Você está na página 1de 23

AS PRIMEIRAS COMEMORAÇÕES EM HONRA DE SÃO JOÃO BATISTA

NA CIDADE DE AREIA BRANCA/SE: FESTA E MEMÓRIA.

Liana Matos Araújo1

1. O Batalhão 1º de São João

As celebrações em honra a São João geralmente aconteciam na véspera do seu


dia, 23 de junho, com preparação de fogueiras, mastros e fogos, com o propósito de
acordá-lo e avisá-lo de que seu dia estava chegando2. Entretanto, de acordo com a
tradição católica, o santo dorme profundamente durante o dia que lhe é consagrado, e
assim deve ser, caso contrário, atraído pelo clarão da fogueira e dos fogos, desceria do
céu e o mundo acabaria pelo fogo (CASCUDO, s/d, p.477). Uma vez que o santo deve
permanecer dormindo, o objetivo do ritual é, então, acordar os devotos para a festa
(AMORIM, 2002, p.126). Em Areia Branca, as celebrações iniciavam-se no dia 31 de
maio à meia-noite. O santo era saudado por meio de cantoria e louvor, que anunciavam
a chegada de seu mês. Nessa noite realizava-se o ritual festivo denominado Batalhão 1º
de São João.
Esta seção abordará as primeiras manifestações dessa expressão cultural, no
município de Areia Branca/SE, a partir da década de 50, com base nos relatos orais
recolhidos entre os moradores do município. Tem-se como objetivo analisar a relação
entre o processo de folclorização dessa manifestação e o processo de modernização das
festas juninas na cidade. Trabalha-se com a hipótese de que a construção do novo
modelo festivo que ficou conhecido, na cidade e fora dela, como “São João de Paz e
Amor”, preservou elementos dessa tradição e assumiu características de uma tradição
inventada.

1
Graduada em Ciências Sociais Licenciatura/Bacharelado pela Universidade Federal de Sergipe;
especialização em Didática do Ensino Superior e Mestranda em Antropologia pela UFS com participação
no Grupo de estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas. E-mail: liana.matos2@gmail.com
2
Num passado recente, os preparativos e as celebrações características do ciclo junino concentravam-se
na véspera. Sobre a importância da véspera nesse ciclo, ver MORAES FILHO, 1999.
Nas primeiras décadas do século XX, o Batalhão 1º de São João era organizado
na noite do dia 31 de maio e assumia a forma de cortejo que percorria a cidade. A
concentração das pessoas ocorria na casa de Dona Filhinha3, no povoado hoje chamado
Ponto Chique, que ficava a alguns quilômetros da Igreja São João Batista. A fundação
do Batalhão é atribuída a ela e ao senhor Manoel Preto4. Tratava-se de uma senhora
carismática e muito respeitada entre os participantes e simpatizantes do festejo, grande
devota do santo padroeiro da cidade.
De acordo com Alba Zaluar (1983), nas festas de santo, a figura que mais se
destaca tanto na autoridade, no controle da multidão, quanto na legitimidade que o povo
concede à festa, é o festeiro. Sua função é de coordenar as ações do grupo e estabelecer
não somente a sequência ritual, mas também a ordem. Dona Filhinha comandava a
comunidade na organização do Batalhão e cedia a própria casa como ponto de encontro
para iniciar o cortejo, aspecto ressaltado no depoimento de um ex-integrante:

[O Batalhão] Saía do sítio de Dona Filhinha, da fundadora; ela era


uma pessoa doce, que vivia isolada nesse sítio, mas ela era devota do senhor
São João e tinha essa devoção de abrir os festejos de São João, então se fazia
isso (Zé Dil, 71 anos)5.

Fig. 1: Dona Filhinha ao centro, com xale e candeeiro na cabeça, cercada de companheiros.
Foto: Acervo de Zé Dil, década de 50.

3
O nome original dessa senhora não era conhecido dos entrevistados, nem foi localizado em estudos
sobre a região.
4
O nome completo desse senhor também não era conhecido dos entrevistados, nem foi encontrado em
estudos sobre a região.
5
Entrevista realizada em 14 de julho de 2007.
Nesse contexto, a festa de São João, enquanto festa do interior, assim como os
ritos festivos e comemorativos das populações australianas estudados por Durkheim
(1989), favorece a criação de vínculos sociais, fortalece os laços sociais existentes e
contribui para afirmar tradições. A população acredita na eficácia do rito. No caso de
Areia Branca, acreditava-se que o ritual de acordar São João anualmente, na passagem
do dia 31 de maio para o dia 1o de junho, garantia a proteção do padroeiro durante todo
o ano.
A festa também era o momento de agradecer a chuva que garantia boa colheita.
No Brasil, mais especificamente no Nordeste, o milho é plantado no mês de março,
quando começam as primeiras chuvas, ou seja, três meses antes de colhê-lo. Por isso, os
componentes do cortejo do Batalhão traziam consigo ramos de diversos tipos de planta,
como a cana-de-açúcar e o milho, para agradecer o início da colheita. Alba Zaluar
(1983), em estudo sobre as festas do catolicismo popular, considera que as festas de
santo podem ser vistas como ritos de passagem associados às fases de produção
agrícola:

A festa era vista como tempo de exceção; de alegria, de fartura, de


movimento de pagar promessa ao santo e ajustar as contas com ele. As festas
de santo marcavam fases de transição do ciclo de produção agrícola. Eram
“ritos de passagem” nos quais apareciam ressaltados os aspectos opostos à
vida diária comum e em que era simbolicamente enfatizada a comunidade
rural de devotos do santo.

A memória coletiva dos moradores mais antigos da cidade de Areia Branca


revela a realização desse ritual desde a época em que o atual município era uma
localidade rural sem infraestrutura, povoado de Riachuelo. Como a energia elétrica não
havia chegado, eram os candeeiros que iluminavam a cidade e as casas. Os participantes
do cortejo começavam a se aglomerar, a se organizar embalados pelos versos que
trovadores declamavam em louvor a São João. Assim o Batalhão percorria as ruas da
cidade parcamente iluminadas e sem pavimentação. Geralmente chovia na noite do dia
31 de maio e o cortejo enfrentava a chuva e a lama.
Os participantes, de pés descalços, usavam roupas simples do cotidiano, o que
mostra o caráter interiorano e regional do Batalhão 1º de São João, como descreveu Dil
Calazans, mais conhecido na cidade como Zé Dil. Ele nasceu em Areia Branca em
1937, participou do festejo desde a época de Dona Filhinha e ficou à frente do Batalhão
por alguns anos. É um senhor respeitado pelos moradores por ser conhecedor da cultura
local, e muito requisitado quando se fala de folclore no município de Areia Branca. Diz
ele:
Só ia pra lá mesmo quem gostava, e eu me lembro, chegava
em casa e jogava a roupa no mato, era um negócio assim, a noite toda,
chuva com tudo, com suor, é um negócio de louco, só pra quem gosta
e tem espírito.

Os fogos anunciavam a saída do cortejo, que fazia sempre o mesmo trajeto a


partir da casa de Dona Filhinha.
À medida que o Batalhão percorria as vias da cidade, várias pessoas que o
esperavam se juntavam a ele e o acompanhavam até a Igreja São João Batista. Esse
percurso durava cerca de uma hora e trinta minutos, porque à meia-noite tinha-se que
estar em frente à Igreja matriz. A chegada do cortejo era saudada com fogos em clima
de contentamento. Abria-se a Igreja e muitos louvavam a São João. Como lembra Zé
Dil:

Às vezes nós soltávamos lá três ou quatro foguetes anunciando que


já estávamos lá. Nós saíamos de lá, dez a dez e meia, precisamente, aquilo
era que a gente sabia que gastava uma hora até a Igreja, e não era de se
correr, era de andar e parar. Então o percurso era mais ou menos uma hora e
meia, porque meia-noite, cinco pra meia-noite, nós tínhamos que estar na
Igreja.

O cortejo saía, a animação tomava conta de todos. Iam cantando, dançando,


não corriam, caminhavam. No final, ele chegava a reunir 200 a 300 pessoas. O percurso
era feito com tranquilidade, ninguém se comportava de maneira violenta, todos se
respeitavam, brincavam de forma harmoniosa.
O cortejo, que tinha a finalidade de celebrar São João, possuía igualmente uma
dimensão lúdica. Essa combinação de aspectos religiosos e profanos era um dos fatores
que motivava a existência do Batalhão. Nele as pessoas se desligavam de suas
atribuições cotidianas e, por meio das diversas manifestações no cortejo, a exemplo da
cantoria representada nos versos improvisados, elas vivenciavam o caráter sagrado e o
profano simultaneamente.

É por isso que a própria idéia de cerimônia religiosa de alguma


importância desperta naturalmente a idéia de festa. Inversamente, toda festa,
quando, por suas origens, é puramente leiga, apresenta determinadas
características de cerimônia religiosa, pois, em todos os casos, tem como
efeito aproximar os indivíduos, colocar em movimento as massas e suscitar
assim estado de efervescência, às vezes até de delírio que não deixa de ter
parentesco com o estado religioso. O homem é transportado fora de si
mesmo, distraído de suas ocupações e de suas preocupações ordinárias.
Assim, de ambas as partes, observam-se as mesmas manifestações: gritos,
cantos, música, movimentos violentos, danças, procura de excitantes que
restaurem o nível vital etc. (DURKHEIM, 1989, p. 456).

O grande cortejo passava e parava em várias casas, embalado pelos versos que
pediam entrada na residência para cantar e comer. Quando entravam na casa de algum
morador, este, se tivesse condições econômicas, oferecia às pessoas um banquete, para
que pudessem degustar algumas iguarias locais ou quaisquer alimentos como, por
exemplo, bolacha, bolo, pé-de-moleque. Para acompanhar a comida, a bebida mais
presente era batida de maracujá e de jenipapo. Em seguida, tiravam-se versos em
retribuição ao banquete doado.
A festa é um momento de exaltação máxima de um sentimento, da vida social
(CALLOIS, s/d). É ela que possibilita ao social uma renovação. O Batalhão
proporcionava aos brincantes um elemento rejuvenescedor para celebrar o São João.
Dessa maneira a população de Areia Branca vivia durante o ciclo junino um período de
comunhão, de consagração de sentimentos, trocas e reciprocidades, reconhecendo na
partilha de alimentos sua principal expressão, por meio da qual eram criadas e
reforçadas novas e antigas redes de sociabilidades. Todos encontravam uma forma de
participar direta ou indiretamente do cortejo, como relata a senhora Maria da Graça
Andrade Costa6, a Dona Dadaça, de 70 anos, moradora da cidade desde o ano de 1937.
Ela particularmente nunca integrou o Batalhão, porque seus pais a educaram de maneira
rígida e a proibiram de participar. Porém o acompanhava de dentro de casa:

6
Entrevista realizada em 03 de julho de 2007.
Eles saíam de lá, chegava na casa de seu Nilo, seu Nilo abria a porta
e servia eles com o que tinha ali, então serviam o que tinham e ali iam
reunindo, a cada rua que passava ia chegando mais gente, então rodava a
pequena Areia Branca toda.

Era uma manifestação comunitária marcada pelo compromisso dos participantes


de se organizar pelo prazer de fazer parte do evento e andar espontaneamente no
cortejo. Como não havia patrocinadores da festa, cada pessoa oferecia o possível; não
havia arrecadação de fundos para realizá-la. Não se tinha uma definição das casas em
que se iria parar; algumas recepcionavam o Batalhão com comidas típicas, outras
ofereciam bebidas e um espaço para brincar o famoso brinquedo de roda, que eram
versos criados e recitados espontaneamente à medida que os participantes iam entrando
nas casas e degustando as comidas.
As bodegas7 eram paradas obrigatórias, como, por exemplo, a de Pedro Elias, no
povoado Ponto Chique. Lenici Barbosa Santos8, conhecida como Dona Santinha,
residente em Areia Branca desde seu nascimento e participante de presença garantida
para cantar o brinquedo de roda, disse que cantava assim: “Iaiá, é hoje que a palha da
cana voa, Iaiá, é hoje que ela tem de avoá”. Em seguida, trovava outro verso: “Eu me
chamo é Santinha, que vocês ouvem falar, arranca pau pela seca (?), no céu não deixa
sinal”. E assim seguia a cantoria em cada casa em que paravam. Em todo o cortejo as
músicas sempre tinham como base o seguinte refrão:

“Primeiro de São João


Morena, venha ver,
Nós hoje aqui vadeia até o dia amanhecer.”

Esses versos foram muito relembrados por ela e todos os outros entrevistados.
Eles ditavam a melodia a ser seguida por todas as outras criações espontâneas. Assim,
depois de percorrer todas as ruas, de trovar em cada casa visitada, o Batalhão chegava
então à frente da Igreja. As portas se abriam e se fazia a louvação ao santo padroeiro.
Nesse momento, os fogos eram mais uma vez parte integrante do cenário ao marcar a

7
Pequena venda de secos e molhados muito comum nas cidades do interior.
8
Entrevista realizada em 14 de maio de 2008.
chegada da comunidade ao seu destino. Nem todo mundo participava do louvor,
somente quem era devoto ou se dispunha a orar. Houve atuações do Batalhão em que,
além de instrumentos como porca, mais conhecida como cuíca, e violão, utilizava-se
uma zabumba para louvar o santo dentro da Igreja.
E assim continuaram durante anos essas comemorações com a liderança de Dona
Filhinha. Segundo o informante Zé Dil, na década de 70 a fundadora do Batalhão falece,
porém as comemorações não param e quem fica à sua frente é Dona Maria Isabel
Barbosa, conhecida como Maria de Zé de Sabino. Com a ajuda de Zé Dil e moradores
da cidade, ela continua a obra iniciada por Dona Filhinha, com o cortejo a sair de sua
própria casa, nas proximidades do povoado de que saía antes, o Ponto Chique. Alguns
entrevistados, como Dona Dadaça, enfatizam o período da transição como um momento
crítico devido à mudança da liderança.

[A nova líder] não tinha aquela devoção de pelejar com aquele povo,
sempre tinha aqueles atritos entre eles de noite, bebiam demais, e com Dona
Filhinha o povo respeitava e não tinha esse negócio de se embebedar, não.
Todo mundo tomava, todo mundo comia, mas não tinha esse negócio de
bebedeira demais.

Em toda tradição firmada existem normas que determinam a posição e o grau de


autoridade do seu líder, festeiro. Se essas regras e posições não forem respeitadas, ou
até lembradas, a tradição corre o risco de entrar em processo de declínio. A figura do
festeiro ou daquele que exerce a liderança do grupo é de fundamental importância para a
organização e o sucesso da festa. Ressalta Zaluar (1983, p.72):

Ao festeiro cabia controlar a multidão que acorresse às festas, tendo


o direito de censurar, admoestar quem não tivesse um comportamento
adequado para a ocasião e resolver as questões surgidas entre os devotos.

Anos depois, Dona Maria deixa o Estado e o senhor Zé Dil assume a


organização. Em entrevista, ele fala sobre as questões financeiras, como ele e outros
integrantes ajudavam na compra e na preparação de alimentos:
Eu comprava 2 kg de milho, dez cocos, 5 kg de açúcar e mandava
pra casa de Lero e Dona Santinha (esposa de seu Lero) com outras pessoas
que gostavam. Comadre Bai, uma série de senhoras faziam duas panelas de
mugunzá, mugunzá eram pras mulheres, porque nós ia passar o quê, de sete,
oito horas a gente começava a dançar brinquedo de roda, brinquedo de roda,
nada de baile, era brinquedo de roda, cordão do mioró, ói era um inferno, era
a coisa mais gostosa do mundo, eu não gosto nem de tá vendo isso, porque é
uma recordação, e saber que hoje não se tem condição de, mesmo que eu
queira, a gente não encontra.

Mais tarde, já no final dos anos 80 e início dos anos 90, a participação da
comunidade no Batalhão começa a decrescer. Em 1982, o então prefeito José Franco,
que fica no poder até 1986, implementa um novo modelo festivo de caráter mais urbano,
comercial e massivo, o “São João de Paz e Amor”. A nova festividade se realizou entre
os dias 23 e 29 de junho, ainda sem grandes repercussões, concentrada num único
espaço. Para esse empreendimento, ele contou com o auxílio de Ascendino Sousa Filho,
que se tornou, posteriormente, prefeito local, por meio da promoção da festa. Essa
gestão representou o processo de urbanização dos festejos juninos na cidade de Areia
Branca. Em 1990, foi criada a abertura dos festejos juninos no dia 31 de maio,
justamente no mesmo dia em que acontecia, num passado recente, o cortejo do Batalhão
1º de São João. Tem início um complexo jogo de permanências e mudanças capitaneado
pela prefeitura da cidade em parceria com o governo do Estado.
A implantação do novo modelo festivo não foi ignorada pela população da
cidade, em especial pelos antigos participantes do 1º de São João, que questionavam as
novas iniciativas. Mudanças dessa natureza são acompanhadas por um sentimento de
perda, a exemplo da interpretação de Dona Josefa Inocência9:

Como se tivesse dois eventos na cidade. Não conseguiram fazer uma


junção da coisa pra seguir, sabe. Cada um ficou fazendo uma coisa separada
da outra, sabe, porque geralmente quando chegou, começou o forró, começou
aquele negócio todo e o povo não dava mais valor ao brinquedo de roda.

A administração pública passa a ver Areia Branca e sua celebração ao padroeiro


como uma fonte de lucro. Há momentos em que o Batalhão não consegue um número
suficiente de participantes, numa comunidade já desmotivada para tal celebração e

9
Entrevista realizada em 02 de julho de 2007.
empolgada com as novas formas de comemoração. Segundo Zé Dil, esse novo quadro
sociocultural tem como consequência o esvaziamento seguido de suspensão das
atividades do Batalhão por alguns anos, mais precisamente entre 1990 a 1994.
Em 1992 verifica-se um uso político do ritual: o Batalhão passa a ser chamado
“Batalhão da minhoca”. A mudança na denominação se deu porque o prefeito
Ascendino Sousa Filho, durante um comício em 1992, identificou-se como “filho da
terra”, sublinhando estrategicamente suas raízes e seu compromisso com a cidade. Seus
opositores, para enfraquecer o impacto do discurso, passaram a se referir ao prefeito
como “minhoca”. Em resposta, ele mandou confeccionar e distribuir, durante os festejos
juninos, camisetas com a logomarca da prefeitura e o nome “Batalhão da minhoca”.
O Batalhão foi introduzindo novas normas de organização, novo padrão de
diversão, nova forma de louvar o santo padroeiro, com local específico e trajes
diferentes. Em 2007, ele foi organizado por Ará, um marcador de quadrilha local, que
tenta manter viva essa tradição. O Batalhão ainda atua, mas com uma quantidade de
pessoas bem menor, sem os batuques à base da cuíca, da sanfona e do violão.
Na visão dos moradores que vivenciaram essa celebração a partir da década de
50, o Batalhão está presente tanto na memória dos participantes quanto na memória da
cidade. Para Zé Dil, o Batalhão é uma lembrança:

Vou morrer e vou levar, sei o quanto isso me traz recordação o 1º de


São João, o São João todo. Significa tudo e vejo quanto isso seria proveitoso
se revitalizar um folclore desse de maneira diferente e lógico.

Para Dona Dadaça, que foi privada de participar do cortejo, mas que assistia a
tudo com muito entusiasmo, aquela brincadeira “significava alegria, vontade de viver,
vontade de brincar”. Mesmo sem entender os significados devocionais relativos ao
louvor do santo, para ela o Batalhão representava alegria.
Dona Santinha afirma ter “saudades daquele tempo.” Já Dona Josefa Inocência,
que dele não participava, sublinha o compromisso com a tradição que a população
expressava:

Era assim bem interessante, você via, vamos supor, o compromisso


que cada um tinha com a coisa. Com aquilo ali e a gente via a organização
também que eu gostava de ver, aquele povo que espontaneamente ia andando
atrás um do outro e fazendo a caminhada deles.

Diante do exposto, pode-se afirmar que o Batalhão faz parte da história cultural
de Areia Branca, está vivo na memória de muitas pessoas que de algum modo
vivenciaram essa forma de celebração. A memória da festa permite que a população
local tome consciência de sua identidade, das suas formas características de celebrar
através do tempo (SOUZA, 1994). Quem viveu essa época sabe identificar a
importância do evento para a cultura local.

2. Os arraiais e as quadrilhas10

Antes da criação do novo modelo de festa junina, prosseguiam os preparativos


para o dia 23 de junho, o momento de festejar a véspera do dia padroeiro. Tudo
começava pelos ensaios das quadrilhas no mês de maio, ou seja, um mês antes do dia
tão esperado. Eles se realizavam no mercado, onde hoje é o centro cultural. As
apresentações das quadrilhas nos arraiais da cidade iam desde a véspera de São João até
o dia 29 de junho, quando se comemora São Pedro.
Depois de iniciados os ensaios e passado o 1º de São João, o foco das
comemorações se voltava para as noites reservadas ao louvor e à adoração desse santo,
ou seja, às novenas. A Igreja se responsabilizava pelos nove dias que antecediam o dia
do padroeiro. Assim, designava-se para cada noite um grupo de pessoas que cuidava de
organizar o ritual, ornamentar o local do culto e recepcionar os simpatizantes. Uma
noite da novena ficava a cargo de alguns moradores e setores do município como, por
exemplo, as escolas municipais, que organizavam as atividades e eram também os
homenageados da noite. A prefeitura comandava outra noite financiando fogos, flores e
compondo também a sequência do ritual da missa. Dessa maneira, fazia-se uma
programação das nove noites com seus respectivos organizadores e homenageados.

10
A análise dessas comemorações em Areia Branca compreende as décadas de 60,70 e 80, período de
transição de povoado para município. Será apresentada uma noção geral com base nas entrevistas para se
compreender como a população celebrava o padroeiro antes da apropriação dos festejos juninos da cidade
pela prefeitura.
Chegado o dia 23 de junho, desde cedo os moradores se mobilizavam para
arrumar os arraiais, enfeitar a cidade, produzir as comidas típicas, preparar as fogueiras
e se prepararem para celebrar o nascimento de João Batista na passagem para o dia 24.
Como não havia financiamento da prefeitura, a festa era realizada pela comunidade, era
compromisso assumido pelos simpatizantes. No dia 24 de junho, ápice da festa,
geralmente se realizava uma quermesse para arrecadar fundos para a Igreja. Havia
diferentes tipos de barracas como a de comidas típicas e a de brincadeiras infantis.
O binômio casa-rua abordado por Roberto da Matta (1997) ajuda a compreender
tanto a divisão dos papéis sociais de homens e mulheres como a divisão sexual do
trabalho que se processavam nesses espaços. Na casa, iniciava-se a reunião familiar com
orações e preparação das comidas típicas. As atividades se estendiam pelas ruas, que se
transformavam em grandes arraiais, com dança e animação. No Brasil, a rua é, por
excelência, o espaço das grandes festas populares. A seguir, passa-se a descrever a
dinâmica dessas comemorações.
O primeiro passo era recolher matéria-prima para erguer os arraiais e arrumar a
cidade. Para isso, homens e mulheres, em especial os que participavam das quadrilhas,
adentravam a mata, geralmente de carroça, para retirar taboca, pedaços de madeira para
construir os arraiais. Outro material de grande importância era a palha de coqueiro,
utilizada para cobrir o local em que as quadrilhas iriam se apresentar e também para
enfeitar a cidade, fazendo portais de entrada para recepcionar os brincantes da festa e os
turistas.
Ainda pela manhã, à medida que os arraiais eram montados, a ornamentação
para eles também ia sendo confeccionada. Cortavam-se papéis coloridos em forma de
bandeirolas. Estendia-se um cordão de um lado a outro da pequena e única rua calçada,
a rua Heráclito Diniz, para que outras pessoas pudessem materializar o enfeite do
arraial, ou seja, pregar as bandeirolas no cordão. Quando já estava pronto, não somente
o arraial era enfeitado, mas também a rua referida acima. E com essa divisão de tarefas
a festa começava a se concretizar.
Entretanto, como já se mencionou, a festa iniciava em casa com a preparação de
comidas típicas como a pamonha, a canjica, o pé-de-moleque. Logo ao cair da noite as
fogueiras eram acesas, alguns mastros fincados nas portas das casas e toda família se
reunia para soltar fogos e brincar.
As adivinhações e simpatias estavam sempre presentes no ritual de acordar São
João naquela noite de véspera. Segundo a informante Zoraide Mota de Oliveira11, de 51
anos, uma das pessoas que estavam à frente da organização e ocupou função de noiva na
quadrilha, as simpatias eram um dos momentos mais esperados. Ela revela em sua fala
que uma dessas simpatias, por coincidência ou não, deu certo.

Tinham as fogueiras, as simpatias a gente colocava as bacias de água


com as letras enroladinhas de A a Z, pra ver qual era a letra que abria. Uma
vez eu fiz, por coincidência foi um G que abriu mesmo, eu casei com
Givaldo. Tinha também a faca virgem na bananeira. A gente fazia essas
simpatias, mas no meu nunca apareceu letra nenhuma não na faca.

A cada fogueira acesa, a cada mastro erguido e todos os fogos anunciando a São
João que estava chegando o seu dia, a cidade se tornava um verdadeiro arraial ao ar
livre. Assim, depois do momento familiar, as pessoas já estavam preparadas e ansiosas
para dançar quadrilha nos arraiais, como descreve um participante da quadrilha, José
Aldemir de Almeida12, de 45 anos, que também esteve à frente da organização:

Quando era a noite de São João mesmo, que era o dia 23 e 24, que
era o dia-chave mesmo, aí pegava fogo a cidade. Todo mundo botava sua
fogueirinha na porta, foguetes, bombas, coisas de crianças. De noite tinha as
apresentações de quadrilha, um namoro como a pega que tinha.

A partir desse momento a movimentação se concentrava nos arraiais, que


desenhavam o mapa da festa. Segundo Chianca (2006, p.104), o arraial tem um
significado maior do que um espaço erguido e provisório para se dançar forró e brincar
quadrilha. Ele engloba um conceito mais simbólico, representado pelas dinâmicas
ocorridas no momento da festa, ou seja, é “a experiência festiva em si”. O termo
possibilita a criação de uma rede de sociabilidades. Uma dinâmica perceptível nos
arraiais da cidade de Areia Branca. Era nesse local físico e simbólico que os brincantes

11
Entrevista realizada em 28 de maio de 2009.
12
Entrevista realizada em 07 de junho de 2009.
teciam suas relações sociais e se reuniam para celebrar São João por meio da música e
da dança.
De acordo com os informantes, existiam três arraiais e cada um possuía suas
respectivas quadrilhas. É importante mencionar que sua existência e criação não foram
bem esclarecidas pelos informantes, e, de acordo com eles, esses arraiais atuaram
simultaneamente em alguns anos. O mais antigo era organizado pelo senhor José Reis,
conhecido por Zé Reis, erguido na rua Heráclito Diniz. Outro estava localizado onde
hoje é o centro da cidade, onde está a Paróquia São João Batista, na praça Joviniano
Freire de Oliveira. E um terceiro se erguia na casa do senhor Fausto, localizada na rua
Heráclito Diniz, onde se situa a praça da Capela Nossa Senhora da Conceição.
Assim, segundo os entrevistados, com a estrutura já montada a animação ficava
por conta das quadrilhas e do sanfoneiro. À noite começava a programação. Conforme a
informante e também organizadora das quadrilhas do arraial do centro, Adalci Almeida
Melo13, de 52 anos, existiam três quadrilhas nesse arraial: a das crianças, nomeada de
xodó, a dos adultos, Flor de Lis, e a dos adolescentes, de cuja denominação ela não se
recorda, mas lembra que era o nome de uma novela da época. As quadrilhas ensaiavam
e se apresentavam com o auxílio da sanfona tocada por uma moradora da cidade
chamada Nadja.

Fig. 2 - Arraial do centro da cidade: participantes da quadrilha. Da esquerda para a direita, José Araújo
dos Santos Filho; esquerda da noiva, Otávio Santos Cunha; direita da noiva, Zoraide Oliveira Mota e
Genival Araújo dos Santos.
Foto: Acervo de Luzimary Dias dos Santos

13
Entrevista realizada em 17 de maio de 2009.
Logo após as apresentações, o público se deleitava com as músicas nordestinas.
Contratava-se um sanfoneiro, às vezes pago pelo prefeito, única ajuda recebida, para
divertir os brincantes e o forró ia até o outro dia pela manhã, como descreve o
participante dessa quadrilha, José Aldemir de Almeida:

Depois que acabava a quadrilha dos adultos aí o forró quebrava. Aí


tinha o sanfoneiro, ficava até onde ele aguentava, até onde ele suportava, na
hora que ele não suportava mais, parava e aí botava som de radiola, pegava
os discos Luiz Gonzaga, Trio Nordestino e botava pra tocar e aí ia; daqui a
pouco o sanfoneiro tava descansado, desligava a radiola e botava o
sanfoneiro pra tocar de novo até onde ele aguentar.

Assim os cidadãos de Areia Branca celebravam seu padroeiro, por meio de


confraternizações iniciadas em casa, de arraiais nas ruas e da dança marcada pela
sanfona nas quadrilhas.
Recém-chegado à cidade na década de 60, o Sr. Fausto começa a organizar,
juntamente com sua esposa, Dona Neném, um arraial e respectivas quadrilhas nas
proximidades da Capela Nossa Senhora da Conceição. O arraial era montado em sua
própria casa, onde também ensaiavam as quadrilhas. Uma informante, Maria da
Conceição Mendonça Costa14, de 45 anos, que brincava nessa quadrilha, descreve a
alegria de participar de um evento passado a cada geração e dá exemplo de possíveis
namoros que surgiram na época desses ensaios. Um deles, da filha do Sr. Fausto, Ana,
com Valdemir, que resultou em casamento:

Eu era criança ainda. Como eu gostava muito dos festejos juninos, a


tradição dos meus pais, aí a gente começou a organizar essas quadrilhas. Foi
na época que chegou aqui o pai de Ana de Valdemir, e organizaram uma
quadrilha e me chamaram pra participar. Comecei brincando, comecei como
participante da quadrilha, eu participava da quadrilha da mãe de Ana, de dona
Neném. Tinha uma tradição, era uma quadrilha famosa em Areia Branca, na
época quem marcava era Vieira Matos, eu sempre brincava com ele. Mas
assim, começou sempre de criança, no arraial do finado Fausto e de dona
Neném, aí brincava Ana com Valdemir, começaram a namorar na quadrilha.

14
Entrevista realizada em 17 de maio de 2009.
Fig. 3 - O Sr. Fausto (de pé) em sua residência (s/d)
Foto: Acervo de José Oswaldo Pereira

Cada arraial possuía sua especificidade, cada um ensaiava suas próprias


quadrilhas e as apresentações aconteciam nos próprios arraiais. Existia, segundo os
participantes, uma concorrência, mas não havia prêmio. Era concorrência por amor à
quadrilha, a seu arraial, mas sem discussão ou comissão julgadora para escolher a
melhor quadrilha, somente uma brincadeira.
De acordo com o relato dessas atividades, percebe-se o grau de solidariedade e
aliança presentes nessas comemorações em honra do padroeiro. O São João, vivido de
maneira tão singular, com particularidades e características tão interessantes, revela ser
uma que festa funciona como um canal de comunicação, uma ocasião privilegiada para
expressar valores, crenças, sentimentos e emoções da comunidade. Uma festa que
guarda consigo até os dias atuais a condição de fato social total, nos termos de Marcel
Mauss (1974), na medida em que, por seu intermédio, a totalidade da sociedade e de
suas instituições é acionada.
Os festejos juninos em Areia Branca estabeleciam uma grande rede de
solidariedade que evidenciava não somente a troca material entre as pessoas, mas
também o valor simbólico contido nos bens trocados.

3. O casamento caipira

A segunda parte desse ciclo de festas ocorria no dia de São Pedro, 29 de junho.
Em Areia Branca, festejava-se esse santo com uma cavalgada seguida do casamento
caipira. Tudo começava cedo no dia 29, com a ornamentação das carroças e dos
cavalos. Era quase o dia inteiro dedicado a isso e, por volta das quinze horas, saíam
cavaleiros e personagens em cortejo pelas ruas e povoados circunvizinhos. Cada arraial
possuía seu casamento caipira. O cortejo do arraial do centro saía do mercado, do local
de ensaio das quadrilhas, em direção ao Ponto Chique e a Manilha15.
No percurso iam as carroças acompanhadas das vozes das damas e cavaleiros.
Como descreve um participante da quadrilha, Everaldo José de Souza16, que também
exerceu o papel de padre:
Dia 29 carroças enfeitadas, cavalos e meio mundo de gente nas ruas.
Saía da praça Joviniano, do arraial, quando era do período de Zé Reis, saía da
casa de Zé Reis, rodava a cidade e voltava pra lá, continuava a festa. Aqui, a
gente saía da praça aqui, ia pro Ponto Chique, voltava a Lagoa Seca e voltava
pro arraial e quando chegava ia pro forró, forró até de manhã no outro dia.

Alguns usavam alto-falante, megafone. Fazia-se o percurso e na volta acontecia


o casamento caipira, na praça Joviniano Freire de Oliveira. Na época não havia palco.
Sobre um caminhão grande fazia-se o palco, abria-se um lado da carroceria para as
pessoas assistirem. Os integrantes da encenação do casamento, que também
participavam das quadrilhas, subiam ao palco improvisado: eram os pais da noiva, o
porta-aliança, o noivo, a noiva (geralmente estava grávida) e o padre. Segundo o
informante José Aldemir dos Santos, o coronel, pai da noiva, estava sempre com a
espingarda e o cachimbo na boca para mostrar a rudeza e o domínio de uma figura
importante no sertão.

15
Povoados circunvizinhos da cidade de Areia Branca.
16
Entrevista realizada em 04 de junho de 2009.
Fig. 4 – Casamento em cima do caminhão (s/d) Fig. 5 - A hora do sim dos noivos (s/d)
Fotos: Acervo de Genival Araújo dos Santos

Um detalhe interessante citado por Everaldo José de Souza foi a descrição da


hóstia utilizada no ritual encenado. Ele descreve ainda a indumentária do padre e
comenta sobre a bebida presente na celebração:

Tinha o casamento. Entre os quadrilheiros a gente já tinha o noivo, a


noiva, o padre, eu fui padre algumas vezes. A hóstia que a gente celebrava
era um bolachão deste tamanho, dava mais de meio metro de diâmetro. A
roupa do padre era uma roupa colonial que existia antigamente, que parecia
com a roupa do padre mesmo, a gente colocava uma corda amarrada cheia de
nó e amarrava pra dizer que era o padre, e meio mundo de cachaça.

Dessa forma acontecia o casamento em meio a muita diversão. Depois de


encenado o casamento caipira, as quadrilhas se apresentavam e o forró se tornava o
centro das atenções. E assim também ocorria no arraial do Sr. Fausto. Só mudava o
cortejo. As pessoas saíam da casa dele e também circulavam pelas pequenas ruas da
cidade e os povoados circunvizinhos; ao retornarem, encenavam o casamento na frente
da casa de onde saíram.
Fig. 6 - Maria da Conceição Mendonça Costa, integrante da quadrilha do Sr. Fausto e noiva do casamento
caipira. (s/d)
Foto: Acervo de José Oswaldo Pereira

O casamento caipira se realizava também em meio a muita risada e bagunça. Um


relato da informante Gicelma Dias17, de 50 anos, que não participava das quadrilhas,
somente assistia, descreve a encenação:

Era uma bagaçada só. Eles saíam enfeitados, enfeitavam os cavalos.


Saía daqui de seu Fausto, o casamento tinha o padre, naquela época era mais
enfeitado do que agora. O casamento fazia em cima de um carro, no meio da
rua. Faziam o casamento. Aquelas palavras engraçadas.

Era uma festa sem maldade, muito gostosa, como muitos a descrevem. E para
cada pessoa um sentimento de recordação diferenciado. Para uns saudades, para outros
uma evolução cultural. Para Aldaci Almeida Melo18, que esteve à frente da organização
das quadrilhas, “era um tempo assim, pra gente era maravilhoso, mulher, porque vinha o
pessoal e o forró amanhecia, amanhecia o dia, vinha o pessoal de Itabaiana e aqui ficava
cheio de carro e dançando a gente amanhecia o dia”.
Relata Maria da Conceição Mendonça Costa, que começou a brincar quando
criança a convite da esposa do Sr. Fausto:
Dá uma lembrança muito boa, era assim, vir pra aqui pra ensaiar
quadrilha era como você hoje ir pro shopping. Era meio que uma emoção que
você tinha na época, uma emoção de você paquerar, de você dançar, de você
se divertir, mesmo porque a dança é legal pra o espírito, pra mente, pro corpo
e aí, sim, era tudo muito legal. E o legal também quando terminava a

17
Entrevista realizada em 06 de junho de 2009.
18
Entrevista realizada em 17 de maio de 2009.
quadrilha, a gente já se reunia pra marcar o próximo ensaio mesmo que a
gente passava assim dois meses antes pra ensaiar a quadrilha, era um ensaio
que pra gente era uma festa, já se arrumava pra ensaiar.

As frases eram ditas, na entrevista, com muita emoção, também por Everaldo
José de Souza, que a todo o tempo gesticulava e se comovia ao recordar esse período da
vida:
Eu sinto muita saudade porque ao longo dos meus 53 anos eu
presenciei festa em Areia Branca desde os dez, então eu tenho 43 anos de
forró em Areia Branca, conheço um pouco do passado e do presente, dos dois
eu conheço bem.

As poucas palavras de José Ademilton de Almeida19, participante do arraial do


centro, e Gicelma Dias, espectadora do arraial do Sr. Fausto, apresentam as atividades
como tradição da cidade, “uma festa em que todo mundo fica animado pra chegar o dia,
é a tradição da cidade”.
Percebe-se a emoção dos entrevistados como o José Aldemir de Almeida. Ao
acionar a memória e relatar suas lembranças, ele registra de que sente falta. Emoção
percebida a cada olhar cheio de lágrimas, de sentimento, ao recordar a indumentária, as
cores e alegrias:
Do colorido da época, todo mundo de chapéu, chapéu de palha,
camisa estampada, aquela calça que a gente enchia de remendo, remendo
vermelho, botava aqui, botava ali, eu lembro bem disso, dessa coisa toda, da
fantasia do ser humano vestido de caipira. Sinto muita saudade da quadrilha,
do forró, daquele forró pé-de-serra, gostoso mesmo, da zoada da zabumba no
ouvido a gente lembra, a gente sente ainda aquela zoada da zabumba.

Outra entrevista muito emocionante foi a de Maria Suzana dos Santos Sá20 que,
ao encerrá-la, culpou este pesquisador por estar chorando, por lembrar toda uma história
da cidade que é parte integrante da sua própria história; com os olhos cheios de água,
ela diz que tem “vontade de voltar tudo de novo” e relata a época em que viveu o
personagem da noiva. Por um desentendimento com o namorado da vida real, no
momento da quadrilha o personagem do noivo a beijou e, por esse motivo, o namorado
a procurou para reatar o compromisso.

19
Entrevista realizada em 06 de junho de 2009.
20
Entrevista realizada em 07 de junho de 2009.
Para José Araújo dos Santos Filho21, a recordação é do caráter da festa: “Uma
festa familiar, era um encontro de todo mundo de Areia Branca porque todo mundo se
conhecia”. Para sua esposa, Luzimary Dias dos Santos22, era “uma farra, uma folia”. O
sentimento de Zoraide Oliveira Mota, em suas palavras e gestos, é surpreendente:

Sinto muita falta, muita saudade, eu não entendo porque os jovens


não fazem além dessa festa que conhecemos, porque o São João fica mais
humanizado quando se faz com as pessoas do seu grupo. Eu sinto muita falta
desse São João.

Companheiro de Zoraide no elenco do casamento, Otávio Santos Cunha23,


geralmente o padre, relembra as festividades observando que “são muitas lembranças
boas que vêm assim, claro que a gente sente porque era uma brincadeira espontânea, as
pessoas brincavam por amor”.
Assim, a festa é uma solenidade comemorativa, um momento de celebração de
pessoas, imagens ou fatos importantes. É um instante de ruptura com a vida social, com
o cotidiano, que movimenta diversos setores de uma sociedade. Modifica o setor
econômico e possibilita a afirmação de trocas de riquezas ao aproximar diferentes
classes sociais (CAILLOIS, s/d). Ao interromper o cotidiano, ela delimita o momento
de festejar e de burlar as normas da sociedade.
Além disso, ela proporciona aos indivíduos participantes a criação de redes de
sociabilidades ao restabelecer laços (BRANDÃO, 1989). Diversos autores a concebem
como um ato coletivo que permite inversões e subversões, possibilita a produção
coletiva de imagens e objetos e proporciona a construção da vida social de uma
comunidade.
Enquanto ela acontece e se reinventa, produz uma memória mediante a
linguagem e a comunicação. Essa memória faz com que o passado vivenciado perdure
no presente. Dessa maneira, a festa produz uma memória que não é somente aquela que
se tem do evento, uma visão pessoal, individual, mas também aquela que é social e
histórica, uma memória coletiva (SOUZA, 1994). Essas duas memórias mantêm relação

21
Entrevista realizada em 06 de junho de 2009.
22
Entrevista realizada em 06 de junho de 2009.
23
Entrevista realizada em 28 de junho de 2009.
significativa. Com seu auxílio torna-se mais completa a análise de uma festa tida como
tradicional.
Depreende-se do que foi exposto que a festa é um espaço em que a memória
individual encontra-se com a memória coletiva (SOUZA, 1994). A memória individual
é insuficiente para o resgate de lembranças e vivências, sendo necessário ligá-la à
memória coletiva, à evocação dos fatos vividos na coletividade.
As narrativas apresentadas revelam ainda que, para um mesmo evento
vivenciado coletivamente, as pessoas têm recordações diferenciadas, a depender das
suas referências. Percebe-se a importância de se analisar o fenômeno com grupos de
pessoas, pois, ao se reunirem, elas podem lembrar um determinado fato, até sua
sequência e estrutura, à medida que conversam (HALBWACHES, 2006). Dessa forma,
tenta-se resgatar a construção e o significado desses festejos no cenário cultural da
cidade.
Durante as entrevistas, foi comum as pessoas recorrerem às experiências que
partilharam com amigos. Ao falarem sobre momentos do ciclo festivo da cidade,
incluíam a própria participação junto a um grupo de amigos na quadrilha, por exemplo.
Muito comum também nos relatos foi a presença da imagem, sob a forma de fotografias
antigas, para suscitar recordações de acontecimentos e pessoas, levando a descrições e
narrações de grande interesse para o estudo da memória coletiva das festividades. A
evocação dessa memória permite ao indivíduo resgatar no tempo suas raízes e
conscientizar-se de sua identidade.
No decorrer da pesquisa, desde os primeiros contatos até a elaboração deste
artigo, foi possível perceber quanto a manifestação cultural de Areia Branca, o São João
de Paz e Amor, é importante não apenas para a comunidade local, senão também para a
história dos festejos juninos do Estado.
O resgate da memória coletiva do Batalhão 1º de São João possibilitou conhecer
um período dessa história em que as festas tinham caráter mais religioso e comunitário.
Além disso, pôde-se constatar o processo de folclorização do Batalhão à medida que um
novo modelo festivo ia sendo criado: um modelo mais moderno, urbano e comercial,
voltado para o turismo, que assume a forma de um grande espetáculo. Nesse contexto,
os órgãos públicos, a prefeitura municipal e o Governo do Estado investiram
maciçamente na estrutura dos festejos, transformando o forródromo no grande ícone
dessa forma de celebração.
É possível, portanto, concluir que o São João de Paz e Amor de Areia Branca faz
parte da história cultural do Estado de Sergipe. Sua linguagem, seus símbolos, suas
práticas são expressões de um modo de celebrar os santo e a vida. Apresentam aspectos
comuns a outras formas de celebração existentes em várias cidades e municípios da
região Nordeste, e também sinais diacríticos responsáveis pela afirmação de uma
identidade festiva amplamente conhecida como São João de Paz e Amor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, Maria Alice. Os rituais pagãos do ciclo junino. In: BARRETO, José R. Paes
& PEREIRA, Margarida M. de Souza (org). Festejos Juninos: uma tradição nordestina.
Recife: Editora Nova Presença, 2002.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. São Paulo: Papirus, 1989.

CAILLOIS, Roger. O sagrado da transgressão: teoria da festa. In: O homem e o


sagrado. Lisboa: Edições 70, s/d.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Edusp,


1988.

CHIANCA, Luciana de Oliveira. A festa do interior: São João, migração e nostalgia em


Natal no século XX. Natal: EDUFRN, 2006.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na


Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989.

HALBWACHES, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas.
In: Ensaios de sociologia. São Paulo: EPU, 1974.

SOUZA, Marina de Melo e. Parati: A cidade e as festas. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo
popular. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1983.

Você também pode gostar