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Normalidade e Caos: o papel limitado da comunicação na organização social de

Ensaio sobre a Cegueira – o rádio como elemento partilha do sensível e


instauração do comum

Introdução:

Neste trabalho tenho a pretensão de discutir os trechos de Ensaio sobre a Lucidez em


que aparece de forma mais evidente a figura do rádio como elemento de partilha de
informações e sensibilidade pelos personagens que compõem o grupo de sete cegos no
romance. A ideia é estabelecer a importância da figura do rádio, enquanto esteve
presente no romance, de um espaço para a instauração de uma base comum e um elo
com o Real tal qual os cegos antes o conheciam.

Os autores que subsidiarão a análise são Durkheim e Merton para analisar o contexto
caótico em que a sociedade se viu envolvida na obra de Saramago. Tendo ênfase nas
passagens em que os personagens ouvem e conversam sobre o rádio usaremos as
proposições de Ranciére e Habermas sobre partilha do sensível, dissensos, instauração
de senso-comum, entre outros conceitos que estes autores trazem e que acreditamos ter
consonância com as figuras que a narrativa saramaguiana evoca na construção de seu
romance

*****

“E se nós fossemos todos cegos?”, perguntou-se Saramago certo dia durante um


almoço. A resposta que de súbito lhe veio foi que, na verdade, “nós somos todos cegos”.
Então, segundo o autor português, é desta reflexão muito simples que nasce o livro
[Ensaio sobre a cegueira]. “(AGUILERA, 2009, p. 00).

“Um motorista parado no semáforo, subitamente descobre que está cego”


(SARAMAGO, 2004, p.00). Assim inicia a narrativa da epidemia da cegueira branca
que inexplicavelmente vai atingir quase toda aquela cidade e será desencadeadora do
mais absoluto caos e barbárie que aquela gente jamais imaginara ser capaz de produzir.
Nisto está a proposição central da obra de Saramago que, no íntimo, quis atingir a nós,
leitores, e com essa história causar tanto sofrimento quanto possível, ou tanto quanto
causara a ele escreve-la. Para que refletíssemos, nas palavras dele por ocasião do
lançamento deste “livro brutal e violento” em 200X, sobre a nossa condição de
essencialmente maus enquanto seres humanos, e termos a coragem de reconhecermos
em nós a ausência de bondade. O que se segue a cena inicial do primeiro episódio de
cegueira repentina é uma sucessão de acontecimentos semelhantes que vão caracterizar
o início da epidemia da cegueira desconhecida, branca como um mar de leite. Entram
em cena para tentar conter o alastramento do mal branco os agentes do governo, que não
pestanejam muito em decidir por impor um isolamento em quarentena aos primeiros
infectados. É neste cenário do isolamento que emerge da obra de Saramago os discursos
de sujeitos que buscam lugar e voz para resistir em meio ao cenário caótico e de
medidas de exceção por parte dos governantes. Trata-se dos personagens centrais da
obra, o grupo de sete cegos, a saber: a mulher do médico, o médico, a rapariga xxxx, o
rapazinho estrábico, o velho da venda preta o primeiro cego e sua mulher. Os eventos
que antecedem a ida do médico oftalmologista para o isolamento e de sua esposa são
centrais para o entendimento do romance, pois neles se revela que a mulher do médico
não estava cega, mas decide acompanhar o marido rumo ao desconhecido que era
aquele isolamento, a fim de ajudá-lo, já que este se encontrava, de fato, acometido da
cegueira.

No entanto, a força da epidemia não diminui com as ações do governo, pelo contrário a
epidemia continua a se alastrar e com isso as condições provisórias do isolamento
transforma-o num universo dramaticamente caótico em que a desorganização
generalizada dá espaço ao perigo de vida. É o que a teoria social com Durkheim (0000.
P.00) e Merton e chamaria de estado de anomia. Para estes sociólogos

Mas é então que entra em cena um outro elemento sob o qual Saramago pode ter
desenvolvido o encadeamento de suas personagens e que encontra eco nas discussões
sobre

em Ensaio sobre a Cegueira, o rádio, que o cego da venda preta consegue levar para
dentro do manicômio onde ficaram segregados os primeiros acometidos da cegueira
branca por ordem dos governantes que posteriormente também seriam acometidos do
mesmo mal, aparece como único elo dos cegos com o real que se desfaz rapidamente
tanto pelo fato de o aparelho ser a pilha quanto porque os locutores ficaram todos eles
também cegos;
[...] perguntar quem é que conhece aqui histórias que queira contar ao
serão, histórias, fábulas, anedotas, tanto faz, imagine-se a sorte que seria
saber alguém a Bíblia de cor, repetíamos tudo desde a criação do
mundo, o importante é que nos ouçamos uns aos outros, pena não haver
um rádio, a música sempre foi uma grande distração, e í amo s
acompanhando as notícias, por exemplo, se se descobrisse a cura da
nossa doença, a alegria que não seria aqui. (SARAMAGO, 2004, p.109)

Então o velho, como para retribuir o acolhimento, anunciou, Tenho um


rádio, Um rádio, exclamou a rapariga dos óculos escuros batendo as
palmas, música, que bom, Sim, mas é um rádio pequeno, de pilhas, e as
pilhas não duram sempre, lembrou o velho, Não me diga que vamos ter
de ficar aqui para sempre, disse o primeiro cego, Para sempre, não, para
sempre é sempre demasiado tempo, Dará para ouvir as notícias,
observou o médico, E um bocadinho de música, insistiu a rapariga dos
óculos escuros, Nem todos gostariam das mesmas músicas, mas todos
estamos com certeza interessados em saber como estão as coisas lá fora,
o melhor é poupar o rádio, Também acho, disse o velho da venda preta.
Tirou o pequeno aparelho do bolso exterior do casaco e ligou-o. Pôs-se
à procura das estações emissoras, mas a sua mão, ainda pouco segura,
perdia facilmente o ajuste do comprimento de onda, ao princípio não se
ouviram mais que ruídos intermitentes, fragmentos de músicas e de
palavras, enfim a mão ganhou firmeza, a música tornou-se reconhecível,
Deixe estar só um bocadinho, pediu a rapariga dos óculos escuros, as
palavras ganharam clareza, Não são notícias, disse a mulher do médico,
e depois, como uma ideia que lhe tivesse ocorrido de repente, Que horas
serão isto, perguntou, mas já sabia que ninguém poderia responder-lhe.
O ponteiro de sintonização continuava a extrair ruídos da pequena
caixa, depois fixou-se, era uma canção, uma canção sem importância,
mas os cegos foram-se aproximando devagar, não se empurravam,
paravam logo que sentiam uma presença à sua frente e ali se deixavam
ficar, a ouvir, com os olhos muito abertos na direcção da voz que
cantava, alguns choravam, como provavelmente só os cegos podem
chorar, as lágrimas correndo simplesmente, como de uma fonte. A
canção chegou ao fim, o locutor disse, Atenção, ao terceiro sinal serão
quatro horas. Uma das cegas perguntou, rindo, Da tarde, ou da
madrugada, e foi como se o riso lhe doesse. Disfarçadamente, a mulher
do médico acertou o relógio e deu-lhe corda, as quatro eram as da tarde,
ainda que, na verdade, a um relógio tanto lhe faz, vai da uma às doze, o
mais são ideias dos humanos. (SARAMAGO, 2004, p.119-120)
Perante o alarme social, já a ponto de tomar o freio nos dentes, as
autondades promoveram à pressa reuniões médicas, sobretudo de
oftalmologistas e neurologistas. Por cause do tempo que fatalmente
levaria a organizer, não se chegou a convocar o congresso que alguns
preconizavam, mas em compensação não faltaram os colóquios, os
seminários, as mesas-redondas, uns abertos ao público, outros
celebrados à porta fechada. O efeito conju,aado da patente inutilidade
dos debates e os caves de algumas cegueiras súbitas ocorridas em meio
das sessões, com o orador a gritar, Estou cego, estou cego, levaram os
jornais, a rádio e a televisão, quase todos, a deixarem de ocupar-se de
tads iniciativas, exceptuando-se o discreto e a todos os t~'tulos louvável
comportamento de certos órgãos de comunicação que, vivendo à custa
de sensacionalismos de todo o tipo, das graças e desgraças alheias, não
estavam dispostos a perder nenhuma ocasião que aparecesse de relater
ao vivo, com a dramaticidade que a situação justificava, a cegueira
súbita, por exemplo, de um catedrático de oftalmologia. (SARAMAGO,
2004, p.124)
O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas,
já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o
medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico,
Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Então
perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos se r rao precisos para
razer uma cegueira. Ninguém Ihe soube responder. A rapariga dos
óculos escuros pediu-lhe que ligasse o rádio, talvez dessem notícias.
Deram-nas mais tarde, entretanto estiveram a ouvir um pouco de
música. Em certa altura apareceram à porta da camarata uns quantos
cegos, um deles disse, Que pena não ter trazido a guitarra. As notícias
não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve a formação de
um governo de unidade e salvação nacional. (SARAMAGO, 2004,
p.30)
O velho da venda preta tinha entendido que o rádio portátil, tanto pela
fragilidade da sua estrutura como pela informação conhecida sobre o
tempo da sua vida útil, se encontrava excluido da lista dos valores que
tinham de entregar como pagamento da comida, considerando que o
funcionamento do aparelho dependia, em primeiro lugar, de ter ou não
ter pilhas dentro, e, em segundo lugar, do tempo que elas durassem.
Pelo som roufenho das vozes que ainda saíam da pequena caixa, era
evidente que não haveria muito mais a esperar dela. Decidiu por isso o
velho da venda preta não repetir as audições gerais, e também porque os
cegos da terceira camarata lado esquerdo poderiam aparecer por ali com
uma opinião diferente, não por causa do valor material do aparelho,
praticamente nulo a curto prazo, como ficou demonstrado, mas pelo seu
valor de uso no imediato, que esse é sem dúvida altíssimo, sem falar na
hipótese plausível de haver pilhas lá onde pelo menos há uma pistola.
Disse pois o velho da venda preta que passaria a escutar as notícias
debaixo da manta da cama, com a cabeça toda tapada, e que se houvesse
alguma novidade interessante, logo avisaria. A rapariga dos óculos
escuros ainda Ihe pediu que a deixasse ouvir de vez em quando um
bocadinho de música, Só para não perder a lembrança, justificou, mas
ele foi inflexível, dizia que o importante era saber o que se ia passando
lá fora, quem quisesse música que a ouvisse dentro da sua própria
cabeça, para alguma coisa boa nos haverá de servir a memória. Tinha
razão o velho da venda preta, a música do rádio ~49 já arranhava como
só uma má recordação é capaz de arra nhar, por isso mantinha-o no
mmimo volume sonoro possí vel, à espera de que as notícias
chegassem. Então, espevitava um pouco o som e apurava o ouvido para
não perder uma sílaba. Depois, com palavras suas, resumia as
informações e transmitia-as aos vizinhos próximos. Assim, de cama em
cama, as notícias iam lentamente dando a volta à camarata, desfiguradas
de cada vez que passavam de um receptor ao receptor seguinte,
diminuída ou agravada desta maneira a importancia d.~` informações,
consoante o grau pessoal de optimismo e pessimismo próprio de cada
emissor. Até que chegou o momento em que as palavras se calaram e o
ve lho da venda preta se achou sem ter que dizer. E não foi por que o
rádio se tivesse avariado ou as pilhas esgotado, a experiência da vida e
das vidas tem cabalmente demonstra do que ao tempo não há quem o
governe, parecia esta maquineta que pouco iria durar e afinal alguém
teve de calar-se antes dela. Ao longo de todo este primeiro dia vivido
sob a pata dos cegos malvados, o velho da venda preta tinha estado a
ouvir e a passar notícias, rebatendo por sua conta a óbvia falsidade dos
optimistas vaticínios oficiais, e agora, já adiantada a noite, com a cabeça
enfim fora da manta, aplicava o ouvido à ronqueira em que a débil
alimentação eléctrica do rádio transformava a voz do locutor, quando de
súbito o ouviu gritar, Estou cego, depois o ruído de algo chocando
violentamente contra o microfone, uma sequência precipitada de
rumores confusos, exclamações, e de repente o silêncio. A única estação
de rádio que ali dentro o aparelho tinha podido captar calara-se. Durante
muito tem po ainda o velho da venda preta manteve o ouvido pegado à
caixa agora inerte, como se estivesse à espera do regresso da voz e da
continuação do noticiário. Porém, adivinhava, sabia que ela não tornaria
mais. O mal-branco não cegara apenas o locutor. Como um rastilho,
atingira rápida e sucessivamente quantos se encontravam na estação.
Então o velho da venda preta deixou cair o rádio no chão. Os cegos
malvados, se viessem aí ao cheiro de jóias escondidas, en 150
contrariam confirmada a razão, se em tal coisa haviam pensado, por que
não tinham, eles próprios, incluído os rádios portáteis na lista dos
objectos de valor. O velho da venda preta puxou a manta para cima da
cabeça para poder chorar à vontade. (SARAMAGO, 2004, p. 148-150)

O humanismo e o pensamento ilustrado constituem dois dos pilares


fundamentais da concepção saramaguiana do mundo. Racionalista
impenitente e materialista militante, ele elaborou um verdadeiro
programa de pedagogia social com o propósito de mostrar os estragos
derivados da irracionalidade. Para o escritor, “tudo está na cabeça”. Ele
atribuía à atividade cerebral a essência e os acidentes da condição
humana. Sobre o fracasso da razão, seu uso invertido — dirigido contra
a vida — e seus efeitos devastadores nos indivíduos e na coletividade,
ele construiria, em seu romance Ensaio sobre a cegueira, a grande
alegoria de uma cidade assolada por uma insólita cegueira branca que
desperta a indignidade e a sevícia no comportamento das pessoas,
provocando o caos geral.
Saramago demonstrou um autêntico ecumenismo em defesa do
raciocínio como faculdade capaz de modular as relações e de organizar
a convivência. Propugnava uma racionalidade tutelada pela ética —
como garantia diante de práticas desviadas —, além de fertilizá-la pela
sensibilidade, afastando-se assim de qualquer mecanicismo descarnado.
Cartesiano nos desenvolvimentos dedutivos e analíticos característicos
da sua ficção — costumava aludir a uma imaginação, em seu caso,
moldada pelo intelecto —, mas também pelo funcionamento de seu
pensamento discursivo, o autor de Todos os nomes considerava que a
instalação do homem no erro, na agressão e na injustiça teria sua raiz na
irracionalidade. Daí sua percepção do mundo como resultado da
barbárie ou, o que é a mesma coisa, do emprego perverso da faculdade
de entendimento, agitada contra os outros para violentá-los ou tirar
vantagem sem reparar no dano que causa.
Ante tal estado de coisas, embora arraigado em seu peculiar ceticismo,
Saramago não via outra alternativa senão advogar tanto pela defesa dos
direitos humanos — entendidos como marco de um eventual projeto de
regeneração política, social e humana —, como pelo fortalecimento
garantidor da racionalidade. A confiança na razão acionava sua
maquinaria de leitura pessoal do mundo, a partir da qual se
substanciaram, em grande medida, sua obra literária e seu pensamento
sociopolítico. (AGUILERA, 2009, p.00)

Estamos destruindo o planeta e o egoísmo de cada geração não a deixa se preocupar em


perguntar como viverão os que vierem depois. A única coisa que importa é o triunfo do
presente. É isso que eu chamo de “cegueira da razão”. (SARAMAGO, 1998, apud
AGUILERA, 2009, p. 00)

A relação entre política e estética vem sendo discutida por Jacques Rancière desde a
publicação de La Mésentente (1995, 2000, p.5-6), em que destaca o desentendimento, e
não o entendimento, como característica essencial de uma base estética da política. Para
Rancière, essa dimensão está na possibilidade de uma constante reconfiguração das
relações entre fazer, dizer e ver que circunscrevem o “ser em comum”. Ele afirma que o
que constitui a base estética da política são as “lutas para transpor a barreira entre
linguagens e mundos, na reivindicação de acesso à linguagem comum e ao discurso na
comunidade, provocando uma ruptura das leis naturais de gravitação dos corpos
sociais”.

E é justamente esse entendimento do mundo comum como cenário e espaço de


“partilha” e resistência – ao mesmo tempo fratura e união dos sujeitos2 -, que pode nos
ajudar a perceber como os aspectos estéticos das interações comunicativas e das
experiências dos sujeitos (a poiésis, a passibilidade, a criatividade, as táticas de
questionamento e sobrevivência à opressão, à narrativa de si, etc.) configuram o cerne
de uma atividade política calcada em uma constante tensão entre o dissenso e o
consenso; a racionalidade normativa e a racionalidade estético-expressiva.

Em Teoria da Ação Comunicativa, Habermas aponta que a função primordial da


linguagem dentro das ações comunicativas é a busca recíproca pelo entendimento. Ele
ressalta que o sucesso da ação comunicativa está no fato de os interlocutores
pertencerem a uma comunidade ideal de discurso, embasada em um mesmo mundo da
vida, que “abrange a totalidade das interpretações pressupostas pelos seus membros
como um conhecimento de fundo” (1984, p. 13). O pressuposto de um pré-
entendimento compartilhado faz com que a comunidade habermasiana seja percebida
como consensual, erigida sobre a definição cooperativa de planos de ação “no horizonte
de um mundo da vida compartilhado e na base de interpretações comuns da situação
interativa” (HABERMAS, 2002, p. 72). Na perspectiva habermasiana, a inserção de um
sujeito em uma comunidade linguística ideal é definida por sua capacidade de colocar-
se em um entendimento preliminar com seus parceiros de interlocução e por sua
capacidade de usar racionalmente a linguagem para compreender um tema ou problema.
No contexto da ação comunicativa, contam somente aquelas pessoas que são
consideradas como responsáveis, que, enquanto membros de uma comunidade de
comunicação podem orientar suas ações para a produção de demandas de validade
intersubjetivamente reconhecidas (HABERMAS, 1984, p. 14) (grifos meus). A
igualdade de status entre os interlocutores parece estar pressuposta e, assim, não haveria
a necessidade de colocá-la à prova ou de verificá-la. As formas dissensuais do agir
humano parecem não ter muito espaço nesse tipo de comunidade de comunicação, que
mais aparenta buscar a união do que as distâncias, a reafirmação da suposta naturalidade
de um chamado “mundo comum” que a inserção de figuras polêmicas de divisão

A estética, na visão de Rancière (2008), é o que revela a presença de mundos


dissensuais dentro de mundos consensuais, evidenciando as tensões que constituem a
política como forma de experiência. Assim, a estética como base da política só se dá a
ver porque o político sempre está presente em questões ligadas a divisões e fronteiras, a
uma partilha (que envolve, ao mesmo tempo, divisão e compartilhamento) da realidade
social em formas discursivas de percepção que impõem limites à comunicabilidade da
experiência daqueles que têm sua palavra excluída das formas autorizadas de discurso.
Nesse sentido, Rancière afirma que a ideia de “partilha do sensível” tem origem no
pensamento de Foucault, especificamente em suas considerações a respeito de como as
coisas podem se tornar visíveis, dizíveis e capazes de serem pensadas. As ideias de
Foucault a respeito das camadas do saber, da subjetivação e do poder presentes na
ordem do discurso4 inspiram Rancière a pensar em “um sistema de evidências sensíveis
que dá a ver, ao mesmo tempo, a existência de um comum e as divisões que nele
definem os lugares e partes respectivas” (RANCIÈRE, 2000, p. 12). De acordo com
Rancière, o desafio às ordens discursivas dominantes se constitui em (e, ao mesmo
tempo, constitui) uma comunidade política que interage não para alcançar o
entendimento, mas para tornar evidente um desacordo sobre a partilha de tempos,
espaços e vozes

dade de partilha é uma comunidade de experimentação e de tentativas de fazer com que


realidades antes não imaginadas ou não associadas ao que é tido como “comum”
passem a aparecer e a serem percebidas, mas sem serem incorporadas, subsumidas,
transfiguradas ou “normalizadas”. Rancière (2004a) caracteriza a comunidade de
partilha como uma “comunidade de intervalos” em que “o ser em comum” é definido
pelos vínculos que ligam os sujeitos sem tirá-los do registro da separação. Em suma, a
comunidade de partilha (ou intervalar) é o âmbito em que se reconfigura o “comum de
uma comunidade”, isto é, em que se questionam “as coisas que uma comunidade
considera que deveriam ser observadas, e os sujeitos adequados que deveriam observá-
las, para julgá-las e decidir acerca delas” (RANCIÈRE, 2000, p. 12). O comum de uma
comunidade é menos aquilo que é “próprio” de um grupo ou de uma cultura e mais o
lugar de exposição e aparecimento dos intervalos e das brechas que permitem
“introduzir em uma comunidade sujeitos e objetos novos, tornar visível aquilo que não
o era e tornar audíveis, como interlocutores, aqueles que eram percebidos somente como
animais em algazarra” (RANCIÈRE, 2004b, p. 38). Eis aqui uma questão central: a
comunidade de partilha opõe um espaço consensual a um espaço polêmico, ela faz
aparecer sujeitos que até então não eram contados ou considerados como interlocutores,
traz à experiência sensível vozes, corpos e testemunhos que até então não eram vistos
como dignos de respeito e estima.

A comunidade de partilha é uma comunidade de experimentação e de tentativas de fazer


com que realidades antes não imaginadas ou não associadas ao que é tido como
“comum” passem a aparecer e a serem percebidas, mas sem serem incorporadas,
subsumidas, transfiguradas ou “normalizadas”. Rancière (2004a) caracteriza a
comunidade de partilha como uma “comunidade de intervalos” em que “o ser em
comum” é definido pelos vínculos que ligam os sujeitos sem tirá-los do registro da
separação. Em suma, a comunidade de partilha (ou intervalar) é o âmbito em que se
reconfigura o “comum de uma comunidade”, isto é, em que se questionam “as coisas
que uma comunidade considera que deveriam ser observadas, e os sujeitos adequados
que deveriam observá-las, para julgá-las e decidir acerca delas” (RANCIÈRE, 2000, p.
12). O comum de uma comunidade é menos aquilo que é “próprio” de um grupo ou de
uma cultura e mais o lugar de exposição e aparecimento dos intervalos e das brechas
que permitem “introduzir em uma comunidade sujeitos e objetos novos, tornar visível
aquilo que não o era e tornar audíveis, como interlocutores, aqueles que eram
percebidos somente como animais em algazarra” (RANCIÈRE, 2004b, p. 38). Eis aqui
uma questão central: a comunidade de partilha opõe um espaço consensual a um espaço
polêmico, ela faz aparecer sujeitos que até então não eram contados ou considerados
como interlocutores, traz à experiência sensível vozes, corpos e testemunhos que até
então não eram vistos como dignos de respeito e estima. Sob esse aspecto, a
comunidade de partilha envolve a produção de um público que é definido pela
manifestação de um “dano”, pela percepção e nomeação de uma injustiça, de uma
desigualdade, relacionados ao momento da constituição de um “comum”. Enquanto
Habermas parte de uma ideia de comunidade que se estrutura em torno do pressuposto
da igualdade, Rancière (2004a) argumenta que a igualdade não é nunca o ponto de
partida, mas objeto constante de uma verificação. Para Rancière, formas de agir e de ser
do sujeito que tendem mais ao desentendimento permitem instaurar uma comunidade
política de partilha na qual a igualdade não é vista como lei, princípio ou norma dada,
mas o exercício constante de regular a proximidade e a distância entre seus membros.
De acordo com Rancière, o surgimento de uma comunidade de partilha permite pensar:
a) as condições de aparição, aproximação e distanciamento de sujeitos e de seus atos
específicos; b) como esses sujeitos produzem acontecimentos que demonstram a
existência de um “dano” e, ao mesmo tempo, os retiram “do submundo de ruídos
obscuros e os inserem no mundo do sentido e da visibilidade, afirmando-se como
sujeitos de razão e de discurso, capazes de contrapor razões e de construir suas ações
como uma demonstração de que compartilham um mundo comum” (RANCIÈRE,
2004a, p. 90-91). Rancière (1995, p. 13) questiona a estrutura de um “mundo comum”
sustentado pela racionalidade, universalidade e consenso, para revelar que os sujeitos
não se apresentam prontos como interlocutores de um debate, conscientes de sua fala e
de seus posicio- MARQUES, Ângela. Comunicação, estética e política: a partilha do
sensível promovida pelo dissenso, pela resistência e pela comunidade. Revista Galáxia,
São Paulo, n. 22, p. 25-39, dez. 2011. 35 namentos em uma ordem discursiva. Por isso,
ele afirma que a existência daqueles que não contam para a ação comunicativa nos
permite perceber que “os casos de desentendimento são aqueles em que a disputa sobre
o que quer dizer ‘falar’ constitui a própria racionalidade da situação de palavra”. Uma
comunidade política requer, portanto, ações comunicativas, estéticas e políticas que
permitam a constituição de situações enunciativas nas quais os sujeitos possam
questionar uma forma consensual de registro e imposição de um “comum” e, ao mesmo
tempo, ter a possibilidade de criar oposições e justaposições entre as experiências que,
por estarem presentes nas fronteiras que dividem e conectam os sujeitos, permitem tanto
aproximar quanto separar um mundo comum de outro

O diálogo político revela um duplo papel do exercício da razão: a criação de formas de


partilha e de divisão. Para Rancière (1995, p. 71), esse diálogo não pode se perder na
polarização entre “as luzes da racionalidade comunicativa e as trevas da violência
originária ou da diferença irredutível”. Não se trata, portanto, de ter que escolher entre,
de um lado, a troca argumentativa entre parceiros que colocam em discussão seus
interesses e normas e, de outro, a violência do irracional. A proposta de Rancière
consiste em mostrar que a discussão política não pode ficar restrita à racionalidade da
troca de argumentos voltada para a definição e esclarecimento acerca dos interesses dos
participantes. A política precisa contemplar também a relação que se estabelece entre os
interlocutores, além da configuração da própria situação de interlocução. Segundo ele,
não é somente o conteúdo dos proferimentos e a atribuição de validade que lhes é feita
ou não que está em jogo na discussão política, mas também a própria consideração dos
interlocutores enquanto tais (1995, p. 79). Interessa-lhe, assim, uma “cena na qual se
colocam em jogo a igualdade ou a desigualdade dos parceiros de conflito enquanto seres
falantes” (1995, p. 81). Ao refletir sobre essa mesma questão, Slavoj Žižek (2004)
menciona que, para Rancière, não importam apenas as demandas e argumentos
formulados pelos sujeitos, mas o modo como são ouvidos e reconhecidos como
parceiros iguais no debate (e como eles mesmos se reconhecem como tais). E, nesse
sentido, Rancière não só se aproxima da teoria do reconhecimento social desenvolvida
por Axel Honneth (1995), como nos oferece conceitualizações consistentes de como
devemos continuar a resistir. A política, tal como a entende Rancière, se configuraria:
[...] junto com a emergência de um grupo que, apesar de não ocupar nenhum lugar fixo
no edifício social (ou de ocupar um espaço subordinado), demanda ser incluído na
esfera pública, ser ouvido em pé de igualdade diante das regras impostas por uma
oligarquia ou aristocracia, isto é, reconhecidos como parceiros no diálogo político e no
exercício do poder. Como Rancière enfatiza, contra Habermas, a luta política não é
apenas um debate entre múltiplos interesses, mas, simultaneamente, uma luta para que
uma voz seja ouvida e reconhecida como uma voz de um parceiro legítimo (ŽIŽEK,
2004, p. 69-70). MARQUES, Ângela. Comunicação, estética e política: a partilha do
sensível promovida pelo dissenso, pela resistência e pela comunidade. Revista Galáxia,
São Paulo, n. 22, p. 25-39, dez. 2011. 37 Diante desse quadro, a subjetivação e a
resistência falam não apenas da afirmação de uma identidade (menos ainda de uma
identidade imposta) ou do “assumir uma posição de sujeito”, mas do constante
tensionamento entre dois mundos distintos: um mundo que parece ser o mundo comum
partilhado pela maioria (e expresso nas narrativas da grande mídia) e um mundo
invisível, inaudível e imperceptível que se localiza dentro desse mundo comum, mas
dificilmente consegue fazer o seu aparecimento. E, quando consegue, muito
frequentemente utiliza a arte, uma vez que ela transforma nosso modo de imaginar,
configurando a construção de uma nova relação entre a aparência e a realidade, o visível
e o seu significado, o singular e o comum, produzindo modificações nos contextos
vividos, ou ainda situações apropriadas ao engajamento de novas formas de relações
sociais. “A arte é política antes de mais nada pela maneira como configura um
sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou
dentro, face a ou no meio de…” (RANCIÈRE, 2010, p. 59). A escrita para Rancière
(1996) é, assim como a arte, uma das formas de resistir a uma partilha do sensível que
estabelece uma ordem hierárquica, uma relação desigual entre os modos do fazer, os
modos do ser e os do dizer; entre a distribuição dos corpos de acordo com suas
atribuições e finalidades e a circulação do sentido; entre a ordem do visível e a do
dizível. De maneira muito próxima, Didi-Huberman (2011) descreve as palavras de
resistência como “palavras vaga-lume”, ou seja, histórias astutas, irônicas e sedutoras
em sua criatividade e lampejos. Aqueles que não fazem parte da partilha do comum que
institui uma comunidade são como os vaga-lumes descritos por Didi-Huberman (2011,
p. 42), que aparecem no espaço “seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no
improvável, das aberturas, dos possíveis, dos apesar de tudo”. Para ele (e talvez também
para Rancière) para perceber como se estruturam as partilhas dissensuais do sensível
seria preciso apreender e analisar as “linguagens do povo, gestos, rostos, tudo isso que,
por contraste, desenha zonas ou redes de sobrevivências no lugar mesmo onde se
declaram sua extraterritorialidade, sua marginalização, sua resistência, sua vocação para
a revolta.” (2011, p. 72). Essa proposta me parece relevante para estudar formas
enunciativas que impõem limites à comunicabilidade da experiência daqueles que têm
sua palavra excluída das formas autorizadas de discurso.

REFERENCIAS:

MARQUES, Ângela. Comunicação, estética e política: a partilha do sensível promovida pelo


dissenso, pela resistência e pela comunidade. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 25-39, dez.
2011.

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