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Carlos R. S.

Milani

ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS E


CONTESTAÇÃO TRANSNACIONAL NA AMÉRICA LATINA

DOSSIÊ
Carlos R. S. Milani*

Os anos pós-Guerra Fria possibilitam uma renovação do debate latino-americano sobre as


tensões entre meio ambiente, ética e política internacional. Defensores da idéia de que as
relações internacionais emergem exclusivamente da interação entre entidades políticas sobe-
ranas e independentes contrapõem-se aos que sustentam a centralidade na agenda ecopolítica
de muitos outros atores para além do Estado. Ou seja, os princípios da soberania incondicionada
e da não-ingerência – ordenadores tradicionais do sentido das “relações internacionais” – são
questionados pela crescente transnacionalização das reivindicações, por redes e movimentos
ambientalistas, de condutas éticas e responsáveis no campo ambiental. É com base nesses
pressupostos que o presente artigo se estrutura em duas partes: (1) uma discussão sobre o
processo de internacionalização da problemática ambiental e das tensões contemporâneas
entre meio ambiente, ética e política internacional na América Latina; (2) uma análise dos
questionamentos trazidos pelo campo do ambientalismo latino-americano operando no seio da
contestação transnacional do Fórum Social Mundial.
PALAVRAS-CHAVE: ecologia política, movimentos ambientalistas, contestação transnacional, rela-
ções internacionais, América Latina.

INTRODUÇÃO Essa agenda tem sido permeada por uma retórica do


poder dos discursos institucionais (defesa da sobe-
Os primeiros debates mais politizados e crí- rania incondicionada, princípios de não-ingerência,
ticos sobre meio ambiente, na agenda internacio- representação política formal) e pela função de de-
nal, datam do final dos anos 1960 e início dos núncia e monitoramento dos discursos militantes
anos 1970, culminando com o marco histórico que (catástrofes ambientais, acidentes petroquímicos,
representou a celebração da Conferência das Na- expertise ambiental, produção de contra-informação).
ções Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Es- Ambos os discursos marcaram fortemente o início

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tocolmo) em 1972. Antes disso, a representação do processo de internacionalização da problemática
social sobre o problema ambiental era influencia- ambiental.
da, sobretudo, por normas de conservação e pre- A partir dos anos 1980, notadamente no
servação de ecossistemas (mares, subsolos, Antár- que diz respeito a temas relativos a aquecimento
tica, zonas desnuclearizadas) e de proteção de es- global, proteção da camada de ozônio e da
pécies ameaçadas de extinção (aves migratórias, biodiversidade, assim como desflorestamento e
mamíferos aquáticos). A partir de 1972, natureza, desertificação, o meio ambiente se converteu em
ciência e política começaram gradativamente a cons- um tema central na agenda mundial das negocia-
tituir uma agenda comum (Latour, 1999), provo- ções políticas e econômicas. A crise ambiental dei-
cando um diálogo entre a urgência da proteção xou de ser um item setorial da pauta política e
ambiental e a necessidade do desenvolvimento. passou a integrar a agenda mais ampla de seguran-
ça coletiva (Barros-Platiau, 2006; Milani, 1999). No
* Professor de Pós-Graduação da Escola de Administra- período situado entre Estocolmo (1972) e a Confe-
ção da Universidade Federal da Bahia. Pesquisador CNPq
e Coordenador do Laboratório de Análise Política Mun- rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
dial (LABMUNDO). e o Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), con-
Av. Reitor Miguel Calmon, s/n - Vale do Canela. Cep:
40110-903 - Salvador - Bahia - Brasil. cmilani@ufba.br solidou-se o consenso, agora também corroborado

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pela expertise científica, de que as intervenções consciência política, econômica e institucional. Os


humanas sobre a natureza têm sido de tal dimen- movimentos pacifistas e contrários ao uso da ener-
são, que provocam modificações irreversíveis para gia atômica, as denúncias dos efeitos nefastos da
a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas “revolução verde” e do uso de pesticidas
(desde o nível do organismo, populacional, das (agrotóxicos) na agricultura, entre outros aspectos,
comunidades, paisagens, até o nível da biosfera), despertaram o primeiro grito dos atores de protes-
donde o caráter de urgência política de uma ação to da sociedade civil latino-americana. A estrutura
preventiva fundada no princípio ético e político política, em contraposição, foi fortemente instada
da precaução. pelo alarme do Clube de Roma, quando da publi-
Hoje há, portanto, um conhecimento acu- cação do célebre Relatório Meadows (The limits to
mulado e uma consciência mais ampla acerca dos growth) em 1972. Ao introduzir temas relativos à
limites impostos pela natureza, presentes nos dis- ameaça da penúria e à degradação do meio ambi-
cursos e modos de ação política dos atores estatais ente, esse relatório pôde criar o choque político
e operadores não estatais das relações internacio- desejado nos meios institucionais: as dimensões
nais, tanto no plano da ecopolítica mundial quan- ecológicas, econômicas, demográficas e políticas
to no âmbito regional latino-americano. É da da crise corroboraram o surgimento de uma pro-
dialética entre a evolução lenta (porém direcionada) blemática nitidamente global (Andrade; Taravella,
no campo dos ideários, da consciência coletiva e 2008; Caldwell, 1984; Milani, 2000). Na América
das subjetividades, de um lado, e os efeitos mate- Latina, o grito dos movimentos indígenas e dos
rialmente visíveis da crise ambiental (por exem- seringueiros, o surgimento dos movimentos eco-
plo, nas suas relações com a matriz energética, o logistas e dos primeiros partidos verdes, o movi-
modelo econômico, os padrões de consumo, a mento dos atingidos por barragens (MAB), o
geopolítica ou a própria sobrevivência da humani- “boom” das organizações não-governamentais nos
dade), de outro, que resulta a importância cres- anos 1990, bem como as redes anti-alterglobalistas
cente adquirida pelo problema ambiental-ecológi- do Fórum Social Mundial, têm levantado, de modo
co na definição das estruturas de poder das rela- heterogêneo e não unificado, a bandeira da prote-
ções internacionais. O meio ambiente interfere na ção ambiental e de reforma em profundidade do
política regional latino-americana como represen- sistema econômico (Leis, 1991; Martinez-Alier,
tação (subjetividades e identidades, afiliações po- 2007; Milani, 1998).
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líticas, discursos) e, ao mesmo tempo, como di- Particularmente no campo disciplinar das
mensão material e territorial estruturante da Relações Internacionais, os anos Pós-Guerra Fria
geopolítica das trocas e das alianças entre socieda- têm possibilitado, ainda que de maneira errática e
des, mercados e governos (Rosa; Dietz, 1998; não homogênea, uma renovação do debate sobre
Prades, 1999).1 as tensões entre meio ambiente, economia global e
É verdade que, no plano das idéias e cren- política internacional. Se, por um lado, alguns
ças, a revolução ecológica foi anterior à tomada de autores defendem a idéia de que o sistema inter-
nacional emerge exclusivamente da interação en-
1
Rosa e Dietz (1998) tratam das diferentes lentes teóricas
para o entendimento das relações entre mudanças cli- tre entidades políticas soberanas e independen-
máticas e sociedades, reconhecendo que tais transfor-
mações impactam diretamente na sustentabilidade dos tes, por outro, parece-nos inevitável reconhecer que
ecossistemas e em todas as formas de organização social a ordem ecopolítica mundial também se compõe
(humanas e não humanas). Os autores identificam duas
orientações sociológicas na compreensão das relações de muitos outros atores para além dos Estados
entre mudanças climáticas e sociedades: a orientação
por eles chamada de neo-realista que tem fundamenta- nacionais. Ou seja, o princípio de uma soberania
ção materialista e pressupõe um mundo objetivo inde-
pendente da percepção dos atores humanos e sociais; e incondicionada, o exercício da autoridade estatal
uma outra orientação construtivista, que parte dos mar- restrita sobre o território nacional e a defesa da
cos interpretativos da crise provocada pelas mudanças
climáticas. não-interferência – ordenadores tradicionais do

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sentido das “relações internacionais” – são questi- (com ênfase na América Latina); e (2) uma análise
onados pelos processos de globalização, pela de alguns dos questionamentos críticos trazidos
internacionalização do problema ambiental e pela pelo campo do ambientalismo latino-americano,
crescente reivindicação, por redes e movimentos que opera no seio da contestação transnacional do
ambientalistas, de condutas éticas e ações respon- Fórum Social Mundial.
sáveis na solução política dessa crise. As relações
internacionais se construíram em torno de Esta-
dos nacionais soberanos (donde a idéia de um sis- O MEIO AMBIENTE COMO PROBLEMA
tema interestatal), fazendo com que se naturalizas- TRANSNACIONAL NA AMÉRICA LATINA: a
se a hipótese de que a política não existiria fora visão da ecologia política
desse sistema. Essa naturalização do sistema
interestatal como lócus exclusivo da política inter- No quadro atual das mutações da política
nacional não permite, porém, entender as diferen- latino-americana, a problemática do meio ambien-
tes formas de violação da soberania westfaliana, te complexifica as tensões entre os princípios de
tais como as intervenções militares, a ingerência soberania e de responsabilidade no mundo dos
humanitária, o controle direto do território nacio- Estados, mas igualmente as relações entre os inte-
nal alheio, restrições à soberania nacional, tutela resses particulares dos agentes individuais e as
internacional, além da movimentação do capital necessidades macro-coletivas de justiça social e
econômico – transnacional desde a sua origem prudência ecológica. As ameaças que pesam sobre
(Badie, 1995; Cairo, 2006; Smouts, 2004). o meio ambiente (fragmentação de ecossistemas,
A soberania nacional, como elemento extinção de habitats, introdução de espécies exóti-
norteador das relações entre sociedades e Estados, cas, ameaça a identidades indígenas) e a necessi-
vê-se assim interpelada e desafiada pelo princípio dade de construir ações coletivas a fim de preveni-
de responsabilidade ambiental, cujos limites em las ou restaurá-las implicam uma reformulação de
termos de regulação não coincidem, freqüentemente, questões políticas e éticas essenciais, re-introdu-
com as fronteiras nacionais. Os problemas zindo, na linguagem normativa da política latino-
ambientais, transfronteiriços por natureza ou americana, o debate sobre o bem comum. No caso
transnacionalizados por vias da ação política dos da proteção da sociobiodiversidade, por exemplo,
movimentos e redes ambientalistas, renovam a as tensões tornam-se evidentes ao colocarem em

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agenda política na América Latina, fazendo con- diálogo duas cosmovisões bastante distintas quanto
vergir, não sem confrontos, os padrões éticos, as aos mecanismos de regulação dos saberes e das
normas políticas e as exigências econômicas na práticas associados à diversidade natural: de um
regulação dos comportamentos dos Estados e dos lado, a solução apontada pelo regime de patentes
agentes privados (empresas e indivíduos). É evi- (propriedade intelectual); de outro, a demanda por
dente que essa convergência entre capital e ecolo- alguns movimentos (sobretudo indígenas e
gia não ocorre sem obstáculos importantes. No ambientalistas) de reconhecimento da particulari-
presente artigo, serão analisados alguns dos reper- dade do estatuto de bem comum para os saberes
tórios políticos e demandas dos movimentos tradicionais e autóctones (Dias; Costa, 2008;
ambientalistas na América Latina, sobretudo aque- Rezende, 2007).
les inseridos na onda anti-alterglobalista do Fórum Parafraseando Sousa Santos (2006), a crise
Social Mundial. O artigo constará de duas partes ambiental engendra zonas de contato intercultural
principais: (1) uma discussão sobre o processo de em que se explicitam conceitos e significados quan-
internacionalização da problemática ambiental e to à definição dos bens a proteger, assim como
das relações e tensões contemporâneas entre meio práticas referentes à explicitação dos conflitos e à
ambiente, economia global e política internacional implementação de mecanismos de proteção ou res-

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tauração ecológica. Nas zonas de contato, entram tos ambientais e a suas demandas energéticas e
materiais, e igualmente devido ao crescimento
em diálogo visões diferenciadas sobre o meio am- demográfico. As pretensões de atribuir valores
biente. Do ponto de vista normativo, a diversida- monetários aos serviços e às perdas ambientais,
e as iniciativas no sentido de corrigir a contabili-
de não é assim considerada como fator de frag- dade macroeconômica, fazem parte da econo-
mia ecológica.
mentação ou isolamento, mas como elemento
instigador de um sentido de “incompletude recí- Isso significa que os economistas ecológicos
proca” e de solidariedade, condição sine qua non buscam modelar as interações entre a economia e o
para a efetivação do diálogo intercultural (Sousa meio ambiente, utilizando instrumentos de gestão
Santos, 2006). dos mais diversos, entre os quais a avaliação
A problemática do meio ambiente é, nesse sen-
ambiental integrada, o cálculo da capacidade de carga
tido, um dos fatores que influenciam a reacomodação e de resiliência, a análise dos riscos e das incertezas
da ordem mundial contemporânea em diversos ní- e a contabilidade do capital natural. De regra, não
veis, porquanto alude, concomitantemente, a uma há preocupação, no uso de tais ferramentas, quanto
maior complexidade dos processos ecológicos (efei- aos limites éticos e aos conflitos de natureza
tos sistêmicos das alterações climáticas, por exem- distributiva que os mecanismos de regulação pelos
plo), mas também porque participa do duplo jogo mercados podem suscitar. Por exemplo, aos bens
das regulações internacionais por solidariedades naturais que não apresentam valor econômico dire-
(ações concertadas de agentes sociais e Estados) e to pode ser atribuído um preço fictício (shadow
pelo mercado (interdependência econômica). price), permitindo, desse modo, a sua integração na
Como lembra Brenton (1994), é evidente a impor- lógica do crescimento econômico.
tância do problema ambiental na reflexão sobre a No que diz respeito à análise marxiana, con-
ordem política contemporânea, tendo em vista que trariamente ao que afirmam Chesnais e Serfati
a dialética entre os interesses particulares e a pos-
(2003), defendemos aqui a hipótese de que a crise
sibilidade de uma ação coletiva impõe uma deli- ecológica, do ponto de vista normativo e empírico,
cada agenda de negociações entre os atores públi- põe em xeque as condições de reprodução e de
cos e privados, individuais e coletivos. funcionamento do capital, ao destruir ou danificar
Uma vez que apresenta constrangimentos gravemente o ambiente natural. É evidente que a
claros à expansão sem limites do modo capitalista exaustão da natureza e a gestão de recursos natu-
de produção, a crise ambiental está integrada à or- rais raros podem ser transformadas em campos de
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dem política da atualidade, desconstruindo nu- valorização do capital e mercados de acumulação


merosos mitos relativos ao progresso tecnológico, portadores de novos rendimentos para proprietá-
à eficiência econômica e ao crescimento sem ris- rios e acionistas. O capitalismo avançado engen-
cos. São recolocados em debate postulados da eco- drou direitos de propriedade sobre elementos vi-
nomia neoclássica, mas também da análise tais (ar, água, solo, biodiversidade, saberes tradici-
marxiana clássica. No campo da economia onais) ao converter bens livres ou bens comuns
neoclássica, a economia ecológica (Costanza, 1991; em esferas de valorização, como no caso da teoria
Daly; Cobb, 1989) passa a considerar a degradação do capital natural e na definição de mercados ad
ambiental como externalidade negativa. A solução hoc que gerem os direitos de poluir. A
do problema ecológico implica a internalização dos “re(in)volução verde”, por exemplo, foi, sobretu-
custos externos negativos na equação econômica do do, um formidável vetor de exportação de fertili-
desenvolvimento, sendo necessário atribuir valo- zantes e inseticidas produzidos pelos grandes gru-
res monetários aos recursos e serviços ambientais. pos da indústria química, tendo contribuído para
Como lembra Martínez-Alier (2007, p.45): aumentar a estrutura de desigualdades entre os
Os economistas ecológicos questionam a camponeses de muitos países latino-americanos
sustentabilidade da economia devido aos impac- (Chesnais; Serfati, 2003; Martinez-Alier, 2007). No

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entanto, seguindo o pensamento de O´Connor Ou seja, o ativismo ambiental não se explica tão-
(1994), defendemos aqui a idéia de que, ao adentrar somente a partir da evolução de uma consciência
a agenda latino-americana de negociações interna- ecológica, mas é, nesse caso, reflexo da combina-
cionais, a internalização dos custos econômicos ção desigual de fatores tais como a localização dos
provocados pela crise ecológica apresenta constran- impactos ambientais, as possibilidades reais de
gimentos claros à reprodução do sistema capitalis- solução tecnológica acessível e a incerteza das ame-
ta no seu nível sistêmico e produtivo. A crise aças. Isso significa que, nos países latino-america-
ambiental, ao remeter às fronteiras da sobrevivên- nos, a desigualdade também se refere a uma desi-
cia humana e à interdependência complexa entre gual incidência dos danos ambientais e da crise
sociedades e modelos de produção, decomposi- ecológica. Como lembra Acselrad et alii (2004), a
ção e consumo, desvela os limites do sistema pro- demanda por justiça ecológica não se restringe à
dutivo atual.2 solidariedade intergeracional (entre as gerações
Além disso, para além das relações econô- presentes e futuras), mas traz o conflito entre na-
micas no nível sistêmico, a crise ambiental na tureza e economia para as relações sociais de hoje.
América Latina envolve confrontos ecológicos e Na perspectiva de Martínez-Alier (2007), há algo
conflitos distributivos, como os evidenciados na de universal nas distintas lutas por justiça
resistência dos camponeses peruanos contra a ambiental que diz respeito ao nexo entre lutas por
mineradora Cerra de Pasco Copper Corporation (de distribuição e demandas por reparação de danos
Nova York) desde os anos 1920, ou na contestação ecológicos. Esse seria o substrato filosófico funda-
aos modelos de desenvolvimento para a Amazô- mental da ecologia política, como sublinha
nia exercida pelo sindicato dos seringueiros lide- Martínez-Alier (p. 113):
rados por Chico Mendes no Brasil dos anos 80.3
Por distribuição ecológica são entendidos os pa-
drões sociais, espaciais e temporais de acesso aos
2
Concordamos com O´Connor (1994), um dos fundado- benefícios obtidos dos recursos naturais e aos
res da revista Capitalism, Nature, Socialism, o qual afir- serviços proporcionados pelo ambiente como um
ma a necessidade de enriquecer a análise marxista para sistema de suporte da vida. Os determinantes da
compreender a crise ecológica. Hoje, o capitalismo se distribuição ecológica são em alguns casos natu-
confrontaria, segundo o autor, com uma segunda con- rais, como o clima, topografia, padrões
tradição (a primeira seria a superprodução de mercadori- pluviométricos, jazidas de minerais e a qualida-
as e superacumulação de capital), situada no âmbito de do solo. No entanto, também são claramente
mais amplo das condições de produção (incluindo os
meios de comunicação, as infra-estruturas, as condi- sociais, culturais, econômicos, políticos e

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ções pessoais de produção do trabalhador, além das con- tecnológicos.
dições físicas e ambientais). Um dos tenores da ecologia
política socialista e crítica, James O´Connor, defende a
idéia de que a crise ecológica nos remete a um conflito A ecologia política faz sentido no contexto
distributivo novo, donde a necessidade de vincular a
exploração dos dominados pelos possuidores de riqueza latino-americano porque parte do princípio de que
e a destruição da natureza e da biosfera. O autor busca
superar, assim, uma leitura produtivista do trabalho de os problemas ambientais não afetam a todos os
K. Marx e F. Engels que foi realizada durante décadas. indivíduos e grupos sociais uniformemente, além
3
Martinez-Alier (2007, p.93 e seq.) lembra que a minera-
ção no Peru esteve, durante muito tempo, dominada de reafirmar que a concentração de riqueza é tam-
pela Corporação Cerro de Pasco, até que, na década de bém resultado de processos de controle sobre de-
1960, a extração de cobre se deslocou para o sul do Peru,
onde o minério é explorado a céu aberto – gerando sedi- terminados recursos ambientais. Por exemplo, em
mentos, deteriorando a água em regiões onde os recur-
sos hídricos são escassos e poluindo o ar com o dióxido vários países latino-americanos, os camponeses são
de enxofre das fundições. Hoje, a Southern Peru Copper
Corporation, cuja fundição foi construída em 1969, que obrigados a cultivar solos com declives (causando
explora o minério, constitui uma das dez maiores pro- maior erosão das encostas), porque a terra do vale
dutoras de cobre no planeta e, desde 2005, depois da
aquisição da empresa por um grupo mexicano, passou a é, em sua maioria, propriedade dos latifundiários;
chamar-se apenas Southern Copper Corporation. Para
uma introdução à ecologia política como campo, ver o a pobreza rural também tende, em muitos desses
capítulo 4 de Martinez-Alier (2007), além dos periódicos
Journal of Political Ecology (Estados Unidos), Ecologie países da região, a intensificar a coleta de lenha
et Politique (França), Ecología Política (Espanha), em terras áridas e a utilização do esterco como com-
Capitalism, Nature, Socialism (fundado por James
O´Connor e Barbara Laurence). bustível, o que traz efeitos negativos para a fertili-

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dade do solo; no Equador (por meio das organiza- da interconexão entre as destruições ecológicas e
ções Acción Ecológica e Fundación de Defensa as agressões contra as condições de sua própria
Ecológica, por exemplo) e no Brasil, a expansão da existência como produtores. Na América Latina,
carcinicultura em regiões de mangue, geralmente os conflitos de ordem distributiva e ambiental es-
terras públicas por se situarem em zonas de ma- tão, assim, diretamente relacionados entre si. As
rés,4 tende a expulsar populações pobres que ti- atuais reivindicações do MST e da Via Campesina
ram seu sustento da exploração dos manguezais de acesso a terras e promoção de um desenvolvi-
(Martínez-Alier, 2007). Ademais, a ecologia políti- mento ecologicamente equilibrado ilustram tais
ca evidencia que os conflitos ambientais ocorrem reivindicações.
em diversas escalas, apresentando origens no pla-
no interno e externo das fronteiras do Estado naci-
onal. No Brasil, a expansão do cultivo dos O CAMPO DO AMBIENTALISMO LATINO-
transgênicos, por exemplo, resulta, sobretudo, de AMERICANO NAS REDES DO FÓRUM SOCIAL
pressões externas, ao passo que o agribusiness da MUNDIAL
soja e a produção de alimentos põem em relação
interesses tanto nacionais quanto internacionais É interessante notar, como demonstram a
(Acselrad, 2004). Tabela 1 e o Quadro 1 a seguir, que as redes e
A crise ecológica transforma igualmente, no movimentos ambientalistas da América Latina re-
plano político, a identidade dos sujeitos e a ação presentam mais de 55% do total das organizações
estratégica dos agentes, re-situando os modos de or- participantes dos processos do Fórum Social
ganização da política em termos de redes, de Mundial que afirmam integrar a bandeira do de-
horizontalidade da decisão e de fluidez organizacional senvolvimento sustentável e da defesa do meio
(Comolet, 1991; Deleage, 1992). A crise ambiental ambiente em suas lutas. Do total de 102 organiza-
evidencia um sujeito social complexo que, dotado ções e movimentos da América Latina e do Caribe,
de um “pensamento ecologizado” (pensée 80 são originárias do Brasil, 4 do Uruguai, 3 do
ecologisée), o qual ultrapassa diferentes fronteiras Equador, 2 da Argentina, do Chile, Panamá, Peru
(territórios, disciplinas, setores), posiciona-se à e Paraguai.5 Muitas dessas organizações da contes-
margem ou além das formas clássicas de afiliação tação anti-alterglobalista contribuem para que o
política individual e coletiva (classe social, nação). debate sobre as relações entre proteção do meio
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Quando os movimentos sociais do campo exigem ambiente, ecologia política e desenvolvimento sus-
a manutenção de suas condições de vida e a con- tentável se encontre no centro das atenções do
servação do meio ambiente, estão também expres- Fórum Social Mundial e suas declinações regio-
sando uma tomada de consciência política acerca nais e temáticas. É fundamental perceber que a
4
As zonas de mangue (manguezais) são, de regra, outor- natureza desse debate no seio do anti-
gadas pelos governos para o cultivo do camarão via con-
cessões privadas, gerando uma lógica de criação de cer- alterglobalismo é bastante distinta da forma como
cas (enclosures) e privatização de bens comuns, geral-
5
mente explorados por populações ribeirinhas. A produ- Essa coleta de dados concerne à participação de ONGs e
ção comercial do camarão é apoiada pelo Banco Mundial, movimentos ambientalistas que tenham participado do
entre outras instituições, como estratégia que visa a Fórum Social Mundial em 2002, 2003 e 2008 (Dia de
impulsionar exportações não-tradicionais. Essa estraté- Ação Global). Foi priorizada a identificação de informa-
gia é conhecida mais amplamente como “Revolução ções de caráter geral: país sede da organização, ano de
Azul”, que industrializa e capitaliza a nova fronteira eco- fundação, informações sobre a área de atuação (passível
lógica que representam os recursos hídricos e marinhos. de categorização futura) e endereço eletrônico, para pos-
A Revolução Azul refere-se ao rápido desenvolvimento sível aprofundamento posterior. Em termos gerais, fo-
da aqüicultura nos últimos anos, em contraponto à Re- ram enquadradas como ambientalistas as organizações
volução Verde da alta produtividade de grãos, ocorrida a que fizeram referência a: ecologia, meio ambiente, de-
partir dos anos 50. Segundo dados divulgados pelo Earth senvolvimento sustentável, direito ambiental, educa-
Institute da Universidade de Columbia (coordenado pelo ção ambiental, sustentabilidade ecológica, justiça
economista Jeffrey Sachs), entre os anos 50 e o presen- ambiental e proteção de recursos naturais em seus obje-
te, a pesca total, em águas abertas e abrigadas, quase tivos principais. Esses dados foram coletados e organi-
quintuplicou, passando de aproximadamente 20 milhões zados pelo estudante de iniciação científica Davi Ribeiro
para 95 milhões de toneladas métricas. Brazil (2007/2008).

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Tabela 1 - Organizações e movimentos ambientalistas no e, finalmente, as cidades como espaços sustentá-


anti/alterglobalismo
Nú mero d e
veis. Em 2003, ocorre uma mudança de eixos
Região organizações e temáticos: o primeiro deles diz respeito ao desen-
movimentos
América Latina e Caribe 102
volvimento democrático e sustentável, estabelecen-

Europa 27
do uma ligação direta entre democracia, promoção

17
do desenvolvimento e proteção do meio ambiente.
África
11
No discurso anti-alterglobalista, a gestão dos re-
Ásia
cursos naturais passa necessariamente pela
Oceania 1
redefinição de mecanismos democráticos de con-
América do Norte 7 trole social sobre o acesso aos bens e recursos.
Origem geográfica não identificada 18 Quando do quarto FSM em Mumbai (2004),
Fonte: Elaboração LABMUNDO.
um conjunto de movimentos e redes (Peoples World
evoluem as negociações intergovernamentais no Water Forum, Asia Pacific Movement on Debt and
seio das instituições das Nações Unidas e das agên- Development, Public Citizen, Sweetwater Alliance,
cias econômicas internacionais. Council of Canadians e Cry of the Water) organi-
Na edição de 2001 do FSM em Porto Ale- zam o Fórum popular mundial das águas. Mili-
gre, o desenvolvimento sustentável integra o se- tantes reconhecidos internacionalmente (Vandana
gundo eixo de discussão do Fórum, intitulado Shiva, Ricardo Petrella e Tony Clarke) participam
“acesso à riqueza e sustentabilidade”, no âmbito dos debates. No âmbito do Fórum social
do qual as oficinas temáticas discorrem acerca do panamanônico (nas diferentes edições de 2002 e
controle social sobre o meio ambiente, a democra- 2003, em Belém do Pará, e de 2004, em Ciudad
tização do conhecimento científico e a privatização Guayana), militantes latino-americanos analisam o
do saber por meio do regime internacional de pro- desenvolvimento sob o ângulo da soberania ecoló-
priedade intelectual. Em 2002, mantém-se o mes- gica, da gestão sustentável e popular do território,
mo eixo de discussão, porém as oficinas enfatizam da preservação das zonas florestais protegidas (re-
mais as relações entre tecnociência, ecologia e ca- servas extrativistas), da segurança alimentar em
pitalismo; a agroecologia e os direitos de proprie- relação com a produção agroecológica pelas famíli-
dade intelectual; o consumo verde e sustentável; as rurais, mas também debatem o tema da

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Qu ad ro 1 - P rincip ais organizações, red es e movimentos ativas no FSM
Países Organizações, red es e movimentos (exemp los)
Argentina Centro de derechos humanos y ambiente (CEDHA)
G r u po de E s t u do s de A g r i c u l t u r a E c o l ó g i c a ; S O S M a t a A t l â n t i c a ; D N A A m b i e n t a l ; I n s t i t u t o de
Permacultura em Terras Secas; Articulação do Semi-Árido (ASA); Serviço Inter-Franciscano de Justiça,
Pa z e E c o l o g i a ; F ó r u m B r a s i l e i r o d e O N G s e M o v i m e n t o s S o c i a i s p a r a o M e i o A m b i e n t e e
Desenvolvimento; Rede Brasileira de Justiça Ambiental; Rede de ONGs da Mata Atlântica; Grupo de
Brasil
Trabalho Amazônico; Instituto do Homem e do Meio Ambiente na Amazônia; Associação Gaúcha de
Proteção ao Ambiente Natural; Fundação Gaia; Instituto Ecoar para a Cidadania; Rede de Intercâmbio de
Tecnologias Alternativas; Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia; Assembléia Permanente do
Meio Ambiente do Rio Grande do Sul
C h ile Ecosistemas; Instituto Ecologia Política
Equador Deuda Ecológica (Alianza Sur Acreedores Deuda Ecológica), Red Agricultura Campesina y Mundialización
Mé x i c o Colectivo Ecologista Jalisco
Paraguai Centro de Educación, Capacitación y Tecnologia Campesina
Uruguai Comision Nacional en Defensa del Agua y la Vida
Venezuela Red de Cooperacion Amazonica
Fonte: Elaboração LABMUNDO.

295
ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS ...

geopolítica da água e a gestão democrática dos re- evitar as oposições e construindo pontes entre
cursos hídricos.6 cosmovisões distintas, tais documentos incorrem
Ademais, a partir da leitura de vários arti- quase ingenuamente na armadilha de terem pro-
gos apresentados na “biblioteca das alternativas” duzido fórmulas vagas ou soluções que implicam
do website oficial do FSM e com base nos discur- aportes financeiros pouco realistas. O Relatório
sos pronunciados por militantes em diferentes Brundtland, por exemplo, não atenta para os ver-
edições do Fórum,7 pode-se afirmar que os anti- dadeiros custos e as diferentes visões culturais do
alterglobalistas criticam a institucionalização cres- desenvolvimento sustentável.
cente do debate sobre desenvolvimento sustentá- Outro exemplo de crítica importante
vel e a recuperação política das estratégias de construída pelos movimentos ambientalistas latino-
sustentabilidade por corporações e instâncias eco- americanos inseridos na onda anti-alterglobalista diz
nômicas internacionais. Um dos pontos de parti- respeito ao não tratamento da questão central da
da das críticas trazidas pelos anti-alterglobalistas ecologia política, no que se refere à distribuição das
concerne ao Relatório Brundtland “Nosso Futuro riquezas. Apontam os militantes e as lideranças anti-
Comum” e à Agenda-21 (plano de ação da Confe- alterglobalistas que o Relatório Brundtland (assim
rência do Rio), dois dos documentos mais citados como muitos dos programas desenvolvidos pelas
pelas agências internacionais atuantes no campo instituições onusianas e do sistema de Bretton
da proteção ambiental (Programa das Nações Uni- Woods), ao mencionar somente o crescimento da
das para o Meio Ambiente, Banco Mundial, riqueza como fundamento para uma redistribuição
UNESCO, cooperação bilateral, entre outras) e que futura, de fato, deixa de estabelecer uma distinção
lhes servem de fundamento filosófico e político na nítida entre os graus da sustentabilidade ecológica:
definição de seus programas. Ambos os documen- a sustentabilidade forte e a fraca.8 As agências inter-
tos, resultantes do trabalho de intelectuais do Norte nacionais tendem a não radicalizar o debate e a op-
e do Sul (o que poderia dar uma forte impressão tar pela segunda via, uma vez que a sua adoção é
de diversidade na representação dos interesses), compatível com uma regulação da crise ambiental
produziram uma linguagem política multilateral pelos mercados, sem tocar no cerne da questão po-
fundada no consenso e não na conflitualidade ine- lítica relativa às assimetrias espaciais e às desigual-
rente às relações entre ecologia política e desen- dades sociais. No entanto, como lembram Redclift
volvimento econômico, proteção do meio ambien- e Sage (1998, p.499 e seq.) em relação ao papel da
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te e expansão do comércio internacional, promo- ideologia no debate sobre as mudanças climáticas:


ção da justiça ambiental e defesa da neutralidade
tecnológica, ou ainda o desenvolvimento voltado Na perspectiva dos países em desenvolvimento,
as questões distributivas encontram-se no cora-
para fora (exportações) e o desenvolvimento orien- ção das mudanças climáticas. [...] Na perspecti-
tado para dentro (mercado doméstico). Buscando va sociológica, a eqüidade é fundamental para
pensar as mudanças climáticas não somente pe-
las diferenças mensuráveis dos fluxos de ener-
6
A coordenação desse Fórum regional (FSPA) esteve a car- gia e de materiais, dos níveis de consumo do-
go da ONG Caritas, do Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), da CUT, do Grupo de Tra- 8
Como lembra Beckerman (1994), a sustentabilidade for-
balho Amazônico (GTA) e do Sindicato dos Escritores. O te prioriza a preservação do meio ambiente, ao passo que
FSPA foi o primeiro fórum regional a se organizar no a sustentabilidade fraca privilegia o apoio ao crescimen-
processo histórico do Fórum Social Mundial. Durante o to. A segunda fundamenta-se na distribuição das dife-
segundo FSPA, mais de 10 mil pessoas se reuniram em rentes formas de capital (natural, manufaturado, hu-
torno do tema central: “Todos contra a ALCA”. mano, social) entre as gerações. Essa concepção não res-
7
O autor do presente artigo participou de todas as edições ponde a algumas questões: Como comparar as diferen-
do FSM no Brasil e de algumas edições regionais e tes formas de capital? Elas seriam fungíveis? Somente o
temáticas, tendo entrevistado lideranças e participantes progresso tecnológico permite a reparação de perdas de
(Sérgio Haddad, Iara Pietricovski, Fabio Monroy Martinez, capital natural? A primeira traz para o debate dois cons-
Pedro Carrano, Chico Whitaker, entre outros líderes de trangimentos a mais: Haveria formas de capital natural
movimentos e organizações na América Latina), a fim que não sejam passíveis de substituição? Como fazer
de fundamentar empiricamente sua análise sobre a con- funcionar, politicamente, o princípio de precaução nas
testação política transnacional. relações econômicas?

296
Carlos R. S. Milani

méstico ou das dificuldades em chegar a acordos Ademais, ao radicalizar o debate sobre o de-
internacionais, mas igualmente por razões ideo-
lógicas. [...] Talvez o melhor exemplo de fatores senvolvimento sustentável, as redes ambientalistas
ideológicos influenciando o debate diz respeito latino-americanas demandam uma regulação inter-
à construção do ‘desenvolvimento sustentável’ ou
‘desenvolvimento verde’, freqüentemente pola- nacional sobre os bens comuns do planeta com
rizada entre soluções ligadas a valores de trans-
formação tecnológica (modernização ecológica) base em princípios éticos de solidariedade, evi-
e mudanças culturais de cunho mais radical (eco- denciando que a definição do sentido de
logia profunda).
sustentabilidade é uma questão política e não me-
Ao contrario, os movimentos e organizações ramente econômica. Definir o sentido do que é
no seio do anti-alterglobalismo privilegiam o deba- sustentável envolve discutir o presente e o futuro
te sobre a sustentabilidade forte, redefinindo e pro- das sociedades, pôr em diálogo distintas represen-
pondo mudanças mais ou menos profundas nas tações sociais do problema ambiental, rever o sen-
relações entre natureza, capital e sociedade tido das metas econômicas, avaliar os impactos
(Rousset, 2002): não se trata tão-somente de saber ecológicos negativos de acordo com grupos e clas-
se o ser humano poderá ainda transformar a natu- ses, bem como os diversos modos de conceber as
reza e conquistá-la, mas de dar-se conta do quão relações entre natureza, mercado e sociedade.
pouco os ecossistemas ainda podem suportar. A É assim que movimentos e redes
promessa dos avanços tecnológicos transformou- ambientalistas reivindicam uma participação polí-
se em ameaça, engendrando o que Jonas (1979) tica crescente na formação de opiniões públicas e
havia predefinido como uma “heurística do medo”. nos processos decisórios, denunciando o déficit
Tais movimentos desafiam, no campo do democrático das instâncias econômicas internaci-
ambientalismo, a adesão exclusiva ao “culto da vida onais (Teivanem, 2004) e a falta de confiança nos
silvestre” e ao “evangelho da eco-eficiência”, uma sistemas políticos institucionais. Quer com o pro-
vez que abraçam os princípios da justiça ambiental pósito de convencer as populações a modificarem
e do ecologismo dos pobres.9 seu comportamento em relação ao meio ambiente
(por exemplo, na gestão dos resíduos sólidos, no
9
Martinez-Alier (2007, p.21-39) analisa detalhadamente
essas três correntes do ambientalismo contemporâneo e uso de transportes coletivos ou na redução da re-
suas vertentes na América Latina. O culto ao silvestre se frigeração e da calefação), quer com o objetivo de
caracteriza por ser, cronologicamente, a primeira escola a
se desenvolver dentro do movimento e por assumir uma promover transformações nos processos produti-
postura de inviolabilidade da natureza, a partir da preser-
vos (e, portanto, no comportamento dos operado-

CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 289-303, Maio/Ago. 2008


vação dos poucos espaços que restam no mundo de
natureza intocada. Em relação à situação do sistema in-
ternacional, não apresenta uma postura de confronto res econômicos), os movimentos ambientalistas
direto, tendo como base científica a biologia da conser- questionam o status quo por meio de estratégias
vação e a manutenção de um discurso onde prevalece
certa sacralização da natureza. O culto ao silvestre conta de visibilidade típicas do repertório moderno das
com grandes organizações pelo mundo como a
International Union for the Conservation of Nature ações coletivas (manifestações, petições), mas igual-
(IUCN) e a Worldwide Fund of Nature (WWF). No caso
do evangelho da eco-eficiência, a natureza não é encara- mente pelo viés de ações midiáticas (happenings),
da como algo sagrado, mas como um recurso; isso em pelo lobby e pela produção de relatórios científi-
função da centralidade dada à economia por esse ramo
do ambientalismo. Por fim, o ecologismo dos pobres, cos por meio de redes profissionais e universitári-
também denominado de justiça ambiental, caracteriza-
se pelo seu desenvolvimento no Terceiro Mundo e tem as por eles mobilizadas.
como principal característica a percepção da natureza
como fonte de subsistência. A importância atribuída As redes e movimentos interferem direta-
pelo autor a esse movimento decorre tanto da sua mente no ciclo de vida das políticas públicas
marginalidade quanto da sua tendência a não ser carac-
terizado ou não se autodenominar como parte do movi- ambientais por meio de ações que caracterizam a
mento ecologista. Sua principal argumentação está na
relação entre o aumento do crescimento econômico e a luta pela inclusão do tema na pauta pública (agen-
ampliação dos problemas ambientais, principalmente em
relação ao deslocamento de matérias-primas (relação entre da-setting), a formulação, o controle ou o
Norte e Sul) e as áreas de despejo de resíduos. Seu de- monitoramento de programas, além da
senvolvimento deu-se em função da luta de movimen-
tos indígenas e camponeses nos países menos desen- implementação de soluções via projetos experimen-
volvidos, mas também graças à contribuição do movi-
mento de racismo ambiental nos Estados Unidos. tais. Trata-se de movimentos associativos de um

297
ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS ...

novo tipo, baseados no esgotamento ideológico dos problematização do tempo ecológico vis-à-vis o tem-
partidos tradicionais e na necessidade de assumir, po político; e a construção de identidades múltiplas.
à esquerda como à direita, os mesmos constrangi-
mentos da gestão da economia de mercado a ser
repensada e transformada. A partir de uma estru- Territorialidade e articulação de escalas
tura organizacional em rede, eles fazem política à
margem dos partidos políticos e se comportam Do ponto de vista do território e da articula-
como grupos de pressão e de contra-poder, cujos ção das escalas, é importante notar que as mensa-
temas oferecem alternativas à ideologia econômica gens políticas e as ações propostas pelos movi-
e às práticas políticas dominantes. mentos ambientalistas latino-americanos adquirem
Por conseguinte, eles demandam o reconhe- envergadura verdadeiramente transnacional. Nes-
cimento de um estatuto de competência particular sa abordagem, a escala transnacional corresponde
na agenda ecopolítica mundial. As redes e os mo- a um continuum territorial que se estende do local
vimentos ecológicos latino-americanos, apesar de ao global (da menor à maior abrangência) e redefine,
sua grande heterogeneidade (inclusive quantitati- assim, a identidade, a estratégia e os recursos das
va, segundo os países da região, como evidencia o organizações-em-rede. Da mesma forma que o ca-
Quadro 1, apresentada anteriormente) e dos confli- pital transnacionalizado induz mudanças
tos internos que os envolvem, também chamam a sistêmicas no regime de acumulação (que,
atenção para os novos estilos de vida e a busca de gradativamente, passa de nacional e internacional
uma qualidade de vida fundada na auto-satisfação, a um regime global de acumulação), as redes, orga-
para a necessidade de ruptura com o consumismo nizações e movimentos ambientalistas tendem a
e a busca de uma nova ética no comércio (comércio organizar-se e a constituir-se transnacionalmente.
justo). Eles demandam ser reconhecidos e integra- Criada em abril de 1992, a Via Campesina (VC) é
dos nos processos de tomada de decisão (como for- um exemplo claro de rede de movimentos sociais
ma de participação política) e reivindicam um esta- camponeses de abrangência global, em que a
tuto de competência técnica (contra-expertise) nas temática ecológica é tratada em relação com os con-
negociações intergovernamentais. É evidente que a flitos distributivos locais.10
crise do multilateralismo, as limitações do O nexo local-global constrói o sentido do
intergovernamentalismo estrito, a manutenção do transnacional, porquanto, no processo de apropri-
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unilateralismo norte-americano (exacerbado duran- ação política e econômica dos espaços pelos movi-
te os oito anos do governo Bush) constituem um mentos e redes, o território da crise ecológica não
importante pano de fundo de legitimação de tais é parcial nem limitado a uma escala local. O con-
reivindicações. Como lembram Devin (2004), teúdo dessa crise e sua extensão, as ameaças
Wallerstein (2004), Della Porta e Tarrow (2005), o introduzidas pela desigualdade social e pelos esti-
intergovernamentalismo encontra-se sob forte pres- 10
A VC é um movimento social transnacional que coor-
são política face à emergência dos atores e movi- dena organizações rurais, grupos de pequenos e médios
produtores, movimentos de jovens e mulheres rurais,
mentos da contestação transnacional. comunidades indígenas, movimentos de pessoas que
não têm acesso à terra produtiva (os sem-terra) e de
Retomando algumas das categorias de análise associações de trabalhadores agrícolas migrantes. Ela se
propostas por Milani e Laniado (2007a; 2007b), pode- autodenomina um movimento social de natureza autô-
noma, plural, independente, sem fins lucrativos, sem
se reiterar, resumida e esquematicamente, que o cam- afiliação política ou partidária. É composta por oitenta
organizações do campo, de todos os continentes (inclu-
po do ambientalismo, inserido nas redes de contes- sive a América Latina), em um total de cinqüenta e sete
países, segundo dados de julho de 2007. A VC pretende
tação do Fórum Social Mundial, contribui para a representar a voz camponesa no sistema internacional,
transnacionalização do problema ambiental graças a participando da estrutura da FAO e buscando ter uma
presença cada vez mais marcante nos protestos e coali-
três ordens de fatores mais importantes, quais se- zões sociais organizadas durante os encontros da OMC,
do FMI ou do Banco Mundial, assim como no âmbito do
jam: a articulação de escalas e territorialidade; a Fórum Social Mundial (Milani, 2008).

298
Carlos R. S. Milani

los de vida, bem como a necessidade de rever os fim de exportar gás a preço baixo para a Califórnia.
modos de produção ultrapassam as fronteiras na- Esse acordo despertou a insurreição popular e a
cionais, gerando conflitos cuja solução política resistência de sindicatos, movimentos indígenas e
implica forçosamente a negociação multilateral alguns líderes políticos.
entre os atores governamentais, econômicos e so- Torna-se evidente, assim, que confrontos
ciais (Sachs, 1994). Os problemas ambientais, do dessa natureza desafiam a política ambiental
local ao global, têm um impacto sobre a definição institucionalizada dos ministérios, a legislação
da segurança coletiva (aquecimento). Eles colocam nacional e seus programas de monitoramento eco-
em questão um conjunto de princípios fundamen- lógico. O caso dos transgênicos no Rio Grande do
tais da ordem mundial contemporânea: as frontei- Sul (Brasil), denunciado e combatido pelo Movi-
ras administrativas dos Estados nacionais, a sepa- mento dos Sem Terra, Pastoral da Terra, Via
ração entre o nacional e o internacional, a defini- Campesina e Confédération Paysanne desde 1999,
ção monolítica do interesse nacional, a ação estatal mas também o que se refere à autorização dada
baseada na razão de Estado, assim como a sobera- pelo Ministério do Meio Ambiente da Colômbia
nia incondicionada dos Estados. A problemática para que a Occidental Petroleum desenvolvesse a
ambiental perturba, assim, o mundo moderno da exploração petrolífera, nos anos 1990, em pleno
territorialidade contínua e justaposta. Como afir- território dos povos u’was (cujos direitos são re-
ma Porto Gonçalves (2001, p.71-72): conhecidos pela constituição colombiana), ilustram
as contradições crescentes entre Estado, movimen-
Se o conceito de espaço vital foi tão essencial na
época de F. Ratzel, como para dar sustentabilidade tos sociais e industrialização da agricultura.
ao desenvolvimento calcado no Estado nacional [...] No entanto, sem incorrer na armadilha de
em um capitalismo mundializado o espaço vital
necessário para dar sustentabilidade ao sistema já uma análise exclusivamente construtivista dos
não é o Estado nacional. [...] Estamos frente a uma discursos (o que contradiria as origens da ecologia
clara tensão de territorialidades dentro do proces-
so atual de reorganização social, em que a questão política), é importante lembrar uma outra dimensão
ambiental, ou seja, a relação entre a sociedade e a do território, que vai além da materialidade objetiva
natureza, cumpre um papel constituinte.
do desenvolvimento dos processos produtivos. A
Mais do que isso, em muitos casos – quan- crise ecológica contribui igualmente para evidenci-
do pensamos no agravamento dos impactos nega- ar a expansão da idéia de multiterritorialização
tivos sobre o ambiente biofísico e humano causa- (Haesbaert, 2006). Na modernidade, os territórios

CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 289-303, Maio/Ago. 2008


dos por projetos no campo nuclear, construção de são construídos pelo sujeito nacional em suas re-
barragens e hidroelétricas, exploração de minéri- lações com o Estado na qualidade de territórios-
os, pesquisas sobre biodiversidade (e suas rela- zonas (fixos, enquadrados, hierarquizados). Na
ções com a “biopirataria”), uso de transgênicos e modernidade avançada, os novos territórios são
de praguicidas na agricultura, por exemplo –, a territórios-redes (descontínuos, fragmentados, si-
resistência de redes e movimentos latino-america- multâneos). São esses territórios-redes que servem
nos atua contra o Estado, podendo, eventualmen- de suporte ao crescimento do ativismo ecológico
te, contar com aliados situados no interior do apa- transnacional na América Latina, à entrada no ce-
relho estatal. Como lembra Martinez-Alier (2007), nário político de projetos que envolvem atores
existe freqüentemente, em vários países latino- múltiplos do Norte e do Sul11 e, como já afirmara
americanos, uma pauta de cooperação entre as al- 11
Como afirmou Durkheim, à medida que avançamos na
tas posições estatais e as empresas privadas es- história, veremos que uma organização que se funda
sobre agrupamentos territoriais (aldeias, vilas, distritos,
trangeiras quanto à utilização dos recursos natu- províncias) se tornará cada vez menos importante; sem
rais no interior do território nacional, como no caso dúvida, pertencemos todos a uma comuna, a um depar-
tamento, mas esses laços que nos unem serão cada vez
da Bolívia que, em 2003, viu o seu governo pro- mais frágeis e mais fluídos. Essas divisões geográficas
serão majoritariamente artificiais e não despertarão em
mover um acordo com a corporação Repsol-YPF, a nós sentimentos profundos. O espírito provincial terá

299
ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS ...

Viola (1992), para a institucionalização a proteger, dos mecanismos a serem implementados


multissetorial do ambientalismo nos anos 1990 ou, para a sua preservação, além dos meios e recursos
como prefere Porto Gonçalves (2001, p.76), para a financeiros a serem disponibilizados. Um ponto
transferência do terreno da ação coletiva do exclu- fundamental, mas altamente complexo, diz respeito
sivamente nacional a uma nova “territorialidade a que tais decisões devem ser tomadas na ausên-
planetária”. cia de certezas e de definições claras das conseqü-
ências das degradações ecológicas. De fato, não há
consenso científico que sirva de fundamento ab-
Temporalidade soluto às decisões políticas; há muitas incertezas
quanto aos impactos futuros (D’Amato, 1990;
O tempo ecológico intervém na política Sachs, 1994). A problemática ecológica é marcada
transnacional de diferentes maneiras: por meio da por incerteza e imprevisibilidade, o que aumenta
definição de solidariedades diacrônicas entre as de forma significativa os riscos econômicos e as
gerações (proteger o meio ambiente hoje com o tensões políticas.
propósito de garantir as condições mínimas de
desenvolvimento para as gerações futuras), pela
definição de prioridades políticas e de recursos Identidades e representações sociais
para resolver as crises ambientais (o tempo geoló-
gico do meio ambiente é diferente do curto prazo A terceira categoria de análise diz respeito às
dos mandatos da democracia representativa), ou múltiplas identidades e representações sociais do
ainda por meio da necessidade de internalização meio ambiente na construção dos problemas ecoló-
dos custos econômicos pelas empresas (a gicos que contam na agenda política contemporâ-
competitividade e a produtividade dos mercados nea. As construções individuais e coletivas do
que funcionam na base do curto prazo, em contra- ambientalismo se distinguem em função das repre-
dição com as projeções futuras e os custos associ- sentações do tempo, do espaço, da sociabilidade e,
ados às mudanças de modelos tecnológicos). ao mesmo tempo, das normas aplicáveis à solução
É evidente que, nesse contexto, a questão dos problemas coletivos (Comolet, 1991). Por exem-
ambiental impõe uma negociação política entre os plo, o meio ambiente pode ser concebido como
interesses em conflito, perfilando-se como uma momento harmonioso, mítico e a-histórico, como
CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 289-303, Maio/Ago. 2008

denúncia do ‘laissez-faire’ típico do liberalismo polaridade voltada para um futuro incerto, marca-
econômico: o horizonte temporal do economista do pela atividade humana, ou ainda como um meio
não ultrapassa os dez ou vinte próximos anos (ou ambiente que consagra um sonho passado, tal como
as próximas semanas para o mercado acionário), um verdadeiro ‘jardim do Éden’. Essas diferentes
ao passo que o horizonte temporal da natureza se representações sociais são fundamentais no proces-
dá em termos de décadas ou mesmo de séculos. so político e econômico de tomada de decisões, seja
Daí resulta, hoje, a necessidade de se fazerem arbi- no nível dos governos, seja no nível da sociedade e
tragens políticas no que tange à definição dos bens dos indivíduos (Lascoumes, 1994).
desaparecido de forma definitiva; o patriotismo de paró- Nesse sentido, o meio ambiente é antes visto
quia se tornará um arcaísmo que não poderá mais ser
restaurado (Durkheim apud Haesbaert, 2006, p.23). Isso como uma construção social: ele não é nem um
não quer dizer que as circunstâncias territoriais fixas bem pré-existente, nem um patrimônio a-histórico,
estão predeterminadas a desaparecer completamente da
política contemporânea, tendo em conta que as institui- nem uma entidade dotada de uma essência a-
ções antigas não desaparecem do dia para a noite frente
às novas agências que surgem. O antigo sempre deixa temporal. O meio ambiente é uma natureza
seus vestígios. Entretanto, a organização política e soci-
al, de fundamento territorial e espacial exclusivo, coe- trabalhada pela política: é um produto da história.
xiste com novas formas e conteúdos de reterritorialização, A tradução da representação em problema político
notadamente aquelas relativas às solidariedades
transnacionais em torno da ecologia política. pode ser compreendida como uma atividade que

300
Carlos R. S. Milani

compõe a agenda (agenda setting); pode ocorrer conta o Estado e seu sistema interestatal, mas, prin-
por meio da prática da mídia e do setor privado, cipalmente, é fundamental levar em consideração
da ação político-administrativa, ou por meio da as autoridades superpostas (Mercado, agências in-
ação associativa e cidadã, revelando, assim, o ternacionais e Estados), as lealdades múltiplas e a
caráter intersetorial e pluridimensional da ecologia. noção de soberania condicionada (pelo capital e pela
A democratização do conhecimento dos problemas política da natureza). Se, na modernidade, as co-
do meio ambiente e das escolhas econômicas, munidades de pertencimento (a topofilia da políti-
tecnológicas e sociais que surgem desse processo ca) se desenvolveram em torno do Estado, o campo
nos guiam pouco a pouco para a constituição de do ambientalismo renovado nas redes anti-
um público mais ampliado, indispensável para a alterglobalistas mostra que novas comunidades de
concretização de soluções democráticas para os consciência se desenvolvem externamente às con-
problemas ecológicos. tradições estatais, sem levar sempre e exclusiva-
Sem dúvida alguma, o meio ambiente integra, mente em conta as fronteiras do Estado e as nacio-
então, o espaço público de discussão internacional nalidades. Para que a esfera pública, originalmen-
latino-americano. Pelo viés das solidariedades te conceituada de forma co-extensiva à comunida-
transnacionais, os movimentos e redes ecologistas de política soberana estatal, seja re-politizada e faça
são novos atores políticos que promovem uma sentido para os cidadãos (permitindo, uma vez
desconstrução da exclusividade da cidadania mais, questionamentos sobre igualdade, paridade,
nacional, ao projetar os fundamentos de uma idéia reconhecimento, inclusão e participação), é neces-
de “cidadania planetária” (Morin; Kern, 1993). sário conceber a formação das opiniões públicas e
Ademais, os movimentos sociais podem a constituição de interlocutores políticos para além
reconfigurar suas identidades e integrar valores da dos limites e dos parâmetros de Westphalia, cons-
ecologia política, como no caso dos seringueiros tituindo o que Nancy Fraser denomina de “mode-
da Amazônia brasileira que, segundo Porto lo pós-Westpaliano de soberania desagregada”
Gonçalves (2001, p.213), transitam da identidade (Fraser, 2007, p. 55). Enfim, retomando Rosenau
econômica de profissionais da exploração da (1992) e sua noção de um “mundo multicentrado”,
borracha a outra, de cunho político e sociocultural, os transnacionalismos engendrados pela crise eco-
de protetores dos interesses da floresta. lógica na América Latina ganham forma graças, tam-
bém, à ação dos indivíduos mais informados e com

CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 289-303, Maio/Ago. 2008


maior aptidão para agir no mundo da política
CONCLUSÃO mundial – os skillfull individuals de James
Rosenau. Os sujeitos, na modernidade avançada,
O campo do ambientalismo coloca para a têm uma base de lealdade que é igualmente
ação política, na América Latina, a necessidade de territorializada (são cidadãos de um Estado), mas
superar pelo menos três dilemas: entre soberania colocam em cena múltiplas formas de solidarieda-
e interdependência, entre globalização neoliberal e de e afiliação política que lhes permitem uma
promoção dos bens comuns, assim como o dilema reterritorialização na qualidade de ecologistas e
entre os interesses locais/nacionais particulares e defensores de um ideal de cidadania planetária.
os interesses regionais/supranacionais coletivos.
Parafraseando Badie (1995), a problemática
ambiental põe em evidência a hipótese da “sobera- (Recebido para publicação em junho de 2008)
(Aceito em agosto de 2008)
nia perdida”, vez que impõe o princípio de res-
ponsabilidade na ação política transnacional. Ao
trazer esse princípio ético e político para o plano
das relações internacionais, é importante ter em

301
ECOLOGIA POLÍTICA, MOVIMENTOS AMBIENTALISTAS ...

HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização – do


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POLITICAL ECOLOGY, ENVIRONMENTALIST L’ÉCOLOGIE POLITIQUE, LES MOUVEMENTS


MOVIMENTS AND TRANSNATIONAL ENVIRONNEMENTAUX ET LA CONTESTATION
CONTESTATION IN LATIN AMERICA TRANSNATIONALE EN AMÉRIQUE LATINE

Carlos R. S. Milani
Carlos R. S. Milani
Les années de l’après-Guerre Froide ont permis le
In the aftermath of the Cold War, there has been a renouvèlement du débat latino-américain sur les
renewal in the Latin American academic debate on tensions entre l’environnement, l’éthique et la politique
tensions between environmental protection, ethics and internationale. Les défenseurs de l’idée selon laquelle
international politics. Those who defend the idea that les relations internationales émergent exclusivement
international relations stem from an exclusive interaction de l’interaction entre des entités politiques souveraines
between sovereign and independent political entities are et indépendantes s’opposent à ceux qui soutiennent

CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 53, p. 289-303, Maio/Ago. 2008


confronted with those who reaffirm the relevance of many l´importance de bien d’autres acteurs outre l’Etat sur
other players beyond the state in the global ecopolitics. la scène écopolitique mondiale. Autrement dir, les
That means that the tenets of unconditioned sovereignty principes de la souveraineté inconditionnée et de la
and non-intervention, which have traditionally built the non-ingérence (qui ont traditionnellement construit
sense of ‘international relations’, are questioned by the le sens des « relations internationales ») sont remis
growing transnationalization of political demands by en cause par une croissante transnationalisation des
environmental movements in favor of ethical and revendications politiques des réseaux et des
responsible patterns of action and behavior. Rooted in mouvements écologistes en faveur de conduites éthiques
these premises, the present article is structured in two et responsables à l´égard de l’environnement planétaire.
parts: (1) a discussion on the process of internationalization Partant de ces présupposés, cet article se structure en
of the environmental problematique, and deux parties: (1) une discussion concernant le processus
contemporary tensions between environment, ethics, d’internationalisation de la problématique écologique
and international politics in Latin America; (2) an et des tensions contemporaines entre l’environnement,
analysis of political demands by Latin American l’éthique et la politique internationale en Amérique
environmental movements associated with Latine; (2) une analyse des questions soulevées par les
transnational antiglobalization contention in the World réseaux de mouvments écologistes latino-américains
Social Forum. agissant au cœur de la contestation transnationale du
Forum Social Mondial.

KEYWORDS: political ecology, environmental movements, MOTS-CLÉS: ecologie politique, mouvements écologistes,
transnational contention, international relations, Latin contestation transnationale, relations internationales,
America. Amérique Latine.

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