza geral por um lado exige tão somente um tempo de culo XIX, os autores que serão comentados a seguir demonstram que tentar
trabalho menor para a sociedade inteira, e por outra a sociedade laboriosa "descolar" os Grundrisse de seu momento histórico de geração também não é
Sê relaciona cientificamente com o processo de sua reprodução progressi- nada fácil. A razão é bastante diferente: essa proposta exige que se percorram
va, de sua reprodução Em plenitude cada vez maior: por conseguinte, ces-
caminhos argumentati vos bastante tortuosos.
sou de existir o trabalho no qual o homem faz aquilo qUé pode conseguir
Iniciemos com Rosdolsky. Para este autor, cuja admiração pelos
que as coisas façam em seu lugar. (...) Em sua aspiração incessante pela
forma universal da riqueza, o capital, todavia, impulsiona o trabalho mais Grundrisse é bastante conhecida, a ligação desta obra de Marx com o século
além dos limites de sua necessidade natural e cria assim os elementos mate- XIX não parece tão clara:
riais para o desenvolvimento da rica individualidade, tão multilateral em
sua produção como em seu consumo, e cujo trabalho, em conseqüência, Tal é a análise aue realiza Marx das transformações históricas surgidas do
tampouco se apresenta como trabalho, senão como desenvolvimento pleno papel da maquinaria no processo de produção capitalista. Hoje em dia - no
da atividade mesma, na qual desapareceu a necessidade natural em sua for- decorrer de uma nova revolução industrial - dificilmente seria ainda ne-
ma direta, porque lima necessidade produzida historicamente substituiu a cessário destacar a transcendência profética desta concepção imensamente
natural. Por esta razão o capital é produtivo; quer dizer, é uma relação es- dinâmica e radicalmente otimista. Pois o que c solitário revolucionário
sencial para o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Só deixa de alemão sonhava em 1858 em seu exílio londrino, ingressou hoje - porém
sê-lo quando o desenvolvimento das forças produtivas encontra um limite somente hoje - no âmbito do imediatamente possível. (ROSDOLSKY, 1985,
no próprio capital. (MARX, 1978, apudROSDOLSKY, 1985, p.467-468) p.472)

Foi a partir dessa visualização da produção industrial sob a maquinaria Deixando de lado a dúvida sob qual seria a "nova revolução industrial"
em seu momento histórico que Marx pôde, nos Grundrisse, assentar enfatica- que observava Rosdolsky em 1968, ano da primeira ediçjío alemã de seu co-
mente o caráter auto-contraditório do modo de produção capitalista, antevendo nhecido livro sobre os Grundrisse, importa aqui marcar a idéia de que a análi-
um inevitável confronto entre o brilhantismo desse sistema ao desenvolver as se de Marx ali existente sobre o processo de trabalho capitalista possuía uma
forças produtivas e sua mediocridade enquanto forma social. "transcendência profética", caracterizando não uma análise concreta de uma
A título de consolidação dos passos dados até aqui, o que se fez foi ten- situação concreta, mas sim um "sonho", que só entraria no terreno da realidade
tar, a despeito da mencionada dificuldade, argumentar no sentido de que a na segunda metade do século XX. Ficou nos devendo Rosdolsky uma explici-
natureza das forças produtivas de meados do século XIX, obviamente em seu tação daquilo que efetivamente via Marx em sua época, bem como esclarecer
locus mais avançado, foi de molde a permitir a teorização de Marx, especial- os desdobramentos do diferimento da emergência histórica da maquinaria so-
mente feliz nos Grundrisse. Como afirmamos em outro lugar, ';Marx pôde ver bre a obra de Marx como um todo. Como veremos logo em seguida, a primeira
e antevcr todo o movimento tendencial das forças produtivas capitalistas tendo questão é enfrentada por Ruy Fausto.
sempre o processo histórico em curso como referência de toda 'a análise." A propositura de Ruy Fausto é bastante original e pouco trivial do ponto
(MORAES NETO, 2003, p.16) Esta afirmação é, todavia, motivo de contro- de vista teórico, e merece ser vista com algum cuidado. Ainda que não esclare-
vérsia, sendo contestada por leitores extremamente qualificados da obra de ça os momentos e as determinações, parte-se da existência de uma diferença

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crucial nas análises das forças produtivas capitalistas efetuadas nos G/'l./il<fris.i'e
. . .
No sentido de caracterizar a mencionada ruptura, e o assocrauo renome-
. . I A

c em O Capital:
111)'
, - ,- negações,
das . '( vej amos inicialmente corno se caracteriza a grande indústria:
.

.. Marx adota em O C~!pita! uma postura menos otimista no que se refere A propósito da grande indústria. Marx observe que a rigor j;í n~? ~e tem
ao destino que teria G processo de trabalho na sociedade comunista. Den- nela processo de trabalho: 'A apropriação do trabalho VIV-) atraves do tra-
tro dela, a 'necessidade' se manteria, Os Grundrisse enveredam por um balho objetivado. .. O processo de produção deixou de ser processo de
outro caminho, e poderíamos nos perguntar porque Marx não o seguiu em trabalho no sentido de que o trabalho () invadiria COI'I10 unidade que do-
O Capital. Diga-se, desde já, que não se trata de afirmar, sem mais, a supe- mina. (FAUSTO, 1989, p. 49)
rioridade da perspectiva dos Grundrisse. Ela é provavelmente mais inte-
ressante, mas há algo ele mais realista na direção que toma O Caoital. Fausto admite explicitamente que, para Marx, "(1 grande indústria apare-
(FAUSTO. 1989, p. 48). .
ce como a negação do processo de trabalho". Todavia, logo depois, afirma:
A diferença de postura está posta com clareza, ainda que não esteja "Até a grande indústria, a massa de terspo de trabalho, o quanturn de trabalho,
explicada: há maior realismo em O Capital, ou seja, elevado grau de "colagern" é o elemento decisivo." (FAUSTO, 1989, p.SO) Seria necessário esclarecer
ao seu momento histórico, enquanto que nos Grundrisse há grande "descola- como a grande indústria poderia, a um só tempo, negar a produção como pro-
mento", o que nos leva na direção do "sonho" de corte rosdolskyano, que tam- cesso de trabalho e manter o trabalho córno seu elemento decisivo, Este ponto
bém só se tornaria realidade em momentos avançados do século XX, quando crucial não é todavia desenvolvido por Fausto. Todavia, em passagem rápida,
da emergência do "capitalismo de pós-grande indústria". deixa-se uma importante pista. Ao tentar esclarecer a diferença quanto à natu-
Vejamos a proposta de Ruy Fausto para solucionar a não trivial questão reza do trabalho vivo imediato para os casos da grande e da pós-grande indús-
da diferença de fundo entre as duas grandes obras. A sugestão é que a seqüên- tria, lemos:
cia analítica de Marx, por ele inteiramente desconhecida, foi: manufatura _ Aqui [nos Grundrisse] o termo Wachter denota não mais uma função de
grande indústria - pós-grande indústria. Esta seqüência analítica estaria assim suporte [presente em O Capital], mas uma função de sujeito, e isto porque
distribuída: manufatura: capítulo "Manufatura e Divisão do Trabalho" de O se alterou a natureza da maquiná ria (grifo nosso). (FAUSTO, 1989, p.Sl)
Capital; grande indústria: capítulo "Maquinaria e Grande Indústria" de O Ca-
A suposição de uma significativa alteração tecnológica, ou melhor, de
pital; pós-grande indústria: análise do processo de trabalho capitalista nos
uma alteração na natureza da maquinaria, significa considerar que a base téc-
Grundrisse. Tal proposição exige dois movimentos: o primeiro de caráter teó-
nica de O Capital (grande indústria) não é a mesma dos Grundrisse (pós-gran-
rico, qual seja, a explicação das diferenças entre a grande indústria de O Capi-
de indústria). São diferentes as máquinas sob análise no mesmo momento his-
tal e a pós-grande indústria dos Grundrisse; o segundo de caráter histórico,
tórico! Essa suposição também se acha presente em outro momento do texto:
qual seja, o momento da concretização histórica da análise grundrisseana.
Com respeito ao primeiro ponto, a reflexão de Ruy Fausto parte da exis- Na continuação do texto já citado que dá as definições da fábrica por Ure
[texto de O Capital], Marx afirma que este 'aprecia ... representar a máqui-
tência de uma ruptura qualitativa entre a segunda forma da análise de Marx
na central... não só como autômato mas como autocrata' caracterização
(grande indústria) e a "terceira forma" (pós-grande indústria):
que sem dúvida Marx aceita [em O Capital]. É essa autocracia ela máquina
que será rompida aqui [obs: nos Grundrisse], pela mutação do sistema
"Os Grunelrisse prospectarn as modificações por que deve passar o si~;te-
mecânico (grifo nosso). (FAUSTO, 1989, p.SI)
ma em seu desenvolvimento. modificações que introduzem, sem dúvida,
uma ruptura qualitativa. Mas o texto não caracteriza de uma forma bem
Infelizmente, essa afirmação crucial para toda a argumentação do autor
clara essa ruptura enquanto ruptura. Sem dúvida, as negações aparecem
como negaçõ~s no interior ela forma específica. Elas não são apresenta- está posta de forma inteiramente ad hoe. Qual teria sido a mudança na natureza
das, como serramos tentados a fazer hoje, como constituindo uma terceira da máquina, do sistema mecânico, tão relevante a ponto de ter motivado análi-
forma, cuja predominância definiria um novo período na sucessão das ses tão diferentes? Muito embora não esteja explicitado o movimento de trans-
formas do Sistema, sucedendo à manufatura e à grande indústria. (FAUSTO,
1989, p. 48) formação técnica mencionado, uma coisa fica claramente subentendida: a má-
quina da grande indústria é a máquina de O Capital, a máquina de meados do

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REVISTA Soe bras Econ . P líti R'
. c . ~~ norrua i 011 roa, 10 de Janeiro, nQ 16, p. 7·31. junho 2005 REViSTA Soe, bras. Economia Política, Rio de Janeiro. nO 16, p. 7,31, junho 2005 015
XL\: (lembremos cio "realismo' de Marx) e nela "c' temoo a:" '1·,,1--.,,1','"
'1 et .•..•
.•.••.•
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quina da pós-grande indústria, Todo sc.'J raciocínio tem COILU é;uj)orle a men-
J 1 -- lj J ~. _' . .
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qitaruuni iJC rrana: 10, e o e!er(;c~:l.u d'.~CiS1VO . Tal determinação teria sido su- ciona.Ia noção de que, sob a grande mdústria, ter-se-!" Li erernizaçào do traba-
per.nla todavia para () C~iSO C;i máquina dos Grundrisse, a máquina da pós- ]:'0 vi \'G imediato como apêndice da máqui na. POi' conseqüência, em contraste
graude indústria, Fica, desde logo, urna questão relacionada imediatarnentc ao com afirmação anterior, já citada, só sob :.l pôs-grande indústria D processo de
segundo ponto, qual seja, o ajustamento da análise grundrisseana <) História: produção deixaria efetivamente de se constituir num processo de trabalho:
tendo sido os Grundrisse escrito pouco antes de O Capital, quando teria Ocor-
' ... Ele {o trabalho] entra ao lado do processo de produção em vez de ser o
rido tal mudança? Na verdade,
a resposta de Ruy Fausto, ainda que apenas
seu agente principal.' [Grundrisse J O homem não é mais sujeito do pro-
sugerida, é um tanto surpreendente: a mudança na natureza da maquinaria te- cesso de produção, ou antes, a segunda negação faz com que se rompa a
ria ocorrido apenas ao final do século XX, o que nos faz retomar à "transcen estrutura do processo de produção corno processo de trabalho. O homem é
dência profética" de Rosdolsky. Fica subentendido que, para o período históri- de certo modo 'posto para fora', liberado do processo, mas é assim mesmo
que ele passa a dominar a processo,~(FAUSTO, 1989, p. 52)
co que vai da Revolução Industrial até um momento bastante avançado do
sécu 10 XX, a referência teórica para o estudo das forças produtivas capital istas Como entender a negação da negação proposta por Ruy Fausto? Na pas-
seria encontrado em O Capital, com sua análise da grande indústria. Somente sagem da manufatura para a grande indústria, () movimento seria de negação
a partir das etapas finais do século XX poderíamos lançar mão da análise rea- do trabalho como unidade fundamental do processo produtivo. que na manufa-
lizada. nos Gn~ndrisse. Interessa-nos particularmente quais os elementos que tura estaria alicerçada na prevalência da base técnica artesanai. Todavia, essa
poderiam explicar tal afirmação, coisa que será tentada mais à frente. Conti- negação, na direção da objetivação do processo de trabalho, significaria a su-
nuemos com as diferenças entre as duas indústrias: peração do caráter subjetivo do processo pela afirmação do trabalhador en-

Se a grande indústria aparece como a negação do processo de trabalho a quanto apêndice de uma máquina. Só assim se pode entender o fato de que, sob
pós-grande indústria é a segunda negação do processo de trabalho e ~a a grande indústria, ocorre a introdução maciça de maquinaria mas a produção
realidade a negação da negação ... O estágio descrito pelos Grundrisse de riqueza continuaria dependendo do trabalho. Posteriormente, através de
representa uma terceira forma, cuja predominância define um terceiro importante alteração tecnológica, chegar-se-ia à "máquina da pós-grande in-
momento do modo de produção capitalista. Com essa forma, se tem por
dústria", a qual representaria a negação da negação da subjeti vidade do pro-
um lado uma segull~a posição da forma na matéria, e ao mesmo tempo
uma segunda negaçao do processo de trabalho enquanto processo de tra- cesso realizada pela grande indústria. Com as novas máquinas, superar-se-ia a
balho. Essa segunda n~g~lçãoé também uma negação da negação, porque noção do trabalho vivo imediato como apêndice da máquina, afirmando-se o
se nega com ela a c~ndl~ao, de suporte-apêndice que fora posta pela segun- trabalho vivo imediato como de natureza intelectual, ou como afirmamos ante-
da forma, a grande indústria, (FAUSTO, 1989, p.55)
riormente, como de gestão de um sistema técnico complexo. Esse movimento
,A parte final. da citação é bastante esclarecedora da natureza da mutação significaria restaurar a subjetividade perdida com a grande indústria. A nature-
oc~rn?a na m~qUl.naria: tratar-se-ia da superação do trabalho vivo enquanto za dessa transformação é assim colocada por Eleutério Prado, seguindo a trilha
apêndice da maquina, conceito que caracterizaria a forma de ser do trabalho teórica proposta por Ruy Fausto, com um importante esclarecimento de ordem
vivo imediato junto à máquina da grande indústria, tal como encontraríamos cronológica:
em O Capital. O trabalho vi vo imediato como apêndice da máquina seria por- Em O Capital, como é sabido, Marx apresenta explicitamente dois mo-
ta.nto a característica por excelência do processo de trabalho da grande indús- mentos lógicos do modo de produção capitalista: a manufatura e a grande
tna. Por isto, "até a pós-grande indústria, a riqueza dependia do trabalho" indústria. No plano da história, a manufatura predomina, grosso modo, de
(F~US~O, 1989, p.62) Tentaremos mais à frente procurar as razões para tal meados do século XVI até o último terço do século XVIII, A -partir de
então, torna-se dominante a grande indústria, Ainda que não tenha feito
afirmaç~o, tanto no próprio Marx quanto nas surpresas pregadas-pelo século
qualquer previsão sobre o encerramento do período histórico da grande
XX, Vejamos em seguida como Ruy Fausto utiliza o movimento dialético da indústria, Marx anteviu aí - e de modo muito mais explicito no Borrador-
negação da negação para caminhar da máquina da grande indústria para a má- , a possibilidade lógica de uma mutação do modo de produção, na qual o
trabalho deixaria de estar subordinado materialmente ao capital (grifo

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REVISTA Soe. bras. Economia Política, Rio de Janeiro, nº 16, p. 7·31, junho 2005 REViSTA SOG.bras. Economia Política, Rio de Janeiro, nº 16, p. 7·31, junho 2005 o 17
------ __ ._-
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dição fundamental desse {l(,~;''"'.ilynlvilnento humano


. J ~I~.:~:.:
. 1 • J:' -
_~~ 1"''./•..•••••.
LUL\.,I da grande indústria abrange,
que ~~.peno(~ü da nece:.:-\~!llac:e.o.L. a con 1 ~-~"i c;~',~'-'0_''- t, .i
é" ruJlH.;:ir' d.i jornada de trabalho, (rv,r\k -,. . " r». 1,02)
grosso modo. apenas os pri mcirox (hi~; 1(:;\'(;oS do século XX e que, a partir
de cnt~io, n capualisrno entrou num perí(~df) de transição em que se torna
. . '.. d:o 1'-aba1hoconsideramos cue a famosa frase acima '>:lc!Ti;t
N O r'1çr('1I)n~1 ! t ,....... ,.:1 ~.

"l':;~:':~in:ldrl
i :
c~~davez rnais imporruntc a pós-grande in,Jústria. (PRADO, 2003, p.9)
J '-

". nelas características apontadas para o trabalhejunto


arnp Iamcrue (G,t,;. .« c • ".' ,,,,'," ,", ,
Veri fica-se que o conceito essencial para a caracterização da grande in- , , .... ., f,"'c". aba;xo do capítulo "jvlaou1llarJa e Grande Indústria ,I...J!.-
a lnaqul11d 1\" L)......
1. l.

dústria, e para entender o movimento de SUJ superação, é que nela ocorre a sideramos que esta deve ser a máquina da grande indústria de Ruy Fausto:
subordinação material do trabalho ao capital. Tudo depende, portanto, como já
Embora a maquinaria, tecnicamente, lance por terra o velho sistema da l~i-
afirmamos, de uma suposição fundamental, assumida de forma ad hoc: a gran-
visão do trabalho, continua ele a sobrevi ver na fábrica como costurnc tracr-
de indústria caracteriza-se irremediavelmente pelo trabalho "apendicizado", cionul herdado da manufatura, até que o capital o remodela e cons~l!da de
Sendo assim, toda a brilhante análise de Marx nos Grundrisse, que supera essa forma mais repugnante como meio sistcmárico deexplor,ar a iorça,oe trab,~-
forma de entender o trabalho vivo imediato, só poderia ser realizada fora da lho, A especialização de manejar uma ferramenta parcia., ul:1a vl~a l~t~I;~a,
se transforma na especialização de servir sempre numa maquina p~:rc,~l.
grande indústria. Da mesma forma, a explicitação da natureza auto-contraditó-
Utiliza-se a maquinaria para transformar o trabalhador, desde a infância,
ria do capital presente nos Grundrisse e tratada minuciosamente por Ruy Fausto em parte de urna máquina parcial. Assim, não só se reduzem os custos ne-
também teria que ser jogada para fora da grande indústria. Sob esta ótica, as cessários para reproduzi-Ia, mas também se torna completa sl~adesampara-
forças produtivas capitalistas sob a grande indústria teriam um grau não des- da dependência da fábrica como um to~!o,e, portanto, ciocaplt~llst,a',:~mo
prezível de mediocridade, não fazendo jus aos famosos elogios de Marx. sempre, é mister distinguir entre a maior produtIVIdade que se 0116,n" ~o
desenvolvimento do processo social de produção e a que decorre elaexpio-
Na tentativa de procurar as razões que podem estar por trás do argumento
ração capitalista desse processo. (MARX, 1975, p.482-483)
de Ruy Fausto, iremos nos valer de reflexões que realizamos em texto anterior,
que teve como tema os avanços e o recuo de Marx acerca da noção da abolição Em O Capital, Marx explicita a existência de dois padrões produtiv~s
do trabalho. (MORAES NETO, 2004). Lembremos, antes de mais nada, a para a produção à base da maquinaria: "sistema de máquinas" e "co~pe~'açao
menção de Ruy Fausto à postura menos otimista de Marx em O Capital quanto simples de máquinas". O primeiro deles, visualizado por Marx na fw,çao, m,tel-
à possibilidade histórica da abolição do trabalho: sob quaisquer relações so- ramente baseado no princípio da continuidade dos processos produtIVOS,ajus-
ciais de produção, "a 'necessidade' se manteria". A frase de Marx ao final do ta-se perfeitamente aos conceitos expostos nos Grundrisse, como se pode de-
capítulo "A fórmula trinitária" é, a esse respeito, bastante clara: preender diretamente da caracterização feita por Marx:

De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determi- A máquina-ferramenta combinada, que consiste num sistema coord,enado
nado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, de várias espécies isoladas ou agrupadas de máquinas-ferramenta, e ta.~to
situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selva- mais perfeita quanto mais contínuo é o processo em tOd,aa su~ extensa~,
gem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para man- é:
isto quanto menos for interrompido o trânsito da l~atena-pnma. d~ p~:-
ter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais meira à última etapa, e quanto mais o mecanismo elimina a mterterência
forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvolven- humana, levando a matéria-prima de uma fa~ea ~utra. Na man,ufatura, ~)
do-se, o reino do imprescindível. É que aumentam as necessidades, mas, isolamento dos processos parciais é um pnnclplo, f~xa~~pela propna dlv:-
ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas para satisfazê-Ias. A são do trabalho; na fábrica mecanizada, ao contrario. e Imperativa a conu-
liberdade nesse domínio só pode consistir nisto: o homem social, os pro- nuidade dos processos parciais. (MARX, 1975, p. 434)
dutores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a
natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega Já o padrão produtivo denominado por Marx de "cooperaçã.o simples de
que os domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas con- máquinas" era por ele visualizado fundamentalmente na te~elagem e, ~a~1uel<~
dições mais adequadas
. e mais condignas com a natureza humana. , Mas forma histórico-concreta, claramente não se ajustava as colocaç?es dos
esse esforço situar-se-à sempre no reino da necessidade. Além dele come-
Grundrisse. Acreditamos que a mencionada frase de Marx, na qual.(atnda que
ça o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o
reino genuíno da liberdade, o qual só poele florescer tendo por base o reino ele pareça não desejar) se eterniza o trabalho apendicizado como imperauvo

18- REVISTA Soe, bras, Economia Política, Rio de janeiro, n9 16, p. 7·31, junho 2005 REVISTA Soe. bras. Economia política, Rio de Janeiro, nº 16. p. 7,31, junho 2005
l.ccnolôgj(.'G, está lnleirarnente informada por este padrão Assumi-lo CO!l10
2, Os Gnmdrisse e o século XX
(,~inictcri!:,iL!()!' da pI"CJdu~'Go,()b êt il1aquin:lria signil"i,.:ari:i ;t:;:;umir c : ~: pcrpctui-
d;i({(: d" padrão 'um homem / uma máquina'. uiI como VisludiLavn Marx na Nosso objetivo nesse item é di'iCi:rir ,.1 grau de gmndríssi::.ú,·âo do século
atividade de lcc(~lag'?il1". (ivJOEAES NETO, 2003, p.15) Se essa prisão a um XX. Em outras na lavras, em que medida Li natureza extremamente avançada
J. • 1

detalhe histórico da maquinaria pode explicar lllclOdologicamcnte () recuo per- das forças produtivas presente nos Gruudrisse teria se manifestado ao longo
pctrado por Marx sobre a viabitidade técnica da abolição cio trabalho, ela rarn- do século XX. A questão não é trivial, pois, por UITl lado, como acreditamos,
, por.!c cx pncar
bérn " a " maquinana
inaria d
l a grande1'" lI1dustnil
.. " para n F'
;\UY"3USto, a qua I , Marx só pôde realizar sua reflexão a partir das forças produtivas existentes
eternizaria o trabalho apendicizado à máquina. Para nós, esta claro o equfvoco efetivamente em sua época; por outro lado, para importantes autores, só a par-
de Marx, de dupla natureza: se ele mesmo afirma a existência dos dois padrões tir da relevante mudança tecnológica ocorrida nas duas últimas décadas do
(sistema de máquinas e cooperação simples de máquinas), como pode consi- século XX é que foram geradas força!: produtivas verdadeiramente grundris-
derar o segundo corno característica genérica da produção sob a maquinaria? seanas. Ora, se ao longo do século XX, os processos de trabalho tivessem se
Além disso, ele mesmo admitiu que o sistema produtivo sofreria contínuo aper- conformado crescente e persistentemente à forma explicitada nos Grundrisse,
Ieiçoarnento, () que permitiria portanto observar, como tendência, a superação então não haveria necessidade de mudar para se grundrissizar: Para nós, por
do padrão "um trabalhador / uma máquina" para o caso da cooperação simples um lado, a natureza atual das forças produtivas capitalistas ajusta-se como
ele máquinas. Para nós, todavia, esse equívoco de Marx, que no mencionado uma luva à análise efetuada nos Grundrisse - rcferenciada no início da segun-
texto anterior consideramos um desdobramento de um percurso metodológico da metade do século X]X - e, por outro, é fruto de um importante movimento
em direção ao chamado "chão ele fábrica", não inoculou todo o percurso teóri- recente de avanço nas forças produtivas, coisa que nos coloca num impasse.
co de O Capital, pois isto teria posto por terra até mesmo o fundamental supos- Resumamos o impasse: há rebatirnento dos Grundrisse no século XIX; há grande
to de um crescimento significativo da composição orgânica do capital, cujos mudança recente nos processos de trabalho; há perfeito rebatimento dos
desdobramentos para a análise econômica do capitalismo é ocioso lembrar. Grundrisse no atual momento histórico. A "chave" para a solução do impasse
De forma paradoxal, portanto, as forças produtivas capitalistas de seu está nas surpresas pregadas pelo século XX no que diz respeito ao desenvolvi-
momento histórico permitiram a Marx todas as ilações sobre a forma mais mento das forças produtivas capitalistas. Nossa tentativa de esclarecer esse
avançada possível de produção material, ou, em outras palavras, permitiram ponto será realizada a partir dos dois segmentos produtivos industriais mais
esclarecer o caminho brilhante das forças produtivas capitalistas a partir da importantes no século XX, quais sejam, a indústria de processo contínuo e a
introdução da máquina, bem como geraram um "desvio teórico", um momento indústria metal-mecânica.
de equívoco. A nosso juízo, assim se explica a consideração de Ruy Fausto de
que a grande indústria teria estado Í1Temediavelmente presa a um caminho 2.1. Os Grundrisse e a indústria de processo contínuo
nada brilhante, suposto que daria sentido ao próprio conceito de pós-grande
indústria, esta sim concretizadora do brilhantismo admitido por Marx para as Todo o segmento produtivo industrial de processo continuo ajustou-se
forças produtivas desenvolvidas pelo capital.. perfeitamente, ao longo de todo o século XX, e de maneira sempre crescente,
Tendo discutido a primeira questão por nós colocada, a da ligação da aos preceitos teóricos dos Grundrisse acerca da natureza dos processos de
análise do processo de trabalho realizada nos Grundrisse com o momento his- trabalho. A natureza da produção desse segmento, voltada à mudança no con-
tórico de sua geração, procuraremos a seguir acompanhar o rebatimento histó- teúdo dos objetos de trabalho, permite caracterizá-Ia à perfeição como urna
rico da obrajá concluída. Caminharemos portanto em direção ao surpreenden- "aplicação tecnológica da ciência". Em muitos casos, só atravé~ da corporifi-
te século XX. cação do conhecimento cientffico-tecnológico nas máquinas e equipamentos é
'-o
possível tornar viável o processo de produção, dado o grau de agressividade
das matérias-primas e do próprio processo às possibilidades do ser humano.
Em outros, como é o caso da siderurgia, ocorreu produção sob bases semi-

20'
REVISTA Soe. bras. Economia Política, Rio de Janeiro. nO16, p. 7-31, junho 2005 REVISTA Soe. bras. Economia Política, Rio de Janeiro, nº 16, p. 7,31, junho 2005 c 21
processo de trabalho, caráter crescentemcnte supérfluo do trabalho vivo ime-
diato, constituição de grande. autôrnata, continuidade dos processos produti--
vos, processo produtivo deixando de ser um processo de trabalho, trabalho
vivo imediato como gestor de um sistema técnico complexo. A transição da
aurornação do controle dos parâmetros ele processo para ti forma microeletrô-
nica representou apenas um aprofundarnento nessa tendência,
Uma lJfimeir' , ··~r.I~'('" ..•
, J v,tl"dvIISo.!'_<t dos processos de '''j, """ , A importância da indústria de processo contínuo, constituída por indús-
matéria,s-prim,!s P os insumos ,/, " pro: UÇd" Ul!itlnllos e que as
~ " , ,,1,1 li'. , , ,1jlllS entrarem n') IJrO " '
são facilmente distinto" 0'1 di ','" ,.',' ," C(;S$O produtiVO, não trias como "petroquimica, química, nuclear, siderúrgica, de bebidas, de ali-
, " _,1\ IS1Vc;lS entre SI c em rcla ''', .. -
nal, Os atos essel"'j:'I'"
, ", .v ~ ",
ele ')J") r -
I' ( uuçao neste tipo de i
.' '
I',',
açao ,10 produto fl-
' ,
mentos, de vidro, de borracha e outras" (FERRO, TOLEDO &
de cimento,
a uma série de reacõe-, Iísico q ". e InUlIstna dizem respeito TRUZZI, 1985, p, 2), para o desenvolvimento industrial no século XX permi-
, .,.~-" •• U1Jnlcasql1esed
v r-: .adei.
'I' '
rmsrura de reab"en le," ou "h 'IIICI'~';; d . es enca eram a partir ou da
, ,-- ,,', ". ú<';uO e paf'lmetro< (em "I > ' - te, portanto, afirmar que, em relevante medida, este século esteve grundrissi-
perarurn, vulufl'e", (1'''l°I'''I'l'l'
~,,' l c l l-
e ve'I oc' id'Ide)~ U ," '("
gela
,
plessao, tem-
cessivo ou silnlllt'lne\) ., obte ,;'. 'j',' d q e ,:n Iue,nclam de modo su- zado. A siderurgia serve como ilustração privilegiada dessa natureza concei-
, , ", <J"nçdo r. O ')1'0. uto fi " E, , " , '
traclJclO!1a1menle utiliza-se . i' .ti ;- I . ' ,~Jal. ~ nesse sentlelo que tual da indústria de processo; um jornalista mostrou-se verdadeiramente
, " " ;, .' ,. .ci -, <1 ( 15 loçao entre lIldustrias ele form.
plovesso e COllslitUIUO nor 0l)e'l'~ço-'
, . I "es CUfO' o bieri jctivo ~ 1m .i , '
a, onde o
,
estupefato com as mudanças ocorridas nessa indústria na virada do século XIX
extenor aelecju['c!a 1 m'lte;I'Z"lllt'l" d
A ' ., c c
J',
.llza a atraves elos p 'n",'
"v prrrnrr uma torn,lêl
. l' _ para o século XX, a partir da introdução do forno Sicmens-Martin:
mecaOlca e industrías ele 1)1'. " ·1d : " fl"CIpIOS (e ,produçao
, ",., oprlela e nasq' '
parâmetros físico-QL1l'rl1I'COS'1(1,,'( d ' ' uais se VIsa a obtenção de É em Homestead que prodígios são realizados, tão deslumbrantes quanto
• ,< G lll'l . os '10 P' d t f '
tura interna da matéria por intcrm~eli~ ~os 10, u"o ,lnal, a1teran(~o a estru- os das Mil e uma noites, Aqui, máquinas dotadas ele uma força de 100
ca. Através destes, (orna-se 'I)OSSI'velS ,PfIl:ClPIOS de produçao quími- gigantes movem-se obedientes a um toque, abrindo portas de fornalhas,
, ., , uperar inúmeros obst. I '
glcos que se contrapõem à contin id di.. " acu ostecnolo- levantando das chamas vivas enormes chapas de aço incandescentes, mais
se refletirão do pOIHo de vista d UI a e ( a produçao, Tais características ou menos como uma criança levantaria uma caixa de fósforos da mesa,
, o s.c os eqlllpamentos q ,
aos Sistemas de producão conlÍnllOs A ' , . u,e s~rvem de suporte Duas destas máquinas, chamadas apropriadamente pelos trabalhadores de
dilscretas realizando cada unja I I '"o. >. inves ele m~qull1n'
'_"
'f'
c s especí icas e
, I e as lima operação Da c', I ' 'Leviatã' e 'Behernoth', parecem dotadas de inteligência, Cada uma delas
parece ser um só, interligaelo e " c J r Ia, o equipamento é servida por um pequeno cano elétrico que corre sempre muito atarefado
, ' o maXll1l0 que se conse el" '-
etapas no Itlterior dos processos d f- br ,_ . gue IstlngUIr sao de um lado para outro, COITlseus movimentos controlados pelo monstro
TRUZZI, 1985, p, 6-7) , e a Ilcdçao, (FERRO, TOLEDO &
mais lerdo, Este pequeno serviçal pode estar num extremo da longa oficina
e o Leviatã no outro; mas, tão logo parece enxergar seu gigante dono abrir
Por suas características essa icdüst ' a porta da fornalha e introduzir sua enorme mão para receber um novo
," , na representa o t" ,
a vanguarda mesmo do proces d _ ,es agio mais avançado, pedaço de aço quente, então ele retoma feito um cachorrinho para seu
, so e automaçao d .tri I '
mente outros tipos de indústria 10 us na , e gradativs.
A .
dono e chega justamente no momento em que o enorme punho desloca-se
, vem se assemclhanel I d '
mento elos níveis ele integraça-o int d IA' o a e a, evido ao au- com a fulgurante crosta de fundição: o Leviatã então gentilmente coloca
, er epenc encia e co ti id d
cessos produtivos.. (FERRO TOLEDO n 1O1ll a e elos pro- esta crosta sobre as costas de seu auxiliar, e, para admiração de todos os
, ' ,,~ & TRUZZI, 1985, p.l )
espectadores, o pequeno aparelho caminha alegremente com o material
para o fim do prédio da fábrica, Mesmo assim, continuam as surpresas;
Do ponto de vista econômico a característi c " .'
assim que o pequeno ajudante livra-se da crosta, a massa incandescente,
sos ele produção do tipo contí:lUo é ~ldesc ca ~nillS Importante dos proces-
duas vezes maior que uma grande mala ele viagem, desliza em direção a
trabalho e o ritmo de produção (FE~RO T~7xEaDoeXls,~ente entre o ritmo de
, , ~~ O&lRUZZI,1985,p,3l) uma plataforma rolante que a conduz à laminação. E nenhuma mão huma-
na é vista em toda a operação, (STDNE, 1975, p,36)
Estão postas há muito temno )ort'mt b '
de base microeletrônica as condi c 'J
o, el~ antes da autQ!.nação recente
Caminhemos agora em direção à surpreendente indústria metal-mecânica,
, '" lçoes para conformar o pro' " d
nas tndústrias de fluxo co tí >" _ _ . cesso e trabalho
.: , n inuo as prescnçoes srunârtsseana« P'
dUdVO como aphcação tecnt J'. ica d procsso pro-
'A, " '

, ~ D oglca a ciencia, obJetJvaçãolcientificizaçâo do

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REVISTA Soe, bras, E
conomia Política, Rio de Janeiro_ nº 16, p. 7-31, junho 2005
REVISTA Soe. bras, Economia Política, Rio de Janeiro, nº 16, p. 7-31, junho 2005
2.2- Os Grund:'isse e a indústria rnstaí--mecânica

C:onfOrI!h.:: afirrnamos CIl} ouuo lugar. "não ternos dúvida de Que a metal-
Jl-("C'lJ'):""
,1- 't,
. " .. , ., ..
'0',
h..:.. le.~l..,l-..dJl(l .ir: " .0 ,...
1111.11d~):idJPll_')d:-:
o '. 1,
~l rvrurx; ' ,.
rmagmemos sua reação ao ler
num texto escrito e publicado na íngl~llen:l em 1985: '(. ..) Consideremos, Dor
exemplo, o skill na memlurgin: na mould industry (indústria de forma) leva' de
o fordismo caracteriza o que poderíamos chama:' de socialização da pro-
10 a [2 anos o oeríodo de <lDrcncli?íl<r'''JJ1
1 c..... para um craftpersnn
• '<..(. . \.. "ITI"r'l'j'e'(,n,.,
~ t.-t •••..l.
~J ...-v ," (l •• posta de Taylor, pois, enquanto este procurava adn1ini:trar a forma de ex~-
(K 1,pT T"',""'v : 985 4"(.) f,r- " .
\' ~_~j'l,Jl\..,
j i: ,p.' .),1,. 'i ao menos surpreendente deveria ser uma visita cucão de cada trabalho mdi vidual, o Iordismo reanza ISSO de forma coleti-
à ainda tão atual 'maravilha da indústria do século XX', a linha de mantagen~ va: pela via da esteira. A colocação de Marx de que, a partir da introdução
da maquinaria, o trabalho vivo se submete ao trabalho morto, ou seja, que
fordista, que leva ao máximo desenvolvimento a proposta taylorista. As razões
a questão da qualidade e do ritmo do processo se desloca do trabalho p~ra
para a surpresa estão colocadas em nosso tr;ba!ho Marx, Tayior, Ford: asfor- a máquina, aparentemente ~;eaplica também à !~'lha de mor..tagen~ ~ford~s-
ças produtivas em discussão, onde procuramos desenvolver a idéia de que 'o ITI()')_ Ma"
.I só 11'1 'IP,at
t " .":' _t' e'I')0;a
t L~-'" sendo _.C';SQ
O

, todavia a rorma de sua manifestação


jordismo fundamenta-s- num desenvoivirnento brutal das características pró- ao nível da consciência do trabalhador individual. Para esse trabalhador
individual, colocado num determinado posto de trabalho de uma indústria
prias do trabalho sob aforma manufatureira '" (MORAES NETO, I 995, p.64)
de grande porte, o caminho da esteira, e portanto a intensidade do seu
Mantenhamo-nos na surpresa fundamental do século XX: o tayJorismo- trabalho, parece algo imanente à própria esteira, como se brotasse mesmo
fordismo. A nosso juízo, essa forma de produção não deve ser vista como uma da materialidade da esteira. Isto acontece com o sistema de máquinas, na
manifestação daquilo que Marx nos havia informado acerca da natureza espe- medida em que, através da ciência, se lhe confere um movimento próprio
cificamente capitalista do processo de trabalho, corno afirma enfaticamente de transformação do objeto de trabalho (daí a superfluidade do trabalha-
, dor). Já no caso da esteira, se pensarmos no conjunto da linha em analogia
por exemplo, Benjamin Coriat:
com a máquina, as ferramentas dessa máquina são os trabalhadores com as
ferramentas de trabalho. O ritmo do processo de trabalho não é uma pro-
Tu~o o que Marx anuncia em relação
às características especificamente
capitalistas do processo de trabalho (parcelamento de tarefas, incorpora- priedade técnica da esteira, mas sim algo a ser posto em discussão ,a cada
momento pelo trabalhador coletivo. (MORAES NETO, 1989, p. 30-37)
ção do saber técnico no maquinismo, caráter despótico da direção), o rea-
IJZa Taylor, ou, mais exatamente, lhe dá uma extensão que até então não
havia tido. (CORIAT, 1976, p.l 07) Pode-se aplicar sem restrições para a linha de montagem a colocação feita
por Marx para a manufatura: 'A maquinaria específica do período da m~-
Para nós, o taylorismo-fordismo merece ser considerado, isto sim, como nufatura é, desde logo, o próprio trabalhador coletivo, produto da cornbi-
nação de muitos trabalhadores parciais'. (MORAES NETO, 1989, p. 51)
uma "reinvenção da manufatura" no século XX, agora inteiramente concentra-
da nas tarefas desprovidas de conteúdo. As citações abaixo resumem o essen- Após essas considerações, chegamos à seguinte conclusão: 0_ fordismo, .a
cial do argumento:
linha de montagem, é um desenvolvimento da manufatura, e nao da maqui-
naria. A linha de montagem leva ao limite as possibilidades de aumento de
... taylorismo caracteriza-se como uma forma avançada de controle do ca- produtividade pela via da manufatura, do trabalho parcelar. (MORAES
pital (C0111 o objetivo de elevar a produtividade do trabalho) sobre proces- NETO, 1986, p. 33)
sos de trabalho nos quais o capital dependia da habilidade do trabalhador ...
De que forma? Através do controle de todos os tempos e movimentos do Em outro momento, já deixamos marcado o fato de que, com essa nature-
trabalhador; ou seja, do controle de todos os passos do trabalho vi vo. Esta-
za conceitual, o taylorisrno-fordismo de forma alguma se ajusta às forças pro-
mos bastante distantes da forma descrita por Marx do ajustamento da base
dutivas analisadas por Marx nos Grundrisse (e, conforme colocamos, também
técnica ~ determinações do capital: num momento mais avança~ do de-
senvo]vllnento do capitalismo, à questão historicamente recolocada de sua em O Capital):
dependência frente ao trabalho vi vo, o capital reage de uma forma di feren-
A partir dessa correta compreensão conceitual da maquinaria, a entrada
te: ao invés de subordinar o trabalho vivo através elo trabalho morto, pelo
em cena no século XX do taylorismo - fordisrno é, sem dúvida, causadora
lado dos elementos objetivos do processo de trabalho, o capital lança-se
de perplexidade. Quem estuda o taylorisrno observa que, no fundo, o que

REVISTA Soe. bras, Economia Política, Rio de Janeiro, nº 16, p. 7-31, junho 2005 REVISTA Soe. bras. Econorma Pnlítir" Ri" rb bnD;'" ~o -r c , ~~"
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III II darnento da mesma no "leito da autoruação" já de há muito trilhado, Coisa
producão. tiné.dO~anlentc ao (~ue se havia tentado na fase I);'~~.:-t""•..• -~.I·ina ria.::,
:a •.
• - '-. .--' .\.... ;1i::.. •...
Jd
radicalmente diferente aconteceu com G segmento taylorisin-Foniista, forte-
Essa visão do homem CO!1l0 instrumento de produção magniJi';a-~e no for-
di,SlllO, Ao encetar sua típica inovação, que é a linha de ~n()lltagem,Ford
mente concentrado na indústria metal- mecânica ele produção seriada, no qual a
nao Iez outra COIsa senão coletivizar o taylorisrno, com o recurso funda- introdução da automação de base microeletrônica significou sem dúvida um
mental da esteira, que procura resolver o problema tipicamente manufatu- momento de caráter revolucionário. com superação abrupta do atraso taylorista-
rena do transporte. Na verdade, esta grande fábrica fordista, ao invés de fordista. É dessa forma que, para nós, é possível entender a existência de um
"ig~i ficar a indústria por excelência, a forma mais avançada da produção
capitalista, significou Isto sim uma 'reinvenção da manufatura', uma coisa revoJucionamento das forças produtivas ao final do século XX: tratou-se de
extremamente atrasada do ponto de vista conceitual, a despeito de seu imen- dar fim ao "desvio mediocrizante" do taylorisrno-fordismo, levando, de forma
so sucesso do ponto de vista econômico, produtivo. A colocação de milha- abrupta, todos os segmentos produtivos aí incluídos para o "caminho brilhan-
res de trabalhadores, uns ao lado dos outros, fazendo movimentos parciais te" das forças produtivas capitalistas detectado por Marx ao estudar o século
de ~orma algumaajusta-se à noção marxista de produção à base de maqui-
XIX. Podemos a isto denominar de um grande salto conceitual em direção ao
n~na: Por ISSO ,d~rmamo:; acima: Marx não é Adam Smith, A grande in-
dustna fordista nao signií ica, portanto, uma ilustração do concei to marxis- passado. Estamos dessa forma chegando a uma possível resposta à indagação
ta de grande indústria; na verdade significa sua negação, feita no início deste texto. Vale mencionar que essa maneira de ver não só se
diferencia, mas pode também explicar os motivos da proposta de Ruy Fausto.

Vale destacar que, embora amplamente disseminado, é equivocado consi- Para tanto, nos valeremos de duas citações de Eleutério Prado, pois adicionam
derar a forma de produção fordista como genérica, capaz de dar conta de elementos fundamentais, apenas subentendidos em Ruy Fausto. A primeira, já
uma man,elra geral da al~vidade industrial capitalista ao longo do século efetuada, esclarece a "colagem" histórica dos três momentos das forças produ-
XX. E1Aa e extremamente Importante, mas não é generalizável; não se pode tivas capitalistas, sendo que nos interessa particularmente o momento da tran-
estende-Ia, por exemplo, para os casos das indústrias têxtil e de fluxo con-
sição da grande indústria para a pós-grande indústria: os anos 70 do século
tínuo, que há muito tempo se ajustaram à produção autornatizada. O cami-
nho do taylorismo--fordismo significa na verdade um 'desvio mediocrizante' xx. Claramente está proposto, ainda que não explicitado, que o elemento fun-
do capitalismo no que se refere ao desenvolvimento das forças produtivas damental dessa passagem teria sido a crise do processo de trabalho taylorista-
amplamente vinculado il indústria metal-mecânica. Afinal, não é nada bri- fordista ocorrida na transição dos anos 60 para os anos 70, que depois teria se
Ihante eoJocm: o ser humano em atividades sem conteúdo, e medir seus
engatado na introdução da autornação de base microeletrônica a partir da déca-
:empos e ~ovlmentos como um instrumento de produção, assim como não
e nada brilhante colocar milhares de pessoas, umas ao lado das outras da de 80 (deixando de lado aqui, sem qualquer efeito sobre o argumento, a
faze~do .movimentos repetitivos. Isto não tem nada a ver com a utiIizaçã~ questão do entendimento do ohnoísmo). Em poucas palavras, a grande indús-
da cI~ncla como força produtiva, não faz jus à colocação de Marx do bri- tria se iniciaria ao final do século XVIII e predominaria até o início dos anos
lhantismo do capitalismo quanto ao desenvolvimento das forças produti- 70 do século XX, o que incluiria, como sua última etapa, o taylorismo-fordis-
vas. (MORAES NETO, 2000, p, 10)
mo. A noção de que este está inteiramente incorporado ao conceito de grande
Sob O ponto de vista explicitado nas citações acima, o século XX teria indústria está também explici tada por Eleutério Prado: "Já na fase jordista da
uma parcela extremamente relevante de suas forças produtivas de característi- grande indústria (grifo nosso) ... " (PRADO, 2003, p.l l ). Desde logo, essa vi-
cas inteiramente desgrundrissiradas, Toda a expressiva parcela taylor- são genérica do taylorismo-fordisrno, como representativo da totalidade dos
Iordicizada da produção esteve lastreada em forças produtivas extremamente processos de trabalho durante a maior parte do século X1fín}ío nos parece E-
atrasadas no sentido cOtlceitw!l/marxista. Pode-se, portanto, afirmar que o sé- correta, como já colocamos aqui, e temos colocado em váriosmomentos. To-
culo XX esteve apenas parcialmente ajustado aos Grundriss~concentrando- davia, o ponto aqui não é este, mas sim procurar a razão de outra argumentação
se esse ajuste em grande medida na indústria de processo contínuo. Ao final do que sempre nos pareceu equivocada, qual seja, a da existência de uma linha de
século XX, o movimento de intenso progresso tecnológico encetado pela in- continuidade entre o processo de trabalho analisado por Marx e o taylorismo-
corporação da microeletrônica nos processos produtivos não teve um impacto Iordismo. Em vários lugares, temos nos manifestado criticamente à visão de
de natureza conceitual nessa indústria de processo; o que ocorreu foi aprofun- Coriat de uma linha direta Marx- Taylor, explicitada na citação já efetuada nes-

REVISTA Soco bras. Economin Pnlítj(,,:3 Qin r4~ I •...•..•......•...........


0 -I C' ~ "70'"
te texto. Esta fO:'IT!<l de ver encontra-se magni ficada na seguinte observação de 3. Os Grundrisse e o século XXI
José Ricardo Tauile: "A título meramente de ironia, parece que Taylor tinha
lido Marx e aplicou suas idéias a favor do desenvolvimento capitalista." Se são diferentes os caminhos nossos e de Ruy Fausto e Eleutério Prado,

(TAUILE, 200 I, p.97). Toda via, enquanto para Coriat o taylorismo-fordismo é o mesmo o ponto de chegada: o século XX! é e será inteiramente grundris-
ilustra à perfeição o caráter do processo de trabalho especificamente capitalis- seano. Esta parece ser uma visão bastante disseminada, sendo a análise das

ta conforme Marx, para Ruy Fausto ele somente se ajustaria a um momento forças produtivas realizada por Marx nos Grundrisse uma referência funda-

parcial da análise de Marx, qual seja, o da grande indústria, encontrado em O mental para o entendimento do atual momento histórico, C0l110 o demonstra o
Capital, não se ajustando ao outro momento (.ttJ. análise, o da pós-grande indús- amplo uso que dela fazem Antonio Negri e Maurizio Lazzarato em seus esfor-
tria, encontrado nos Grundrisse. A segunda parte da proposta de Ruy Fausto é ços para a caracterização do trabalho em nossos dias (NEGRI & LAZZARATO,
para nós totalmente correta, com a adaptação de que, para nós, o taylorismo- 2001) Também nesse caso, a "colagem" dos Grundrisse à História se dá por
fordismo não se ajusta à proposição genérica de Marx acerca da produção sob força da superação de uma fase inteiramente caracterizada pelo fordismo. Para
a égide da máquina. Já a primeira parte, relativa ao ajustamento grande indús- nós, teria ocorrido na verdade uma abrupta mudança de rota dos segmentos
tria / taylorisrno-fordisrno, é de compreensão bastante exigente. Parece-nos tayloristas-fordistas em direção ao caminho brilhante das forças produtivas
que o caminho para tanto está na homologia entre a cooperação simples de capitalistas:
máquinas vista por Marx em O Capital, responsável pelo seu recuo teórico o revolucionamento ocasionado pela aplicação da microeletrônica nos
quanto à abolição do trabalho, e a linha de montagemfordista. Nos dois ca- processos industriais é de caráter parcial, com efeitos concentrados na metal-
sos, se teria a eternização do trabalho alienado. No primeiro, se teria efetiva- mecânica; sua conseqüência será a de trazer essa indústria para o leito da
autornação, no qualjá caminham há muito tempo ramos industriais tecno-
mente, como característica eterna, a subordinação material do trabalho ao ca-
logicamente mais avançados. (MORAES NETO, 1986, p.39)
pital. No segundo, se teria tal subordinação como aparência, posta pelo caminhar
da esteira transportadora. Talvez esteja nessa hornologia também a explicação A concorrência inter-capitalista à escala mundial e as possibilidades aber-
para o caminho teórico de Coriat, com a diferença de que, para este, o desvio tas pelo conhecimento científico estão deslocando a fração (nada despre-
zível) 'smithiana/bravermaniana' [ou seja, taylorista-fordista] em direção
provocado pela cooperação simples de máquinas em Marx caracterizaria a obra
ao leito comum da automação, ou melhor, ao leito teórico marxista. Numa
deste como um todo, enquanto para Ruy Fausto caracterizaria apenas o Marx terrível ironia, a História faz com que, justamente num momento de crise
de O Capital. aguda das experiências socialistas, nada soe mais atual para as sociedades
A partir das colocações acima, seria então lícito afirmar que a emergên- capitalistas avançadas do que as seguintes palavras de Marx: 'Desde que o
trabalho, na sua forma imediata, deixa de ser a fonte principal da riqueza,
cia histórica do taylorismo-fordismo teria exacerbado os efeitos do desvio
o tempo de trabalho deixa e deve deixar de ser a sua medida, e o valor de
analítico de Marx. Caso o século XX tivesse caminhado amplamente pelo troca deixa portanto também de ser a medida do valor de uso. O sobretra-
"leito da auto mação", tal como se verificou para os casos da indústria têxtil e balho das grandes massas deixou de ser a condição do desenvolvimento dá
de fluxo contínuo, então o desvio analítico de Marx cão teria tido qualquer riqueza geral, tal como o não-trabalho de alguns deixou de ser a condição
do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano.' (MARX, 1978,
desdobramento teórico, e muito provavelmente teria sido desconsiderado, em
p.228). (MORAES NETO, 1995, p.74)
benefício do "caminho brilhante" das forças produtivas capitalistas. Todavia,
o "desvio mediocrizante" do taylorismo-fordismo, extremamente importante Seja como for, os Grundrisse estão de agora em diante inteiramente "co-
pelo peso relativo dos segmentos que aí caminharam no séculoXX, produziu, lados" à História, o que, conceitualmente, para o caso específico dos processos
por hornologia, um engate com o desvio de Marx. de produção, representa um "fim da História": não é possível superar a máqui-
Vejamos finalmente a questão do ajuste dos Grundrisse ao século XXI. na. Como resultado desse movimento verifica-se a exacerbação da tão famosa
Para tanto, iremos, para efeito de organização da exposição, considerar o re- contradição posta por Marx entre as forças produtivas e as relações de produ-
sultado das transformações tecnológicas ocorridas ao longo das duas últimas ção capitalistas. Isso tem gerado, como é usual em períodos ele transição (e
décadas do século XX como caracterizando as forças produtivas do século XXI. tomo este termo emprestado de Eleutério Prado), extrema dificuldade teórica,
,H,'/r\' TCIY/Ol' .- . ao'-' .li'GY('a~
Ford: '\' . rprodutivos em discussão. S~U \\lU!o:
coisa bastante bem ilustrada pelas a!lúlic,C:s de Negá (NEGRI & HARDT, 2001: -------_._- . ~,..{..... ~.'. ..,
Brastliei!sc, j 9t;9
NEGRI & LAZZARAfO, 200i) Parei os objetivos deste texto, todavia, já cum-
. Automacão e trabalho: Marx igual a Adam Srnith? Estudos Econômicos,
pridos segundo nosso ponto de vista, vale apenas lembrar que as forças produ- • --l-P-E--P-EA-TJSP, São Paulo, voL25, n. 1, 1995
tivas capitalistas estão historicamente inteiramente grundrissizudas tendo ao
seu lado os escombros
criticar a História
do chamado socialismo
por falta de criatividadel
real. Realmente, não se pode
- -- , Marx e o processo de trabalho no final do século, Pesquisa & Debate,
PUCSP, vol.I l,n.2, 2000
. O percurso teórico da "abolição do trabalho" (ou da superação da "an-
--(r-ú-st-i-a-smithiana")
b • ,
em Marx: avanços e recuo. Revista da Sociedade Brasileira
Abstract de Economia Politica, Rio de Janeiro, n.14, 2004

The aim of this paper is to understand how Marx's analysis of the capitalist NEGRI, A. & LAZZARATO, M. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de
productive forces in Grundrisse can constitute a fundamental reference to the study 01' subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001
the productive forces at present, which are the result of huge recent changes. For that, NEGRl, A. & HARDT, M. Império, Rio de Janeiro - São Paulo, Editora Record, 2001
the following issues are discussed: analysis of Grundrisse in relation to its historical
PRADO, Eleutério. Pós-grande indústria: trabalho imaterial e [atichismo. Anais do
moment (middle of 19th century); diíferences between the labor process analysis in
VIlI Encontro Nacional de Economia Política, Florianópolis, se, 2003
Grundrisse and in Capital; nature 01' the producti ve forces in the 20th century (process
industry and Taylorism-Fordism) anel its degree of adjustment to Grundrisse; nature 01' ROSDOLSKY, Roman. Genesis y estructura de EI Capital de Marx. México: Sigla
the revolutionary process observed at the end of the 20th century: productive forces in Veintiuno Editores, 1985
the 21st century and its "adhesion" to Grundrisse. STONE, Katheri ne. The Origins of Job Structures in the Steel Industry. In: ED WARDS,
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