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A Noção de Identidade Étnica


na Antropologia Brasileira

De Roquette Pinto à Roberto Cardoso de Oliveira

Participantes da III Reunião Brasileira de Antropologia, organizada pelo Prof. René Ribeiro e realizada
no Recife, em 1958. Fotografia do Acervo particular do Prof. René Ribeiro, gentilmente cedida pela
Professora Celina Hutzler. Esta fotografia faz parte da Exposição Fotográfica: Memórias: III Reunião
Brasileira de Antropologia-Recife, 1958, exposta em Goiânia junho de 2006, para a comemoração dos 50 anos
da ABA, organizada pelos professores Renato Athias, Antônio Motta, Russell Parry Scott, e Celina
Hutzler, atualmente exposta no Hall do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Pernambuco.

2
Renato Athias

A Noção de Identidade Étnica


Na Antropologia Brasileira
De Roquette Pinto à Roberto Cardoso de Oliveira

Editora
Universitária UFP E

Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Universidade Federal de Pernambuco
2007

3
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Reitor: Prof. Amaro Henrique Pessoa Lins
Vice-Reitor: Prof. Gilson Edmar Gonçalves e Silva
Diretora da Editora: Profª Gilda Maria Lins de Araujo

COMISSÃO EDITORIAL
Presidente: Profª Gilda Maria Lins de Araujo
Titulares: Anco Márcio Tenório Vieira, Aurélio Agostinho da Boaviagem, Carlos Alberto Cunha Miranda,
Cláudio Cuevas, José Augusto Cabral de Barros, José Dias dos Santos, Gilda Lisboa Guimarães, Jairo
Simião Dornelas, José Zanon de Oliveira Passavante, Leonor Costa Maia.
Suplentes: Izaltina Azevedo Gomes de Mello, Aldemar Araújo Santos, Anamaria Campos Torres,
Christine Paulette Yves Rufino Dabat, Elba Lúcia Cavalcanti de Amorim, Gorki Mariano, José Policarpo
Júnior, Patrícia Cabral de Azevedo Restelli Tedesco, Rita Maria Zorzenon dos Santos, Vera Lúcia
Menezes Lima.

EDITORA EXECUTIVA
Maria José de Matos Luna

Editora associada à

Associação Brasileira de
Editoras Universitárias

Athias, Renato
A noção de identidade étnica na Antropologia brasileira : de Roquette Pinto
a Roberto Cardoso de Oliveira / Renato Athias; apresentação Edvânia Torres. –
Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2207.
134 p. : il., tab.

Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Universidade Federal de


Pernambuco.

Acompanha CD-Rom.

Inclui bibliografia
ISBN

1. Etnologia – Identidade étnica, Brasil. 2. Etnia brasileira – Fusão étnica –


Aculturação e transfiguração. I. Torres, Edvânia. II. Título.

397 CDU (2. ed.) UFPE


305.8 CDD (22. ed.) BC2007-035

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por


qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos,
fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a
recuperação total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a
inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético. Essas
proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração.

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SÉRIE LIVRO-TEXTO

A Série Livro-Texto faz parte do Programa de


Melhoria de Ensino da Graduação da UFPE. Em parceria
com a Editora Universitária, oferecemos à sociedade e, em
particular, à comunidade universitária, uma coleção, crite-
riosamente elaborada, cujo alvo é o estudante de graduação.
Cada obra foi escrita e organizada por um ou mais
professores da UFPE, que atenderam a uma chamada pública
em forma de Edital, cujos termos expressam os critérios
estabelecidos pela comunidade acadêmica para orientar a
confecção de cada livro. Dessa forma, concretizamos mais
um projeto da UFPE, participativa e transparente, reite-
rando o nosso compromisso com a democratização desta
instituição.
Gostaria de ressaltar que esta iniciativa se alia a outras
ações da UFPE, que visam a garantir a qualidade da
formação do estudante de graduação, através do apoio
aos docentes e à melhoria das condições materiais de
funcionamento dos cursos.
Esta Série que ora disponibilizamos à nossa comu-
nidade acadêmica, e aos leitores interessados nas questões
colocadas nessas obras, reflete a importância dos temas para
a formação em cada área do conhecimento, cuja importância
foi apontada e referendada por cada Centro Acadêmico da
UFPE, aliando relevância à institucionalização das iniciativas
docentes.

5
É, então, com imensa alegria que, juntamente com
a Editora da UFPE, disponibilizamos neste momento seis
títulos didáticos que compõem esta Série Livro-Texto:
A Mesagem e a Imagem, Ermelinda Ferreira - CAC; Saúde da
criança: para entender o normal, Marília Lima, Maria
Eugênia Motta e Gisélia Alves (Orgs.) - CCS; El Español para
brasileños: con atractivo agrado y asuntos de interes,
Antonio Torre Medina - CCSA; Organização financiamento e
gestão escolar para a formação do professor, Alice Happ
Botler (Org.) - CE; A Noção de identidade étnica na
antropologia brasileira, Renato Athias - CFCH; Tecnologia
do açúcar, Sebastião Castro e Samara Andrade – CTG.
Outros títulos surgirão, com vistas à ampliação do
acervo didático para o estudante de graduação e à criação de
oportunidades de publicação para o professor de nossa
Universidade, em mais uma ação de fortalecimento e
melhoria da formação acadêmica da UFPE.

Lícia de Souza Leão Maia


Pró-reitora para Assuntos Acadêmicos

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Ao Antropólogo
Roberto Cardoso de Oliveira
*1927 - †2006
In Memoriam

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8
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................ 11

INTRODUÇÃO................................................................. 15

1. A QUESTÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA................ 31

1. O Índio na Consciência Nacional .................................... 32


2. Identidade Étnica e Etnologia Brasileira ......................... 38
3. Principais Teorias - Plano de Leitura .............................. 49

2. TIPOS ÉTNICOS E FUSÃO DAS RAÇAS ............... 57


1. O Mito das Três Raças .................................................... 58
2. Mestiçagem: a Resposta ................................................... 64

3. ACULTURAÇÃO E TRANSFIGURAÇÃO
ÉTNICA .......................................................................... 71

1. Tipologia dos Estudos sobre a Aculturação ..................... 75


2. Herbert Baldus e a Mudança Cultural ............................ 83
3. Eduardo Galvão e a Aculturação ..................................... 87
4. Darcy Ribeiro e a Transfiguração Étnica ........................ 95

9
4. IDENTIDADE ÉTNICA: PERSPECTIVAS ESTRU-
TURALISTAS ............................................................... 107

1. O Contato como Ficção Interétnica ................................. 109


2. Frentes de Expansão e Colonialismo Interno .................. 113
3. A Identidade Étnica e Ideologia ...................................... 116

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS.............................. 126

10
APRESENTAÇÃO

Este texto fez parte da a minha Dissertação de


Mestrado, defendida no Departamento de Etnologia e
Sociologia da Universidade de Paris X (Nanterre), em
outubro de 1982, perante a banca de examinadores composta
pelos professores Patrick Menget, Jacques Gallinier e pelo
Prof. Julian Pitt-Rivers, meu saudoso orientador. Neste
trabalho busco, sobretudo, levantar questões pertinentes à
noção de identidade étnica tendo como pano de fundo a
produção antropológica brasileira. Espero que este estudo
possa suscitar debates entre os alunos do curso de Ciências
Sociais.
O texto original estava em francês, e tinha o subtítulo
de “De Roquette Pinto aos nossos dias”, ao realizar a tradução
fiz também uma revisão do mesmo incluindo as principais
referências aos trabalhos que surgiram após 1982, deixando
o essencial do texto original. Devo agradecer aos professores
Roque Laraia e Roberto Cardoso de Oliveira, que em
ocasiões diferentes tiveram oportunidade de ler o texto
original, e, sobretudo, pelo incentivo que ambos deram para
que eu realizasse a tradução e colocasse à disposição dos
alunos da graduação.

11
Transcrevo aqui um trecho do último e-mail que
recebi do Prof. Roberto Cardoso de Oliveira, em fevereiro de
2006, que foi fundamental para que eu iniciasse a tradução e
revisão do atual texto: “Estou em falta com você, desde quando
me pediu que desse minha opinião sobre a sua dissertação de
mestrado. Finalmente pude lê-la aproveitando este Carnaval que
termina hoje, terça-feira gorda. Numa leitura de sobrevôo - mas
absolutamente não desinteressada - meu primeiro comentário é de
que ela é publicável em português, desde que seja atualizada. Afinal
de contas ela é de 1982 e estamos em 2006. Porém, não creio que
você deva incluir tudo o que se produziu sobre a temática da
identidade étnica. Bastaria acrescentar o que foi publicado a partir
da década de 80, porém seletivamente. Não apenas trabalhos meus,
minha conferência, aí em Recife já dá algumas pistas, mas a de ex-
alunos como João Pacheco de Oliveira, (cuja a dissertação de
mestrado eu orientei na UnB, e examinei a de doutorado no Museu
Nacional), incluindo uma resposta minha a críticas dele, como a
que pude fazer na 4ª edição (Editora da Unicamp,1996) de meu ‚O
Índio e o Mundo dos Brancos‛, no meu Posfácio. (...) Porém, essas
minhas ponderações, não empobrecem em nada o seu texto que,
afirmo, pode e deve ser reaproveitado para uma publicação revista e
atualizada, algo que você mesmo, por sua própria conta, poderá
realizar. Receba o meu mais fraterno abraço. RCO‛.
Ao mudar o subtítulo deste texto quero fazer uma
homenagem ao professor Roberto Cardoso de Oliveira e
dedicar-lhe esse trabalho. Nesses últimos 40 anos ele se
dedicou aos estudos da identidade étnica, dando pistas e
enriquecendo o debate acadêmico sobre essa temática na

12
antropologia brasileira. Ele, contra o pensamento dominante
na época, defendeu que a perspectiva dos povos indígenas
não era a assimilação pela sociedade nacional. Ele foi
também responsável pela formação de um número
significativo de antropólogos, que hoje estão atuando nas
diversas universidades brasileiras.
Por fim gostaria de agradecer aos colegas Vânia
Fialho, Peter Schröder, Marcelo Medeiros e Cynthia Hamlin
pela leitura e sugestões; bem como a Nicolette van der
Linden pelo seu apoio na tradução, a Karina Leão Rodrigues
e a Albertina Farias pela revisão do manuscrito.

Renato Athias
Paris, novembro de 2006

13
INTRODUÇÃO

‚Vou fazer-lhes conhecer as palavras de meus irmãos, aqueles


que chamam "índios". Não sei se é por ignorância, por
desprezo, ou para dar um nome às coisas, mas para muita
gente, somos apenas uma coisa. Estas palavras contarão o
último ato do drama que vivemos desde que os homens da outra
raça, da outra cultura, do outro mundo puseram os pés nas
nossas terras. O homem branco, aquele que se diz civilizado,
pisoteou não somente a terra, mas a alma de meu povo e os rios
incharam, e o mar tornou-se mais salgado porque meu povo
derramou muitas lágrimas‛. (Txibae Ewororo, 1976)

Estas palavras são de Txibae, Bororo de Meruri no


Mato Grosso, fazem parte da introdução resumida das três
primeiras assembléias indígenas, publicada pela revista
Vozes em 1976. Nas numerosas assembléias realizadas no
Brasil nestes últimos anos, a questão da identidade étnica foi
sempre um dos principais temas debatido e a identidade
indígena foi sempre reafirmada. E é, sem dúvida, a partir
dessas reuniões interétnicas que surge, para muitos, a
motivação de resistir e lutar para o fortalecimento de uma
identidade indígena organizacionalmente distinta e diferen-
ciada do restante da população brasileira.

14
Roberto Da Matta, no prefácio da segunda edição de
seu livro sobre os Gaviões, publicado em 1979, diz: "nunca
fiquei tão feliz por estar enganado. E nunca tamanho erro foi tão
importante para pesquisar fora de uma antropologia da integração
uma antropologia que pensasse realmente menos em decretar a
morte dos índios que em procurar melhor compreendê-los enquanto
sociedades concretas e específicas". Esta frase faz com que a
antropologia se torne um objeto de investigação. É com este
sentimento — da antropologia como objeto — que
apresentamos este trabalho.
O objetivo principal é o de apresentar como os
antropólogos e cientistas sociais produziram conhecimento a
respeito da idéia da identidade étnica. Não se trata de fazer
um desenvolvimento histórico, amplo e minucioso do
desenvolvimento dessa noção na Antropologia brasileira, e
sim mostrar como foi construído nas ciências sociais no
Brasil, e tentar aproximar com o discurso político das
populações indígenas. Pretendemos também identificar
elementos para uma pergunta que nos parece fundamental
na construção desse conceito, e por vezes, deixada de lado.
Podemos resumi-la da seguinte maneira: Sobre que base um
povo etnicamente distinto (e minoritário) da sociedade nacional
pode manter sua identidade étnica e cultural? Gostaria de
enfatizar que a sobrevivência e resistência dos povos
indígenas do Brasil e das Américas constituem, sem dúvida,
um dos fatos mais significativos da história das relações
interétnicas da humanidade. No decorrer de todos os anos de
colonização e de dominação às quais os povos indígenas
foram submetidos, e o desenvolvimento das diversas formas
de relação que essas populações mantiveram, e continuam

15
mantendo com os estados nacionais, sempre existiram
possibilidades de criar posturas antagonistas entre o Estado e
os povos indígenas. E, hoje, o grande desafio para os povos
indígenas das Américas tem sido o de buscar novas
estratégias de negociação com os governos dominantes e
criar modelos de resistência étnica a partir dos processos de
contato com sociedades ainda coloniais. As relações entre o
estado nacional e os povos indígenas foram se definindo em
diferentes contextos sociopolíticos tendo como pano de
fundo as três dimensões presentes nos processos de
formação dos estados nacionais na América Latina: a
primeira, a busca para uma concentração econômica dos
recursos, um modelo de desenvolvimento de fronteiras; a
segunda, um poder centralizador em todos os níveis; e a
terceira, uma fictícia “unidade étnica” nacional.
Os estudos sobre a identidade étnica tem sido um
tema importante nas ciências sociais, pois trata especi-
ficamente da relação indivíduo/sociedade. No entanto, o
pensamento social sobre as questões étnicas e raciais
compartilhou uma perspectiva eurocêntrica resultado de um
“evolucionismo social1” onde a história é concebida a partir
de uma linearidade sem levar em consideração os diversos
contextos políticos e condições sociais na relação que se
estabelece entre indivíduo e sociedade. Em muitas esferas do
conhecimento e das atividades humanas, no Brasil e também

1
“...a história pode ser concebida em termos de „enredo‟ que impõe uma imagem
ordenada sobre uma mixórdia de acontecimentos. A história começa com culturas
pequenas, isoladas, de caçadores e coletores, se movimentam através do desenvolvimento
de comunidades agrícolas e pastoris daí para formação de estados agrários, culminando
na emergência de sociedades modernas no ocidente.” GIDDENS, Anthony.
As Conseqüências da Modernidade. Unesp, São Paulo, 1991 p.15)

16
em outros países, será necessário mais do que a reformulação
de conceitos. Sente-se a necessidade da transformação radical
de muitos deles e a criação de novas referências, abordagens,
teorias, códigos e comportamentos. Muitas áreas exigem
nova ética e mesmo novas teorias2. Buscam-se abordagens
teóricas que espelhem as práticas sociais e que possibilitem
apresentar a produção de identidades étnicas para além do
eixo norteador de equivalência que incorpora excluindo.
‚O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a
necessidade de passar além das narrativas de subjetividades
originárias e iniciais é de focalizar aqueles momentos ou processos
que são produzidos na articulação de diferenças culturais3‛.
A produção de conhecimento sobre “classe” e
“gênero” como categorias conceituais ampliou a necessidade
de ver a posição do sujeito, de gênero, do local institucional,
do lugar geopolítico, da orientação sexual dando maior
sentido as questões relacionadas à identidade. É necessário,
portanto, compreender a identidade étnica dentro de um
campo que articula diferentes elementos e subjetividades o
qual possibilita a permanente re-escrita da história em
decorrência de seu movimento relacionado ao um tempo e
um espaço. Procura-se hoje perceber novas articulações e a
produção de outros sujeitos até então ignorados e a criação
de novas fronteiras de negociação que possibilitem emer-
gência de identidades negligenciadas na atual estrutura de
poder.

2
Veja Hall, Stuart Identidades Culturais na Pós-Modernidade. DP&A Editora, Rio de
Janeiro, 1996
3
Cf. BABHA, H. O Local da Cultura. Ed. UFMG, Belo Horizonte,1998 p.20

17
A partir da Constituição Federal de 1988 os povos
indígenas recuperam seus direitos originários e podem
constituir-se como cidadãos etnicamente diferenciados,
mostrando assim a possibilidade de existência de um Estado
pluriétnico. Porém a letra da constituição não garantiu,
ainda, a inclusão das comunidades étnicas a uma partici-
pação plena nas políticas públicas de desenvolvimento, em
que estas, possam exercer plenamente seus direitos. Apesar
de um “crescimento econômico” anunciado pelo governo, as
comunidades étnicas constituem-se em grupos vulneráveis
que buscam soluções para seus problemas que tendem a
agravar-se devido à política do Estado mínimo, onde não há
espaço para políticas sociais que incluem as minorias étnicas.
De acordo com os levantamentos populacionais
existentes, vivem hoje no Brasil cerca de 210 povos indígenas
falando cerca de 170 línguas diferentes, dos quais 60% da
população têm seus territórios situados nos estados da
Amazônia Legal, totalizando cerca de 97.342.896 hectares,
representando 98,7% da área total das terras indígenas.
Observa-se que os índios se encontram em um processo de
empobrecimento devido a situação de contato e a forma
de desenvolvimento implantada até então em suas
áreas provocando situações de marginalidade econômica.
Um levantamento preliminar no banco de dados da
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira (COIAB) indica que existência de cerca de 310
organizações indígenas em diversos estágios de desen-
volvimento institucional na Amazônia indicando um mo-
vimento em direção a uma mobilização com relação ao
fortalecimento de suas identidades étnicas.

18
Os grupos étnicos estão relacionados ao processo de
territorialização, no sentido que as constituições de seus
territórios estão intimamente relacionadas às suas
identidades étnicas e ao exercício da cidadania plena.
Atualmente, de acordo com as informações da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) existem 371 terras indígenas
demarcadas ou em processo de demarcação representando
98% da extensão dos territórios indígenas do Brasil dos quais
19% das terras da Amazônia Legal. Esses territórios estão
situados em ecossistemas frágeis e ameaçados por interesses
econômicos e geopolíticos das frentes de expansão da
sociedade nacional. Essas terras4 são negociadas dentro de
um quadro político preciso cujos parâmetros estão
estabelecidos pelo Estado. As áreas indígenas situadas na
Amazônia Legal, nestes últimos anos, receberam um apoio
significativo nos processos de identificação, demarcação e
homologação, através do Projeto de Proteção as Terras
Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), com recursos
provenientes do PPG-7 enquadradas no argumento de
proteção das florestas tropicais. Quase as totalidades dessas
terras já foram identificadas e muitas delas já se encontram
demarcadas, inclusive com a participação efetiva das
comunidades indígenas.
A mobilização política, dos povos indígenas no
Nordeste como também entre as comunidades quilombolas,

4
“...a atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-
chave para apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o
funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”
OLIVEIRA, João Pacheco Uma Etnologia dos Índios “Misturados”? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco A Viagem da Volta.
ContraCapa, Rio de Janeiro, 1999 p. 20.

19
proporcionam elementos para a afirmação de suas iden-
tidades e está alicerçada no processo de reconquista
territorial. Nas últimas décadas os grupos indígenas no
Nordeste vêm reivindicando seu reconhecimento oficial 5.
Esse fenômeno vem sendo denominado por alguns
antropólogos de “etnogênese”, abrangendo tanto a emer-
gência de novas identidades como a “ressurgimento” de
etnias tidas como desaparecidas historicamente.
No que se refere às terras indígenas do Nordeste a
situação é bem diferente, justamente por não haver recursos
alocados por parte do governo, para executar as
demarcações. A maioria delas encontra-se em processo de
identificação e de desentrusamento de posseiros. Neste
sentido, tanto para os grupos indígenas quanto para as terras
quilombolas, hoje já em processo de identificação e
demarcação relacionada à política existente de reconhe-
cimento oficial das “terras de negros”, a identidade étnica
está associada à noção de territorialização é definida como
um “processo de reorganização social que implica: i) a
criação de uma nova unidade sociocultural mediante ao
estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora;
ii)a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a

5
Na década de 20 do século passado, havia apenas um grupo indígena reconhecido pelo
Estado no Nordeste; na década de 30, três grupos são reconhecidos; na década de 40, sete
grupos foram reconhecidos. Entre as décadas de 50 e 60, não houve o reconhecimento de
nenhuma etnia, porém, a partir dos anos 70 existe um aumento significativo de
reconhecimento de povos indígenas no Nordeste: quatro nos anos 70; quatorze na década
de 80 e até o ano de 1998 observamos o acréscimo de dez grupos indígenas oficializados
pela FUNAI. Com uma população total de mais de 60.000 indivíduos, as terras referentes
a esses povos totalizam 247.888,7 hectares da região Nordeste.(Cf. Vânia Fialho de Paiva
e Souza. Desenvolvimento e Associativismo Indígena no Nordeste Brasileiro:
Mobilizações e Negociações na Configuração de uma Sociedade Plural.. 2003. Tese
(Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Pernambuco).

20
redefinição do controle social sobre os recursos ambientais e
iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado” 6.
As agências multilaterais e bilaterais de desenvol-
vimento deveriam incorporar estratégias para o forta-
lecimento das identidades étnicas e garantir a participação
dos povos indígenas em espaços onde eles possam buscar
mecanismos de discussão sobre o seu próprio desen-
volvimento levando em consideração suas especificidades
culturais. Nestes últimos anos, os povos indígenas, aliados
ao argumento da preservação ambiental, têm conseguido
espaços significativos em programas de desenvolvimento
voltados para a Amazônia. No entanto, estes programas
ainda carecem de maior apoio por parte de setores do
governo. Os índios localizados em outras regiões, repre-
sentam cerca de 40% da população indígena, ainda sem um
argumento de apelo a nível internacional, se encontram
talvez em outra situação, sobretudo por não terem ainda
suas terras demarcadas e garantidas.
Nesse sentido, vale mencionar que o desenvolvimento
dos estudos sobre identidade étnica e a produção acadêmica
sobre essa temática tem subsidiado iniciativas, por exemplo,
para reduzir a pobreza das comunidades etnicamente
diferenciadas. Ver o caso dos governos europeus que têm a
Resolução7 N.30 do Conselho da União Européia, de 30 de

6
OLIVEIRA, João Pacheco, Uma Etnologia dos Índios “Misturados”? Situação Colonial,
Territorialização e Fluxos Culturais. In: OLIVEIRA, João Pacheco A Viagem da Volta.
ContraCapa, Rio de Janeiro, 1999 p.18.
7
O Conselho de Resolução da União Európeia afirma ainda que “the development
cooperation should contribute to enhancing the right and capacity of indigenous peoples
to their “self-development” . This implies integrating the concern for indigenous peoples
as a cross-cutting aspect at all levels of development cooperation, including policy
dialogue with partner countries and enhancing the capacities of indigenous peoples‟

21
novembro de 1998, que baseando-se no Working Document8 of
the Comission of May 1998, reconhece que muitos povos
indígenas encontram-se em situação de marginalidade
econômica indo em contra os direitos humanos. O Conselho
da UE afirma a necessidade de possibilitar o
desenvolvimento denominado de “Self-developement” de
acordo suas tradições culturais e suas identidades. O
Conselho também conclama os Estados membros a
elaborarem políticas e estratégias para promover o
desenvolvimento para os povos indígenas e aumentar apoio
adequado e efetivo para estas populações. Portanto, as
agências de cooperação internacional já incluem em seus
discursos e em suas estratégias a participação social como
mecanismo que permita às organizações da sociedade civil
debater os seus programas e projetos de desenvolvimento.
No entanto, esta participação ainda não está internalizada
como estratégia de desenvolvimento para a redução da
pobreza em outros níveis onde as políticas públicas são
debatidas.
Portanto, falar em etnodesenvolvimento é falar em
autonomia política das comunidades étnicas. Esse conceito
está longe de ser discutido no âmbito dos Estados Nacionais,
que em sua maioria ainda é centralizador, baseado em uma
política social nos moldes do neoliberalismo. No entanto, o
movimento indígena vem através de suas manifestações
políticas reivindicando maior autonomia. E o governo vem

organisations to take effective part in the planning and implementation of development


programmes”.
8
Conferir também um guia de desenvolvimento produzido pelo Departement for
International Development do Governo Britânico (DFID): Ethnicity, Ethnie Minorities
and Indigenous Peoples (1995).

22
dando indicativos de uma maior participação. Ou seja,
ampliar a participação dos índios nos processos decisórios.
E isso pode representar um passo para pensar a autonomia
econômica das populações indígenas e, portanto, em um
desenvolvimento que leva em consideração as identidades
étnicas.
Acredito que essa discussão está sendo realizada na
América Latina. O processo de busca da autonomia
representa, em última análise, um pacto entre a sociedade
nacional (cuja representação assume o Estado Nacional) e os
grupos étnicos, que reclamam o reconhecimento de seus
direitos históricos. Esse acordo será o resultado de um
grande processo de discussão envolvendo os dois lados. E
esse processo não acabará simplesmente com o
estabelecimento de uma legislação para governos
autônomos, mas será consolidado aos poucos em ajustes
administrativos. O processo de constituição de autonomias é
fruto de discussões e acordos entre partes iguais e livres.
É aqui que se situa o elemento central desse processo:
autonomia não pode ser resultado de uma decisão unilateral.
Esse debate não é novo e iniciou-se ainda na década
de setenta, na reunião de Barbados I (1971), na reunião do
Parlamento do Cone Sul (1974), Asunción-Paraguai, nova-
mente em Barbados II (1976), na reunião de San José,
na Costa Rica, patrocinada pela UNESCO. E esse debate
vem sendo colocado através dos trabalhos de Rodolfo
Stavenhagen9 (1984, 1988, 1992), atual Relator Especial das

9
STAVENHAGEN, Rodolfo. Derecho indígena y derechos humanos en América Latina,
El Colegio de México/Instituto Latinoamericano de Derechos Humanos, 1988;
“Comunidades étnicas y Estados Modernos”, América Indígena, México, vol. XLIX,

23
Nações Unidas sobre os Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais dos Povos Indígenas, e que tem participado
de importantes reuniões em Genebra no âmbito da OIT e de
outros organismos internacionais. Nesses espaços, têm sido
discutidas as teorias sobre identidade étnica que dão
sustentação aos princípios do etnodesenvolvimento, colo-
cando-se como uma crítica às teorias de desenvolvimento
hegemônicas praticadas pela maioria dos países da América
Latina. O etnodesenvolvimento se coloca como uma
possibilidade de desenvolvimento econômico, proporcio-
nando o aumento da qualidade de vida e o fortalecimento
das identidades étnicas das populações indígenas.
Os analistas10 das políticas indigenistas na América
Latina dizem que o Estado Moderno nasce quando se dá
o reconhecimento oficial da autonomia das populações
indígenas, e o reconhecimento dos outros (dos diferentes)
como sujeitos. E isso inclui o respeito à vida do outro, a
aceitação de sua autonomia em todos os sentidos e,
sobretudo, a aceitação de uma igualdade de condições no
diálogo sem coação de nenhum dos lados. As definições até
então apresentadas, seja em trabalhos científicos ou mesmo
através das ações dos estados americanos em relação aos
povos indígenas, indicam alguns caminhos que precisam ser

1989; “Los derechos indígenas: algunos problemas conceptuales”, Nueva Antropología,


México, vol. XIII, núm. 43, noviembre, 1992; “Los derechos indígenas: nuevo enfoque
del sistema internacional”, in Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas 3.
Antropología Jurídica, Instituto de Investigaciones Jurídicas/UNAM, pp. 87-119, 1995.
10
Villoro, Luis. Los grandes momentos del indigenismo en México, México, CIESAS,
SEP, Lecturas mexicanos, 1987; e “Los pueblos indios y el derecho de autonomía”,
Cuadernos del Instituto de Investigaciones Jurídicas, a) Derecho Indígena, núm. 4,
México, UNAM, pp. 123-140, 1996

24
trilhados para implementar um processo de desenvol-
vimento que leve em consideração as identidade étnicas.
Gostaríamos de elencar os principais pontos de uma
pauta reivindicatória que deveria estar presente em uma
política de Estado, tendo em vista as questões que envolvem
as identidades étnicas11. Essas proposições, abaixo descritas,
foram retiradas a partir de documentos divulgados pelas
organizações e movimento indígena nestes últimos anos: 1. A
clareza nos direitos de propriedade da terra. Aqui se verifica
tudo que diz respeito aos territórios indígenas: as questões
sobre a utilização do solo e do subsolo e a plena utilização
das terras, tendo a Constituição de 1988 já avançado nessas
questões, porém sem uma legislação complementar; 2. O
reconhecimento e a garantia da voz política dos povos
indígenas, não só como cidadãos individuais, mas sobretudo
como povo, como grupo, como culturas distintas. Isso
significa aceitar as relações interculturais. Esse
reconhecimento proporciona aos grupos étnicos agentes
ativos de seu próprio desenvolvimento; 3. O respeito à
identidade cultural indígena, tendo em conta que qualquer
modelo de desenvolvimento econômico deveria fortalecer as
diversas identidades; 4. O reconhecimento formal das
organizações existentes entre os povos indígenas,
assegurando as suas formas próprias de gestão e
representação política em projetos apoiados pelos governos;
5. Apoios a iniciativas indígenas que visem à ampliação dos
recursos naturais existentes nas áreas indígenas, buscando

11
Conferir por exemplo Miguel Bartolomé e Alicia Barradas. Autonomías étnicas y
Estados nacionales, México, INAH 1998

25
fortalecer seus modelos de gestão dos recursos naturais em
suas terras; 6. Apoios concretos à manutenção da segurança
alimentar nos territórios indígenas, respeitando as práticas
tradicionais de exploração dos recursos naturais; 7. A
responsabilidade social do Estado em apoiar serviços de
saúde dignos e de qualidade nas áreas indígenas; uma
educação intercultural bilíngüe e atividades que possam
promover a geração de renda respeitando as tradições
culturais dos povos indígenas. Esses pontos acima
mencionados não estão isolados. Para colocar em andamento
uma política de etnodesenvolvimento clara, com respeito às
identidades étnicas, deveriam ser interconectados e deverão
ser visto como formas internas de discussão sobre questões
de desenvolvimento entre os povos indígenas.
Antes de começar a escrever a "história" da produção
do conhecimento sobre a identidade étnica através da
Antropologia brasileira12, partindo da noção de Fusão das
Raças, passando pela Teoria da Aculturação, da Transfi-
guração Étnica, e de Fricção Interétnica, para chegar à idéia
das relações interétnicas, procuramos nos dicionários e
enciclopédias as palavras etnia, étnica e identidade. Para
nossa grande surpresa, foi interessante constatar que os
termos: etnia e étnica têm uma utilização recente nas

12
Antropologia Brasileira em seu sentido amplo, tendo em vista, pricipalmente a
produção no campo disciplinar da etnologia indígena. Sobre isso acho importante a leitura
do trabalho de Julio César Mellati intitulado: Antropologia no Brasil: um Roteiro,
publicado originalmente na Série Antropologia da UNB, 38, 1984, republicado em
O que se Deve Ler em Ciências Sociais no Brasil, vol. 3, pp. 123-211, São Paulo: Cortez e
ANPOCS, 1990. Outro trabalho importante para entender antropologia no Brasil ler:
PEIRANO, Mariza Gomes e Souza. 1980. The Antropology of Anthropology: the
Brazilian case. Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Harvard,
Cambridge.

26
Ciências Sociais. Em geral, o termo étnico sempre foi
utilizado como adjetivo qualificativo de outros termos como:
grupo, relações etc. O termo etnia inseriu-se no glossário
técnico das Ciências Sociais em oposição ao termo "raça" no
intuito de limpá-lo de tudo o que pudesse ser identificado
como fruto das teorias racistas.
Estamos surpresos com a abundante literatura pro-
duzida a respeito da identidade étnica13, e também com o
fato de que a questão da identidade está inserida em quase
todas as disciplinas que estavam na ordem do dia, na última
metade do século passado. A compilação da etnologia
brasileira feita por Baldus (1954-1968) assim como seus
comentários nos foram preciosos.
No primeiro capítulo, pareceu-nos importante mostrar
o que pensa a sociedade nacional hoje da população indígena
que agrupa cerca de 210 povos diferentes que sobreviveram
ao massacre de quase três milhões indivíduos — segundo a
hipótese mais conservadora — que existiam antes da invasão
portuguesa. Elaboramos em seguida um quadro tipológico
onde aparecem as principais teorias que possibilitaram um
debate e que se referem à questão da identidade étnica. É a
partir desta tipologia que elaboramos os capítulos seguintes,
os quais são desenvolvidos tendo em conta a produção
antropológica e o desenvolvimento dessas teorias, sem, no
entanto aprofundar, mas com o intuito de propor pistas para
futuros estudos.

13
Conferir: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne (Orgs). Teorias da
Etnicidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1998.

27
No segundo capítulo, "Tipos Étnicos e Fusão das
Raças" tentamos mostrar como esta teoria foi aceita pelos
meios intelectuais brasileiros e como a mesma impregnou-se
em na intelectualidade brasileira. Em última instância, tal
teoria lançou as bases do que chamamos hoje de “racismo
brasileiro”. Consideramos Gilberto Freyre como um dos
representantes desta corrente de pensamento, veste o caráter
significativo de suas obras e a influência que teve na
formação do pensamento brasileiro.
Nos capítulos seguintes, elaboramos um histórico do
desenvolvimento das teorias da Aculturação nos trabalhos
de Eduardo Galvão; da noção de Transfiguração Étnica nas
obras de Darcy Ribeiro. E finalmente, na última parte
discutimos a perspectiva de Fricção Interétnica sob a ótica
das investigações do antropólogo Roberto Cardoso de
Oliveira, pois certamente este pesquisador é o que mais
influenciou os estudos mais recentes sobre a identidade
étnica.

28
1. A QUESTÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA

A historiografia oficial sempre mostrou os povos


indígenas como se eles tivessem desaparecido desde os
primeiros contatos ocorridos na costa brasileira. Ainda hoje,
os manuais escolares evitam falar dos povos indígenas, ou
quando falam, usam uma conotação racista e se referindo a
um passado longínquo.
Em 1975, Roberto Cortez fez uma pesquisa na cidade
do Rio de Janeiro para “detectar” a imagem que uma
população urbana tinha do índio. A pesquisa revelou que o
indígena é considerado como um animal, ou 'quase um
animal', feroz, perverso, maldoso, selvagem, antropófago,
mas é também muitas vezes comparado potencialmente ao
homem branco: "o índio não é necessariamente maldoso, isto
depende das circunstâncias, há brancos mais maldosos que
os índios..." Há também a idéia de que o índio não é violento
ou de que a violência do índio seria a conseqüência do mal
que lhe fizeram. Às vezes, o índio é percebido como sendo
trabalhador, mas em contrapartida, ele é visto como
indolente inútil para a sociedade "civilizada" (CORTEZ 1975,
p. 10-11)14.

14
Ver também “O que os brasileiros pensam dos índios?” resultado da pesquisa
que o IBOPE realizou de âmbito nacional, encomendada pelo ISA (Instituto
Socioambiental), sobre o que os brasileiros pensam dos índios.

29
1.1 - O Índio na “Consciência” Nacional

Esta imagem atribuída ao índio se generalizou em


todos os setores da sociedade brasileira. Para aqueles que
detêm o poder, esta idéia torna-se perigosa à medida que
eles decidem o destino das populações indígenas. A guisa de
ilustração, reproduzimos aqui as palavras do Brigadeiro
Protásio Lopes de Oliveira, que esteve muitos anos na chefia
do Comando Aéreo da Amazônia e visitou numerosas
aldeias indígenas da região, através do serviço do Correio
Aéreo Nacional - CAN mantido pela Força Aérea Brasileira -
FAB em apoio às missões religiosas das regiões Norte e
Nordeste. Ele diz que indígena exprime: “somente uma
condição social inferior, um modo de vida primitivo como o dos
favelados do Rio de Janeiro, os habitantes dos mocambos em Recife,
os alagados de Belém e outros semelhantes no nosso Brasil; que
vivem num submundo de miséria, de doença, de imundície e de
mortalidade infantil, tendo necessidade de uma educação e de
cuidados especiais, a começar pelo índio, pelo ensino da língua
pátria, que os outros, de certa maneira, já conhecem" (ALVES DA
SILVA 1979:5).
Tal coleção de clichês representa, antes de tudo, uma
atitude muito difundida entre os brasileiros, e que se
caracteriza por um paternalismo muito forte, mesmo as
instituições oficiais encarregadas de executar a política
indigenista do governo, não fogem a estes estereótipos.
Atualmente, no Brasil, a Fundação Nacional do Índio -

http://www.socioambiental.org/pib/portugues/indenos/quepens/index.shtm Ver também o


livro de Márcio Santilli, Brasileiro e os Índios, São Paulo, SENAC, 2000.

30
FUNAI - é a instituição federal encarregada de formular
e executar a política indigenista do Estado brasileiro.
Foi criada em 1967, após a extinção do Serviço de Proteção ao
Índio15 (SPI) acusado e denunciado internacionalmente, em
sua última fase, de irregularidades administrativas e de
colaborar com a exterminação dos índios, em vez de
defendê-los. O trabalho de vários antropólogos no Brasil
relata essa fase da política indigenista, entre os quais o de
Antônio Carlos de Souza Lima16.
A política indigenista oficial aplicada depois da
criação do SPI em 1910, nunca enfocou de fato a diversidade
cultural dos índios do Brasil. O índio sempre foi considerado
uma categoria genérica devendo ser integrado à sociedade
nacional. E o próprio órgão oficial colabora na difusão desta
imagem do índio genérico. Tal integração pressupõe, desde o
começo, que uma só política de aproximação e atração é
utilizada para todos os grupos indígenas em qualquer
grau de contato com a sociedade nacional. Esta política
indigenista na sua prática confirma a "redução" das
etnias indígenas a uma só categoria abstrata chamada:
índio, inventada pelo “civilizado” outra categoria abstrata
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978 p. 14). No entanto, atribuir
às populações indígenas uma identidade única, genérica,
leva a mistificar uma realidade altamente complexa de
maneira muitas vezes inoportuna.

15
Sobre a criação do Serviço de Proteção aos Índios ver: Darcy Ribeiro (1977) "Os índios
e a civilização" parte II "A intervenção protecionista", p. 127- 207 .
16
LIMA, Antonio Carlos de Souza . Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar,
Indianidade e Formação do Estado no Brasil, Petrópolis: VOZES, 1995.

31
Do ponto de vista legal, a FUNAI foi o órgão "tutor"
dos índios, visto que o índio foi considerado juridicamente
como "relativamente incapaz". Parece que o legislador quis
oferecer às comunidades indígenas a proteção do Estado
contra a voracidade do capital e das empresas. Entretanto,
hoje, este aspecto da legislação é interpretado com uma
conotação assistencialista e paternalista. O índio no Brasil foi
também considerado como menor e juridicamente com o
mesmo estatuto de deficiente mental pelo antigo Código Civil.
Assim, esta medida, que deveria levar em princípio o Estado
brasileiro a assegurar proteção aos índios, foi de fato
interpretada de maneira diferente (Estatuto do Índio, Lei
6001/73, cap. II). Porém, com a constituição de 1988, esse
“poder tutelar” deixa de existir. E o referido estatuto
caducou. No entanto, apesar de existirem três versões do
projeto de lei do novo estatuto tramitando no Congresso
Nacional, tal regimento nunca foi posto em votação nesses
últimos doze anos.
Somente a partir de um reconhecimento claro do fato
que existe no Brasil vários grupos étnicos diferenciados, e
consequentemente problemas diversos, que se pode chegar a
uma política indigenista mais adequada para esses grupos. É
admitindo a existência de etnias e sua especificidade que se
pode tentar estabelecer uma política mais racional e reparar
os desgastes já causados pela insistência secular em
considerar o índio como igual em todos os lugares.
É importante mencionar aqui os avanços na política
indigenista brasileira advindos com a Constituição de 1988.
O modelo jurídico-institucional da política para os povos
indígenas, a partir da atual Constituição foi ampliado

32
consideravelmente. Com relação às terras indígenas a
Constituição reconhece não apenas a ocupação física das
áreas habitadas pelos índios, mas sim a ocupação de acordo
as tradições culturais. Neste sentido, o Artigo 20 amplia o
conceito de território indígena a toda extensão de terra
necessária à manutenção e preservação das tradições
imemoriais e culturais dos povos indígenas. O Artigo 22
mantém a competência do Estado para legislar sobre as
populações indígenas e reconhece assim o direito dos índios
de preservar sua identidade étnica e suas formas de
organização abandonando assim o caráter de transitoriedade
da condição de indígena que cessaria com a chamada
“integração dos índios à comunhão nacional”. O Artigo 215
garante a educação bilíngüe assegurando-lhes a utilização de
suas línguas e processos próprios de aprendizagem. O atual
texto constitucional abandona explicitamente a ações inte-
gracionistas e direciona as ações indigenistas para a
valorização da identidade étnica e do patrimônio cultural
(tangíveis e intangíveis) dos povos indígenas. Os parágrafos
dos Artigos 231 e 232 contêm as bases sobre os direitos
indígenas e ressaltam o reconhecimento da identidade
própria e diferenciada, os direitos originários, determinam a
demarcação das terras indígenas, e reconhece as formas de
organização social como partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa de seus direitos e interesses.
Cardoso de Oliveira (1978, p. 70-72), na intenção de
determinar as atitudes tomadas em relação aos povos
indígenas, elaborou quatro tipos de mentalidades existentes
no Brasil, às quais chama de "Obstáculos ideológicos a um
indigenismo racional". Para ele, existe uma mentalidade

33
estatística que se preocupa com números: "Por que se
preocupar com alguns milhares de índios, se o grande
problema do país é o destino de milhões de brasileiros?".
Neste caso, só a quantidade importa. Esta mentalidade pode
ainda se exprimir na seguinte questão: "Que significa a morte
de algumas dezenas de índios se no Brasil milhares de
crianças morrem diariamente?". Quanto à mentalidade
romântica, desenvolve, sobretudo entre os intelectuais, e não
tem a possibilidade de influir sobre os meios de decisão;
exprime-se através de uma imagem estereotipada do índio
adquirida na literatura, como por exemplo, os textos de José
de Alencar, Gonçalves Dias entre outros, até os autores
contemporâneos. O índio aí é visto como: puro, ingênuo e o
sistema sócio-político deste “bom selvagem” são
apresentados como um paraíso ideal, um modelo a ser
imitado. O terceiro obstáculo é o de mentalidade burocrática
e trata-se da imagem existente na administração oficial,
impregnada de um paternalismo exagerado e influenciada
por certa dose de "romantismo"; esta visão era dominante
entre os primeiros funcionários do SPI que não tinham
nenhuma preparação técnica ou científica e substituíam esta
falta por esta perspectiva. É preciso assinalar que esta
mentalidade não é mais dominante em nossos dias.
Finalmente, a quarta mentalidade, a capitalista, seria
aquela que existe, sobretudo nos principais meios de decisão.
Aqui os índios são vistos como improdutivos. Para ilustrar
esta mentalidade, que hoje é mais observada no caso
brasileiro, seria preciso relembrar a célebre frase do ex-
ministro do Interior, Costa Cavalcanti, à imprensa brasileira:
"Daremos toda nossa assistência ao índio, mas ele não poderá ser

34
um obstáculo ao desenvolvimento do país" (O Estado de São
Paulo, 21.2.71), depoimento pronunciado no momento em
que o Parque Nacional do Xingu era cortado por uma
estrada (a BR 080). Nesta mesma ocasião, um representante
da Associação das empresas de agropecuária da Amazônia
declarou igualmente à imprensa: "As grandes planícies que
constituem uma parte do território do Parque poderiam ser
utilizadas de maneira racional com a implantação de fazendas
experimentais nas quais os próprios índios poderiam ser
empregados nos trabalhos agrícolas".
Este pensamento ganha aos poucos os setores oficiais
a ponto de integrar em programa de partido político de
governos anteriores. Seria possível dizer que este olhar sobre
os povos indígenas sempre esteve presente no
desenvolvimento de uma política indigenista no Brasil,
desde a colonização até nossos dias. Os índios representam
apenas mão-de-obra para os grandes investimentos, e ainda,
eles não são reconhecidos como um grupo social etnicamente
diferenciado. Medidas oficiais tentaram, na verdade, reduzir
até mesmo negar a identidade indígena. A FUNAI chegou a
propor os "critérios sangüíneos" entre certos grupos
indígenas do nordeste brasileiro, pretendendo com isso
identificar a indianidade dessas populações. Em 1981 foi
constituída uma comissão encabeçada pelo Coronel Ivan
Zanoni, para elaborar os critérios de indianidade a ser
aplicado no Brasil a partir critérios sangüíneos. Os critérios
foram criados com a recomendação de que tais indicadores
não precisavam ser justificados, mas simplesmente listados.
Vale esclarecer que o documento apresentado faz menção à
comunidade científica, mas esta jamais foi sequer consultada.

35
Sobre essa questão merecem ser consultado os trabalhos de
Manuela Carneiro da Cunha, Legislação indigenista no século
XIX. São Paulo: EDUSP/COMISSÃO PRÓ-INDIO, 1992; Os
direitos do índio : ensaios e documentos. São Paulo : Brasiliense,
1987 e Definições de índio e de comunidades indígenas, In:
SANTOS, Sílvio Coelho (Org.). Sociedades indígenas e o
direito: uma questão de direitos humanos. Florianópolis:
Editora da UFSC, 1985.
A esta série de mentalidades enumeradas por Cardoso
de Oliveira, poderíamos acrescentar muitas outras.
Contentaremos-nos em assinalar a mentalidade salvacionista
existente num setor que são os religiosos missionários, e que
consiste em querer salvar os índios pela submissão ao
cristianismo. Na prática, esta visão levou os povos indígenas
a um processo de “desaldeamento", e é sem dúvida, a que
não aceita a identidade indígena como especifica e
diferenciada. Com efeito, os missionários, católicos e
protestantes, estão praticamente em todas as áreas indígenas.
Até 1978, segundo os dados do Centro Ecumênico de
Documentação e de Informação, havia no Brasil cerca de 50
centros de missões implantados em território indígena.
Finalizando estas considerações, chegamos à con-
clusão que, de modo geral, a sociedade nacional continuará a
ter uma visão deformada enquanto não existir consciência da
existência de povos etnicamente distintos em todo o
território nacional.

36
1.2 - Identidade Étnica e Etnologia Brasileira

A questão da identidade é um tema que interessa


praticamente a todas as disciplinas das Ciências Sociais.
A identidade é o centro de interesse dos etnólogos que
estudam uma determinada sociedade. É o ponto central de
toda investigação etnológica. A questão da identidade está
na ordem do dia, dizia Claude Lévi-Strauss em 1977, (p. 9)
chega mesmo a afirmar que a "crise de identidade seria o
novo mal do século" e continua dizendo que a questão da
diferença percorre o nosso tempo. A diferença da cultura e
da natureza, a diferença entre as culturas e os códigos
nacionais ou regionais é reafirmada, bem como a relação com
o território. A diferença torna-se um tema e se coloca ao lado
da identidade. Não se trata mais de generalizar a idéia da
natureza para explicar as diferenças e nem proclamar a
unidade do homem e de seus valores. Vejam a ênfase na
declaração dos direitos individuais e o movimento contra os
etnocentrismos.
Como já mencionamos acima, este trabalho pretende
abordar a questão da identidade étnica, sobretudo como esse
conceito foi construído na etnologia indígena que, não
obstante, os mais de 500 anos de "conquista" e de redução
demográfica, os índios resistem enquanto grupos étnicos em
praticamente todo o território nacional. Este estudo pretende
mostrar o desenvolvimento desse conceito na Antropologia
brasileira, ou seja, como os etnólogos concebem a identidade
étnica na produção antropológica sobre os grupos indígenas.
Depois dos anos sessenta surgiram estudos sobre a
questão da identidade étnica, não somente na América

37
Latina, mas praticamente em todos os espaços acadêmicos
onde a questão da identidade surge como um problema. Não
seria exagerado afirmar que o debate sobre a identidade
étnica levou à criação de Estados nacionais, principalmente
no continente africano onde os grupos étnicos, buscam a
criação de um Estado que os represente. A literatura
etnográfica fala de minorias, mas há casos que não são
"minorias", e sim maiorias nacionais que reclamam por uma
representação política; referimo-nos, por exemplo, à questão
dos Curdos, que são mais de vinte e seis milhões, e que
continuam a reivindicar pela sua autodeterminação e pela
formação de um Estado nacional.
Em seguida apresentaremos alguns trabalhos que
merecem ser levados em consideração e que deram inicio ao
debate sobre a temática da etnicidade na pauta de discussão
mais contextualizada e regionalizada. No que se refere à
América Latina, importantes trabalhos abordaram a questão
da identidade e merecem ser destacados: no Peru, por
exemplo, uma obra coletiva de um grupo de antropólogos
intitulada: "Problema nacional, Cultura y Clases Sociales" (1945)
do Centro de Estudos e de Promoção do Desenvolvimento –
Lima – e "Clase, Estado y Nación" de Julio Cotler (1978) abriu
o debate recente sobre a temática da identidade peruana
levando em conta os seus diversos contextos étnicos. José
Carlos Mariátegui influenciou mais de uma geração no
debate sobre a identidade peruana. Sua obra, os “Sete Ensayos
de Interpretación de la Realidad Peruana‛ será leitura obri-
gatória, não só para os ativistas, mas também entre os
pensadores sociais sobre a identidade peruana.

38
O XLI Congresso Internacional dos Americanistas
realizado no México em 1974 foi um marco importante nos
estudos sobre a identidade étnica, sobretudo com a
realização do simpósio cujo título foi: "Etnicidade e Identidade
Étnica na América Latina", organizado por Roberto Cardoso
de Oliveira onde estiveram presentes especialistas de
numerosos países. Os estudos sobre o pluralismo étnico
ilustram sua existência nos atuais Estados africanos onde há
uma diversidade de etnias divididas por fronteiras políticas,
foi muito bem abordado no volume "Pluralismo na África"
editado por Leo Kupper e M. G. Smith (1969). Esta mesma
problemática aplicada na América Latina foi analisada no
estudo de Rodolfo Stavenhagen "The Plural Society in Latin
América" produzido pelo "Meeting of Experts on the Concept of
Race, Identity and Dignity" patrocinado pela UNESCO e
realizado em Paris (1972).
O volume organizado por Nathan Glaser e Daniel P.
Moynihan "Ethnicity Theory and Experience" oferece uma
dimensão abrangente da questão da identidade étnica.
Compõe-se de 16 ensaios que tratam de vários temas, desde
a identidade do grupo de base até as questões mais
nacionais como por exemplo no artigo: "China: Éthnic
Minorities and National Security" de Lucian W. Pye. Estes
estudos foram resultados de um encontro, em 1972,
patrocinado pela Fundação Ford e pela Academia Americana
de Artes e de Ciências, realizado em Massachusetts. Estas
publicações abordam uma linha comum aos estudos sobre a
identidade, voltadas em sua maior parte para: a) as relações
interétnicas enquanto manifestações fenomenológicas da
etnicidade; b) a etnicidade como identidade e como

39
estratégia na concorrência para obtenção de recursos; c) a
etnicidade como caráter cultural e, d) a etnicidade em relação
com a estrutura e organização social.
Também merece ser mencionado os estudos sobre
identidade desenvolvida num contexto urbano, como nos
apresenta um trabalho pioneiro de Abner Cohen no volume
intitulado: "Urban Ethnicity". Este volume foi organizado
após o encontro da Associação dos Antropólogos Sociais da
Comunidade Britânica em 1971. Na introdução, Abner
Cohen explica o que ele entende por grupo étnico: a) é uma
coletividade que partilha certos modelos normativos de
comportamento; b) fazem parte de um grupo populacional e
relacionam-se com povos pertencentes a outras coletividades
na estrutura do sistema social.
A identidade étnica, de acordo com Max Weber, tal
como foi desenvolvido no capítulo sobre Comunidades
Étnicas em sua obra de 1922, mais conhecida, “Economia e
Sociedade‛ publicada pela Editora da UNB, em 1991, consiste
no sentimento de pertencimento a um determinado grupo
social, apoiando-se numa crença de origem comum e na
construção de um repertório de elementos diacríticos. Isso
permite a comunidade étnica se definir, se organizar e se
diferenciar diante dos outros. As comunidades étnicas
estando inseridas em sociedades politicamente organizadas
de maneira mais ampla vêm se impondo e se tornando
suficientemente fortes para mobilizar setores da sua comu-
nidade para a redescoberta da história e da cultura que vão
sendo recriadas de acordo com as novas situações de um
espaço intercultural. Os conteúdos não devem ser entendidos
como algo essencializado ou naturalizado, mas como uma

40
cultura adaptada às condições sociais e políticas propor-
cionando armas para uma competição num mundo cada vez
mais plural. Max Weber assinalava como os censos
realizados na Índia, pela administração inglesa, ao incluir um
quesito sobre o pertencimento de casta contribuíram para a
reprodução da mesma. Existem exemplos, na atualidade, que
mostram como essas situações são as principais agências
promotoras e revitalizadoras de etnicidades tanto nas
questões administrativas como em países que desenvolvem
uma política multiculcural, e, sobretudo onde o voto étnico
ocupa o primeiro plano da uma agenda política17.
No Brasil, os estudos sobre a identidade étnica come-
çaram, mais sistematicamente, por uma reorientação dos
estudos sobre aculturação, e foram fortemente marcados pela
tradição antropológica norte-americana. Tais estudos dão
continuidade a toda uma reflexão sobre a questão nacional
em que a classe brasileira dominante orienta para a questão
da identidade étnica, sobretudo a partir de conflitos "raciais"
existentes no Brasil entre negros e a população de origem
européia.
A etnologia brasileira está intimamente ligada, em seu
desenvolvimento, a iniciativa de etnólogos estrangeiros que
fizeram numerosas expedições ao Brasil, com o objetivo de

17
Veja por ejemplo: HOBSBAWN, E. (2000) «La izquierda y la política de la
identidad», New Left Review (ed. esp.), n.º 0, pp. 114-125. Sobre as emergencias étnicas
consultar ROOSENS, E. (1989): Creating Etnicity. The Process of Ethnogenesis,
California, Sage, e sobre “paisagem multicultural conferir CARABAÑA, J. (1995): « A
favor del individuo y contra las ideologías multiculturalistas», Revista de Educación, n.º
30, pp. 61-88.

41
coletar objetos de arte indígena para as coleções de museus
da Europa e para responder as questões formuladas pelos
europeus à época, como por exemplo, o estado dos "povos
naturais" e a tese da "degenerescência das raças".
Etnólogos e naturalistas alemães estiveram no Brasil
entre 1884 e 1914: Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich,
Carl Friedrich Philipp von Martius, Theodor Koch-Grünberg
e Max Schmidt são os mais importantes deste período.
Martius explorou o país de 1817 a 1920 ao longo de diversas
expedições e grande parte sobre o conhecimento da fauna e
flora brasileira se deve ao trabalho desses naturalistas que
obtiveram por parte dos governos um interesse e manter e
financiar expedições no interior do Brasil. Não se pode
deixar de mencionar os outros estudiosos europeus que
estiveram também no Brasil como, por exemplo, Henri
Coudreau, Alfred Métraux. Suas obras compõem hoje
verbetes importantes na Bibliografia Crítica da Etnologia
Brasileira editada por Herbert Baldus (1954).
O Brasil tornou-se independente de Portugal em 1822
passando para um regime de monarquia parlamentarista e
posteriormente a República em 1889. De 1808 a 1882 estima-
se que 24 projetos de fundação de universidades passaram
pelo parlamento brasileiro, mas todos foram rejeitados
(AZEVEDO 1958, p. 215). A única oportunidade que os
brasileiros tinham para os estudos universitários era viajar
para Coimbra ou Paris. Entenda-se que se trata da elite de
uma sociedade escravagista cujos "Mazombos"18, iam estudar

18
Ver: Vianna Moog "Defricheurs et pionniers" p. 122: descreve a vida dos estudantes
brasileiros no estrangeiro, mais especialmente a dos Mazombos e a questão de identidade.

42
no estrangeiro. E é justamente na Europa que os brasileiros
tomam consciência de sua pertença a um "novo mundo"
buscando uma identidade.
O ensino universitário na época do Império do Brasil
era ministrado nos seminários religiosos ou nas escolas de
Direito ou de Medicina. O governo orientava seus esforços
para a criação de escolas militares durante todo o século que
precedeu a República. No século XIX, o pensamento
dominante baseava-se no Positivismo de Augusto Comte.
O romantismo na Literatura glorificava o índio como
ancestral, o símbolo nacional, e a língua Tupi foi mesmo
proposta para substituir o português como língua nacional
(Nesse sentido, ver o debate proposto por Lima Barreto em
Triste Fim de Policarpo Quaresma). Os poetas e escritores do
movimento nativista desconheciam a realidade social e
política dos índios e geralmente representavam de maneira
idealizada, como se eles não existissem, mas que dava a base
da identidade nacional. Gonçalves Dias é um dos represen-
tantes deste movimento. Embora sensível às questões
indígenas, como demonstra no "Vocabulário da Língua Geral"
(Nheengatu) e no "Canto dos Timbiras". Isso não o impediu
de apoiar o ponto de vista da classe dominante quando
afirma: ‚A vantagem de freqüentar as escolas seria essencialmente
(para os índios) perder o hábito da Língua Geral que sempre falam
entre eles, nas ruas e em qualquer lugar‛. E ainda com relação a
língua portuguesa afirmou que seria uma grande vantagem
e, mesmo se as crianças não fossem para a escola por outra
coisa, seria razão suficiente para que o ‚governo criasse escolas
primárias no Solimões" (DIAS 1861, p. 5-6).

43
Neste século XIX inicia-se uma busca pela identidade
nacional, sobretudo na literatura, e o índio aparece como um
representante dessa identidade. Na mesma época, surgem as
teorias deterministas enfatizando o clima e a raça que
afirmam a superioridade branca, criando desta maneira
questões embaraçosas para a classe dominante em relação à
sua identificação com o índio. Além do mais, em um país
como o Brasil era impossível - segundo os adeptos da
doutrina racista de Joseph-Arthur Gobineau, conhecido
como Conde de Gobineau, diplomata, escritor e pensador
francês, nasceu em Ville-d'Avray em 1816 e morreu em
Turim em 1882 - fazer parte de uma civilização em que a
mistura de raças era a causa de sua degenerescência 19
(VIANNA MOOG 1963, p. 12). No Brasil, este pensamento é
reforçado durante o período entre a República e o fim da
primeira guerra mundial, quando alguns intelectuais
brasileiros apresentam a tese do "branqueamento"20.
No início do século XX, as escolas de ensino superior
que predominavam no Brasil eram as de Direito, de
Medicina e as escolas de Engenharia. Essas escolas eram na
maioria iniciantes e recebiam a influência européia através
de livros, sobretudo alemães e franceses. Haviam três

19
Ver sobre essa questão o trabalho de Georges Readers (1954) sobre o Conde de
Gobineau no Brasil, e mais recentemente conferir: SANTOS, R. V.; MAIO, Marcos Chor.
Antropologia, raça e os dilemas das identidades na era da genômica . História, Ciência e
Saúde - Manguinhos, v. 12, p. 447-468, 2005 e MAIO, Marcos Chor (Org.); SANTOS, R.
V. (Org.) . Dossiê Raça, Genética, Identidades e Saúde. Rio de Janeiro: Periódico
História, Ciências, Saúde - Manguinhos, volume 12(2), 2005. v. 1.
20
Por exemplo, as obras de Silvio Romero "Etnologia selvagem" (1872) ou "Ensaios de
sociologia e literatura" (1901), conferir também, o artigo de Petrônio José Domingues,
Negros de Almas Brancas? A Ideologia do Branqueamento no Interior da Comunidade
Negra em São Paulo, 1915-1930, in Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 3, 2002,
pp. 563-599

44
correntes, nos meios intelectuais, para explicar a formação da
nacionalidade brasileira. A primeira corrente, chauvinista e
ufanista reagia contra as posições européias dizendo que o
Brasil era destinado a ser um grande país sendo dado que
sua grande riqueza eram os recursos naturais. Um
representante desse pensamento poderia ser o escritor
Afonso Celso que perguntou "Por que me ufano do meu País?"
(1901).
A segunda orientação de pensamento baseava-se nas
doutrinas européias do determinismo racial e climático.
Quanto ao terceiro grupo, reagia violentamente contra todo
tipo de teoria que viesse do estrangeiro. Seus adeptos
pensavam que a solução dos problemas brasileiros deveria
aparecer após uma análise profunda do processo histórico
brasileiro. Alguns entre eles tinham por argumento o fato de
que as teorias racistas foram elaboradas em países pequenos
e que em virtude disto não tinham nada a ver com um país
grande como o Brasil. Com isto, ressaltava-se a criação de
uma nova mentalidade que "devia procurar soluções
brasileiras para um problema brasileiro".
Esta perspectiva nacionalista vai eclodir na Semana de
Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922, por ocasião
do centenário da Independência do Brasil. O movimento que
nasceu desta semana é conhecido como Modernismo, e se
inspirou nas vanguardas francesas e italianas21. Procurava
promover a literatura e as artes integradas aos fundamentos
dos temas considerados nacionais. Na base do Modernismo,

21
Conferir: KORFMANN, M. ; NOGUEIRA, Marcelo . Avant-Garde in Brazil.
Dialectical Antrophology, New York, USA, v. 28, p. 125-145, 2004.

45
podia-se perceber uma ruptura com as tradições acadêmicas
que caracterizavam as produções intelectuais. Este
movimento propunha novas concepções orientadas para
tudo o que pudesse ser identificado como puramente
nacional.
"Tupi or not Tupi, that's the question" proclamava o
Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade que
ilustrava a maneira de conceber o índio por este movimento,
que tinha também por objetivo a procura de uma identidade
nacional22. A preferência por temas brasileiros levou os
intelectuais modernistas às origens, ao retorno à realidade
brasileira, que transparecem nas produções literárias da
época. O espaço criado por este movimento colocou o "índio
brasileiro" — concebido como uma categoria genérica — no
cenário destas produções. Macunaíma, (1928) a obra prima de
Mário de Andrade mostra todos os problemas que se
colocam no momento do contato do índio com a sociedade
nacional. Nasce a idéia dos hibridismos, e todas as
conseqüências para os povos indígenas transformando suas
identidades a partir do contato com a sociedade nacional.
As monografias sobre as populações indígenas da
época, quase todas escritas em língua alemã, foram
traduzidas para português e utilizadas por aqueles que se
interessavam por temas brasileiros e que viam no índio a
expressão do que é "puramente brasileiro". O Modernismo

22
Conferir Ferreira de Almeida, Maria Candida. "Só a antropofagia nos une", capítulo do
livro Cultura, política y sociedad Perspectivas latinoamericanas de Daniel Mato.
CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos
Aires, Argentina. 2005. pp. 83-106

46
foi uma época de transição de uma fase diríamos: “negativa”
para uma fase que poderia ser vista como “construtiva” dos
ideais nacionais. Desta maneira, o Modernismo influenciou
as Ciências Sociais no Brasil na medida em que um espaço de
debate se abriu para jovens pesquisadores, que se
propunham a encontrar uma explicação da realidade
brasileira, com o maior rigor científico. Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, entre
outros, produziram ensaios sobre o processo da formação
sociocultural do Brasil.
É verdade que no período do Romantismo, havia-se
procurado caminhos similares, e o índio fora utilizado nas
Artes e Literatura. Mas era representado como ingênuo,
puro, forte, etc. O que não correspondia à realidade. Na
época do Modernismo, certos clichês foram retomados, mas
ao mesmo tempo, as campanhas visando denunciar,
esclarecer sobre a situação dos índios eram conduzidas pelo
Serviço de Proteção ao Índio, criado em 1910 pelo Marechal
Rondon, e que exprimia as idéias do Apostolado Positivista
do Brasil23. No início, esses pensamentos orientaram a
política indigenista brasileira.

1.3 - Principais Teorias - Plano de Leitura

Fernando Azevedo, em seu livro: "A antropologia e a


sociologia no Brasil", estabelece as etapas do que se poderia

23
O Apostolado Positivista do Brasil foi um grupo de intelectuais brasileiros que seguiu
as idéias de Augusto Comte. Ver, por exemplo, "O cientismo e a defesa dos indígenas
brasileiros" nas publicações do Apostolado Positivista do Brasil, n. 276, 1909.

47
chamar de etnologia brasileira até 1955. Para o autor
existiram as seguintes fases: a) a fase pré-científica com a
contribuição etnográfica dos cronistas (séculos XVI–XVIII);
b) a pesquisa científica sobre as culturas indígenas: as
grandes expedições (1818–1910); c) a Antropologia física e
cultural: os primeiros trabalhos sobre as culturas africanas (2º
quarto do século XIX); d) duas correntes de estudos:
indígena e afro-brasileira (AZEVEDO, 1955, p. 353-397). O
autor assinala o fato de que o desenvolvimento das Ciências
Sociais no Brasil é devido, em grande parte, à revolução de
1930 com a implantação do Estado Novo e suas reformas
políticas e sociais. "A revolução, diz Azevedo, provocada pelas
mudanças que se repercutiram rapidamente na esfera cultural,
enfraqueceu a antiga influência das oligarquias dominantes, para
dar lugar a um espírito liberal socialista ou a uma combinação de
aspirações à liberdade política e à justiça social" (1955, p. 375).
As reformas favoreceram a criação de centros de
ensino especializados nos principais centros urbanos.
O ensino da Etnologia, deixando de lado as instituições como
os museus nacionais: o do Pará, o do Rio e o de São Paulo
que se tornou depois o lugar institucional da Escola de
Sociologia e Política em 1933, da Universidade de São Paulo
(1934) e da Universidade do Rio de Janeiro (1935). Florestan
Fernandes afirma que a criação destes centros de ensino
especializado favoreceu o caráter científico da etnologia
brasileira, e que os focos de interesse das pesquisas no campo
da etnologia indígena após os anos 30 foram os seguintes: a)
a mudança cultural, b) as pesquisas sobre a mitologia, a
religião e o xamanismo e, c) a organização social (1975, p.
140).

48
As pesquisas da etnologia brasileira sobre os povos
indígenas, portanto, datam dos anos 40 no Brasil como
assinala Júlio César Melatti (1982)24 . Elas sucedem as críticas,
aos conceitos de aculturação e a uma reformulação teórica
dos estudos sobre o contato interétnico. O problema da
identidade indígena (étnica), assim como o da "identidade
nacional" foram colocados no Brasil, após as lutas pela
independência do país e a organização político-adminis-
trativa do Império25, e ocorre o mesmo com a questão dos
negros, intimamente associada às conseqüências econômicas
e sociais de um regime escravagista como o que estava em
voga no Brasil. Estes problemas sempre fizeram parte dos
centros de interesse da elite brasileira que os concebia como
contradições étnicas no seio da sociedade brasileira.
A questão étnica (racial) do negro e do índio sempre
foi resolvida nos últimos anos em termos de classe social.
Cremos que isto seria simplificá-la de maneira excessiva,
com o risco de ocultar a compreensão das relações entre
negros e brancos, ou entre índios e brancos. Esta visão em
termos de classes sociais dispensa a consideração com-
parativa de outros casos de relações étnicas, e empobrece o
quadro de referência empírica que teria como conseqüências
as possibilidades de construir modelos mais completos e
elaborar teorias de porte científico maior.

24
Segundo Melatti (1982) os centros de interesse da etnologia brasileira após os anos 60
são os seguintes: Antropologia social e política, mitologia e rituais; Relações com o meio
ambiente; Arte e tecnologia; Contato interétnico; Antropologia de ação.
25
Cf. José Bonifácio de Andrada e Silva "Apontamentos para a Civilização dos Índios
Bravos no Brasil" Publicação do Serviço de Proteção aos Índios, n. 1, 1910 (primeira
edição: 1824).

49
Este trabalho não tem a pretensão de fazer uma
historiografia exaustiva do conceito de identidade étnica na
etnologia brasileira em sua totalidade, mas simplesmente
apresentar a noção da identidade étnica através das
pesquisas antropológicas realizadas junto aos povos
indígenas do Brasil. Por razões metodológicas, escolhemos
observar esta noção sob o ângulo dessas investigações
durante o século XX, desde as pesquisas sobre o “tipo étnico”
brasileiro realizado por Roquette Pinto até as pesquisas
iniciadas por Cardoso de Oliveira. Decidimos, pois elaborar
um quadro apresentando os principais conceitos aos quais,
de uma maneira ou de outra, a questão da identidade étnica
está relacionada na antropologia brasileira. Neste sentido,
apresentaremos estas pesquisas em três correntes de
pensamento bem delimitadas pelos conceitos que são
desenvolvidos nas Ciências Sociais. A primeira se diferencia
totalmente das outras duas. Nota-se uma ruptura
metodológica e teórica que não existe entre as duas correntes
posteriores. Essa diferença se faz sentir na perspectiva com
relação ao índio.

50
PRIMEIRA CORRENTE SEGUNDA CORRENTE ERCEIRA CORRENTE

METODOLOGIA Histórico-Regressiva Objetivo Científico Objetivo Científico


Pesquisas de campo Pesquisas de campo

Mudança cultural

PRINCIPAIS Aculturação

TEORIAS: Fusão das Raças Transfiguração Étnica

Fricção Interétnica

Arthur Ramos Herbert Baklus


AUTORES Florestan Fernandes
PRINCIPAIS: Gilberto Freyre Egon Schaden

Darcy Ribeiro
Roberto C. Oliveira

INFLUÊNCIAS Indiscriminadas Escola Americana


RECEBIDAS: Escola Alemã Marxismo
Escola Francesa
Escola Britânica
PERSPECTIVAS: Mestiçagem Assimilação Integração

A primeira corrente está ligada à teoria da fusão das


raças, muito difundida no século XIX e princípios do XX.
Esta abordagem nasceu da crítica das teorias "racistas" de
pensadores europeus como Gobineau, cuja doutrina serviu
para justificar a superioridade da "raça branca" e legitimar o
imperialismo europeu no fim do século XIX. Em seguida, foi
importada pela América Latina como uma teoria acabada e
foi assim que ela obteve seu lugar no cenário intelectual
brasileiro da época. A teoria da "Fusão das Raças", que veio
desmistificar a superioridade branca entre os intelectuais
brasileiros, propôs a mistura das raças em resposta às

51
abordagens racistas segundo as quais isto seria impossível
por causa da "degenerescência das raças". A reação aos
postulados sobre a pureza étnica e a superioridade branca
deve-se, em grande parte, aos trabalhos de Nina Rodrigues,
Roquette Pinto, Gilberto Freyre, que abandonaram a expli-
cação das teorias deterministas raciais para pesquisar as
explicações dos fenômenos através da "cultura". Escolhemos
mostrar o desenvolvimento da teoria da fusão das raças
através dos trabalhos de Gilberto Freyre, o mais represen-
tativo, assim nos parece, desta corrente de pensamento.
A segunda corrente liga-se aos estudos sobre a
aculturação e a mudança cultural que surgiram após os anos
trinta sob a influência da Antropologia americana. Uma
grande parte dos etnólogos brasileiros serviu-se dos
trabalhos da escola americana sobre aculturação para
explicar o fenômeno do contato entre índios e brancos.
Depois disso, no Brasil, a etnologia tomou um caráter oficial
e foram instituídos cursos especializados de Sociologia e de
Etnologia. A pesquisa de campo toma um novo impulso,
criando as condições para a elaboração de um corpo teórico a
partir de observações mais rigorosas. A análise da “Teoria da
Aculturação” dos etnólogos brasileiros será apresentada no
capítulo III com um enfoque particular, das obras de
Eduardo Galvão. Nesse mesmo capítulo, apresentaremos os
trabalhos de Darcy Ribeiro que propõe, a partir de críticas da
teoria da aculturação, uma nova formulação através da
noção que ele próprio denomina de "Transfiguração Étnica"
desenvolvida através da investigação antropológica do autor.
Em nosso quadro esquemático, a teoria da transfiguração
étnica situa-se entre a segunda e a terceira correntes de

52
pensamento para mostrar que não há ruptura metodológica
definitiva na proposta da transfiguração étnica, entre as duas
correntes de pensamento.
A proposição de Darcy Ribeiro certamente foi
influenciada pelos trabalhos de Leslie White, sobretudo no
que concerne ao esquema evolucionista. As idéias de White
exerceram uma verdadeira fascinação nos meios intelectuais
brasileiros principalmente pela simplicidade e capacidade de
apresentar um esquema único, totalizanzante mostrando
toda a aventura humana sobre um leque evolutivo linear. Em
seu livro: "The Science of Culture" (1949), White apresenta a
sociedade como uma totalidade feita de três subsistemas:
tecnológico, sociológico e ideológico. Darcy Ribeiro, em seu
livro "Processo Civilizatório", fala em termos de sistemas:
"adaptativo, associativo e ideológico" (RIBEIRO, 1981, p. 43).
A terceira corrente, que examinaremos no capítulo IV
através dos trabalhos de Roberto Cardoso de Oliveira, parte
de uma crítica radical ao conceito de aculturação e considera
que a noção de transfiguração étnica pouco operacional e
propõe substituí-la pela noção de Fricção Interétnica. O autor
propõe uma abordagem sociológica do fenômeno de con-
tato interétnico e considera a noção de identidade étnica
enquanto uma construção ideológica.
Os antropólogos que seguem essa direção, princi-
palmente aqueles, que participaram do projeto de pesquisa
coordenado por Roberto Cardoso de Oliveira, partem da
proposição inovativa de Fredrik Barth (1969) de considerar a
noção de grupo étnico como um "tipo organizacional". Para
estes antropólogos, a identidade étnica é o que vai ser
determinante para o desenvolvimento do grupo, do ponto de

53
vista organizacional e ideológico, identificando-se com uma
identidade, e que se preserva enquanto grupo étnico desde
que sejam visíveis as condições organizacionais coletivas.
Enfim, Cardoso de Oliveira dará ênfase na noção de
identidade contrastiva e Roberto Da Matta a utiliza como
identidade paradoxal26. Outros antropólogos, entre outros o
João Pacheco de Oliveira Filho, desenvolverá para a
antropologia brasileira importante trabalhos nessa direção, o
que ele vai denominar de “relações intersocietárias”.
Conferir principalmente sua obra: “Ensaios em Antropologia
Histórica‛. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1999. Este livro
contém oito capítulos e busca enfocar a noção de identidade
étnica à partir da dimensão histórica escolhida, como o
próprio autor diz, como estratégia para refletir sobre as
sociedades e culturas indígenas em seus contextos e nas
relações intersocietárias. Nessa abordagem, os índios são
vistos como “sujeitos históricos plenos”. "É preciso, assinala o
autor, retirar as coletividades indígenas de um amplo esquema dos
estágios evolutivos da humanidade e passar a situá-las na
contemporaneidade e em um tempo histórico múltiplo e
diferenciado" (1999:9). O autor busca trilhar sua produção no
através da noção de “situação” como idéia chave para situar
as identidades étnicas.
Cada uma dessas correntes de pensamento deixa
transparecer perspectivas determinadas em relação aos
povos indígenas. A primeira estima que a Mestiçagem é uma
solução viável e compatível com os valores e os ideais da

26
Infelizmente o prof. Roberto Da Matta não desenvolveu mais essa possibilidade nos
estudos sobre identidade.

54
sociedade brasileira. A mestiçagem está presente como um
processo positivo, enriquecedor para o conjunto da
sociedade, como bem demonstram os trabalhos de Gilberto
Freyre. A segunda corrente tem como perspectiva a
Assimilação no sentido utilizado por Cardoso, visto como "um
processo pelo qual um grupo étnico incorpora-se a um outro,
perdendo suas particularidades culturais e sua identificação
étnica anterior" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, p. 103).
Para os representantes da terceira corrente do pensamento
antropológico brasileiro, é colocada a Integração como
possibilidade para os povos indígenas. Estes deverão
integrar-se à sociedade nacional sem perder, contudo sua
particularidade cultural e étnica, tendo suficiente autonomia
para dispor de sua própria organização política e cultural.
Em outros termos, são os próprios povos indígenas que
decidirão seu próprio destino.

55
2. TIPOS ÉTNICOS E FUSÃO
DAS RAÇAS

Apresentaremos neste capítulo a teoria da fusão das


raças tal qual foi desenvolvida no Brasil modernista. Gilberto
Freyre foi um dos principais representantes desta corrente de
pensamento entre os pesquisadores nas ciências sociais.
Começaremos fazendo uma análise das doutrinas racistas e
como estas foram adotadas e aceitas pela elite intelectual
brasileira. As teorias eruditas das raças humanas apareceram
na Europa durante a crise da Revolução Francesa do século
XVIII, mas só tomaram forma no século seguinte quando
conseguiram dominar o mundo intelectual. Continham
formulações evolucionistas "cientificamente respeitadas" que
justificavam a superioridade branca.
Não obstante a diversidade dessas teorias que vários
especialistas brasileiros (OLIVEIRA VIANNA 1911) se
apoiaram para explicar a situação nacional, não eram simples
o bastante para penetrar facilmente nos meios intelectuais e
políticos. Um dos pressupostos principais dessas teorias era
de que cada “raça” ocupa um lugar determinado na história
da humanidade. Não dão conta da diversidade étnica, nem
de saber se elas tinham uma origem comum (não se
interessavam, por exemplo, pelas hipóteses monogenistas ou

56
poligenistas), essas teorias eram deterministas na medida em
que consideravam as diferenças biológicas entre as raças
como características fixas que determinavam a mentalidade e
o comportamento humano.

2.1 - O Mito das Três Raças

O Conde de Gobineau foi o principal inspirador na


elaboração das doutrinas "racistas", todo seu esquema teórico
coloca em evidência a diversidade das raças ao justificar a
superioridade da raça branca pela posição que sempre
haviam ocupado na história, dando transparecer assim duas
tendências fundamentais no desenvolvimento de seu
pensamento. Em primeiro lugar pode ser observado o seu
pessimismo, talvez inspirado na leitura de Byron e de
Schopenhauer, que não deixa possibilidade de uma reforma
política nos contextos de desigualdades sociais. Sua argu-
mentação encontrou eco em muitos pensadores brasileiros,
sobretudo o que foi desenvolvido nos quatro volumes dos
Ensaios, não é uma demonstração cientifica, mas uma longa e
incansável discussão sobre a decadência da humanidade.
Esse pessimismo está presente em toda sua obra e mostra a
sua personalidade que vai jogar um papel importante nos
debates políticos entre os pensadores nacionais.
O que a história, segundo Gobineau27, podia confirmar
amplamente através de uma espécie de divisão do trabalho:
os fenícios eram comerciantes, os gregos professores das

27
Veja os trabalhos de Conde de Gobineau "L'Essai sur l'inégalité des races humaines"
Firmim-Didot, 1853 e 1855.

57
gerações futuras, os romanos elaboravam as leis. Para deixar
mais precisa sua teoria, ele dizia que os poderes, os instintos,
as aspirações não mudam tanto quando a raça permanece
pura, ou seja, que as raças progridem e se desenvolvem, mas
não mudam jamais sua natureza. Esta abordagem teórica
pretendia tudo resolver, e não somente o contraste entre o
Brasil e os Estados Unidos, ou entre os Estados Unidos e a
Argentina etc.
O conceito de raça vem da biologia e é usado como
sinônimo de subespécie. No entanto, este termo foi utilizado
para identificar categorias humanas socialmente definidas.
Para as ciências sociais o termo raça foi utilizado para
construir identidades culturais. O conceito de raças humanas
foi usado pelos regimes coloniais e pelo apartheid (nos EUA e
África do Sul), para perpetuar a submissão dos colonizados
(ou da maioria negra, mas sem recursos) atualmente, só nos
Estados Unidos se usa uma classificação da sua população
em raças, alegando que é para proteger os direitos das
minorias. A definição de raças humanas é principalmente
uma classificação de ordem social, onde a cor da pele e
origem social ganha, graças a uma cultura racista, sentidos,
valores e significados distintos. As diferenças mais comuns
referem-se à cor de pele, tipo de cabelo, conformação facial e
cranial, ancestralidade e, em algumas culturas, genética.
O conceito de raça humana não se confunde com o de sub-
espécie e com o de variedade, aplicados a outros seres vivos
que não o homem. Por seu caráter controverso (seu impacto
na identidade social e política), o conceito de raça é
questionado pelos antropólogos como construto social; entre

58
os biólogos, é um conceito com certo descrédito por não se
conformar a normas taxonômicas
Gobineau e muitos dos seus seguidores avançavam na
tese de que a sociedade brasileira era inviável porque
possuía uma enorme população mestiça, produto indesejado
e híbrido do cruzamento de brancos, de índios, e de negros.
Gobineau não pôde exprimir seu pessimismo, no Brasil,
diante da evidência da mestiçagem, com sua profusão
de "mulatos" (negro+branco), "cafusos" (branco+índio) e
"mamelucos" (índio+negro). (READER, 1934, p. 75). Neste
país, os brancos estavam perdendo suas qualidades por
causa dos índios e, sobretudo pela mistura com os negros
assinalava SKIDMORE (1976, p. 46-47). Esta perspectiva
dominava os estudos dos estrangeiros sobre o Brasil como
mostra o trabalho de Paul Le Cointe: "L'Amazonie Brésilienne",
onde o autor refere-se à mestiçagem como "um poderoso fator
de rebaixamento do nível geral de moralidade e de civilização"
(1922, p. 220, Tomo I,).
A doutrina da igualdade das raças é a origem do
racismo "à brasileira" camuflado na teoria da fusão das raças.
Foi, na época, aclamada por certos intelectuais, pois
correspondia a uma mentalidade dominante e hegemônica,
cuja influência percebe-se ainda hoje no discurso de políticos
sobre a “democracia racial” brasileira. A ênfase nas três
matrizes étnicas no discurso, e, sobretudo na construção de
uma identidade nacional: Índio, Europeu (branco), Negro,
tem, no Brasil, outro significado, diferente daquele que existe
nos Estados Unidos, onde, por exemplo, não há graus inter-
mediários entre as três matrizes como normalmente fazemos
aqui com relação a cor da pele.

59
É importante salientar que a Antropologia física28
constituía o centro de interesse no início do século XX, e não
se diferenciava da Etnologia propriamente dita. A separação
entre esses dois campos disciplinares se fará, no Brasil, após
a primeira guerra mundial (SCHADEN, 1955, p. 301). O
primeiro curso de Antropologia Física foi criado por Batista
Lacerda no Museu Nacional em 1877 que tinha publicado
um ano antes "Contribuições para o estudo antropológico das
raças indígenas", escrito em colaboração com Rodrigues
Peixoto. Este livro era constituído de estudos baseados em
observações craneológicas de seis índios botocudos.
Na mesma época, Raimundo Nina Rodrigues inicia na
Bahia um estudo sobre a cultura afro-brasileira. Em 1894,
publica seu livro: "As raças humanas – sua responsabilidade
penal" que vai ser o ponto de partida dos estudos sobre os
Negros e os Mestiços no Brasil. O autor analisa o tráfico dos
africanos e mostra a diversidade das "Nações" de origem
desses povos que foram exilados à força para tornarem-se
escravos. Aborda embora influenciado pelas doutrinas
racistas da época, o problema das raças humanas e par-
ticularmente dos negros. Não havia, nesta época no Brasil,
senão dois centros de pesquisa em antropologia física: um se
encontrava na Bahia sob a orientação de Nina Rodrigues e o
outro no Rio de Janeiro no Museu Nacional, sob a direção de
Batista Lacerda. Nina Rodrigues se debruçava sobre o estudo
do que chamaríamos hoje aculturação e os estudos de
28
Nesta parte, visamos mostrar o começo da Antropologia Física no Brasil. Sobre a noção
de 'raça' na Antropologia física, Ver: Julian Pitt-Rivers "Race in Latin America: the
concept of 'race'" In: Archive European Sociologie XIV, 1973, p. 5. Veja também Luiz
Gonzaga de Melo, Antropologia Cultural, Temas e Teorias, Editora Vozes, Petrópolis,
2002.

60
psicopatologia social, com a ajuda dos quais estudava o
fenômeno da guerra de Canudos que ele chamava de
"Psicose coletiva de Canudos". Batista Lacerda continuava
com as medidas de crânios e seus estudos a propósito do
"Homem dos Sambaquis". Ele, na condição de médico legista
e professor de medicina legal na Universidade da Bahia, no
final do século XIX e começo do século XX, dificilmente
escaparia ao pensamento deste tipo; pois estava em um
ambiente institucional e intelectual, influenciado pelas
teorias e idéias racistas, nacionalistas, evolutivo-positivistas,
de oriundas de pensadores como Darwin, Augusto Comte,
Heckel, Cesari Lombroso, Enrico Ferri e R. Garofollo,
e Alexandre Lacassagne, que permeiam as páginas de
‚As Raças Humanas e Responsabilidade Penal no Brasil‛.
Desta forma, não fica difícil entender por que Nina
Rodrigues assume, e comunica na sua obra, um discurso
sobre o negro pautado na determinação biológica e cultural
da superioridade branca, na medida em que ele recebe
influências dos ideólogos e teóricos do mesmo.
Roquette Pinto é o inovador da Antropologia Física
no Brasil. Em 1906, publica sua primeira obra intitulada
"O exercício da medicina entre os indígenas da América". Este
livro foi escrito na seqüência de uma expedição de Cândido
Mariano Rondon da qual havia participado ao longo do ano.
Em 1909, ele participou do quarto Congresso Médico da
América Latina no Rio de Janeiro para o qual escreveu um
ilustrativo ensaio: "Etnografia indígena do Brasil — estado atual
de nossos conhecimentos". Tratava-se de uma síntese na qual
Roquette Pinto faz a história das tentativas de classificação
realizadas por Martius, Steinen e Ehrenreich enfatizando as

61
tarefas de ordem taxonômica e a necessidade de "dar uma
denominação adequada aos grupos de nomes diferentes, mas que
apresentem uma evidente afinidade lingüística e cultural" (FARIA,
1958). "Rondônia" será uma das principais obras de Roquette
Pinto, publicada em 1916, na qual o autor trata de uma forma
mais sistemática os aspectos da cultura Nambiquara e Pareci.
Este será durante muito tempo o modelo de monografia a ser
seguido pelos etnólogos brasileiros.
Os trabalhos de Roquete Pinto estão entre os pri-
meiros estudos de etnologia brasileira a fazer observações
rigorosas sobre o campo. Suas obras sobre os povos
indígenas não se limitam à antropologia física, e à pesquisa
dos "tipos étnicos" dos grupos indígenas com os quais
estivera em contato no momento de suas pesquisas sobre as
mensurações cranianas, mas alargam o campo das inves-
tigações antropométricas com a criação de novos critérios.
Recorre ao "retrato falado" para determinar o tipo étnico dos
índios Pareci, faz observações com base nos estudos de
Ehrenreich e organiza as primeiras fichas datiloscópicas dos
Nambiquara. Em um trabalho coletivo, "Contribuição à
anatomia comparada das raças humanas" (1926), Roquette Pinto
apresenta uma classificação para a população brasileira
baseando-se nos elementos antropométricas que se dividem
em quatro grupos: a) Leucodermes (Brancos), b) Faiodermes
(brancos+negros), c) Xantodermes (brancos+índios), Melano-
dermes (negros). Roquette Pinto assinala que esta
classificação é o fruto de 20 anos de trabalhos
antropométricos para determinar o tipo físico brasileiro.
(1933, p. 127).

62
2.2 - Mestiçagem: a Resposta

As interpretações da formação sócio-cultural e da


evolução da sociedade brasileira colidem com a ausência de
classificação rigorosa dos dados sobre os povos indígenas do
Brasil. As pesquisas etnológicas tentaram preencher este
vazio, auxiliadas pelo estabelecimento oficial do ensino das
Ciências Sociais no Brasil após os anos 30. O ensino da
etnologia, da sociologia e da economia adquirira um caráter
oficial após a implantação de centros de ensino especializado
(FERNANDES, 1975, p. 113).
Os trabalhos que começaram em perspectiva de
compreensão global do processo social sob seus múltiplos
aspectos: histórico, étnico, econômico, tiveram uma grande
repercussão no Brasil. Entre estes, pode-se mencionar as
obras de Couto Magalhães, Nina Rodrigues, Arthur Ramos,
Estevão Pinto, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Gilberto
Freyre entre outros29 .
Entretanto, uma grande parte dos trabalhos aborda de
maneira superficial o delicado problema das "raças" e das
culturas no Brasil. Trata-se efetivamente de um "problema"
— afirma Florestan Fernandes — devido as condições sociais
nas quais se deram os contatos raciais e culturais, que
deixaram algumas tensões em estado latente, e outras em
efervescência, sejam porque num povo heterogêneo do ponto

29
Arthur Ramos "Introdução à Antropologia Brasileira" v.2, 1943 e 1947. Estevão Pinto
"Os indígenas do Nordeste", 1935. Euclides da Cunha "Os Sertões", 1916. F. José de
Oliveira Viana "Formation de la Nationalité Brésilienne", 1911, ou "Formação Étnica do
Brasil Colonial", Paris 1932.

63
de vista racial e cultural, “questões deste gênero criam confusões
e incertezas quanto ao futuro" (FERNANDES 1975, p. 125).
Se, de um lado, as inovações nas descobertas destes
autores permitiram explicar aspectos da situação étnica do
Brasil, abrindo novos caminhos para as pesquisas etno-
lógicas, por outro deixaram transparecer lacunas nas análises
de aspectos complexos do fenômeno. Estas lacunas são
resultantes do método utilizado por grande parte dos
autores, como explica Gilberto Freyre no prefácio de "Casa
Grande e Senzala": "para interpretar os documentos, o autor
preferiu seguir o método objetivo; mas em certos pontos, utilizou o
método introspectivo..." (1954, p. 34). Interessa-nos aqui neste
trabalho, mostrar como a teoria que denominamos de Fusão
das Raças foi utilizada para explicar a diversidade étnica e a
formação sócio-cultural brasileira. Esta abordagem foi
importante na medida em que rompeu com as doutrinas que
afirmavam a superioridade da "raça branca" e, de certa
maneira, trazia respostas às numerosas questões que
formulavam os intelectuais a propósito da identidade
nacional (VIANNA MOOG, 1963, p. 12).
Em"Casa Grande e Senzala", cuja primeira edição data
de 1933, o autor, analisa a formação social brasileira "sob o
regime da economia patriarcal". Este livro contém um capítulo
no qual o autor, para sustentar a teoria da mestiçagem,
atribui ao índio o papel de simples reprodutor.

"O ambiente no qual começou a vida no Brasil foi de quase


intoxicação sexual. O europeu desembarcava em terra firme
esbarrando em índias nuas; os próprios jesuítas deviam prestar
atenção saltando ou se arriscavam em se inficar na carne.

64
Outros membros do clero contaminaram-se pela devassidão. As
mulheres foram as primeiras a se oferecer aos brancos, as mais
ardentes esfregando-se nas pernas dos que elas supunham ser
deuses. Elas se deram ao europeu por um pente ou um pedaço
de espelho" (FREYRE, 1954, p. 219).

Nessa obra os indígenas são tratados como categoria


geral e homogênea, tornando difícil a análise do contato com
os portugueses durante o período colonial. Freyre situa os
índios diante do impacto do regime colonial da seguinte
maneira:

"Mas entre os indígenas das terras de madeira e de tinta, as


condições de resistência ao europeu foram outras: resistência
não mineral mas vegetal. A reação à dominação européia na
região de cultura ameríndia invadida pelos portugueses, quase
foi a de pura sensibilidade ou contratilidade vegetal (sic), o
índio se retraindo ou se esfregando no contato civilizador do
europeu por causa de sua incapacidade de acomodar-se à nova
técnica econômica e ao novo regime social e moral. (...) Durante
o tempo que o esforço exigido pelo colono do escravo índio fora o
de derrubar árvores, transportar troncos para os navios,
enceleirar, de pescar, de caçar, de defender os senhores contra os
inimigos selvagens e os corsários estrangeiros, de guiar os
exploradores através da floresta virgem — o indígena garantiu
o trabalho servil. Já não era mais o selvagem livre de antes da
colonização portuguesa; mas não havia como desenraizar o
índio de seu meio físico, de seu ambiente moral sem os quais a
vida lhe teria parecido vazia de todos os gostos estimulantes e
bons: a caça, a pesca, a guerra, o contato místico e quase
esportivo com as águas, a floresta, os animais. Este
desenraizamento viria com a colonização agrária, isto é,
latifundiária; com a monocultura representada sobretudo pelo
açúcar. O açúcar matou o índio‛ (FREYRE, 1954, p. 214-215
e 316).

65
A teoria da fusão das raças apresenta a população
brasileira sem preconceitos raciais e criou as bases do
racismo "à brasileira" não considerando o sistema
hierárquico implantado no país. Este sistema30, como já
vimos, fundamenta sua representação ideológica nas leis da
Igreja. Segundo este sistema, foi o próprio Deus que
construiu a "pirâmide social", isto é, no ápice da pirâmide, o
Imperador e o Papa, depois os nobres etc. Este sistema foi
transportado para o Brasil com toda a ideologia implícita em
si, o que justifica as classificações sociais, técnicas, jurídicas e
administrativas do Brasil.
Mesmo se pudéssemos sustentar a idéia, amplamente
utilizada pelos defensores da mestiçagem, que houve uma
"mistura de sangue" entre negros, índios e portugueses, o
fato mais importante para a análise é que Portugal, através
de suas instituições, dominava e implantava no Brasil seu
sistema social. Com outras palavras, a colônia brasileira,
nunca foi o campo de experiências sociais ou políticas
inovadoras, onde se poderiam exprimir diferenças radicais e
individualizadas. Ao contrário, não obstante as diferenças
regionais de clima, de desenvolvimento econômico, o
território brasileiro, foram fortemente centralizadas através
de um governo com uma legislação consistente a partir dos
interesses da Coroa Portuguesa.
É impossível determinar, no caso do Brasil, a origem
do "credo racial" que substituiu enquanto ideologia a rigidez
hierárquica que se manteve desde a descoberta até às lutas

30
Sobre o sistema hierárquico, estrutura social e sobre nacionalismo brasileiro, ver a
interessante análise de E. Bradford Burns "Nationalisme in Brazil", 1968

66
pela Independência, quando este modelo começou a ser
questionado. O movimento para a Independência procurou
uma reorientação concreta do sistema social em vigor
atuando de maneira que a estrutura do poder estivesse
ligada ao Rio de Janeiro e não mais a Portugal.
Com a independência de Portugal apareceram novas
ideologias e novas formas de conceber as diferenças étnicas
existentes no território brasileiro. Era preciso procurar uma
identidade nacional que unificasse a população. A doutrina
racial brasileira construída nesse período permite conciliar
uma série de movimentos contraditórios sem que sejam
criadas as bases de uma transformação profunda nas relações
de poder.
O período que precede a Abolição da Escravatura
(1888) conheceu uma crise muito forte, que modificou a
organização social brasileira. A abolição da escravatura
constituiu sem dúvida uma ameaça para a estrutura
econômica do país31. O catolicismo e o sistema jurídico
implantados com a colonização portuguesa não mais
correspondiam à estrutura social e novas ideologias vieram
pouco-a-pouco substituí-los e exprimindo em dois movi-
mentos contraditórios na época da Abolição da Escravatura.
Um deles era manter o status quo, libertando juridicamente o
escravo sem, contudo dar-lhe as condições de se libertar
socialmente das engrenagens imposto pelo modelo
econômico político e social. O outro movimento, e esse, está
inserido particularmente na doutrina das três raças, concebia
uma estrutura social que permitisse a integração do negro na

31
Conferir interessantes análises em Richard Grahan "Escravidão, reforma e
imperialismo", 1979 e SKIDMORE, T. E. Preto no Branco: Raça, Nacionalidade no
Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

67
sociedade em seu conjunto, mas sem permitir que eles
expressassem a especificidade de sua cultura. Esta visão
ainda tem nos dias de hoje a força e o status de ideologia
dominante: um sistema que interpreta a maioria dos
domínios da cultura. Estas idéias têm por base a tese do
"branqueamento" como projeto político e social a alcançar.
O racismo brasileiro proclama de maneira paradoxal
— como o mostra Freyre — uma unificação harmoniosa em
termos biológicos das três matrizes étnicas que constituem a
sociedade (ela própria fortemente hierárquica), unificação
que se exprimiria na "cordialidade" brasileira ou nos
costumes tais quais os ritos afro-brasileiros expressos no
carnaval32. Uma outra abordagem usada por Freyre para
explicar a democracia racial brasileira que aparece entre as
teses desenvolvidas em "Casa Grande e Senzala" e em
"Sobrados e Mocambos", está relacionada com os “Mouros”
que teriam predisposto os portugueses a relações abertas e
igualitárias com índios e negros. Essas afirmações são
dificilmente defensáveis. É preciso lembrar que os
portugueses, ao chegarem ao Brasil, não estavam libertados
da tutela centralizadora de Portugal da época, o que lhes
impedia — caso quisessem — fazer inovações no sistema de
relações sociais em vigor.
Os defensores da mestiçagem consideravam os
indígenas como vulgares na formação do tipo brasileiro. O
índio deveria morrer, não por causa do açúcar, mas em nome
de uma identidade nacional. O índio como o negro deveria
desaparecer enquanto tais. Esta doutrina não permitia a
expressão identidade étnica.
32
Conferir a análise sobre estes temas na obra de Roberto Da Mata "Carnavais,
malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro", Rio de Janeiro, Zahar, 4ª
Edição, 1983

68
3. ACULTURAÇÃO E
TRANSFIGURAÇÃO ÉTNICA

Este capítulo tem por objetivo a apresentação dos


conceitos de aculturação e de transfiguração étnica. O pri-
meiro foi amplamente utilizado no Brasil da maneira como
foi concebido pelos inspiradores do "Memorandum for the
Study of Culture Contact" elaborado por Redfield, Linton
e Herskovits (1936), que teve como berço a Antropologia
cultural americana. O conceito de transfiguração étnica foi
elaborado por Darcy Ribeiro a partir da crítica ao conceito de
aculturação movida pela Antropologia desenvolvida na
América Latina.
Tendo em vista a produção acadêmica com relação aos
povos indígenas, a etnologia brasileira desenvolvida a partir
dos anos trinta pôde ser considerada como fazendo parte de
uma fase "integracionista", onde os estudos enfatizavam que
índios deveriam de uma maneira ou de outra, integrar-se à
sociedade nacional. A confusão na utilização do conceito de
integração engendrou uma polêmica que não foi resolvida
senão em 1960, quando pela primeira vez, é definido o que se
entendia por integração. É importante insistir no fato de que
durante este período a idéia de integração, e mesmo a de
aculturação, com todos os esforços de compreensão, era

69
interpretado como assimilação, como bem assinala Eduardo
Galvão: "Devemos esquecer um pouco a aculturação e pensar mais
em termos de assimilação" (GALVÃO, 1979, p. 131).
Antes da definição clássica de aculturação elaborada
no "Memorandum de 1936‛, este termo já estava sendo
utilizado para designar o resultado dos contatos culturais
entre duas sociedades (EHRENREICH, 1906, p. 672)33. Não
foi senão a partir do Memorandum, que esta noção foi
amplamente utilizada, sobretudo pela escola americana, não
obstante as críticas como, por exemplo, aquela que
Malinowski fez nos anos quarenta:

"Consideremos, por exemplo, o termo aculturação que, depois


de algum tempo, começou a se propagar e ameaça tomar o
terreno, sobretudo nos escritos sociológicos dos autores norte-
americanos. Além de sua fonética ingrata, o termo aculturação
contém todo um conjunto determinado de implicações
etimológicas inadaptadas. É um termo etnocêntrico com
uma significação moral. O imigrante deve se aculturar
(to acculturate) assim como os indígenas, pagãos e os infiéis, os
bárbaros e os selvagens,Que gozam do "benefício" de ser
submisso à nossa grande cultura ocidental" (1940, p. xi).

Na antropologia brasileira, a aceitação do termo


aculturação foi lenta. Herbert Baldus, que escreve a
propósito da mudança cultural dos índios (1937), não faz uso
uma só vez deste conceito. Somente a partir dos anos
cinqüenta que a noção de aculturação será amplamente
utilizada pelos etnólogos que investigam os povos indígenas.

33
Veja também R.-H.-C. Teske et B.-H. Nelson, " Acculturation and Assimilation: a
Clarification ", in : American Ethnologist, 1 (2), 1974, pp. 351-367

70
Neste caso, estamos nos referindo às pesquisas de Eduardo
Galvão, Charles Wagley, Fernando Altenfelder da Silva,
James Watson e outros que estão nos primórdios da
introdução deste conceito e seu uso posterior na produção
antropológica brasileira.
Fora a noção de aculturação, nesse mesmo período, a
antropologia brasileira se utilizou de outro conceito: o de
integração, usado, sobretudo no jargão da política indi-
genista oficial. Trata-se de uma manipulação do conceito de
interação social, através das quais as comunidades indígenas
são vistas como fazendo parte de um sistema no qual devem
integrar-se. Tanto o conceito de integração como o de
assimilação será foco dos debates na produção etnológica e
muitas vezes serão utilizados indistintamente, o que aparece,
por exemplo, nos trabalhos de Wagley e Galvão (1949).
A definição mais apropriada destas noções surgiu
durante o IV Congresso Indigenista Interamericano realizado
na Guatemala em 1960, onde Darcy Ribeiro, bem como
Carlos Mejia Pivaral, Gregorio Hernandes de Alva e Joaquim
Noval elaboram uma definição mais apropriada ao conceito
de integração social voltado para os povos indígenas. Daí em
diante, a "integração social de um país não parece mais exigir que
todos seus habitantes sejam culturalmente iguais"; o que não
significa que todos os habitantes de um território nacional se
converteriam em índios ou não-indios. Na realidade, a
definição é proposta dessa forma: "a integração social pode
significar a unidade de todos os habitantes de um país, mas não sua
identidade, nem mesmo uma semelhança fundamental" (RIBEIRO,
1960, p. 10).

71
Numa época em que o problema do contato entre
índios e "brancos" no Brasil estava ainda circunscrito aos
limites estreitos das teorias da aculturação proveniente da
Antropologia norte-americana, os estudos de Darcy Ribeiro e
de Roberto Cardoso de Oliveira conseguiram desviar de
forma proveitosa de uma ortodoxia quase estéril para dois
novos pólos de orientação teórica metodológica: um em
direção das teorias de mudança social proveniente da
Antropologia social britânica, e o outro para a crítica dos
modos de colonização mercantil e capitalista nas sociedades
colonizadas, estabelecida a partir de casos africanos por
sociólogos e etnólogos franceses.
Nossa pretensão é de apresentar uma visão dos
princípios essenciais da teoria da aculturação utilizada na
etnologia indígena no Brasil e seu desenvolvimento na
produção antropológica, no que refere principalmente ao
conceito de identidade étnica. Estamos conscientes de não
poder discorrer sobre o conjunto dos trabalhos, mas
tentaremos, contudo apresentar as principais obras que
influenciam a etnologia brasileira como uma maneira
oferecer pistas para possíveis estudos nessa linha de
investigação. Apresentaremos em primeiro lugar três tipos de
orientações teóricos metodológicas nas abordagens utilizadas
pelos antropólogos para elaborar suas monografias, depois
passaremos aos trabalhos de Hebert Baldus, Eduardo Galvão
e Charles Wagley, que situamos na segunda corrente,
anteriormente referida, e enfim serão situados os trabalhos
de Darcy Ribeiro relacionados principalmente à teoria da
Transfiguração Étnica.

72
3.1- Tipologia dos Estudos sobre Aculturação

Antes de apresentar a produção antropológica de


Hebert Baldus, Eduardo Galvão e Darcy Ribeiro selecionada
aqui como referências sobre as teorias da aculturação,
examinaremos três tipos de orientações, referidas
anteriormente, utilizados pelos antropólogos brasileiros. Um
quarto tipo de orientação compõe-se dos estudos sobre a
personalidade indígena, e não será desenvolvida aqui neste
trabalho. Nesta tipo de abordagem, situamos os trabalhos de
Hebert Baldus e de Florestan Fernandes sobre o Bororo Tiago
Aipobureu, que obteve a atenção da mídia nos anos
quarenta. Esse caso teve repercussão devido ao fato de que
este índio viveu na Europa, e estudou Teologia em Roma,
depois retornou à aldeia de seu povo34. No seu retorno,
rompe com a cultura ocidental na medida em que insiste em
voltar aos costumes e tradições Bororos.
O caso de Tiago foi estudado por Herbert Baldus em
seus "Ensaios de Etnologia Brasileira" (1937) e por Florestan
Fernandes em "Tiago Marques: um Bororo Marginal" (1946).
Neste estudo, Fernandes parte do conceito de marginalidade
fazendo a seguinte reserva: "é preciso colocar-se no preâmbulo a
seguinte questão: até que ponto o estudo de um caso único se
justifica do ponto de vista científico?‛ (FERNANDES, 1975, p.
86). Neste trabalho, é enfocada as questões da integração de
Tiago na cultura bororo, os conflitos com os brancos, com os
próprios Bororo, e enfim da readaptação de Tiago em terras

34
Darcy Ribeiro o colocará como um dos personagens em seu romance intitulado: Máira.

73
bororo, etc. Este caso permite ilustrar o quarto tipo de
orientação de estudos a respeito da aculturação já assinalado.
Um primeiro tipo de orientação monográfica utilizado
pelos etnólogos consistia em escolher um grupo indígena
cuja organização interna revele os resultados da acomodação
com a sociedade nacional, principalmente nas regiões onde
os contatos com os brancos tornaram-se de certa maneira
permanentes, e no quais as influências (freqüentemente
mútuas) não foram seriamente atingidas pelas transfor-
mações regionais bruscas.
Constatamos que os trabalhos de Herbert Baldus,
Charles Wagley e Eduardo Galvão entram no quadro desta
orientação, sobretudo no que diz respeito às investigações
realizadas entre os Tenetéhara (Guajajara). Neste tipo de
orientação impõe-se o interesse pela descrição etnográfica
sistemática do povo indígena que fornece um critério
positivo para a análise dos pontos de mudança e de
reelaboração culturais.
Num segundo tipo de orientação, o investigador escolhe
um grupo indígena cujas “tendências aculturativas” possam
ser descritas através de caracterização da sua configuração
interna em situações extremas de um continuo histórico-
cultural. Isto significa uma manipulação total na inter-
pretação dos dados históricos e culturais no intuito de
caracterizar a cultura indígena nos diferentes períodos de
contato com a sociedade nacional.
Os trabalhos de James Watson, "Historic influence and
change in the economy of a Southern Mato Grosso Tribe" (1945) e
"Cayua Culture Change: A Study in Acculturation Methodology"
(1952) situam-se nesta perspectiva que enquadramos os

74
estudos nesse tipo de abordagem. Aí reunem-se igualmente
os primeiros trabalhos de Cardoso de Oliveira (1960) sobre
Terena no Mato Grosso do Sul. As conclusões de Cardoso
são completamente diferentes daquelas de Watson, e de
outros que seguiram este caminho para efetuar suas
investigações. A diferença fundamental entre os trabalhos de
Cardoso de Oliveira (1960) e os outros, se situa no ponto de
partida teórico. Cardoso de Oliveira parte de uma crítica da
teoria da aculturação que era representada na época pelos
estudos de Siegel, Watson, Broom e Vogt (1954), enquanto
que os outros não assumem essa postura critica e utilizam
esse conceito operacionalmente.
O terceiro tipo de orientação, nas investigações etno-
lógicas realizadas por antropólogos no Brasil sobre a
aculturação foi aquela através da qual se seleciona um grupo
indígena, cujas relações com a sociedade nacional pudessem
ser descritas e interpretadas graças a observações de
situações intermitentes de contato com os brancos.
Apresentando ainda a correlação entre as condições sociais
de existência e o desenvolvimento da cultura como um todo.
Neste sentido, o centro de interesse da análise se desloca
para as influências nos mecanismos internos da cultura que
determinam o modo e o ritmo da mudança cultural.
Os trabalhos de Egon Schaden, "Aculturação Indígena"
(1969) faz parte desta orientação. O autor dá grande ênfase
na análise dos traços culturais e nos aspectos difusionistas
dos mesmos, que os etnólogos brasileiros desenvolvem, e
que por ocorrência, Egon Schaden, nomeia "aculturação no
plano tecnológico e da cultura material" (SCHADEN, 1969, p.
179). O autor também faz uma apresentação dos principais

75
estudos sobre aculturação realizados pela etnologia
brasileira. O autor não chega exatamente a fazer uma crítica
à teoria da aculturação o qual ainda se pode perceber em
seus textos como uma defesa da teoria de contatos culturais,
sendo um expoente na antropologia brasileira, por mais de
três décadas. Nesse sentido, precisa-se ver o debate
aculturação e estruturalismo, sobretudo, a intermediação
sobre o conceito de cultura nessa discussão35.
Após termos apresentado essa tipologia com as diver-
sas orientações utilizadas na seleção dos grupos indígenas,
para as investigações sobre o contato com a sociedade
nacional, passaremos agora à análise das orientações meto-
dológicas provenientes de diversas tradições, que conside-
ramos como as mais importantes para o conhecimento do
fenômeno de contato interétnico produzida pela
antropologia brasileira.
A primeira é a escola norte-americana, conhecida sob
o nome de "Acculturation Studies" cuja influência foi muito
grande no Brasil como se pode notar nos trabalhos de
Eduardo Galvão, em particular. O que nos interessa agora é
mostrar o essencial da tradição americana nos estudos sobre
aculturação.
Dois documentos (já assinalados anteriormente)
revelam de modo particularmente característico a influência
desta tradição: um deles intitula-se: "Memorandum for the
Study of Culture Contact", publicado em 1936 e assinado
por Redfield, Lint e Herskovits, e outro, publicado em 1954

35
Veja interessante comentário sobre isso em: PEREIRA, João Baptista Borges. Emilio
Willems e Egon Schaden na história da Antropologia. Estudos Avançados., São Paulo,
v. 8, n. 22, 1994.

76
sob o título de "Acculturation: an Exploratory Formulation" foi
elaborado por outros três antropólogos: Siegel, Vogt, Watson
e o sociólogo Broom.
O Memorando de 1936 é em grande parte voltado
para o aspecto sociológico do contato. Sobretudo na parte III
intitulada "Analyses of Acculturation". Os diferentes tipos
de contato que podem se produzir são revistos, colocando
em evidência a dimensão e a composição das populações que
se encontram numa situação de contato, definidas como
hostis ou pacíficas. A desigualdade social e política dos
grupos são realçadas, bem como a estrutura do poder. Nas
outras partes do Memorando, o processo de aculturação é
descrito ressaltando os tratos culturais e não as entidades
sociais individuais ou coletivas. Entretanto, o Memorandum
constitui um documento útil fornecendo indicadores
sensíveis à investigação etnológica, sem, todavia dissociar os
aspectos sociológicos da situação de contato.
O documento de 1954 é o resultado de 20 anos de
pesquisas sobre a aculturação, o que permitiu os seus autores
avaliar com precisão as experiências nesse domínio. Nota-se,
entretanto a ausência de um sumário sistemático dos termos
utilizados em Antropologia para designar o fenômeno de
aculturação. O ponto de interesse principal, do ponto de
vista sociológico, neste estudo, é a análise dos "papéis
interculturais" e a referência à "comunicação intercultural"
(SIEGEL 1954, p. 980).

77
Com relação aos "Intercultural Roles", as idéias de
Malinowski contidas principalmente em sua obra "Dynamics
of Cultural Change" (1945) são retomadas36.
A segunda orientação é aquela que provém da
Antropologia social britânica representada pelas teorias
desenvolvidas por Bronislaw Malinowski (1945) onde a
noção de "mudança social" adquire uma importância fun-
damental neste tipo de abordagem teórica, assim como a
noção de "instituição social". A preocupação em com-
preender a realidade resultante do contato entre duas
sociedades apoiando-se na análise das instituições cor-
respondentes, isto é, pela aceitação de princípios que as
instituições agem uma sobre a outra (segundo suas
"naturezas"), leva de certo modo o investigador a minimizar
a influência dos agentes alógenos — Malinowski os chama
"agentes culturais". Com efeito, a ação destes se estende
também além de suas esferas institucionais respectivas. Esta
orientação desenvolve uma crítica dos efeitos nefastos da
colonização em geral.
A explicação do contato segundo esta visão teórica é
mais uma não-explicação, pois a descrição é centrada sobre
uma terceira sociedade resultante da conjunção das duas
outras; segundo os termos de Malinowski, existe uma
sociedade tribal (de ocorrência africana), uma sociedade

36
Mais adiante na parte sobre a Transfiguração Étnica, desenvolvida por Darcy Ribeiro
voltaremos a falar deste documento (1954). Existe uma crítica significativa feita por
DOHRENWEND, BRUCE and ROBERT J. SMITH, A suggested framework for the
study of acculturation. In Cultural stability and cultural change, Verne F. Ray ed. Seattle,
Proceedings of the 1957 Annual Spring meeting of the American Ethnological Society,
1957, pp. 76-84

78
ocidental e transacional (a terceira sociedade resultante do
contato).
A explicação do contato é uma lacuna na
Antropologia social britânica. Como se poderia explicar
este fenômeno, contato propriamente dito, se a situação
(o contato) fraciona-se em três ordens diferentes? Pouco
importa que Malinowski tenha feito apreciações justas a
respeito da verdadeira natureza do contato cultural que
"consiste na interação de dois mundos culturais diferentes"
distanciado pelo "preconceito racial e políticas diferen-
ciadas". E mesmo que ele tenha avaliado objetivamente os
aspectos conflituosos e tirânicos deste contato, é certo que
este tipo de atitude teórica não permite uma avaliação da
situação de contato camuflado na teoria das mudanças
sociais (MALINOWSKI, 1938, p. 14).
Os pesquisadores franceses que estudaram as socie-
dades africanas já propunham uma outra perspectiva em
seus estudos sobre o contato. Este tipo de orientação, desses
investigadores, que para nós, está situado no terceiro tipo de
orientação terá grande influência nos estudos realizados no
Brasil, principalmente, a partir dos trabalhos de Roberto
Cardoso de Oliveira, que se apóia em Georges Balandier,
quando este desenvolve suas observações sobre a "Sociologia
Atual da África Negra". Cardoso de Oliveira, um dos
representantes deste tipo de orientação, esboça uma teoria do
contato manipulando uma noção de "situação colonial”. Este
conceito, para Balandier, se bem que fundada nos fatos
comumente descritos pelos autores anglo-saxões, tais como
os choques raciais ou os conflitos entre civilizações, não é
examinada por estes últimos sob o ângulo das condições

79
particulares que a produzem. A mais completa definição de
situação colonial continua a ser essa precisada por via dos
seguintes operadores:

‚ a dominação imposta por uma minoria estrangeira, racial e


culturalmente diferente, apelando a uma superioridade racial
(ou étnica) e cultural dogma-ticamente afirmadas, sobre uma
maioria autóctone materialmente inferior; o confrontar de
civilizações heterogêneas: uma civilização industrializada, com
uma economia poderosa, com um ritmo rápido e de origem
cristã impondo-se a civilizações sem técnicas complexas, de
economia retardada, com um ritmo lento e radicalmente não-
cristãs; o antagonismo nas relações estabelecidas entre as duas
sociedades que se justifica pela instrumentação a que é
condenada a sociedade dominada; a necessidade, para manter a
dominação, em recorrer não apenas à força mas também a um
conjunto de pseudo-justificações e de comportamentos este-
reotipados‛ (Georges Balandier «The Colonial Situation: a
theorical approach», in Pierre L. van der Berghe (ed.),
Africa: Social Problems of Change and Conflit, San Francisco,
1951)

Em resumo, a "situação colonial" que adquire as


proporções de uma totalidade nos estudos de Balandier, é
definida da seguinte forma: "a dominação imposta por uma
minoria estrangeira, de etnia e de cultura diferentes, em nome de
uma superioridade racial e cultural afirmada de maneira dogma-
tica sobre uma minoria autóctone, materialmente inferior"
(BALANDIER, 1950, p. 33). Mais do que pelos seus limites, a
definição de situação colonial acima transcrita (Georges
Balandier, 1955, Sociologie Actuelle de l'Afrique Noire, Paris)
vale pelas suas implicações, isto é, a possibilidade de

80
considerar o colonialismo como uma totalidade e não um
conjunto de processos independentes, resultantes de
experiências sociais únicas e exclusivas. Como escreveu
Balandier: «nous avons préféré, à la faveur des ‚vues‛
particulières prises par chacun des spécialistes, saisir la situation
coloniale dans son ensemble et entant que système». Mas, este
conceito operativo revela a questão de se saber se houve
“bons” ou “maus” colonialismos, sendo certo, contudo, que
não se poderão negar as especificidades de cada situação
colonial. De resto, mais recentemente, George Stocking Jr., a
propósito da emergência do pensamento antropológico em
contexto colonial37, chamou a atenção para a necessidade de
entender o fenômeno nas suas diversas concepções no campo
da pluralização da situação colonial.
Continuaremos nossa análise abordando agora as
teorias do contato na etnologia indígena, levando-se em
conta esta perspectiva e a influência que estes estudos
receberam das teorias norte-americana da aculturação, como
pode perceber através da literatura antropológica apontada
aqui sobre essa temática.

3.2 - Herbert Baldus e a Mudança Cultural

Antes da publicação do livro de Herbert Baldus


"Ensaios de Etnologia Brasileira" (1937), poucos etnólogos
haviam estudado a mudança cultural entre os índios, e se

37
George Stocking Jr (editor) Colonial Situations: Essays on the Contextualization of
Ethnographic Knowledge (History of Anthropology Ser., Vol. 7) Paperback, 1992

81
tratavam, o faziam de maneira superficial, na margem de
outros assuntos que consideravam mais importantes.
Em "Ensaios de Etnologia Brasileira", Baldus dedica uma
parte de seu trabalho à "Mudança de cultura dos índios do
Brasil" (1937, p. 276-321). Suas investigações são feitas entre
os Tapirapé, Karaja, Terena, Bororo e Kaingang, grupos
indígenas, que de uma certa maneira, tiveram experiências
diferentes em seu contato com a sociedade nacional em
distintos contextos históricos. Um dos objetivos do trabalho
de Baldus, como ele mesmo declara, é fornecer elementos
para uma melhor compreensão do papel desempenhado
pelos índios na formação cultural do Brasil, por que "a maior
parte do caráter do povo brasileiro é o caráter tupi" (1937, p. 26).
Nesta perspectiva, e, sobretudo a partir do que ele
definiu como cultura, que "nasce de uma combinação de fatores
hereditários, físicos e psíquicos, e de fatores coletivos morais", toda
a teoria da mudança de cultura devia levar em conta estes
fatores.
Evitando empregar o temo aculturação (o que ele vai
fazer bem mais tarde a partir de 1949), Baldus explica o que
entende por mudança social:

"Entendemos por mudança de cultura a alteração da expressão


harmoniosa global de todo o sentir, pensar e querer, poder e
agir de uma unidade social, expressão que nasce de uma
combinação de fatores hereditários, físicos e psíquicos, e de
fatores coletivos morais, e que, unida ao equipamento
civilizatório, como por exemplo, os instrumentos, as armas etc.,
dá à unidade social a capacidade e a independência necessárias
à luta material e espiritual para a vida" (1937, p. 279).

82
Falando desta alteração, Baldus expõe a alternativa
que se oferece aos povos indígenas: uma das possibilidades é
a “assimilação recíproca do novo à cultura existente e desta ao novo
da outra cultura" conservando, entretanto a identidade do
grupo. A segunda é definida como "assimilação unilateral".
Em seguida, Baldus distingue as duas faces de um mesmo
processo, a saber: "a mudança parcial da cultura", que se faz
no interior do sistema e a "mudança total de cultura" que
acontece de um sistema para o outro, unilateralmente. Estas
duas faces não são as etapas de um mesmo processo, mas a
alternativa do processo de contato. Para determinar que tipo
de mudança se opera no seio do grupo indígena, é preciso
esperar que a mudança seja realizada de fato.
Todavia o autor já pronunciou seu veredicto com
relação às populações indígenas com as quais ficou em
contato ao dizer que "já estamos habilitados para concluir que as
tribos perderão também completamente sua cultura, se a relação
com os brancos tornar-se permanente". As obras que apareceram
depois daquelas produzidas por Baldus(1937)38 sobre a
aculturação esforçaram-se para mostrar em termos científicos
uma preocupação em preservar as culturas indígenas. As
observações ou a constatação de aculturação estão
concentradas, nestes trabalhos, em torno de certos elementos
da cultura material como objetos metálicos, vestimentas,
utensílios domésticos ou idéias religiosas, uma de suas
preocupações sendo também reconstruir a cultura

38
Conferir por exemplo: SAMPAIO-SILVA, Orlando. O antropólogo Herbert Baldus.
Rev. Antropol. 2000, vol. 43, no. 2 pp. 23-79

83
tradicional. Pode-se igualmente revelar certa preocupação,
que diremos de ordem prática, de traçar programas de
orientação para os administradores encarregados da política
indigenista39 .
Até 1949, a etnologia brasileira não dispunha de obra
que apresentasse uma cultura indígena em seu conjunto, um
trabalho monográfico, tendo em vista as diferentes reações
provocadas pelo contato social, ou seja, com setores dessa
sociedade apresentando aspectos diferentes: caboclos (mês-
tiços), sertanejos, caipiras, que mantinham contato perma-
nente com as comunidades indígenas. A etnologia brasileira
não dispunha de monografias sistemáticas e bem elaboradas
sobre as populações indígenas que pudesse permitir um
trabalho comparativo. Curt Nimuendaju, etnólogo com
amplo trabalho de campo, da primeira metade do século XX,
tendo conhecimento profundo das sociedades indígenas de
várias regiões do Brasil, tinha por preocupação imediata
produzir uma etnografia procurando dar conta das diversas
situações em que se encontravam os povos indígenas com os
quais ele manteve contato em alguns casos ele denunciava a
presença indesejável do "branco" que nomeava neo-
brasileiro.
Três monografias surgiram em 1949 visando tratar
especificamente sobre mudança cultural: são os trabalhos de
Charles Wagley e de Eduardo Galvão: "The Tenetehara Indians
of Brasil. A Culture in Transition" (Columbia University
Contributions to Anthropology, no 35, New York), os

39
Alguns trabalhos de Baldus, Galvão, Ribeiro e Cardoso de Oliveira têm claros objetivos
como subsídios para o Serviço de Proteção aos Índios. Schaden (1969, p.13) escreve sobre
os conselhos de Baldus para o SPI

84
trabalhos de Altenfelder Silva: "Mudança Cultural dos Terena"
(Revista do Museu Paulista, N.S. v. III, p. 271-379, São Paulo),
e a de Kalervo Oberg: "The Terena and Caduveo of Southern
Mato Grosso-Brazil" (1949).
Fernando Altenfelder Silva efetua suas investigações
em um dos núcleos Terena, a aldeia de Bananal, utilizando
a definição de aculturação proposta por Redfield, Linton
e Herskovits no Memorandum de 1936. Altenfelder tenta
caracterizar sua investigação, apoiando-se nas fontes
bibliográficas, as diferentes fases do contato entre os Terena e
a sociedade nacional. As últimas páginas de seu trabalho
apresentam um sumário da história dos Terena, cuja
intenção é dar uma idéia do processo de mudança cultural
sofrido pela comunidade de Bananal. Nesse sumário, o autor
mostra como a Igreja Evangélica (Inland South America
Missionary Union) desempenhou um papel essencial
nas transformações recentes sofridas pelos índios. Esta cons-
tatação não pode ser generalizada às outras aldeias Terena
da região, pois muitas delas jamais receberam visitas de
missionários.
Uma das conclusões à qual chega Altenfelder, é a que
ele denomina de “recuperação da consciência étnica”. O
autor situa-se no fato de que os Terena, após ter atingido um
estado de “destribalização quase total”. Essa situação é
devida principalmente às frentes de expansão de
agropecuária, estes conseguiram "graças ao Serviço de
Proteção aos Índios", reorganizar certo número de grupos
locais, revitalizando assim a consciência étnica
primordialmente sua dependência total do mercado regional
e do trabalho assalariado nas fazendas vizinhas
(ALTENFELDER DA SILVA, 1949, p. 376).

85
As pesquisas de Kalervo Oberg não aportam dados
etnográficos que vão além daqueles apresentados por
Altenfelder. A novidade é que o autor tenta fazer uma
comparação com os Kadiwéu. No fim dos anos 50, Roberto
Cardoso de Oliveira retoma as pesquisas sobre esses grupos
indígenas com outra perspectiva dos estudos sobre
aculturação.

3.3 - Eduardo Galvão e a Aculturação

Eduardo Galvão e Charles Wagley escolheram os


Tenetehara (Guajajara)40 para efetuar suas pesquisas sobre
"cultura em transição" pelo fato de que estes, ao contrário dos
Tapirapé (outro grupo indígena estudado por Wagley),
mostram “capacidade de adaptação excepcional” em seu
meio e entre a população branca do Estado do Maranhão.
Por outro lado, não houve redução da população dos
Tenetehara como aquela que existiu entre os Tapiraré;
mesmo que aquele grupo tenha estado em contato
permanente há mais de três séculos, permanece
"essencialmente indígena" (WAGLEY & GALVÃO, 1949, p.
29).
Em seu primeiro capítulo, este estudo apresenta uma
reconstituição da história dos Tenetehara colocando em
evidência as relações deste grupo com os brancos. Em
seguida, são tratados os seguintes temas: organização social,
"vida econômica", "vida pessoal" (na qual se descrevem

40
A tradução de "Tenetehara Indians of Brazil. A culture in Transition" Galvão e Wagley
de 1949) só foi para o português em 1961. Paul Ehrenreich (1906) já havia utilizado o
termo aculturação (Akkulturation) para designar os contatos entre dois grupos que trocam
elementos da cultura material.

86
nascimento, infância, puberdade e casamento), vida religiosa,
mitos. A obra termina com um capítulo sobre "cultura em
transição".
A reconstrução da história da cultura Tenetehara,
apresentada pelos autores e os estudos sobre a organização
social, serviu para fazer uma análise minuciosa do processo
aculturativo destes índios, amplamente desenvolvido no
capítulo sobre "cultura em transição". Os autores chegam à
conclusão de que estes índios conseguiram realizar de
maneira coerente uma "integração cultural" e que puderam
sobreviver enquanto grupo étnico. Não que tenham sido
mais "conservadores" que outros grupos indígenas ou que
tenham em sua cultura qualquer elemento que lhes
permitisse resistir às mudanças, mas, ao contrário, porque se
prenderam menos aos costumes tradicionais e que estiveram
relativamente mais dispostos a aceitar outras técnicas, idéias
novas. Como dizem os autores, a suavidade e a disposição
deles em aceitar as mudanças foram provavelmente os
fatores importantes para sua sobrevivência (WAGLEY &
GALVÃO, 1949, p. 178).
Os autores acrescentam ainda que em duas ou três
gerações, se os novos fatores não vierem a modificar o curso
deste processo, os Tenetehara serão transformados em
"caboclos" por sua completa assimilação aos tipos regionais
(p. 185). Sendo assim, dizem que o ritmo acelerado das
mudanças será inevitável. Sem, no entanto, entrar nos
detalhes é preciso acrescentar aqui, que a população branca
que mantém contato com estes índios é resultado das
"integrações culturais" entre portugueses, índios e africanos,
e há seguramente heranças da cultura indígena.

87
Através do discurso extremamente contraditório
destes autores, não se pode compreender por que o
desaparecimento dos Tenethara, enquanto grupo étnico, no
espaço de duas gerações se, como concluem os autores, estes
permaneceram essencialmente indígenas durante esses
séculos.
Referindo-se a este tipo de crítica, Galvão, no prefácio
da edição portuguesa de 1961, admite que estas "dúvidas têm
um fundamento" e acrescenta: "Há muitas tribos indígenas
que resistem até hoje e nada indica que não resistirão no
processo futuro de integração à sociedade brasileira"
(WAGLEY & GALVÃO, 1949, p. 10). Alhures, Galvão
escreve:

"Em nossa monografia sobre os índios Tenetehara, nos


deixamos seduzir pelo ritmo relativamente acelerado com o qual
é operada a transição desta cultura indígena para as normas
brasileiras. Se bem que o grupo mantenha sua unidade tribal e
possa ser distinguida da população cabocla por sua confi-
guração cultural diferente, os sinais de degradação da cultura
tradicional e de substituição dos valores tribais por outros,
brasileiros, são evidentes e resultam do impacto de 300 anos de
vida comum, geralmente pacífica, com nossa sociedade rural.
Concluímos que não precisa mais que uma ou duas gerações
para que os Tenetehara se transformem em caboclos. É a
experiência que adquirimos no Serviço de Proteção dos Índios,
onde nos familiarizamos com uma série de situações de contato
e de assimilação dos grupos indígenas, que nos permitiu ter
uma perspectiva mais correta. Pode-se dizer que os Tenetehara,
a um momento dado de sua transição, escolhesse (sic), em lugar
de adquirir a cultura cabocla, tomar a alternativa dos indígenas
do Nordeste ou do Sul do Brasil pela aquela, uma vez atingida
uma certa estabilidade da população e da relação com os

88
"brancos", e a consciência da impossibilidade de integração na
sociedade rural, o índio, exceto em seu estado mais inferior,
decida permanecer índio, categoria sócio-cultural que lhe
garante as condições de sobrevivência e de status social nas
comunidades da região" (1979, p. 131).

Atualmente os Tenetehara (Guajajara) estão estimados


em mais de 13.000 indivíduos e resistem enquanto grupo
étnico mantendo o contato com a sociedade nacional. De
1978 a 1980, este povo, como se pode ver na imprensa
brasileira, tem lutado pela reintegração de seu território
invadido pelos colonos e missionários. Um trabalho
importante sobre essa sociedade é de Mércio Pereira Gomes
"The Ethnic Survival of the Tenetehara Indians of Maranhão"
(Tese de Ph.D, University of Florida, 1977)41.
Eduardo Galvão foi um dos principais etnólogos
responsáveis pela introdução do conceito de aculturação na
etnologia indígena e sua preocupação se manifesta em todas
as pesquisas que realizou, sobretudo na Amazônia, por
exemplo, em: "Estudos sobre a Aculturação dos Grupos Indígenas
do Brasil" (1953); "Mudança Cultural na Região do Rio Negro"
(1957); "Aculturação Indígena no Rio Negro" (1959).
Galvão ressalta certas dificuldades encontradas nos
estudos sobre a "Acculturation", visto como um fenômeno que

41
E ainda do próprio Mércio Pereira, ver O índio na história: o povo Tenetehara em busca
da liberdade. Petrópolis : Vozes, 2002. As teses de Elisabeth Coelho (Territórios em
conflito: a dinâmica da disputa pela terra entre índios e brancos no Maranhão. (Ciências
Sociais, 46) São Paulo: Hucitec, 2002) e de Claudio Zannoni (Mito e sociedade
Tenetehara. Araraquara : Unesp, 2002), e também a dissertação de Cláudio Zanoni
(Conflito e coesão: o dinamismo tenetehara. (Antropologia, 2) Brasília: CIMI, 1999), e a
tese de doutorado de Peter Schröder: União e Organização- Zur Entstehung modernen
indigenen Widerstands in Brasilien. Eine vergleichende Untersuchung anhand von
Fallbeispielen. (Mundus Ethnologie, 68) Bonn: Holos, 1993.

89
aparece quando grupos de indivíduos de culturas diferentes
entram em contato direto e permanente, com suas
conseqüências sobre as normas culturais destes grupos
(GALVÃO, 1979, p. 129). Distingue aculturação e mudança
cultural que é um aspecto do mesmo processo, e assimilação
que é uma fase do processo de aculturação.
As dificuldades apresentadas por Galvão são as
seguintes: a) A utilização destes conceitos não caracteriza
mais a "natureza" do fenômeno e torna-se difícil o
estabelecimento de um critério para definir a situação de
contato. Como a situação de grupos em contato com a
sociedade nacional, e grupos, que estão também em contato
permanente, porém com setores específicos. Como aqueles
que estão em contrato com os missionários e os agentes do
organismo oficial de proteção; b) E como estabelecer os
limites entre "aculturação" e "mudança cultural"? O problema
não reside na terminologia, mas na atitude teórica face a este
fenômeno, posto que em numerosos casos, o “empréstimo ou
a adoção de um traço cultural, e as modificações que
derivam das forças internas da cultura receptiva, são
simultâneas", (GALVÃO, 1979a, p. 129).
Os trabalhos de Wagley42 e Galvão alargaram o campo
das observações sobre a aculturação, pois os dois autores
ressaltaram de uma maneira original, traços essenciais do
sistema cultural e da organização social e econômica das
comunidades "caboclas", que se estabeleceram perto das
comunidades indígenas e com as quais os índios mantêm

42
Confeir também: Wagley sobre os caboclos: "Cultural Populations: a Comparison of
Two Tupi Tribes" Revista do Museu Paulista n.s., 1951.

90
muitas vezes relações de troca. É através destas comunidades
que os índios obtêm os produtos manufaturados dos quais
têm necessidade. Galvão estima que as comunidades
amazonenses (ditas caboclas) são as depositárias da cultura
indígena e ibérica. Para ele, "nestas comunidades, o
cruzamento entre portugueses e índios foi intenso. Contudo,
se a cultura ibérica pôde implantar um sistema de comércio e
uma economia, forma de organização, instrumentos de
trabalho, absorveu alhures elementos culturais inumeráveis
destes povos dominados. Em certos casos, a mudança foi tal
que se tornou extremamente difícil, senão impossível,
identificar ou retraçar a origem de uma crença ou de uma
prática determinada. Em outros casos, tal identificação é
relativamente fácil mesmo pela análise superficial. Vêm daí
as crenças em seres da floresta ou de rios como Curupira,
Matinta-pereira, Anhanga, Boto ou Uiara, "mães", onde a
origem ameríndia, e especialmente tupi, está fortemente
presente. Qualquer uma destas crenças tem sua origem no
Mundo Antigo, patrimônio Ibérico ou africano, e outros
provenientes de culturas indígenas. Umas e outras, no
processo de fusão e de incorporação do "caboclo" à cultura
moderna, perderam sua forma original e se transformaram e
se mestiçaram em um corpo de idéias que já não é mais
português ou ameríndio, mas algo novo, o "caboclo"
(GALVÃO, 1979b, p. :57-58).
"Caboclo" designa, pois o mestiço, uma categoria
sócio-cultural para localizar setores da população amazo-
nense. Hoje, a sociedade nacional chama os índios "caboclos"
e a língua indígena classifica-se como um patois, mas por trás
disto se desenha com evidência uma política que quer

91
antecipar verbalmente a aculturação. Em certas regiões, os
próprios índios se dizem caboclos para poder sobreviver
(Terri Vale Aquino: "Kaxinawa: de seringueiro 'caboclo' a
peão acreano", Universidade de Brasília, 1977)43.
Eduardo Galvão realizou outros trabalhos significa-
tivos sobre as comunidades caboclas; "Santos e visagens — um
estudo da vida religiosa de Itá", 1955; "Encontro de Sociedades
Tribal Nacional", 1966; "Índios e brancos na Amazônia", 1970.
Estes dois últimos estão incluídos no volume: "Índios e
brancos no Brasil — Encontros de Sociedades", 1979.
Estudando as comunidades "caboclas", Galvão e
Wagley insistem na necessidade de alargar a perspectiva
considerando a bilateridade do fenômeno de aculturação, ou
seja, os efeitos recíprocos deste processo tanto para as
comunidades caboclas como para as comunidades indígenas.
A elaboração das Zonas Culturais feitas por Galvão leva
também em consideração as diferentes situações de contato
nas comunidades indígenas.
A idéia de determinar as causas da aculturação, de
saber por que certos grupos indígenas "se deixam" aculturar
mais facilmente que outros, motivou as pesquisas de Galvão.
Ele procura uma resposta na "distância cultural". Tomando o
exemplo dos Karajá e dos Timbira, diz ainda que os grupos
Tupi são mais facilmente levados a ser aculturados, e a
cultura cabocla tendo se identificado mais com a cultura tupi,

43
Referências importantes sobre a identidade Cabocla conferir os trabalhos de Déborah de
Magalhães Lima: A construção histórica do termo caboclo. Sobre estruturas e
representações sociais no meio rural Amazônico. Novos Cadernos do Naea, v. 2, n. 2, p.
5-32, 1999 e o trabalho de Stephen Nugent: Amazonian Society Caboclo – An Essay on
Invisibility and Peasant Economy, Berg, 1993

92
de onde a "resistência dos Karajá" a se "assimilar" à cultura
cabocla.
Para finalizar esta parte de nosso trabalho, trans-
creveremos uma citação de Galvão na qual estão claramente
indicadas as perspectivas colocadas com relação aos povos
indígenas que caracterizam estes estudos sobre a aculturação
e a política indigenista oficial da época, assim como as
preocupações da etnologia brasileira:

"Os fatores de resistência e de ligação às normas tribais


parecem-nos residir mais em causas como a expansão da
população sertaneja [cabocla] (24) brasileira. Um fato que
muitas vezes não tem sido relevado é que os grupos mais
resistentes ocupam em geral zonas menos devastadas porém
mais inóspitas do platô central, onde não se registrou tentativas
de assimilação do índio e de fixação do caboclo, ou seja, aquele
ainda não encontrou um lugar permanente na economia
regional. A resistência destes grupos é uma condição de
sobrevivência. Em outros casos, a expansão súbita da população
não permite o lapso de tempo necessário à acomodação. O índio
se retira ou é enviado para longe. O fato de que os índios são
pouco numerosos os coloca numa situação de inferioridade, de
minoria étnica, sem outra alternativa senão a de perecer. É o
caso, por exemplo, dos índios do Xingu, que, à despeito do
grande número de tribos, estão em via de extinção. A maior
deles comporta mais de 140 indivíduos. Ao sair de um período
de isolamento, têm se confrontado há cerca de 10 anos com
aviões e máquinas, e um tipo de colonização que não precisa dos
seus braços. Se não encontram lugar nesta economia, e se sua
densidade demográfica não resiste aos desgastes causados pelo
contato, principalmente pela diminuição de seus membros
devido a doenças contagiosas, tenderão a desaparecer, salvo se
uma política indigenista bem eficaz para lhes fornecer os meios

93
de acomodação e de assimilação se desenvolva" (GALVÃO,
1979c, p. 132).

3.4 - Darcy Ribeiro e a Transfiguração Étnica

A teoria da aculturação foi criticada pelos próprios


autores do Memorandum de 1936, por Beals (1953) e
finalmente por Siegel, Broom, Vogt e Watson que elaboram
um documento que redefine o conceito de aculturação. Ralph
Beals assinala que o conceito de aculturação, tal como foi
apresentado pela literatura etnológica da época, denotava
certa ambigüidade e sta reside, segundo o autor, na própria
definição da aculturação, a saber: se é um processo ou uma
condição nas relações entre índios e brancos.
No documento de 1954: "Acculturation: Explanatory
Formulation", elaborado por Siegel e outros, a aculturação é
definida como "mudança cultural nascida da conjunção de
dois sistemas culturais ou mais". Em termos de causalidade,
"A mudança cultural pode ser a conseqüência da transmissão
cultural direta; pode derivar de causas não-culturais, como as
modificações ecológicas e demográficas introduzidas por um choque
cultural; pode ser retardada por ajustamentos internos, aceitando
tratos ou normas alógenas; ou pode ser uma adaptação em reação
aos modos de vida tradicionais" (SIEGEL, 1954, p. 974).
(Barnett, H. G., Broom, L., Siegel, B. J., Vogt, E. Z.,& Watson, J.
B. (1954). Acculturation: An exploratory formulation. American
Anthropologist, 56, 973-1002.)
Os autores do documento analisam então o fenômeno
de aculturação sob 4 ângulos principais:

94
 A caracterização das propriedades de dois ou mais
sistemas culturais que entram em contato;
 O estudo da natureza da situação de contato;
 A análise das relações de conjunção estabelecidas
pelos sistemas culturais em contato;
 O estudo do processo cultural que decorre dos
sistemas em conjunção (p. 975).

Assinalamos este documento para mostrar que a


teoria da aculturação, tal como fora elaborada, não mais
correspondia às novas questões que se apresentam com
relação ao contato, por isto esta teoria será questionada.
Deixaremos de lado os diferentes ângulos do problema da
aculturação vistos pelos autores de "Acculturation: an
exploratory formulation". É, todavia importante assinalar que
na etnologia brasileira, a teoria da aculturação se opõe a uma
série de críticas, entre outras as de Darcy Ribeiro, que
propomos apresentar nesse trabalho, como aquela desen-
volvida, por Roberto Cardoso de Oliveira, esses dois
antropólogos contemporâneos, mas, com diferentes abor-
dagens sobre a questão do contato entre índios e brancos.
Darcy Ribeiro começou suas pesquisas sobre os povos
indígenas acreditando que, para certos autores é o "mito da
identidade nacional"; para ele, a sociedade nacional é um todo
uniforme, "uma etnia nacional em expansão" que, através de
"um movimento exógeno de expansão étnica", entra em
contato com as outras etnias. Sendo dado o caráter
"inevitável" deste contato as outras etnias, que não estão em
expansão, devem resolver os problemas criados pelos
contatos (RIBEIRO, 1977, p. 220).

95
Em seu livro: "Línguas e culturas indígenas no Brasil",
Ribeiro diz quem é índio no Brasil: O indígena é, no Brasil de
hoje, essencialmente esta parcela da população que apresenta
problemas de inadaptação à sociedade brasileira em suas
diversas variantes, devidos à preservação dos costumes,
hábito ou simples fidelidade a uma tradição pré-colombiana,
ou mais amplamente: é índio todo indivíduo reconhecido
como membro de uma comunidade pré-colombiana, que se
diferencia etnicamente da sociedade nacional, considerado
como indígena pela população brasileira com quem está em
contato (RIBEIRO, 1957, p. 33). Em 1947, Darcy Ribeiro é
contratado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão
indigenista criado no início do século por Cândido Rondon.
O marechal seria uma das principais figuras a inspirar
Darcy no trabalho de assistência às populações indígenas.
Ele realizou no SPI suas primeiras pesquisas etnológicas, a
maior parte delas em períodos prolongados junto aos índios.
Nos dez anos visitando os povos do Pantanal, o antropólogo
escreveu um trabalho importante, Religião e Mitologia
Kadiwéu (1950), livro com o qual ganhou o importante
prêmio Fábio Prado e, com ele, certa notoriedade que
em alguns momentos compartilhou com a ex-esposa a
antropóloga Berta Ribeiro, que o acompanhava em viagens e
pesquisas de campo, além de aparecer como co-autora em
várias obras.
A partir de 1953, Darcy Ribeiro organiza o Museu
do Índio no Rio de Janeiro e os primeiros cursos de
especialização em Antropologia realizados no Museu.
Durante este período, Ribeiro defende as diferentes políticas
de integração e de assimilação do índio à sociedade nacional;

96
em 1954, fala de integração gradual do índio, uma vez que o
contato com a sociedade nacional é inevitável; propõe a
criação de reservas indígenas como um meio de preservar a
cultura indígena. A partir de 1957, a preocupação principal
de Ribeiro é pesquisar os meios de salvar as vidas indígenas
terrivelmente ameaçadas pelos contatos. Em 1962, é a favor
de uma incorporação gradual dos grupos indígenas em um
programa amplo de educação, e mostra certa oposição ao
isolamento dos índios em reservas (MARASH JR, 1978).
Darcy Ribeiro propõe examinar as etapas da evolução
sócio-cultural dos povos em uma sucessão de revoluções
tecnológicas que são classificadas, em sua obra como
agrícola, urbana, de irrigação, metalúrgica, pastoril, mer-
cantil, industrial e finalmente termonuclear, em seu livro
"O Processo Civilizatório" (1968). Essas investigações no campo
da antropologia da civilização seráum deseus grande projeto:
Explicar o Brasil. É nesta série de estudos que vai
desenvolver todo um corpo de fundamentos teóricos que
tornaram possíveis o maior desafio a que já se propôs de
desenvolver: O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do
Brasil (1996). Nesse trabalho o autor retoma os conceitos de
Povo Novo, transfiguração étnica, revoluções tecnológicas,
configurações socioculturais típicas de cada período e as
propostas de teorias para a América Latina, entre outros, vão
se concatenar num todo coeso. Nessa perspectiva ou autor
discute as questões ecológicas e econômicas tais como já
apresentadas através da antropologia americana desenvol-
vida por Julian Steward e Leslie White que auxiliam na
explicação das formações culturais rústicas de cada região

97
brasileira e a sua unificação numa identidade étnico-nacional
(ou macroetnia) que perpassasse cada uma delas.
Em outras obras como, por exemplo: "As Américas e a
Civilização" e o "Dilema da América Latina", analisa o processo
de formação, as causas do desenvolvimento desigual dos
povos americanos e as estruturas de poder e as forças
rebeldes na América Latina. Em "O Processo Civilizatório",
Darcy Ribeiro analisa certos aspectos da Transfiguração
Étnica quando examina as formas de transição de uma etapa
evolutiva para uma outra utilizando o conceito de "aceleração
evolutiva". Este conceito é utilizado “para descrever os
procedimentos”, intencionais ou não, de indução do progresso
preservando a autonomia da sociedade que faz a experiência
e, por esta razão, conservando seu tipo étnico, às vezes com a
expansão daquela como uma macro-etnia assimilativa de
outros povos (RIBEIRO, 1961, p. 56).
Darcy Ribeiro denomina este processo de "Atualização
ou incorporação histórica". Em "As Américas e a Civilização",
analisa o conceito de aculturação quando examina o processo
de formação e de diferenciação dos povos americanos e do
desenvolvimento desigual. Ribeiro utiliza também a noção
de Transfiguração Étnica. Em relação à evolução sócio-
cultural dos povos, distingue os povos "prósperos e
poderosos" e os povos subdesenvolvidos. Estes também são
divididos em duas categorias, de um lado os povos pré-
agrícolas que se encontram de certa maneira à margem e que
não foram atingidos pelas revoluções tecnológicas, e de outro
lado, os povos subdesenvolvidos que, de uma forma ou de
outra, foram incluídos no sistema econômico mundial.

98
Ribeiro44 define para estes quatro grandes configurações
histórico-culturais, a saber: os povos emergentes; os povos
novos; os povos-testemunha e os povos transplantados
(RIBEIRO 1981, p. 160).
A teoria da Transfiguração Étnica surgiu como uma
crítica à teoria da aculturação. Segundo Ribeiro, "em sua
formulação original, estes estudos se limitaram ao exame dos
contatos diretos e contínuos, este processo sendo necessariamente
concebido como bilateral e explicado em termos de adoção seletiva
de elementos culturais estrangeiros. Muito rápido, entretanto, a
necessidade impõe-se de incluir na análise todos os tipos de contato
interétnico, e de levar em conta as situações nas quais o processo
era unilateral ou, pelo menos, não afetava necessariamente as duas
etnias presentes" (RIBEIRO, 1977a, p. 12). Ou, como ele mesmo
afirma, essa teoria foi desenvolvida para explicar as situações
de desigualdades relacionadas a partir de questões postas
através da cultura. Em suas próprias palavras:

‚Tendo escrito esses livros, escrevi mais um que é "Os Índios e


a Civilização", que eu vinha fazendo há anos, por encomenda
da Unesco. Este livro me ensinou muito porque me fez
desenvolver um conceito de "transfiguração étnica", que é o
processo pelo qual os povos se fazem e se transformam ou se
desfazem. Nenhum índio vira civilizado, o que há é que um
povo indígena, mantendo sua indianidade, vai morrendo e, ao
lado dele, surge um núcleo humano que cresce à custa dele e
que cresce contra ele, que é o núcleo civilizado. Então, assim
como não há conversão, não há assimilação. O que há é uma

44
Novos-emergentes: os novos Estados africanos e asiáticos. Povos-testemunhas: Índia,
China, Japão, Coréia e os países árabes. Povos-novos: Brasil, Venezuela, Colômbia etc. e
Antilhas. O Sul dos Estados Unidos e outros países da América Central. Povos-
transplantados: Austrália, Nova Zelândia, Israel. (RIBEIRO, 1981, p. 160-162).

99
integração inevitável. Se o índio é cada vez mais cercado de um
contexto civilizado ou comercializado, se ele próprio se converte
em mão de obra, se ele próprio tem que produzir mercadoria, é
claro que ele tem uma integração cada vez maior com a
sociedade nacional. Mas esta integração não quebra nele a
identidade, que é como a do judeu, como a do cigano. Ele
mantém a sua identidade como indígena. Apesar de
transformados os costumes, apesar de mudar o modo de se
vestir. Apesar de todas essas mudanças, ele permanece
indígena‛.45

É nesta perspectiva que Ribeiro orienta suas inves-


tigações. Critica igualmente duas posições que, segundo ele,
são insuficientes para analisar o contato entre índios e
brancos. Para a primeira, de Galvão e Schaden, Ribeiro diz
que eles abandonam a formulação geral de uma teoria para
cair num círculo vicioso no qual cada fator poderia ser por
sua vez causa e efeito, e que a tentativa de explicar a
aculturação com as análises histórico-etnológicas limita ao
excesso a amplitude do fenômeno (SCHADEN, 1969).
O outro ponto de vista criticado é o de Roberto
Cardoso de Oliveira. Segundo Darcy Ribeiro, este último,
analisando o fenômeno de aculturação através de uma ótica
sociológica das situações de conjunção e ressaltando os
aspectos sociais do conflito interétnico, subestima de certa
maneira os fatores importantes, os de ordem cultural, por

45
Conferir entrevista de Darcy Ribeiro, publicada no boletim da ABA, concedida a Luís
Donisete B. Grupioni e Denise Fajardo Grupioni:
http://www.unicamp.br/aba/boletins/b27/08.htm. Consultar também recente trabalho de
André Luís Lopes Borges de Mattos, autor de “Darcy Ribeiro: uma trajetória (1944-
1982)”, tese de doutorado e apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp.

100
exemplo. Quanto às formulações de Cardoso de Oliveira a
propósito dos estudos sobre o contato, Ribeiro diz:

"Tais conceitos (Fricção interétnica, Tribalismo, Potencial de


Integração, Cf. Cardoso de Oliveira, 1962, 1964, 1967) embora
úteis para descrever situações gerais de interação entre
representantes da sociedade nacional e os grupos tribais,
também para assinalar certas potencialidades de conflito ou de
acomodação que lhes são inerentes, não fornecem corpo
metodológico que permita explorar metodicamente o valor
explicativo das situações de interação entre sociedades
nacionais e etnias tribais, que são em abundância na realidade
brasileira" (RIBEIRO, 1977b, p. 11).

Ribeiro diz ainda que a teoria da Transfiguração


Étnica procura ultrapassar as abordagens anteriores pro-
pondo um campo metodologicamente apropriado para
analisar as relações de contato. Este modelo explicativo das
relações entre índios e não-índios provém da análise do
contato, através da qual o autor examina as transformações
sofridas pelo patrimônio cultural dos povos indígenas e o
resultado dos contatos. Esses se apresentam sob as múltiplas
formas que tomou no Brasil, a saber: a fronteira de
penetração agrícola, pastoril, no Nordeste e centro do
Brasil, e a fronteira extrativistivista com relação à Amazônia.
A situação de fronteira de expansão é apresentada em
sua análise como um conjunto uniforme dando lugar a
três reações possíveis entre os povos indígenas: a fuga,
uma reação hostil aos invasores ou a aceitação do contato
"porque representa, efetivamente, uma fatalidade inevitável"

101
(RIBEIRO, 1977c, p. 220). A transfiguração étnica é, pois
definida como:

"...um processo através do qual as populações tribais


confrontam-se com as sociedades nacionais e preenchem as
condições necessárias à sua sobrevivência enquanto entidades
étnicas, pelas alterações sucessivas de seu substrato ideológico,
de sua cultura e das formas de relações com a sociedade
circundante". E Ribeiro acrescenta: "Esta acepção — da
Transfiguração Étnica — é na realidade uma aplicação
particular e restrita de um processo mais geral que compreende
os modos de formação e de transformação das etnias"
(RIBEIRO, 1977d, p. 13 e 217-227).

A elaboração da teoria da Transfiguração Étnica exige


que Darcy Ribeiro re-examine algumas noções como as de
assimilação e integração. Utiliza o termo assimilação "para
designar a perspectiva de fusão de novos contingentes no seio das
etnias nacionais sendo parte integrante desta; por integração,
designamos os modos de acomodação recíproca e de coexistência
entre as populações diferentes do ponto de vista étnico" (RIBEIRO,
1977e, p. 14). Analisando a situação de contato entre índios e
brancos, Ribeiro estabelece quatro categorias que denomina
"Graus de integração":
 Índios isolados: são os grupos indígenas que
vivem nas regiões atingidas pela sociedade
brasileira, tendo apenas contatos esporádicos com
a sociedade nacional;
 Índios em contato intermitente: são os grupos
indígenas cujos territórios estão, de uma maneira
ou de outra, ocupados pela sociedade nacional,

102
mas cujos valores culturais estão intactos e que
gozam de certa autonomia;
 Índios em contato permanente: estão incluídos
nesta categoria todos os grupos indígenas que
estão em contato contínuo com a sociedade nacio-
nal sendo incorporados à economia regional da
qual são dependentes. Sua cultura é profunda-
mente modificada em relação à cultura indígena
tradicional;
 Índios integrados: são os grupos indígenas que,
após ter suportado todas as pressões (ecológicas,
econômicas e culturais) conseguiram sobreviver,
estando hoje isolados no seio da população
nacional, da qual se incorpora à vida econômica
enquanto reserva de mão-de-obra..." (RIBEIRO,
1977f, p. 229-232 e 432-433).

Observando as populações indígenas de 1900 a 1957


segundo o processo de transfiguração étnica, Ribeiro elabora
algumas previsões. Prevê uma redução demográfica dos
povos indígenas se os grupos passam da condição de
isolados à de integrados. No caso onde as ações de proteção
asseguram aos povos indígenas condições de vida adequada,
não desaparecerão e terão a possibilidade de se reconstruir.
Prevê também certa modificação das línguas indígenas por
causa do contato e das novas experiências nos graus de
integração. "As culturas indígenas não podem sobreviver de
maneira autônoma senão nas regiões inexploradas ou à fraca e

103
recente penetração, ou enfim em condições artificiais de intervenção
protecionista, constituem espécimes em via de desaparição
destinados a perder suas características na medida em que a
sociedade nacional cresce e se desenvolve de forma homogênea"
(RIBEIRO, 1977g, p. 445).
O plano de classificação proposto por Ribeiro é
evolutivo e não considera situações como, por exemplo,
regiões onde existem ao mesmo tempo várias "frentes
de expansão" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1964, p. 13 e
HANLEY, 1978). Insiste sobre os princípios explicativos e os
exemplos particulares, o que torna mais difícil uma análise
mais compreensível do contato entre índios e não-índios. Na
teoria desenvolvida por Ribeiro às vezes, torna-se difícil de
distinguir a diferença entre os índios que ele considera como
"assimilados" e os que ele chama de "extintos" (CARDOSO
DE OLIVEIRA, 1978, p. 15 nota 5).
A diferença das pesquisas sobre a aculturação e a
abordagem de Ribeiro, com seu modelo explicativo, a
transfiguração étnica, limita-se praticamente ao que se refere
à sobrevivência dos povos indígenas. Para os pesquisadores
que se apóiam nas teorias da aculturação, o intenso e
permanente contato entre índios e brancos, levaria uma
perspectiva futura do desaparecimento dos grupos indígenas
enquanto grupos étnicos, o que equivale à assimilação à
sociedade nacional. De acordo a teoria de Darcy Ribeiro,
estes grupos não desapareceriam totalmente, mas se
tornariam povos transfigurados do ponto de vista étnico, ou
seja, enquanto etnias minoritárias em um novo contexto

104
étnico nacional, porém capazes de assegurar a liberdade e o
bem-estar de seus componentes (RIBEIRO, 1977, p. 446).

105
4. IDENTIDADE ÉTNICA:
PERSPECTIVAS ESTRUTURALISTAS

Ao decorrer destas últimas décadas, e particularmente


após 1960, a teoria da aculturação foi criticada pelos
etnólogos brasileiros, porque não mais respondia às questões
relativas ao contato com a sociedade nacional, sobretudo
no que se refere a resistência dos povos indígenas na
manutenção de suas identidades étnicas e as relações
entre índios e não-índios nas sociedades contemporâneas.
As tentativas de Hebert Baldus, com a introdução de estudos
sobre a mudança cultural, a produção teórica de Darcy
Ribeiro sobre a transfiguração étnica não mais deram conta do
conjunto das relações entre grupos indígenas e sociedade
brasileira. Estas abordagens deixavam de lado toda uma
série de fenômenos passíveis de ser encontrados em outros
contextos, onde as populações e mesmo as "culturas" em
conjunção não se caracterizam somente pelos componentes
do tipo étnico e a construção de uma etnicidade.
As perspectivas para os povos indígenas apresentados
por Baldus, Galvão, Schaden e Ribeiro, para citar apenas os
etnólogos que nos referimos nesse trabalho, e que, pela
natureza de suas obras se interessaram pelo destino das

106
populações indígenas, foram apontadas como a incorporação
dos "contingentes" indígenas na sociedade nacional, ocasio-
nando a perda de sua identidade étnica. Muito destes
prognósticos não aconteceram, visto que, mesmo demogra-
ficamente reduzidos, os índios do Brasil continuam "índios",
mantendo sua identidade étnica, e o que parece, não são de
modo algum “assimilados” na sociedade nacional. É interes-
sante notar que alguns etnólogos têm feito sua "autocrítica"
neste sentido. Um deles, Roberto Da Matta, exprime-se
nestes termos no prefácio da segunda edição de "Índios e
Castanheiros":

“Eu intitulo o parágrafo 7 deste livro (...) Epílogo. Desde a


primeira frase, afirmo com pessimismo: o parágrafo precedente
põe um ponto final na história dos Gaviões. Jamais estive tão
feliz de estar enganado. E jamais um erro foi tão importante
para resolver pesquisar fora de uma "antropologia da
integração", uma antropologia que pensasse realmente menos
em decretar a morte dos índios que em procurar melhor
compreendê-los enquanto sociedade concreta e específica. Pois é
necessário não esquecer que os índios morrem depois de
decênios na etnologia brasileira, embora a realidade seja outra;
apesar dos decretos (do Governo como dos etnólogos), apesar de
todas as tragédias, todas as crises, as doenças e as espoliações,
as perdas de terras, em suma, de tudo o que pode acontecer de
pior a um grupo humano, os índios estão lá” (DA MATTA,
1979, p. 36).

Nossa intenção é apresentar a teoria da Fricção


Interétnica, desenvolvida por Cardoso de Oliveira no
decorrer desses últimos anos, através da qual um grupo de

107
etnólogos se uniu ao estudo das teorias do contato cultural e
por conseqüência ao estudo da identidade étnica. Achamos
importante apresentar das obras de Cardoso de Oliveira, o
inspirador desta noção e que se dedicou nesses últimos anos
ao estudo da identidade étnica. Foi inicialmente, em 1962
denominada de "fricção interétnica" baseada no trabalho de
campo desenvolvido pelo autor entre os Tükuna durante os
anos de 1964. Essa teoria foi publicada pela primeira vez em
1967 ele foi republicado em 1968, na revista América
Indígena (vol. XXVIII, n° 2, México), e incluído posterior-
mente na coleção de ensaios A Sociologia do Brasil Indígena
(Edições Tempo Brasileiro Ltda., Rio de Janeiro, 1972).

4.1 - O Contato enquanto Fricção Interétnica

Ao contrário dos estudos sobre aculturação, aqueles


voltados essencialmente para a descrição dos processos de
difusão, transmissão e assimilação de "traços culturais", os
estudos sobre a fricção interétnica têm por base o exame de
relações sociais entre os grupos tribais e os segmentos
regionais da sociedade brasileira aos quais estão ligadas;
passa-se assim de uma orientação "culturalista" a uma
orientação teórica de caráter sociológico. Esta teoria também
é resultado igualmente da crítica da teoria da Aculturação, o
contato como "Fricção Interétnica", como oposição. Parte do
principio e esse estudo deve ser visto como uma concepção e
totalidade sistêmica. Sendo assim, o contato é concebido
como relação processual no interior de um sistema inte-

108
rétnico. A ênfase não se dá no patrimônio cultural, mas "nas
relações que existem entre as populações ou sociedades a que
se relacionam" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 85)46.
Neste sentido, os componentes mais importantes do
contato interétnico estão integrados em um sistema único
constituído de duas sociedades. O sistema compreende
grupos étnicos quando um contato é contínuo ou mesmo
permanente, forçado a uma existência co-participativa ao
nível das relações e da mudança da economia, de ordem
política, e de organização social. Este sistema único é
produzido por um contato; as relações no seio deste sistema
são necessariamente relações de oposição. Cardoso o define
como: duas populações dialeticamente unificadas através de
interesses diametralmente opostos, embora interdepen-
dentes, por paradoxal que isto pareça. Para este autor, a
sociedade nacional é:

"Um sistema social susceptível de ser analisado através de sua


estrutura de classe. A situação de contato, graças ao sistema de
relações que lhe é inerente, pode ser analisada graças ao que
chamarei Fricção Interétnica o que será o equivalente lógico,
(mas não ontológico) do que os sociólogos chamam "Luta de
classes". Convém ao analista decifrar a estrutura deste sistema
e sua dinâmica para fornecer um diagnóstico e tentar
estabelecer um prognóstico da situação de contato"
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978a, p. 85).

46
Veja a entrevista de Mariza Corrêa, Roberto Cardoso de Oliveira e Roque de Barros
Laraia com DAVID MAYBURY-LEWIS, publicada na Revista Brasileira de Ciências
Sociais, vol.17 N.50, São Paulo Oct. 2002, onde os autores se referem a esse período.

109
Por conseqüência, as transformações sofridas pelas
sociedades em contato interétnico não são os resultados da
influência da cultura de uma sobre a outra, nem o produto
de uma criação comum determinada pelos fatores postos em
interação pelos grupos étnicos47. Estas transformações
exprimem a maneira como cada sociedade reorganiza o
complexo estrutural, de suas relações econômicas, políticas e
sociais, de maneira a manter no curso do contato e no seio do
sistema determinado por este um nível ao menos razoável de
relações com o sistema interétnico.
É nesta perspectiva que se elabora o projeto de estudo
das "Regiões de fricção interétnica do Brasil" (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1962, p. 5-90) organizado por Cardoso de
Oliveira com outros etnólogos como Roberto Da Matta,
Roque B. Laraia e Julio César Melatti. O primeiro caso
estudado foi o de Tükuna da região do Alto Solimões,
população atrelada a um sistema servil caracterizado pelo
regime do Barracão48. Em sua maioria, estes índios são
seringueiros. Ainda, segundo o projeto original outros povos
serão estudados como os povos Assurini e Gavião, dois
grupos de organizações sociais diferentes que estão em
contato em situação das fronteiras de expansão da extração
no Estado do Pará. O terceiro caso estudado se situa no Brasil
Central com os índios Xerentes e Krahô, grupos cuja

47
Há uma grande variedade na definição, certos etnólogos utilizam os sentidos desejados
pela "tradição cultural" como por exemplo a definição existente no "Modern dictionary of
sociology" de Georges A. e Achilles Theodorson, Nova York, 1969. Outros colocam mais
evidência no sentido organizacional como por exemplo Fredrick Barth (1969).
48
O regime do Barracão é aquele em que o indivíduo paga os bens de consumo que
compra na loja (Barracão) do patrão, com seu trabalho. É um regime de não circulação da
moeda.

110
organização social é semelhante e que habitam regiões onde
predomina a expansão das fronteiras pastoris. Os resultados
desses estudos encontram-se nos livros de Cardoso de
Oliveira "O Índio no mundo dos brancos" (1964), de Roberto
Da Matta e Roque Laraia "Índios e castanheiros" (1967) e de
Melatti J. C. em "Índios e criadores" (1967). Outros etnólogos
utilizaram este instrumento metodológico para suas pesqui-
sas em outras regiões 49.
Cardoso de Oliveira apresenta o projeto da seguinte
forma: "O estudo das zonas de fricção interétnica transformou a
noção de situação (colonial ou de fricção) em um instrumento de
compreensão e de explicação da realidade tribal visto não mais em si
mas em relação com a sociedade que lhe rodeia‛. O estudo da
fricção interétnica pode ser visto dentro do âmbito dos
estudos de mudança sócio-cultural; entretanto, para a ênfase
dada à compreensão do índio em situação, ela alarga o
campo de observação do pesquisador — que passa o quanto
antes a estudar igualmente a sociedade inclusive nacional,
ou colonial, rejeitando a abordagem “culturalista” julgada
inadequado à compreensão de um comportamento inte-
rétnico (DA MATTA, 1979, p. 38).
Para tornar operacional a análise deste sistema
(interétnico) devem-se distinguir três níveis determinantes
das relações entre as sociedades: o nível econômico, o social e
o político. A análise destes níveis dará ao pesquisador os
meios para analisar os mecanismos de integração que

49
Ver também Paulo Amorim "Os Índios Camponeses – os Potiguares da Baía da Traição
"Revista do Museu Paulista”, n.s. v. 19, 1971, p. 7-99 e Terri Valle Aquino "Kaxinawa:
de seringueiro 'caboclo' a peão 'acreano'". Dissertação de Mestrado, Universidade de
Brasília, 1977.

111
Cardoso de Oliveira designa pela expressão "potencial de
integração”. Nesta teoria, a integração social é visualizada
como o processo responsável pela constituição do sistema
interétnico. Neste sentido, o nível econômico determina o
grau de dependência do índio dos recursos (econômicos)
postos a seu alcance pelo não-índio e vice-versa. O nível
social avalia a capacidade dos grupos em contato (índios e
grupos da sociedade nacional) para manter um mínimo de
organização e orientar os membros para os fins. Mas, pela
própria natureza do sistema interétnico, estes fins serão
antagônicos. É a persistência a orientar para um fim que tem
feito com que muitos grupos indígenas sobrevivam. Quanto
ao terceiro nível, o político, é preciso estudar a natureza do
poder ou da autoridade de um grupo sobre outro,
considerados como as partes constituintes de um sistema de
dominação. A manipulação do poder pelos brancos e as
reações dos grupos indígenas a esta dominação serão os
elementos da situação de contato que se encontrará
freqüentemente (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 87-93).

4.2 - Frentes de Expansão e Colonialismo Interno

A noção de fricção interétnica parte do princípio de


que o contato com a sociedade nacional realiza-se através
das "fronteiras de expansão", mostrando assim o caráter
dinâmico do fenômeno. Pois a noção de fronteira (o que para
Ribeiro seria as fronteiras de civilização) acrescentada à de
expansão econômica, permite que as investigações sobre o
contato interétnico sejam consideradas em seu conjunto.
No caso do Brasil, existe uma variedade de fronteiras de

112
expansão, o que deve tornar a pesquisa atenta ao desenvol-
vimento e ao subdesenvolvimento regional.
Em 1955, Leo Waibel, em "As zonas pioneiras do Brasil",
apresentava para o país, ã exceção da Amazônia, cinco zonas
que considerava como pioneiras, e que procuravam se
estender, com novos habitantes de nível de vida mais
elevado. As cinco zonas caracterizadas por Waibel são as
seguintes: 1) a região de Xapecó-Pato Branco no nordeste do
Estado de Santa Catarina e o sudeste do Estado do Paraná; 2)
o norte do Estado do Paraná; 3) o oeste do Estado de São
Paulo; 4) o Estado de Mato Grosso e de Goiás; 5) a região do
norte do Rio Doce no Estado de Espírito Santo e Minas
Gerais (WAIBEL, 1955 apud CARDOSO DE OLIVEIRA,
1978, p. 97).
Estas zonas estabelecidas por Waibel e outros, acres-
centadas à região amazonense, mostram que o desenvol-
vimento no Brasil é, às vezes, feito de maneira espontânea,
mas que em geral, sempre foi conduzido por uma política
brasileira de desenvolvimento. Cardoso de Oliveira emprega
a noção de fronteira de expansão conjuntamente à de
colonialismo interno, com base no pensamento do sociólogo
mexicano Pablo Casanova50 que escreve: "no seio das sociedades
plurais, as formas internas do colonialismo subsistem após a
independência política e as mudanças sociais (reforma agrária,
industrialização, urbanização)”. O colonialismo interno é per-
cebido como um continuum da estrutura social das "nações
jovens". Neste sentido, a noção de colonialismo interno

50
Pablo Casanova "Sociedad Plural, Colonialismo Interno y Desarrollo" In: Revista
América Latina v. 3, 1962.

113
explica em parte o desenvolvimento desigual dos países
subdesenvolvidos (CARDOSO DE OLIVEIRA 1966).
A noção de colonialismo interno utilizada por
Cardoso de Oliveira, acrescentada a de "segmentos étnicos"
da sociedade brasileira dão consistência metodológica à
teoria da Fricção Interétnica. Em vez de se restringir ao
estudo das zonas de fricção interétnicas tidas como
totalidades sincréticas e concretas tendo sua própria
universalidade e particularidade, sua necessidade e sua
contingência, o etnólogo é levado a se orientar para o exame
da sociedade nacional em suas manifestações regionais. Para
a análise, a questão indígena, cuja amplidão se subestima,
geralmente sob pretexto de que concerne um pequeno
número de indivíduos, será um meio de conhecer, em escala
microscópica, o Brasil colonizado, o Brasil subdesenvolvido,
"A dialética das relações entre as classes (trabalhadores e patrões) e
os grupos tribais (...) constituiria o núcleo central das pesquisas
sobre este terceiro Brasil" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1966a)51.
Cardoso de Oliveira, com a teoria do contato
interétnico, tenta: 1) fornecer uma estrutura teórica para a
explicação e a compreensão da situação de contato; 2)
chamar a atenção para os aspectos dinâmicos desta situação;
3) confrontar a natureza dialética do fenômeno. Ele vê o
fenômeno do contato como uma totalidade unificada por
interesses opostos. É sobre este ponto que ele tem
divergências com os outros etnólogos que fizeram pesquisas
sobre a situação de contato. Darcy Ribeiro explica, por

51
Cardoso critica a idéia apresentada por J. Lambert em seu livro "Os dois Brasis". Para
Cardoso existe um terceiro Brasil: o Brasil indígena (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1966).

114
exemplo, a situação de contato como a confrontação mútua
de duas totalidades. A segunda divergência nos trabalhos de
Ribeiro e Cardoso é a não-aceitação, da parte de Ribeiro, da
"preponderância das relações sociais" na aculturação. Como
diz o próprio Cardoso, "mais que um estudo da mudança
cultural, queremos estudar a mudança social, sobretudo com o
estudo da mudança de situação“(CARDOSO DE OLIVEIRA,
1979, p. 37).

4.3 - A Identidade Étnica como Ideologia

Mais tarde, Cardoso de Oliveira desenvolveu o


conceito de identidade étnica enquanto identidade contras-
tativa com base em trabalhos de Fredrick Barth (1969).
Segundo Cardoso, "a especificidade da identidade étnica, em
particular suas manifestações mais primitivas, reside em seu
conteúdo mais etnocêntrico inerente à negação da ‘outra’
identidade em contraste" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a,
p. 45). A identidade étnica assim definida seria a expressão
do sistema de relações entre os índios e a sociedade
regional52 da qual já evidenciamos o caráter contraditório
quando apresen-tamos a noção de Fricção Interétnica.
Os quatro principais ensaios de Cardoso de Oliveira
sobre a identidade étnica estão reunidos em um volume
intitulado: "Identidade, etnia e estrutura social" (1976) onde o
autor retoma justamente a especificidade do étnico e do

52
Cardoso sempre evita falar de sociedade nacional. Em seu lugar emprega o termo
"regional" ainda que outros autores falem de sociedade nacional. Darcy Ribeiro emprega
o termo "nacionais" como sinônimo de "brancos".

115
ideológico, formulando-a nos seguintes termos: 1) a arti-
culação social como processo de relações que, no caso
particular da confrontação entre índios e brancos (fricção)
toma a forma de articulação étnica (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1976b, p. 55-71); 2) o grupo social tomado como
um modo de organização que, no caso do índio, recobre a
noção de grupo étnico; e 3) a identidade social como uma
ideologia que, no caso indígena, aparece como identidade
étnica (CARDOSO DE OLIVEIRA 1976b, p. 43). Tendo em
conta a reorientação dos valores ideológicos, a sociedade
tribal se reorganiza a partir dos modos pelos quais se
identifica como unidade diferenciada e consegue se opor
ativamente à sociedade regional.
Assim, Cardoso de Oliveira em "Identidade étnica,
identificação e manipulação" e em "Um conceito antro-
pológico de identidade" tenta mostrar fatores sobre esse
processo: o primeiro é a necessidade de estabelecer uma
dimensão propriamente antropológica para a identidade
social e mais particularmente a identidade étnica53. Para
recolocar a identidade étnica sobre bases sociais, o autor
utiliza as proposições de Barth, como a forma que o próprio
grupo étnico tem de se representar,54 que se preserva
enquanto grupo enquanto preserva sua identidade, sobre os

53
Em "O processo de assimilação dos Terena" Cardoso de Oliveira (1960) editado
posteriormente (1976) sob o título de "Do Índio ao Bugre" Cardoso reconhece que a
identidade étnica "exibiu um conteúdo claramente psicológico” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1976, p. XV).
54
Cardoso de Oliveira escreve: "A pista mais segura foi-nos traçada pelo conjunto de
estudos publicados em Ethnic groups and Bundaries de F. Barth, 1969” (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1976, p. XV).

116
planos ideológicos e organizacionais, e se preserva como
identidade étnica enquanto mantém as condições organi-
zacionais de se conservar enquanto grupo (BARTH, 1969,
p. 10-14).
Considerando o esquema das relações interétnicas que
tem lugar entre os indivíduos e grupos de origem "nacional",
"racial", ou mesmo "cultural" diferentes, e a noção de grupo
étnico como "organizational type", o autor mostra que a
identidade contém duas dimensões, a primeira é a social e a
segunda aquela que se situa no individual. Considerando a
alteridade dos grupos, o autor estabelece a noção de
identidade contrastativa que "parece constituir-se na essência
da identidade étnica, isto é, sobre a base de qual identidade
se define. Isto implica na afirmação do eu frente aos outros
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976d, p. 5). Apresentamos as
modalidades da identificação étnica utilizando o modelo
proposto por Lehman (1969) que diz:

"Quando as pessoas se identificam como membros de uma


categoria étnica, (...) situam-se no seio de relações intergrupais
(...). Estes sistemas de relações intergrupais compreendem
as categorias complementares totalmente interdependentes.
Afirmo que na realidade, as categorias étnicas são formalmente
papéis e que, neste sentido, não são senão indiretamente
descritivas as características empíricas de grupos compostos de
pessoas" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 8).

117
TIPOLOGIA DAS SITUAÇÕES DE CONTATO

"INTERTRIBAIS" INTERÉTNICAS

SIMETRIA RELAÇÕES RELAÇÕES


IGUALITÁRIAS (1) IGUALITÁRIAS (4)

RELAÇÕES DE
ASSIMETRIA RELAÇÕES SUJEIÇAO-DOMINAÇÃO (3)
HIERÁRQUICAS (2)

Cardoso define a identidade étnica em contextos


tribais mostrando-a em confronto com a sociedade nacional.
Estabelece então uma tipologia partindo das situações de
contato, isto é, das relações interétnicas que podem acontecer
em "sistemas de interação tribal" e de relações conflituosas de
contato entre sociedade tribal e sociedade nacional55.
A tipologia estabelecida pelo autor apresenta-se da
seguinte forma:

 Relações implicando unidades tribais em relações


simétricas, como o caso Xingu e as relações intertribais
do Rio Negro, Amazonas56;

55
Carlos Rodrigues Brandão afirma que as relações interétnicas marcadas pela
desigualdade e pela dominação não podem ser compreendidas através de aspectos
particulares e desconectadas da totalidade. Coferir: BRANDAO, C. R. Identidade e
Etnia: A Construção da Pessoa e A Resistência Cultural. Sao Paulo: Brasiliense, 1986.
56
Paul Ehrenreich (1906) para este tipo de situação fala de "Akkulturationzentren" onde
estabelece para a América do Sul três centros de aculturação, a saber: o Rio Negro,
Guyanna Orenoco, Alto Xingu. Existe sobre as relações intertribais no Alto Xingu, o
trabalho de P. Menget "Alliance and violence in the Upper Xingu", 1982.

118
 Relações implicando unidades assimétricas e justa-
postas hierarquicamente como as que aconteceram no
Chaco durante a conquista e da qual persistem hoje
algumas formas no sul do Mato Grosso;
 Relações implicando unidades étnicas assimétrica-
mente em relação mas prisioneiras de um sistema de
dominação e de sujeição. Estes tipos se encontram nas
regiões chamadas "Área de Fricção Interétnica";
 Um quarto tipo no sistema interétnico, que seria
constituído de relações igualitárias, é, apenas, para
Cardoso uma "possibilidade teórica posto que em-
piricamente, não se pode dizer que ela existe"
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, p. 58).

A identidade étnica é, enquanto forma ideológica das


representações coletivas de uma sociedade, concebida como
um caso particular de identidade social e como uma forma
ideológica das representações coletivas de um grupo étnico
determinado. A definição da identidade étnica se faz,
portanto de maneira dialética observando as relações entre o
nós e os outros. Isto implica bem entendido que duas
entidades estejam em relação, pois nenhum grupo social
pode se conceber ideologicamente se não percebe a existência
de outro grupo. Cardoso de Oliveira utiliza os termos de
Goodenough57 que parte da noção de "identidades
complementares" para concluir que a identidade de cada
grupo em contato não é inteligível senão na medida em que

57
Ver: Ward Goodenough "Rethinking 'status' and 'role ': toward a general model of
culture organization of social relationships". In: The relevance of models for social
anthropology. Editado pela Michael Banton Tavistock, publicado em 1965.

119
estes estão em relação entre eles (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1976b, p. 42-45). O caráter contrastivo destas identidades
constitui, portanto um atributo essencial da identidade
étnica. Assim, a identidade étnica produzida pela identidade
contrastiva aparece como uma identidade que surgiu de uma
oposição. Para tentar delimitar a identidade étnica, é
necessário conhecer os "mecanismos de identificação" que
contêm a identidade em processo. Através do desenvol-
vimento histórico do contato, os grupos étnicos em relação
(em conjunção) desenvolvem uma "consciência de si na
situação", o que significa que a identidade étnica variará de
acordo com as diferentes "histórias do contato".
No processo de identificação58, a identidade étnica
pode ser assumida como uma identidade negativa
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 18). Com efeito, os
índios interiorizam a ideologia discriminatória dos membros
da sociedade regional, o que os coloca em posição de
inferioridade e enfraquece sua capacidade de resistência à
opressão que suportam. Darcy Ribeiro (1977) denomina este
tipo de identidade de "consciência em alienação crescente e
bastarda” por causa da absorção fatal de imagens depre-
ciativas de si e justificando a dominação e a exploração.
Se a consciência étnica pode chegar a ser negativa, ela
se manifestada em outros casos pela afirmação extrema do
grupo, ao inverso dos outros. Esta auto-afirmação poderia
levar a um outro tipo de identidade que Cardoso de Oliveira
define como: “Ideologia igualmente étnica”, absolutamente

58
A noção desenvolvida por Cardoso sobre o processo de identificação leva à noção de
identidade étnica como atualização em um dado momento histórico (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1976, p.14-15).

120
totalizadora, capaz de fornecer a base dos movimentos
sociais de qualquer tipo: separatistas, reformistas, revolu-
cionários e também messiânicos (CARDOSO DE OLIVEIRA
In: Introdução ao Simpósio do XLI Congresso Internacional
dos Americanistas, México, 1974). Em "Os índios e a
civilização", Darcy Ribeiro (1977) analisa este aspecto da
identidade como sendo uma "consciência alienada", mas que
não altera seus próprios fins59.
Uma outra manifestação da identidade étnica é a que
Cardoso de Oliveira chama “identidade histórica” e que seria
comparável em certos casos que chama "identidade
renunciada", à qual se pode eventualmente renunciar em
situações muitas vezes conflituosas ou discriminatórias, mas
que pode ser invocada de novo e reafirmada quando a
situação muda (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976b, p. 12).
Roberto Da Matta introduzirá a idéia de "custos" na
discussão sobre a identidade étnica, tomando por ponto de
partida as pesquisas de Cardoso de Oliveira e os estudos de
Ward Goodenoug (1965) sobre os "papéis sociais", e se
opondo à noção proposta por este último de "pares de
identidades superpostas"ou "gramaticais", Da Matta diz:
"Em outros termos, tenho a intenção de insistir no fato
de que a seleção de identidades — ao contrário do que
explica Goodenough —, nem sempre seguem as regras da

59
Sobre esta abordagem ver: Miguel A. Bartolomé "Consciencia étnica y autogestión
indígena". In: Indianidade y descolonización en América Latina” (Documentos de la
segunda reunión de Barbados) Editorial Nueva Imagen, 1979, Mexico. Ver também
trabalhos mais reentes como por exemplo: Gente De Costumbre y Gente de Razon: Las
Iidentidades Étnicas en México, Siglo XXI, México, 2004, ou do mesmo autor: Procesos
Interculturales Antropologia Politica del Pluralismo Cultural en América Latina, Siglo
XXI, Mexico, 2005.

121
identidade atribuída, ou a do contexto adequado, nem a da
"identidade superposta" (DA MATTA, 1976, p. 35).
Da Matta propõe a noção de "identidades paradoxais"
que teria por particularidade os "custos sociais" elevados
necessários à sua execução. E mais, as identidades para-
doxais se definem pelo fato de que elas articulam universos
sócio-culturais e subuniversos de significação inteiramente
diferente (1976a, p. 36). Quanto mais as identidades se
afastam, mais os custos sociais necessários à sua implantação
são importantes.

"Desta maneira, escreve Da Matta, as situações que


chamamos de contato interétnico ou intercultural não seriam
mais que casos particulares de encontros entre dois sub-
universos de significação ou mais. Seriam particulares não
porque possuem um princípio oculto ou intrinsecamente
diferente mas porque evidenciam de maneira clara as
dificuldades de integração nos contextos onde se realiza o
encontro entre domínios muito distantes uns dos outros"
(1976, p. 40).

A identidade étnica seria assim uma modalidade da


identidade social, através da sociedade regional. Os traba-
lhos sobre a identidade étnica no Brasil ainda têm
desdobramentos importantes e foram fortemente influen-
ciados, a nosso ver, pelas pesquisas de Roberto Cardoso de
Oliveira60. Estão, sobretudo, centrados na situação de
contato, isto é, nas relações entre índios e brancos nas
representações ideológicas de cada grupo étnico. A título de

60
Conferir: Cardoso de Oliveira. Identidade étnica, reconhecimento e o mundo moral,
in: Revista Anthropológicas, vol 16(2),2005

122
ilustração, mencionaremos aqui duas obras, entre outras, que
merecem atenção e que confirmam que a questão da
identidade étnica está na ordem do dia nas pesquisas
etnológicas do Brasil. No que refere os estudos sobre a
identidade étnica e as relações em contexto indígena, o livro
organizado por Alcida Ramos (1980) "Hierarquia e simbiose" é
importante na medida em que ilustra situações particulares
como a que existe entre os Hupdah-Maku e os "índios do rio"
no Alto Rio Negro, entre os Mayongong e os Sanuma no
Estado de Roraima e entre os Guarani e os Kaingang no
Estado do Paraná. Nos dois primeiros casos, o contato entre
estes grupos indígenas aconteceu antes do contato com a
sociedade nacional. No caso dos Kaingang, as relações entre
os grupos são posteriores ao contato com a sociedade
nacional. Outro estudo importante é o de Terri Aquino (1976)
"Kaxinawa: do seringueiro "caboclo" ao peão acreano" que
desenvolve a noção de identidade étnica numa tentativa de
compreensão do relacionamento entre identidade e estrutura
social. Mostra como as mudanças sociais e econômicas
provindas da implantação das empresas de agropecuária nas
zonas que exploravam tradicionalmente a borracha, são
absorvidas no sistema de representação indígena, dando
origem a uma ideologia onde se polarizam as identidades
branca (de São Paulo ou do Acre) e indígena "caboclo". Estas
pesquisas e muitas outras (MELATTI, 1982, p. 264) mostram
um aspecto das pesquisas etnológicas nas sociedades tribais
brasileiras onde o índio não é o sujeito de sua própria
cultura, mas é obrigado a se confrontar ou a se integrar na
sociedade de classes.

123
A mais recente obra de Roberto Cardoso de Oliveira,
“Caminhos da identidade – ensaios sobre etnicidade e
multiculturalismo”, São Paulo, Editora Unesp; Brasília, Paralelo15;
2006, representa a reedição dos ensaios sobre identidade
étnica e etnicidade produzidos nesses últimos 40 anos, além
de apresentar um panorama de seu trabalho sobre o
desenvolvimento do conceito de identidade através de suas
pesquisas, os quatro capítulos trazem diferentes aspectos que
compõem a questão identitária ainda fortemente baseada
nos pressupostos weberiano sobre identidade étnica, e em
todos estão presentes o debate entre identidade e cultura.
A reedição de seus ensaios proporciona uma possibilidade
de discussão, bem como a introdução das questões do
multicuralismo abrindo assim uma porta nas possibilidades
atuais do debate antropológico sobre a identidade étnica.

124
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