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Prevenção de Recaída:
Racionalidade Teórica e
Visão Geral do Modelo
G. Alan Marlatt
P
revenção de Recaída (PR) é um programa de automanejo que visa melhorar o
estágio de manutenção do processo de mudança de hábitos. O objetivo da PR é
ensinar os indivíduos que tentam mudar seu comportamento a prever
e lidar com o problema da recaída. Em um sentido muito geral, recaída refere-se a um
colapso ou revés na tentativa de uma pessoa para mudar ou modificar qualquer
comportamento-alvo. Baseada nos princípios da teoria do aprendizado social, a PR é
um programa de autocontrole que combina procedimentos de treinamento das
habilidades comportamentais, intervenções cognitivas e de mudança no estilo de vida.
Uma vez que o modelo PR inclui componentes tanto comportamentais quanto
cognitivos, é similar a outras abordagens cognitivo-comportamentais desenvolvidas
nos últimos anos como resultado de uma extensão dos programas de terapia
comportamental mais tradicionais. Descrições das pesquisas cognitivo-
comportamentais relacionadas e abordagens de tratamento com uma variedade de
problemas clínicos estão disponíveis em diversas publicações recentes (Beck, Rush,
Shaw & Emery, 1979; Foreyt & Rathjen, 1978; Kendall & Hollon,
1979; Mahoney, 1974; Meichenbaum, 1977).
O modelo PR descrito na Parte I deste livro foi desenvolvido, inicialmente, como
um programa de manutenção comportamental para uso no tratamento de problemas de
adicção, tais como dependências de álcool e de outras drogas (Marlatt & Gordon,
1980). Os objetivos típicos do tratamento para a dependência de drogas são abster-se
totalmente do uso da droga (por exemplo, abster-se de álcool) ou, em alguns casos,
impôr controles regulatôrios sobre o comportamento-alvo (por exemplo, controlar ou
moderar o uso de álcool). Embora grande parte do material apresentado neste livro
dirija-se ao tratamento de problemas de dependência de drogas, o modelo PR pode ter
aplicações que se estendem além das categorias tradicionais de "adicção a drogas".
Padrões de hábito, tais como ingestão alcoólica e alimentar excessiva, tabagismo ou
abuso de substãncias psicoativas, podem ser considerados como uma subclasse de um
conjunto maior daquilo a que nos referimos como comportamentos adictivos. A
categoria de comportamentos adictivos pode ser ampliada para incluir qualquer padrão
de hábito compulsi
3
4 Marlatt & Gordon
*
Binge, no original. (N.R.)
Prevenção de Recaída 5
doença, portanto, produz uma restrição dicotômica sobre a faixa possível de resultados
de tratamento: o indivíduo está ou abstinente (exercendo controle) ou apresentou
recaída (perdeu o controle). Assim, embora a etiologia do alcoolismo seja descrita
como um processo de doença além do controle ou responsabilidade da vítima, o
principal modo de tratamento freqüentemente assume a forma de um mandamento
moral: Não beberás! Embora possam parecer, á primeira vista, "companheiros
desconhecidos", o modelo moral e o modelo de doença formaram, nos últimos anos,
uma aliança. Os defensores dos Alcoólicos Anônimos (Ms) , por exemplo, endossam o
modelo de doença do alcoolismo enquanto, ao mesmo tempo, defendem a rendição do
controle pessoal a um "poder superior" como o primeiro passo no processo da
recuperação.
É irônico que a principal qualidade do modelo de doença, absolvendo o adicto de
responsabilidade pessoal para o comportamento-problema, possa ser também uma de
suas maiores fraquezas. Se os alcoólicos começam a ver seu comportamento de
ingestão alcoólica como o resultado de uma doença ou adicção fisiológica, podem
tomar-se mais propensos a assumir o papel passivo de vítima - sempre que se engajam
no comportamento de ingestão alcoólica - se vêem isto como um sintoma de sua
doença. Algumas pesquisas, por exemplo, mostram que indivíduos que recebem uma
explicação genética ou constitucional para a etio10gia de um transtorno sentem que
podem fazer menos, pessoalmente, para o enfrentamento de seu problema e estão mais
propensos a usar álcool e/ou outras drogas para o alívio do sofrimento emocional do
que os indivíduos que recebem uma
explicação etiológica de aprendizado social (Fisher & Farina, 1979). É possível, por
outro lado, que o conhecimento de estar geneticamente predisposto ao alcoolismo
possa motivar o indivíduo a compensar o alto risco C(l)m maior vigilância e absti-
nência. A extensão até onde a pessoa sente-se capaz de exercer controle voluntário
dentro de limites genéticos fIXOS (isto é-, quanto "espaço de ação" a pessoa crê
existir) é um fator significativo para explorar no trabalho com alguém geneticamente
em risco.
O modelo de doença pode ser efetivo, na medida em que convence o alcoólico de
que ele está doente, sofrendo de uma doença médica reconhecida, e não mais é capaz
de beber sem perder o controle. Se o alcoólico aceita este diagnóstico e concorda em
jamais tomar uma dose e não Jaz isso, tudo está bem. Infelizmente, a capacidade para
manter abstinência total do álcool é um resultado raro na área de tratamento do
alcoolismo. Um abrangente estudo recente, conduzido pela Rand
Corporation, determinou o resultado de mais de 700 pacientes alcoólicos, que
participaram de vários programas típicos de tratamento. Foi descoberto que menos de
10% dos pacientes eram capazes de manter a abstinência por um período de dois anos
após a alta do programa de tratamento (Armor, Polich & Stambul, 1978). Os dados
demonstram que a recaída é o resultado mais comum do tratamento para o alcoolismo.
A recaída é o tendão de Aquiles do modelo de doença. Se um alcoólico aceitou a
crença de que é impossível controlar sua ingestão de álcool (como incorporado no
slogan dos Ms de que se está sempre "uma dose longe de ser um bêbado"), então até
mesmo um simples gole pode precipitar uma recaída total e descontrolada. Uma vez
que beber, nessas circunstâncias, é equacionado com a ocorrência de um sintoma
significando a reemergência da doença, o indivíduo tende a sentirse tão impotente para
controlar este comportamento como ocorreria com qualquer outro sintoma de doença
(por exemplo, uma febre ou convulsão). A crença na inevitabilidade da perda do
controle ao beber como um sintoma patognomônico do alcoolismo é um dogma
firmemente mantido pelos adeptos do modelo de doença e
8 Marlatt & Gordon
tabaco (juntamente com altas taxas de recaída entre aqueles que tentam parar de fumar)
implica, necessariamente, que o próprio hábito de fumar qualifica-se como uma
doença? Pode ser útil dirigir esta mesma questão ao uso habitual do álcool.
Aqueles que subscrevem o modelo de comportamento adictivo estão particu-
larmente interessados no estudo dos detenninantes dos hábitos adictivos, incluindo
antecedentes situacionais e ambientais, crenças e expectativas, história familiar
individual e experiências de aprendizado anteriores com a substáncia psicoativa ou
atividade. Ademais, existe um igual interesse pela descoberta das conseqüências
desses comportamentos, visando a um melhor entendimento tanto dos efeitos
reforçadores que podem contribuir para aumentar o uso quanto das conseqüências
negativas que podem servir para inibir o comportamento. Além dos efeitos da droga
sobre a própria atividade, é dada atenção ás reações sociais e interpessoais
experienciadas pelo indivíduo antes, durante e depois de se engajar num
comportamento adictivo. Os fatores sociais estão envolvidos tanto no aprendizado
inicial de um hábito adictivo quanto no desempenho subseqüente da atividade, uma
vez que o hábito tenha sido firmemente estabelecido.
Uma das suposições subjacentes centrais nesta abordagem é que os compor-
tamentos adictivos consistem de padrões de hábitos hiperaprendidos e mal-adaptativos.
Como mencionado anteriormente, tais padrões de hábitos em geral são seguidos por
alguma forma de gratificação imediata (o estado de prazer máximo ou redução da
tensão ou excitação). Em muitos casos, os comportamentos adictivos são realizados em
situações percebidas como estressantes (por exemplo, beber na tentativa de reduzir a
ansiedade social, fumar como um meio de "acalmar os nervos", comer muito quando
solitário ou aborrecido, etc.). Quando essas ativida des são realizadas durante ou antes
das situações estressantes ou desagradáveis, elas representam mecanismos de
enfrentamento mal-adaptativos. Os comportamentos adictivos são mal-adaptativos á
medida que levam a conseqüências negativas postergadas em termos de saúde, estado
social e auto-estima. O desempenho desses comportamentos, por si só, não é
necessariamente mal-adaptativo, desde que o indivíduo engaje -se nele de forma
ocasional, com moderação e prefira fazer isto com plena consciência das
conseqüências a longo prazo. O uso moderado e responsável de certas drogas, por
exemplo, pode ser acêitável, desde que o comportamento não se torne um hábito ou
um ciclo de comportamento adictivo (isto é, uso assíduo e repetitivo com consciência
mínima da atividade e suas conseqüências a longo prazo). O tópico da moderação
como uma alternativa á adicção édiscutido em maiores detalhes no Capítulo 5.
Os comportamentos habitualmente caracterizados pela gratificação imediata e
conseqüências negativas postergadas foram classificados por outros pesquisadores
como "armadilhas sociais" (Platt, 1973) e comportamentos "impulsivos" (Ain slie,
1975). Esses comportamentos não estão limitados ao uso de drogas e outras
substáncias psicoativas, uma vez que incluem atividades não-adictivas tais como jogo
compulsivo, padrões compulsivos de trabalho ("workaholism'1, certos proble mas
sexuais (por exemplo, exibicionismo) e algumas formas de relacionamentos sociais,
tais como amor "adictivo" (Peele & Brodsky, 1975). É importante notar que a fonte da
compulsão amiudemente é considerada como enraizada na química orgánica interna,
em especial experiências tais como "fissura" flSica por determinada droga. Uma ênfase
demasiada sobre fatores fisiológicos internos negligencia a possibilidade de esses
comportamentos serem altamente influenciado pelas expectativas do indivíduo ou a
antecipação dos efeitos desejados da atividade. Pesquisas recentes sugerem que fatores
cognitivos e ambientais, como contexto e ambiente, seguidamente exercem maior
influência na determinação dos efeitos da
10 Marlatt & Gordon
droga d.o que os efeitos farmacológicos ou fisicos da própria droga (cf. Marlatt &
Rohsenów, 1980). A principal implicação destas pesquisas é que os processos
cognitivos tais como expectativa e atribuição são aprendidos e. portanto. estão mais
propensos à modificação e à mudança do que processos fisiológicos relativamente
fIXOS.
Um ponto final precisa ser discutido. com relação ao auto controle dos com-
portamentos adictivos. Algumas pessoas argumentam que aceitar o fato de os
comportamentos adictivos serem aprendidos equivale a "culpar a vítima", no sentido
de que um indivíduo com adicção é considerado, assim, responsável por sua
condição (cf. Sontag. 1978). Vista dessa perspectiva. a explicação de aprendizado
social representa uma regressão a um modelo moral anterior de adicção. Tal
argumento está baseado na falsa suposição de que os indivíduos são responsáveis por
suas experiências passadas de aprendizado - que "escolhem" engajar-se nessas
atividades talvez por causa de alguma falta de força de vontade ou fraqueza moral.
Inversamente. os teóricos comportamentais definem a adicção como um padrão de
hábito poderoso, um ciclo vicioso adquirido de comportamento autodestrutivo
perpetuado pelos efeitos coletivos do condicionamento clássico (tolerância adquirida
mediada, em parte. por respostas compensatórias condicionadas aos efeitos nocivos
da substància adictiva) e reforço operante (tanto o reforço positivo do efeito
máximo da droga quanto o efeito negativo associado ao uso da droga como um
meio de escapar ou evitar estados disfóricos fisicos e/ou mentais incluindo
aqueles associados com os efeitos posteriores negativos do uso anterior da droga).
Em termos apenas dos fatores condicionantes. um indivíduo que adqui
re um hábito adictivo não deve ser considerado mais "responsável" por este com-
portamento do que os cães de Pavlov seriam por salivarem ao som de uma cam-
painha. Além dos fatores de condicionamento clássico e operante. o uso de
drogas por humanos também é determinado. em grande parte. por expectativas e
crenças adquiridas sobre as drogas como um antídoto para o estresse e a ansiedade.
Os fatores de aprendizado social e de modelagem (aprendizado por observação)
também exercem uma forte influência (por exemplo. uso da droga na família
e grupo de amigos, juntamente com a exibição ampla do uso de drogas nos anúncios
e meios de comunicação). Simplesmente porque um problema comportamental po-
de ser descrito como um padrão de hábito aprendido, isto não implica que a pessoa
deva ser considerada responsável pela aquisição do hábito. nem que o indivíduo
seja capaz de exercer controle voluntário sobre o comportamento.
É importante notar, entretanto, que embora o hábito particular de um indi-
víduo tenha sido moldado e determinado por experiências passadas de aprendiza do
(pelas quais ele não deve ser considerado responsável), o processo de
mudança de hábitos envolve a participação ativa e a responsabilidade da pessoa
envolvida. Através do envolvimento num programa de automanejo. no qual o
indivíduo adquira novas habilidades e estratégias cognitivas, os hábitos podem ser
transformados em comportamentos sob a regulação de processos mentais
superiores, envolvendo conscientização e tomada responsável de decisões. À
medida que o indivíduo passa por um processo de descondicionamento.
reestruturação cognitiva e aquisição de habilidades. pode começar a aceitar maior
responsabilidade pela mudança do comportamento. Esta é a essência da abordagem
de autocontrole ou automanejo: pode-se aprender como escapar das muletas de um
ciclo vicioso de adicção, não importando como o padrão de hábito foi adquirido
originalmente (uma discussão adicional da adicção como um ciclo vicioso
aprendido é apresentada no Capítulo 5).
Prevenção de Recaída 11
1. Material citado extraído de "Modes of Helping and Coping" por P. Brickman. V.C. Rabino-
witz, J. Karusa. D. Coates. E. Cohn, e L. Kindder. AmericanPsychologist. 1982.37,368-
384. Copyright 1982 pela American Psychologycal Association. Reimpresso com
permissão do editor e autores.
12 Marlatt & Gordon
Com relação a isso. vem-nos à mente a imagem dos indivíduos tipo "faça-você-
mesmo" que assumem responsabilidade ativa pelo entendimento e mudança das coisas
- incluindo seus próprios comportamentos. Na verdade, esta metáfora é boa para a
prevenção da recaída: podemos aprender a nos tornarmos nosso próprio "homem da
manutenção" no processo de mudança do comportamento adic tivo, em vez de
confiarmos em programas de tratamento externos ou na influência de um "poder
superior" como um agente de mudança. A pessoa torna -se um agente da mudança.
enquanto. ao mesmo tempo. evita tanto a culpa associada com o modelo moral quanto
a impotência e a perda de controle associados com o modelo de doença.
Os programas de autocontrole, embora freqüentem ente sejam identificados
como uma espécie de abordagem de "tratamento" comportamental. diferem da maioria
dos programas de tratamento baseados em fatores externos. no sentido de
14 Marlatt & GOrdOI1
comportamento
. Equaciona o indivíduo com o
comportamento
. Abordagem médica/doença
Abordagem geral
às adicções
. Busca de elementos comuns
entre os comportamentos
. Cada adicção é única
. adictivos
Adicção está baseada em
hábitos mal-adaptativos
. Adicção está baseada em
processos fisiológicos
Exemplos . Terapia
cogni tivo-comportamental
. Programas de tratamento
hospitalar (internação)
(ambulatório)
. Programas de autocontrole . . Tratamento de aversão
Programas de ingestão
controlada . AAs
Figura 1-1. Modelos de autocontrole e doença: abordagens alternativas ao tratamento dos
comportamentos adictivos.
Prevenção de Recaída 15
Locus de Controle
A essência do modelo de auto controle é que o indivíduo move-se de uma posição de
ser o "cliente", sob a orientação de um terapeuta, para uma posição na qual se torna
mais capaz de assumir responsabilidade pelo processo de mudança. Pode ser o caso de
uma preferência por um papel mais ativo no tratamento estar associada a uma
orientação de personalidade para um locus de controle interno (Lefcourt, 1976; Phares,
1976). O modelo de doença, por outro lado, vê o indivíduo como uma vítima de forças
além do controle pessoal. A adicção é vista como uma doença genética ou causada por
algum transtorno bioquímico, genético ou metabólico, forças que geralmente não são
consideradas sujeitas ao controle voluntário do indivíduo. Uma preferência por um
papel mais passivo no processo de tratamento pode refletir um loeus externo de
orientação do controle, no qual o indivíduo percebe o comportamento como estando
sob a regulação de impulsos internos incontroláveis, forças ou circunstáncias externas.
Objetivo do Tratamento
O modelo de doença defende vigorosamente a abstinência como o único objetivo
aceitável de tratamento. O compromisso com a abstinência, entretanto, não é
considerado uma cura, já que qualquer retorno ao uso da droga presumivelmente
desencadeia a doença latente. Em contraste com esta visão, o modelo de autocontrole
favorece uma seleção mais individualizada de objetivos de tratamento, que varia da
abstinência ao uso controlado ou moderado. Uma implicação-chave da abordagem de
autocontrole é que os comportamentos adictivos nem sempre são eficazmente tratados
pela insistência sobre limitações excessivas a tais comportamentos. A ênfase no
modelo de doença sobre a dicotomia de abstinência e excesso (controle absoluto x
perda do controle) tende a reforçar a oscilação dos comportamentos adictivos de um
para outro extremo, forçando o indivíduo a adotar um ou outro desses papéis
extremos. A partir da perspectiva do autocontrole. existe um "caminho intermediário"
alternativo ou posição de equilíbrio entre a limitação total e a indulgência total.
Filosofia de Tratamento
O modelo tradicional de doença freqüentemente tende a equacionar a pessoa
com seu transtorno; sua ingestão excessiva de álcool indica que você é um
alcoólico, ou seu uso de heroína indica que você é um adicto. Adeptos da
abordagem de autocontrole discordam da noção de que o comportamento de
uma pessoa (por exemplo, consumo alcoólico excessivo) deve ser tomado
como uma indicação de toda a identidade do indivíduo. Se não rotulamos uma
pessoa que tem cáncer como
I
16 Marlatt & Gordon
"cancérica", então por que deveríamos rotular uma pessoa que bebe em excesso de
"alcoólica"? No modelo de autocontrole, são feitas todas as tentativas para apoiar um
senso de distanciamento entre o comportamento-problema e a identidade ou
autoconceito da pessoa. Este distanciamento facilita uma abordagem objetiva e não-
crítica ao tratamento, no qual o cliente é treinado para tomar-se seu próprio cientista-
terapeuta pessoal, usando a observação objetiva do comportamento-alvo como os
"dados" essenciais com os quais trabalhar no tratamento (Mahoney, 1977). A ênfase
sobre os princípios de aprendizado social como base para a modificação de um
comportamento problemático ilustra a abordagem educacional do modelo de
autocontrole.
Procedimentos de Tratamento
o marco da abordagem de autocontrole ao tratamento é uma combinação de
habilidades de enfrentamento comportamental e técnicas de reestruturação cognitiva
(incluindo habilidades de enfrentamento cognitivo). Ademais, os procedimentos de
mudança no estilo de vida são freqüentemente incluídos nesta abordagem. Presume-se
que o paciente eventualmente será capaz de desempenhar habilidades e atitudes
recém-adquiridas sem a assistência de auxílios externos, tais como a disponibilidade
contínua do terapeuta ou algum grupo de apoio (por exemplo, os Ms). Em oposição, a
abordagem do modelo de doença seguido tenta mudar a orientação pessoal básica ou
sistema de crenças do "adicto" através de uma combinação de procedimentos de
enfrentamento e/ou técnicas de conversão (rendição do auto controle a um "poder
superior"). Em grupos tais como os Ms, o "poder superior" é de natureza religiosa ou
espiritual; em outros grupos, tais como o Synanon e algumas outras comunidades
terapêuticas para adictos, o poder é detido pela hierarquia organizacional do próprio
grupo. Uma vez que a mudança de comportamento exigida tenha ocorrido, ela é
reforçada por pressões de conformidade, exercidas por um grupo de companheiros.
Uma vez que os membros desses grupos oferecem apoio e estímulo para a adesão
contínua aos comportamentos exigidos e à filosofia da organização, qualquer
transgressão das regras freqüentem ente encontra punição e rejeição pelos iguais.
Freqüentemente é feita, nos grupos, uma tentativa para regular o comportamento dos
membros pelo uso de slogans simples, profecias e outros "dogmas cognitivos" (por
exemplo, "Você está sempre a apenas uma dose de ser um bêbado", "Bebo, bebido,
bêbado", etc).
querda em vez da direita. etc.) enquanto ao mesmo tempo precisa inibir padrões de
respostas antigos e já dominantes, hiperaprendidos ao longo de anos de experiência
anterior. Como ocorre com qualquer tarefa de aprendizado nova e dificil. pode-se
esperar que o indivíduo cometa vários equívocos até que novos padrões de hábitos se
estabeleçam firmemente. Os lapsos na atenção podem resultar em situações de risco
(por exemplo. esquecer de permanecer na pista à esquerda) e os equívocos realmente
podem ocorrer. Com cada um desses equívocos, entretanto, o motorista aprende algo
novo - como manobrar eficazmente através de confusos desvios na Inglaterra. ou como
entrar à direita em um fluxo de tráfego contínuo. Cada equívoco leva consigo a
oportunidade para a ocorrência de novo aprendizado.
A extensão desta metáfora para o estágio de manutenção da mudança de hábitos
conduz a uma nova conceitualização do que se espera desse período. Diferentemente
do efeito de dissipação do tratamento descrito com referência aos efeitos do tratamento
de aversão. o presente modelo sugere que mais equívocos (lapsos) tendem a ocorrer
nos estágios iniciais da recuperação pós-tratamento, quando o indivíduo tenta
consolidar novas respostas a velhos estímulos. A taxa de equívocos ou recaídas
durante o estágio de manutenção assemelha-se a uma curva de aprendizado clássica. na
qual os primeiros equívocos são gradualmente reduzidos à medida que o indivíduo
domina um novo padrão de resposta. O curso do progresso é, portanto. gradualmente
crescente. à proporção que a taxa de equívocos começa a estabilizar-se, em contraste
com o fenõmeno da queima, com sua curva básica para baixo. ao longo do tempo. Na
curva de dispersão ou de dissipação do tratamento. a probabilidade de recaída aumenta
com o tempo, enquanto na curva de aprendizado. a probabilidade diminui enquanto o
tempo passa. Análises do processo de recaída ao longo do tempo. com vários
comportamentos adictivos (por exemplo. Hunt. Barnett & Branch. 1971) mostram que
a estabilização da taxa de recaída após o tratamento começa aproximadamente 90 dias
após o início da abstinência. Antes disso, as taxas de recaída são altas, sobretudo no
primeiro mês. A partir do quarto mês. entretanto, a probabilidade de permanecer em
abstinência durante todo o curso do ano estabiliza-se.
De importãncia central nesta análise é o que os pacientes ou clientes esperam em
relação ao curso de eventos durante o estágio de manutenção: será que esperam uma
melhora gradual ao longo do tempo ou uma deterioração da eficácia do tratamento?
Crenças acerca do curso do resultado do tratamento podem exercer um papel
significativo na determinação do resultado real. Se. por outro lado. as pessoas
acreditam que um lapso indica o colapso ou fracasso do tratamento orientado para a
abstinência (presumivelmente determinado por fatores de doença endógena
incontroláveis), podem estar mais propensos a abandonar os esforços por mudança e se
resignar ao curso inevitável para baixo. com recaída, como previsto pelo modelo de
doença. Por outro lado. se as pessoas vêem um lapso como um equívoco, como uma
oportunidade para novo aprendizado e crescimento pessoal. estarão menos propensas a
desistir do controle e para "ceder" à recaída.
O que parece crucial no processo de recuperação é o modelo teórico subja cente
do indivíduo para o "quadro completo" de como presumivelmente funciona o
tratamento e como ele se relaciona com o estágio de manutenção. Faz mais sentido.
assim. darmos aos nossos clientes uma visão otimista da recuperação. com espaço para
erros e deslizes como uma parte esperada do novo aprendizado durante o estágio de
manutenção. do que apresentarmos uma visão pessimista na qual altas taxas de recaída
presumivelmente são causadas por mecanismos internos de doença ou por uma
"chave" bioquímica que não pode ser controlada pelo indivíduo. Uma outra fonte de
expectativas negativas é que. de acordo com esta
24 Marlatt & Gordoll
tísticas normativas de resultados, pode-se esperar que o indivíduo tenha apenas cerca
de uma chance em cinco (taxa de sucesso de 20%) de atingir o sucesso (por exemplo,
abster-se com sucesso por um ano). Ao deparar-se com taxas esperadas de recaída de
80%, a maioria das pessoas compreensivelmente sente -se pessimista acerca de suas
próprias chances para o sucesso. Esses dados sobre taxas de recaída, entretanto,
freqüentemente são enganadores, já que estão baseados em dados tomados de
programas formais de tratamento e, portanto, não incluem taxas para aqueles que
abandonam espontaneamente a adicção, mas, em vez disso, com assiduidade
envolvem clientes que têm a menor chance prognóstica de sucesso (por exemplo,
casos crônicos). Finalmente, mesmo se as chances de sucesso são relativamente baixas
em qualquer tentativa de tratamento, esses núme ros não nos dizem qualquer coisa
sobre o efeito cumulativo de múltiplas tentativas para mudar, ao longo do tempo.
Se vemos cada tentativa de mudar um hábito adictivo como uma experiência
isolada, cada tentativa de mudar os efeitos cumulativos do aprendizado ao longo das
experiências pode trazer o indivíduo sucessivamente mais próximo ao limiar de uma
mudança duradoura de hábito. O indivíduo pode aprender, por exemplo, que certas
situações de alto risco para a recaída devem ser evitadas, ou que novos modos de lidar
com a pressão social para beber são necessários, ou que deve exercer vigiláncia
adicional enquanto está em viagens de férias e assim por diante, a cada ocorrência de
um lapso. À medida que este novo conhecimento acumula se ao longo do tempo e
novas respostas são praticadas Ú1 vivo, o indivíduo pode descobrir que o sucesso
eventual é provável - que a probabilidade de sucesso final aumenta com suas
tentativas. Este novo modo de conceitualizar o processo de mudança de hábitos
recebeu apoio em estudo relatado por Schachter (1982). Schachter entrevistou pessoas
em Nova Iorque, envolvendo suas histórias de sucesso a longo prazo para a mudança
nos hábitos de fumar ou comer em excesso. Em agudo contraste com as altas taxas de
recaída relatadas na literatura para tentativas isoladas de tratamento descobriu que
seus sujeitos relatavam uma taxa de sucesso final muito superior, ao examinarem
retrospectivamente suas vidasna faixa de 60 a 70%. Ao final. as pessoas relatavam
sucesso na cessação do hábito de fumar (em geral sem tratamento formal) ou perda de
peso. Embora não existam dados comparáveis disponíveis para pessoas que pararam
efetivamente de beber, algumas evidências sugerem que o mesmo padrão de
resultados pode ser obtido, pelo menos para aqueles que abandonam a bebida
espontaneamente (Tuchfeld, 1981).
Como abordagens teoricamente diferentes quanto ao tratamento e à manutenção
comparam-se, em termos de resultados do tratamento? Para ilustrar os diferentes
resultados, examinemos dois estudos de resultados de tratamento para alcoolismo
conduzidos em nosso laboratório (detalhes de ambos os estudos são oferecidos no
Capítulo 2). O primeiro estudo (Marlatt, 1973) foi uma investigação sobre a eficácia
da terapia de aversão elétrica conduzida com alcoólicos crônicos do sexo masculino.
Os pacientes receberam sessões diárias de terapia de aversão (o choque elétrico era
aplicado simultaneamente com a visão e odor de bebidas alcoólicas em experiências
repetidas) além de seu programa habitual de orientação para a abstinência, com
internação hospitalar. No segundo estudo, também conduzido com alcoólicos
masculinos crônicos (Chaney, O'Leary & Marlatt, 1978), os pacientes receberam
treinamento para a prevenção de recaída, além do programa habitual com internação
hospitalar (também voltado para a abstinência). No programa de prevenção de recaída,
os pacientes engajavam-se em dramatizações em grupo e em discussões nas quais
ensaiavam respostas adaptativas a situações de
Prevenção de Recaída 25
alto risco para a recaída (por exemplo, lidar com frustração e raiva, treinamento para a
recusa a bebidas em situações de pressão social, como lidar com anseios por bebida).
Em ambos os estudos, todos os pacientes foram acompanhados por, pelo menos, um
ano, após o tratamento. Embora em ambos os estudos o programa de tratamento
experimental (aversão ou treinamento para a prevenção de recaída) não produzisse
diferenças significativas nas taxas de abstinência durante o acompanhamento,
comparados aos grupos de controle, diferenças significativas foram obtidas, quando
examinamos as taxas de ingestão alcoólica dos pacientes que bebiam pelo menos uma
dose durante o período de acompanhamento. Como pode ser visto na Figura 1-2, as
taxas de ingestão alcoólica, associadas com o resultado dos dois programas, mostram
padrões acentuadamente diferentes.
Figura 1-2. Taxas de ingestão alcoólica pós-tratamento para pacientes e controles não-absti-
nentes. Os pacientes receberam terapia de aversão elétrica (lado esquerdo) ou treinamento de
habilidades para a prevenção de recaída (lado direito). As taxas representam a porcentagem de
ingestão alcoólica básica pré-tratamento. Extraído de 'The Controlled-Drinking Controversy: A
Commentary" por G. A. Marlatt, American Psychologist, 1983, 38. 1103. Copyright 1983 por
American Psychologican Association, reimpresso com permissão.
Nesta seção, é apresentado uma visão geral do modelo teórico do processo de recaída.
Duas abordagens básicas ao entendimento da recaída são apresentadas: o modelo de
doença e a abordagem do próprio autor. As curvas de recaída para
vários comportamentos adictivos são discutidas e a noção de recaída, como um
denominador comum nos comportamentos adictivos, é enunciada. A influência de
situações de alto risco como precipitadores ou determinantes imediatos de recaída,
juntamente com o modelo hipotético de processo de recaída, são então descritos. A
apresentação do modelo básico de recaída é seguida por uma descrição dos fatores
gerais de estilo de vida que podem aumentar a vulnerabilidade de um indivíduo ao
impacto de situações de alto risco e que podem estar envolvidos no planejamento ou
"preparação" encoberta do episódio de recaída.
Aqui, a recaída parece ser o resultado de uma batalha entre o "poder superior" do
indivíduo e as forças negativas inconscientes que emanam de alguma espécie de
"poder inferior" (do próprio demônio?)
Há uma abordagem alternativa â questão da recaída, e esta é refletida na segunda
definição relacionada no W ebster' s: "Recaída é o ato ou süuação de reverter, piorar
ou sucumbir (1983)". Os itálicos são acrescentados aqui para salientar que uma
recaída pode ser vista como um ato isolado de reverter à situação anterior um erro
único, um engano, um deslize. Uma palavra melhor para referirmonos â ocorrência
singular do comportamento em questão (por exemplo, a primeira dose ou o primeiro
cigarro após um período de abstinência) seria o termo lapso* (como em um lapso da
atenção). O mesmo dicionário define "lapso" como "um leve equívoco ou deslize...
uma queda temporária, especialmente de um estado superior para outro, inferior",
Podemos pensar, aqui, em um patinador em competição que tropeça e cai no gelo. O
fato de o patinador levantar-se novamente e continuar ou não sua apresentação
dependerá, em grande parte, se a quedé!. é vista como um lapso ou como um recaída
- como um deslize úl)ico (equívoco) ou como uma indicação de fracasso total.
Permitindo-se espaço para a ocorrência de equívocos (opostamente a ver. qualquer
deslize como um sintoma de deterioração), pode-se ser capaz de evitar a oscilação
entre extremos nos quais o inqivíduo é percebido
*
Lapse, no original. (N.R.)
I
Marlatt & Gordol1 I
30
como no controle (de pé) ou fora de controle (caindo). Uma premissa primária do
modelo PR é que as reações cognitivas e afetivas ao primeiro deslize ou lapso após
um período de abstinência (especialmente a atribuição para a causa do lapso) exercem
uma influência significativa que pode determinar se o lapso é seguido ou não por um
pleno retomo ao comportamento ou hábito anterior (recaída).
Na abordagem da PR, a recaída é vista como um processo transicional, como
uma série de eventos que podem ou não ser seguidos por um retomo aos níveis
básicos do comportamento-alvo. Em vez de adotar uma visão pessimista na qual a
recaída é vista como um beco sem saída, fracasso do tratamento ou retomo ao estado
de doença, o modelo PR vê a ocorrência de um lapso como uma bifurcação na
estrada, com um trajeto retomando ao nível de problema anterior (recaída ou
colapso total) e o outro continuando na direção de uma mudança positiva. É
interessante notar, com relação a isso, que a origem do termo "recaída" vem da
palavra relabi em latim, que significa "deslizar ou cair para trás". Entretanto, nem
todo lapso é uma recaída. Em alguns casos, às vezes, obtemos beneficio de um
lapso. Exatamente como uma criança que está aprendendo a andar de bicicleta às
vezes beneficia -se de um engano ou queda (por exemplo, ela aprende a usar os
freios antes de fazer uma curva, na próxima tentativa), também um indivíduo que
tenta mudar um padrão de hábitos pode, ocasionalmente, descobrir que um lapso
oferece informações úteis acerca tanto da causa do evento (por exemplo, uma
situação estressante anteriormente desconhecida) quanto sobre o modo de corrigir
sua ocorrência no futuro (por exemplo, planejando ação saneadora). Nesses casos,
pode ser mais acurado definir o resultado como um prolapso (da palavra prolabi do
latim, significando "um deslize ou queda para a frente", um termo que em geral
refere-se ao deslizamento de uma parte corporal a partir de sua posição habitua!), já
que o resultado benéfico geral coloca o indivíduo em uma "posição avançada" (em
termos do novo aprendizado). Quer ou não um lapso seja acompanhado por uma
recaída ou, em alguns casos, um prolapso, isto depende, em grande parte, das
expectativas pessoais do indivíduo e do modelo subjacente do processo de mudança
de hábitos.
Muitas questões novas surgem quando se adota esta perspectiva alternativa de
recaída. Muitas dessas questões raramente chegam a ser indagadas por aqueles que
aderem ao modelo de doença, com sua ênfase exclusiva sobre determinantes
internos ou biológicos da recaída. Há quaisquer eventos situacionais específicos que
sirvam como gatilhos precipitadores para a recaída? Serão os determinantes do
primeiro lapso os mesmos que presumivelmente governam uma recaída total? É
possível que um indivíduo planeje uma recaída, de uma forma velada, preparando
uma situação na qual seja virtualmente impossível resistir à tentação? Em que
pontos do processo de recaída é possível intervir e alterar o curso dos eventos de
modo a prevenir um retomo ao padrão anterior de hábitos? Como o indivíduo reage
e conceitualiza os eventos precedendo e acompanhando uma recaída, e como essas
reações afetam o comportamento subseqüente da pessoa? É possível preparar as
pessoas em tratamento para anteciparem a probabilidade de uma recaída, de modo
que se engajem em comportamentos alternativos de prevenção? Tomando
emprestado o termo de Meichenbaum (1977), podemos desenvolver procedimentos
de prevenção que "inoculem" o indivíduo contra a inevitabilidade da recaída?
A fim de respondermos estas e outras questões, toma-se necessário o en-
gajamento em uma microanálise detalhada sobre o próprio processo de recaída. Esta
abordagem preciosamente planejada focaliza-se sobre os vários determinantes da
recaída, tanto em termos das circunstâncias precipitadores imediatas
Prevenção de Recaída 31
quanto da cadeia mais longa de eventos que podem ou não preceder o episódio de
recaída. Além do que o papel de fatores cognitivos. tais como expectativa e atribui-
ção, é examinado em detalhes, particularmente em termos das reações do indivíduo à
recaída. Uma microanálise do processo de recaída é justificada pela antiga máxima de
que podemos aprender muito a partir de nossos erros. Em vez de ser vista como uma
indicação de fracasso. uma recaída pode ser vista. com maior otimismo. como um
desafio, uma oportunidade para a ocorrência de um novo aprendizado.
o Processo de Recaída:
Um Denominador Comum nos Comportamentos Adictivos?
As taxas de recidiva são notoriamente altas no espectro de comportamentos adic tivos.
Além das altas taxas de recaída. o padrão temporal do processo de recaída também
mostra considerável consistência para uma variedade de problemas de adicção. Esta
consistência é notavelmente aparente a partir de um exame das curvas de recaída
exibidas na Figura 1-3. Este gráfico. publicado pela primeira vez no início dos anos
70 (Hunt, Barnett & Branch, 1971), mostra o padrão temporal da recaída (definida por
estes autores como qualquer uso de droga) após o término de programas de
tratamento para fumantes, alcoólicos e adictos em heroína.
Figura 1-3. Curvas de Recaída para Tratamento Individual devido à adicção em heroína, tabaco e álcool.
De "Relapse Rates in Addiction Programs" por W. A. Hunt, L. W. Bamett. and L. G. Branch, Journal of
CliniLal Psychology. 1971. 27. 355. Copyrigh1 1971 by Clinical Psychology Pyblishing Co., Inc.
Reproduzido com permissão.
32 Marlatt & Gordon
Entretanto, muitos desses problemas podem ser superados pelo uso de pro-
cedimentos estatísticos de análise de sobrevivência, também conhecidos como "tabela
de vida" ou análises de "tempo e fracasso" (Elandt-Johnson & Johnson, 1980;
~albfleisch & Prentice, 1980). Pelo uso desses métodos estatísticos, os problemas
associados com curvas cumulativas são superados pelo uso da estatística de "taxa de
recaídas". A taxa de recaídas é avaliada durante determinado período de tempo (um
período de três meses, por exemplo) como a proporção de pessoas que apresentou
recaída durante este intervalo para o número de pessoas propensas a uma recaída no
início do mesmo período de tempo. Qualquer um com uma recaída antes deste
período não é incluído no cálculo. O uso de dados de taxas de recaída pode ter
implicações importantes para o timing das intervenções de tratamento durante o
estágio de manutenção do processo de mudança de hábitos, uma vez que indica o
risco relativo de recaída em diferentes períodos de tempo. Para uma descrição mais
pormenorizada do uso da análise de sobrevivência na avalia ção da recaída, os leitores
devem consultar o capítulo a ser lançado por Goldstein, Marlatt, Peterson e Lutton
(em produção).
Os dados sobre taxas de recaída, entretanto, confirmam os resultados essenciais
apresentados na Figura 1-3; em geral. cerca de 2/3 de. todos os lapsos iniciais ocorrem
dentro dos primeiros 90 dias após o início da tentativa de cessação entre vários
comportamentos adictivos. A conceitualização do autor sobre tais achados apresenta
uma possibilidade teórica alternativa na interpretação do processo de recaída. Eu
hipotetizo a existência de componentes cognitivos, afetivos e comportamentais
comuns associados com o próprio lapso inicial, não importando a substância ou
atividade "adictiva" específica envolvida. Embora a importância das propriedades
individuais de vârias substâncias ou atividades não possa ser ignorada, em particular â
medida que influenciam o desenvolvimento de padrões de abuso dentro de grupos de
usuários, o modelo PR tenta revelar os determinantes e reações comuns ao primeiro
lapso e entender como tais fatores afetam a proba bilidade de recaída ou recuperação
posterior.
No modelo a ser apresentado nas seções seguintes, um lapso é definido como
qualquer violação isolada de uma regra ou conjunto de regulamentos auto-impostos
governando a taxa ou padrão de um comportamento-alvo selecionado. O critério de
abstinência, a regra mais rígida e absoluta que se pode adotar com relação a isto, é
violado, por definição, por uma única ocorrência do comportamento-alvo. A partir
desta perspectiva absoluta, a ocorrência de um único lapso é fundamental para a
recaída (não se pode estar "um pouquinho" não-abstinente, exatamente como não se
pode estar "um pouquinho" grávida). Embora a violação da regra de abstinência seja a
forma primária de recaída, estudada nas pesquisas do autor, outras formas de recaída
também estariam incluídas na definição acima. A primeira violação das regras que
governam a ingestão calórica para alguém em uma dieta rígida também constituiria
um lapso, assim como a primeira ultrapassagem dos limites de consumo impostos em
um programa controlado para o álcool. Dentro deste quadro geral, portanto, é feita
uma distinção entre a primeira violação das regras (o lapso inicial) e os efeitos
secundários subseqüentes nos quais o comportamento pode ou não aumentar, na
direção dos níveis básicos originais pré-tratamento (uma recaída completa).
I
-'
34 Marlatt & Gordon
o Processo de Recaída:
Uma Visão Geral dos Determinantes Imediatos e Reações
o material a seguir apresenta uma visão geral do processo de recaída focalizando os
de terminantes imediatos (circunstãncias precipitadoras) e reações subseqüentes ao
primeiro lapso após um período de abstinência ou uso rigidamente contro
lado. Uma restrição importante ao modelo é que se aplica apenas àqueles casos nos
quais a pessoa fez uma opção ou tomou uma decisão voluntária para a mudança; as
implicações da teoria para a abstinência forçada 'ou involuntária ainda precisam ser
determinadas.
Na visão geral a seguir, apenas os pontos mais importantes do modelo são
apresentados, uma vez que detalhes adicionais são fornecidos em outro local deste
volume (ver Capítulos 2 e 3). As pesquisas e teorias que levaram ao desenvolvimento
deste modelo podem ser encontrados em outro trabalho (Cummings, Gordon &
Marlatt, 1980; Marlatt, 1978, 1979, 1982; Marlatt & Gordon; 1980; Marlatt & Parks,
1982). Uma representação esquemática do modelo de recaída é apresentada na Figura
1-4.
Em primeiro lugar, presume -se que o indivíduo experiencia um senso de
controle percebido (auto-eficácia) enquanto mantém a abstinência (ou aderência a
outras regras que governariam o comportamento-alvo). O comportamento está "sob
controle" desde que não ocorra durante este período; quanto maior o período de
abstinência, maior a percepção de auto-eficácia do indivíduo. Este controle percebido
continuará até que a pessoa encontre uma situação de alto risco. Uma situação de alto
risco é definida amplamente como qualquer situação que represente uma ameaça ao
senso de controle do indivíduo e aumente o risco de recaída potencial. Em uma análise
recente de 311 episódios iniciais de recaída obtidos de clientes com uma variedade de
comportamentos problemáticos (ingestão alcoólica, tabagismo, adicção em heroína,
jogo compulsivo e excesso alimentar). os pesquisadores identificaram três situações
primárias de alto risco associadas com quase 3/4 de todas as recaídas relatadas
(Cummings, Gordon & Marlatt, 1980). Uma tabela de situações de alto risco adaptada
da última fonte é apresentada na Tabela -l I. Uma descrição das três categorias
associadas com as mais altas taxas de recaída vem a seguir. Uma descrição completa
de todas as categorias, juntamente com regras de pontuação, é apresentada no Capítulo
2.
Estados Emocionais Negativos (35% de todas as recaídas na amostra): situações
nas quais o indivíduo está experienciando um estado emocional, humor ou
sentimento negativo (ou desprazeroso) tal como frustração, raiva, ansiedade, de
pressão ou tédio, antes ou no momento da ocorrência do primeiro lapso. Por exemplo,
um de nossos fumantes deu a seguinte descrição de um episódio de recaída: "Tudo ia
bem, até que fui reprovado em meu exame de estatística. Sentime deprimido e decidi
que um cigarro faria me sentir melhor". Em nosso sistema de pontuação, esta
categoria é classificada sob uma subdivisão maior chamada de de terminantes
intrapessoais, que inclui todas as situações primariamente associa das com fatores
intrapessoais (dentro do indivíduo) e/ou reações a eventos ambientais não-pessoais.
Situações envolvendo uma outra pessoa ou grupo de indivíduos que está
significatiamente envolvído no episódio de recaída são agrupadas sob a segunda
subdivisão maior, determinantes interpessoais; as duas categorias seguintes
encaixam dentro desta última subdivisão.
Conflito Interpessoal (16% das recaídas): situaçÇ">es envolvendo um
conflito em andamento ou relativamente recente associado com qualquer
relacionamento interpessoal, tal como casamento, amizade, membros
familiares ou relações em
Prevenção de Recaída 35
Tabela 1-1. Análise de Situações de Recaída com Alcoólicos" Fumantes, Adictos em Heroina,
Jogadores Compulsivos e Indivíduos em Dieta
Individuos
Adictos em com excesso
Alcoólicos Fumantes heroína Jogadores alimentar Total
Situação de recaída (n = 70 (n = 64) (n = 129) (n = 19) (n = 29) (n=31l)
Determinanles Intrapessoais
Estados emocionais negativos 38% 37% 19% 47% 33% 35%
Estados fisicos negativos 3% 2% 9% 3%
Eslados emocionais positivos 6% 10% 3% 4%
Tesle do controle pessoal 9% 2% 16% 5%
Desejos e tenlações 11% 5% 5% 16% 10% 9%
Determinantes Interpessoais
ConOito interpessoal 18% 15% 14% 16% 14% 16%
Pressão social 18% 32% 36% 5% 10% 20%
Eslados emocionais positivos 3% 3% 5% 28% 8%
lDTAL 39% 50% 55% 21% 52% 44%
36 Marlatt & Gordoll
clientes (descrito em detalhes no Capítulo 2), que tinha um sério problema com
bebidas, experienciou seu primeiro lapso após várias semanas de abstinência, quando
convidou uma nova amiga para almoçar. Uma mudança de planos de última hora
levou-as a comer em um restaurante que servia bebidas .alcoólicas. Poucos minutos
após entrarem no local, uma garçonete aproximou-se e perguntou-Ihes o que iriam
beber. A amiga pediu um coquetel, e então a garçonete virouse para nossa cliente,
perguntando: "E você?" Ela também pediu uma bebida, o primeiro de uma série de
eventos que culminaram em uma recaída plena. Como nossa cliente afirmou depois:
"Não planejd e não estava preparada para isto". Subitamente confrontada com uma
situação de alto risco (uma situação de pressão social, na qual foi influenciada pela
solicitação de bebida pela amiga e pela indagação da garçonete), foi incapaz de lidar
efetivamente com ela.
Em outros episódios de recaída, a situação de alto risco parece ser o último elo
em uma cadeia de eventos precedendo o primeiro lapso. Em um outro estudo de caso,
o cliente era um jogador compulsivo que buscou terapia para auxiliá -Io no controle de
seu hábito, que lhe causara numerosos problemas conjugais e financeiros. Antes da
terapia, conseguira abster-se de todos os jogos por um período de aproximadamente
seis meses, seguido por uma recaída e incapacidade para readquirir a abstinêncía. Pedi
que o cliente, residente em Seattle, descrevesse este último episódio de lapso. "Não há
muito o que dizer", começou. "Eu estava em Reno e comecei a jogar novamente".
Obviamente, Reno, no Estado norte-americano de Nevada, é uma cidade de alto risco
para qualquer jogador que tente manter a abstinência. Então, pedi-lhe que descrevesse
os eventos precedendo sua chegada a Reno. Após algum incentivo, revelou a seguinte
história: antes da recaída, mantivera seis meses de total abstinência de todos os jogos,
uma façanha que atribuiu à sua afiliação nos Jogadores Anônimos*, um grupo de
ajuda mútua norte-americano em estreita similaridade com o formato de "Doze
Passos" dos Ms. Nesses encontros de grupo dos GAs, ele contou que o jogo
compulsivo era uma doe nça ou enfermidade, e que a única esperança de recuperação
era absterse totalmente de todas as atividades de jogos. Mesmo a mais leve exceção a
esta regra, tal como girar uma moeda em uma aposta mínima de cara-ou-coroa, era
considerada uma violação à regra de abstinência e suficiente para precipitar uma
recaída total (ou, como um de meus colegas comentou ao ouvir sobre este caso,
"Mesmo um arremesso é um tropeço, nos GAs"). De qualquer modo, o cliente
conseguiu evitar todos os jogos até a ocorrência do acidente em Reno. Ele e sua
esposa decidiram fazer uma viagem de automóvel pela Costa Oeste, de Seattle a San
Francisco. Na viagem de volta, planejaram dirigir primeiro através da Califórnia
antiga, pelas cidades de mineração de ouro das Sierras, e depois continuar pelo norte,
passando pela zona leste do Oregon, indo até os estados de Washington
e Seattle. ."
situação de extremo alto risco, ele pode afirmar que foi "sobrepujado" pelas cir-
cunstãncias que tomaram "impossível" resistir a uma recaída.
PREVENÇÃO DE RECAÍDA:
VISÃO GERAL DOS PROCEDIMENTOS DE INTERVENÇÃO
àquelas partes perigosas da viagem, nas quais o motorista deve usar cautela extra e
habilidades de pilotagem para manter o automóvel na estrada e evitar um acidente. Os
estímulos discriminatórios que sinalizam uma situação de alto risco podem ser
imaginados como sinais na auto-estrada, dando ao motorista informa ções sobre
perigos e riscos adiante, na estrada (por exemplo, "Curva perigosa àdireita:
"Devagar"). O motorista alerta e responsável é alguém treinado para manter um olho
nesses sinais e assumir a ação apropriada para evitar um acidente. Assim também
ocorre com a pessoa que tenta evitar o engajamento no comportamento adictivo: ela
deve estar sempre atenta a indicadores que denotam a proximidade de situações
potencialmente problemáticas. Tais indicadores podem servir como sinais iniciais de
alerta que lembram ao indivíduo para "Parar, Olhar e Escutar", antes de responder.
Quanto antes esses sinais são notados, mais fácil é prever o que está à frente da
próxima curva e assumir os passos apropriados para lidar eficazmente com a situação.
Diversos métodos diferentes podem ser usados para ajudar os clientes a
identificar suas próprias situações de alto risco. Muitas dessas situações são
relacionadas na Tabela l-I e já foram descritas. Detalhes adicionais sobre uma ampla
variedade de situações de alto risco são oferecidos no Capítulo 2. As situações de alto
risco que meus colegas e eu descobrimos como parte de nossas pesquisas oferecem
um exame geral das várias categorias de episódios de recaída; mas não refletem
necessariamente todas as situações que podem ser de alto risco para qualquer
indivíduo específico. Embora o terapeuta possa usar as categorias gerais de situações
de alto risco na Tabela l-I como um ponto de partida, é importante salientar a
necessidade de um procedimento de avaliação individualizado para identificar
situações únicas ou idiossincrásicas que podem representar um problema para
determinado cliente. Também é importante salientar que uma determinação das
habilidades de enfrentamento do cliente é uma parte integral do procedimento de
avaliação, já que qualquer situação específica pode ser considerada de alto risco
apenas até onde a pessoa é incapaz de responder com uma resposta apropriada de
enfrentamento.
Os procedimentos disponíveis para a identificação de situações de alto risco
diferem com base no fato de o cliente ainda estar ou não engajado no comporta mento-
alvo à época da avaliação. Com muitos clientes, é possível obter um registro básico
contínuo do comportamento-problema (por exemplo, fumar ou beber) antes da data da
cessação. No caso da maior parte dos contextos de tratamento para a adicção em
heroína ou alcoolismo, entretanto, o terapeuta tem pouco ou nenhum contato com o
cliente, até após a desintoxicação ter sido completada e o cliente já estar abstinente.
Na condição anterior, o uso de procedimentos de automonitoramento oferece um
método eficaz de identificação de situações potenciais de alto risco onde o acesso ao
comportamento em andamento está prontamente disponível. O automonitoramento,
descrito em maiores detalhes no Capítulo 2, é um procedimento no qual o cliente
mantém um registro contínuo do comportamento-alvo à medida que este ocorre (por
exemplo, pode-se pedir que um fumante registre cada cigarro fumado, juntamente
com uma indicação da hora e ambiente, nível de humor antes e apÓs fumar, etc.). O
automonitoramento pode também ser usado para monitorar compulsões ou intenções
de fumar, juntamente com registros de respostas de enfrentamento usadas (se existem)
e se a compulsão foi ou não seguida pelo ato adictivo. O automonitoramento pode
servir tanto como um procedimento de ava liação quanto como uma estratégia de
intervenção, já que a consciência do cliente quanto ao comportamento-alvo aumenta à
medida que a avaliação continua. A
50 Marlatt & Gordon
outro lado do muro da abstinência. Informações sobre os efeitos a longo prazo do uso
excessivo da droga sobre a saúde fisica e bem-estar social podem ajudar no combate à
tendência a pensar apenas nos efeitos iniciais agradáveis a curto prazo (isto é, o
fenômeno de PGI). Pesquisas e teorias recentes sobre o curso dos efeitos ao longo do
tempo após a ingestão de muitas substãncias psicoativas sugerem que a resposta geral
pode ser de natureza bifásica: o aumento inicial na euforia e excitação é
freqüentemente seguido por um efeito retardado na direção oposta (disforia aumentada
e outros estados afetivos negativos). Esta reação bifásica foi observada com o álcool e
outras drogas psicoativas, e freqüentemente é citada em associação com a teoria de
processo oponente de motivação para o uso da droga, recentemente melhorada por
Solomon e colaboradores (Solomon, 1977; Solomon & Corbit, 1974). O leitor deve
consultar o Capítulo 3 para uma plena discussão sobre a resposta bifásica e suas
implicações para o desenvolvimento de expectativas de resultado positivo.
Uma técnica considerada sobremaneira útil na avaliação das expectativas de
resultado é a matriz de decisões, ilustrada na Figura 1-9 e descrita em maiores detalhes
no Capítulo 4. A matriz mostrada aplica-se à cessação do hábito de fumar, mas pode
ser facilmente adaptada para outros comportamentos adictivos. O cliente recebe o
formato básico na forma de uma tabela tripla (matriz 2 X 2 X 2) com os seguintes
fatores: decisão para reassumir o antigo comportamento ou manter abstinência, efeitos
imediatos x retardados de qualquer decisão e, dentro de cada uma das categorias
anteriores, as conseqüências positivas e negativas envolvidas. O clie nte é, então,
solicitado (com o auxílio do terapeuta) a preencher cada uma das oito células da
matriz, relacionando os efeitos que supostamente têm o maior impacto. A matriz de
decisão deve ser administrada pela primeira vez nos estágios iniciais do processo de
mudança de hábitos. Pode ser um prático auxiliar na avaliação da motivação para a
mudança e pode servir como um lembrete dos objetivos e razões para embarcar na
jornada de mudança, para o cliente. Deve ser notado que os valores associados com
cada resultado específico provavelmente mudarão com o tempo (relativamente ao
ponto de mudança de comportamento inicial). O cliente, então, deve ser lembrado de
revisar a matriz em cada ponto significativo de escolha, no futuro, em especial se está
considerando reassumir o antigo comportamento. Os clientes à beira de uma recaída
freqüentemente atentarão apenas aos efeitos positivos imediatos neste ponto (fenômeno
PGI) e ignorarão ou negarão as conseqüências negativas, imediatas ou retardadas.
E se tudo o mais falha e uma recaída ocorre? O cliente pode ser preparado de
antemão para lidar com este possível resultado, e para aplicar alguns "freios"
cognitivos e comportamentais de modo que o lapso inicial não "saia do controle" e se
transforme numa recaída plena. Uma combinação de habilidades específicas de
enfrentamento e reestruturação cognitiva oferece a maior vantagem. Em primeiro
lugar, o terapeuta precisa ensinar habilidades comportamentais ao cliente, para que este
possa moderar ou controlar o comportamento, uma vez que este ocorra. Tais
comportamentos de enfrentamento podem ser especificados de antemão em um
contrato de recaída (ver detalhes do contrato de recaída no Capítulo 4). A finalidade
deste procedimento é estabelecer um contrato de trabalho ou contrato terapêutico para
limitar a extensão do uso, na ocorrência de um lapso.
O principal objetivo da reestruturação cognitiva é combater os componentes
cognitivos e afetivos do EV A. Em vez de reagir ao primeiro lapso como um sinal de
fracasso pessoal caracterizado por conflito, culpa e atribuição interna, o cliente aprende
a reconceitualizar o episódio como um evento isolado e independente e a vê -Io como
um engano, em vez de um desastre que jamais poderá ser desfeito.
Prevenção de Recaída
53
permitia em um dia típico de trabalho. Ela também afirmou que mal podia esperar
pela sensação de libertação que lhe vinha dos efeitos proporcionados pelos goles
apressados de vodca (para ela, o percurso até sua casa era verdadeiramente uma hora
de "rush", que esperava com ansiedade todos os dias).
Ao trabalhar com esta cliente, comecei por focalizar sobre dois aspectos
importantes seu problema com o álcool: as atitudes de seu parceiro com relação à sua
ingestão alcoólica e seu estilo de vida diá rio. Uma vez que ficou decidido, com base
em uma cuidadosa abordagem de avaliação, que a cliente seria boa candidata a um
programa de beber moderado, e já que ela não queria abandonar completamente o
beber, o objetivo da abordagem foi criar uma mudança acentuada em seu padrão de
ingestão alcoólica diária. Concordamos que um padrão de ingestão alcoólica
moderada envolveria a eliminação da ingestão alcoólica caótica, substituindo este
comportamento por um padrão moderado de ingestão alcoólica em casa e em outras
situações sociais (usando vinho em vez de destilados) e limitando seu consumo de
modo a evitar a intoxicação. A fim de preparar o clima para seu consumo de álcool
em casa, trouxe seu companheiro à sessão e discuti com ele a possibilidade de que
seus sentimentos acerca do comportamento de beber da cliente poderiam ter exercido
um papel importante no estabelecimento do padrão aberrante atual. Após alguma
discussão, ele começou a compreender como seus temores de que ela se tornasse uma
alcoólica faziam-na sentir culpa a ponto de ter de esconder completamente o fato de
beber, confinando-o a uma experiência isolada à hora de ir para casa. Ele, então,
concordou em permitir que ela bebesse vinho em casa em sua presença, sem reagir
negativamente. Quase que ime diatamente após o companheiro aceitar o fato de ela
beber sem responder de um modo punitivo, a cliente relatou sentir-se muito menos
culpada e preocupada sobre seu consumo de álcool. Seus dados de
automonitoramento quanto à bebida mostraram uma queda no consumo de cerca de
25% por semana, mesmo na ausência de qualquer intervenção adicional.
Apesar deste progresso, a cliente relatou que ainda sentia necessidade por
alguma forma de liberação após um dia típico de trabalho. Para lidar com este
,
56 Marlatt & Gordon
desejo por gratificação imediata, começamos a modificar suas atividades diárias para
restaurarmos o equilíbrio entre seus deveres obrigatórios (os "deveres") e outras
atividades que ela considerava mais autogratificantes (os "desejos"). Como
resultado, sua rotina diária mudou. Agora, ao invés de levantar em cima da
hora e correr para preparar o almoço do casal, ela começou uma nova rotina,
levantando-se uma hora e meia antes pela manhã, preparando seu almoço (seu
companheiro aprendera a fazer o dele) e depois parando a caminho da escola em
uma academia de ginástica, onde dava um mergulho na piscina, recebendo depois
uma massagem. Ela chegava á escola relaxada e refrescada, para o início de seu dia
de trabalho. No intervalo do meio da manhã, ela praticava meditação por 20
minutos, sentando-se em silêncio no auditório da escola. No horário do almoço, em
vez de monitorar os alunos na sala de estudos, ela dividia seu tempo com uma
amiga; ela e esta amiga almoçavam descontraidamente juntas, ou passavam o tempo
corren. do em tomo de um lago próximo.
Após as aulas da tarde, a cliente começou a dedicar uma hora àquilo a que
chamo de tempo para o corpo - um horário estabelecido exclusivamente para
exercícios físicos e/ou relaxamento. Em vez de aderir rigidamente a um regime de
exercícios externamente imposto (por exemplo, "Devo correr todos os dias, às 4 da
tarde, de qualquer modo"), ela primeiro sentava -se calmamente e meditava por
alguns minutos, a fim de intuir subjetivamente o que seu corpo "precisava" mais.
Dependendo de seu humor (e freqüentemente das condições climáticas), ela então
selecionava uma atividade dentre várias alternativas, consistindo de
aeróbica (correr, nadar ou andar de bicicleta) e exercícios de meditação-
relaxamento. Assim,
ela escolhia a atividade mais apropriada às suas necessidades em qualquer dia
determinado. Caso se sentisse tensa e esgotada pelas tarefas do dia de trabalho, podia
selecionar um exercício vigoroso, como a corrida. Por outro lado, se estivesse
obsessivamente preocupada, podia escolher a meditação (o uso do conceito de "tempo
para o corpo" é descrito em maiores detalhes no Capítulo 5). Uma vez que a cliente
fez tais alterações no estilo de vida e as incorporou em sua rotina em uma base
regular, seu desejo pela ingestão de vodca à tarde cedeu e foi substituído,
eventualmente, por uma necessidade por outras atividades, mais saudáveis. Sua
ingestão alcoólica diminuiu drasticamente e estabilizou-se em cerca de duas a três
taças de vinho à noite.
Este caso ilustra o desenvolvimento de um estilo de vida equilibrado.
Como indicado na Figura 1-10. a intervenção no estilo de vida é uma das principais
estratégias globais de autocontrole empregada na abordagem de PR. Um objetivo
importante da intervenção no estilo de vida é substituir a bebida ou outros com-
portamentos adietivos por uma atividade que se qualifique como uma adicção
positiva (Glasser, 1976). Se uma adicção "negativa" (por exemplo. uso excessivo de
uma droga) pode ser descrita como uma atividade que parece boa de início mas causa
danos a longo prazo, uma adicção "positiva" (por exemplo. correr) é uma atividade
que pode ser experienciada negativamente de início (sobretudo nos primeiros estágios
do exercício), mas é muito benéfica em termos dos efeitos a longo prazo. As adicções
positivas freqüentemente tomam-se "desejos" à medida que o indivíduo começa a
esperar com prazer pelo engajamento na atividade, e/ou sente falta dos efeitos
positivos se a atividade ou exercício não é praticada em uma base regular. Ademais.
uma vez que o indivíduo geralmente deve adquirir novas habilidades no
desenvolvimento de uma adicção positiva, a auto-eficácia freqüentemente aumenta
como um resultado disso. De modo similar, uma vez que a prática regular desses
comportamentos está associada com um maior senso de relaxamento ou maior bem-
estar físico, a capacidade geral de enfrentamento é aumen
Prevenção de Recaída 57
tada; as situações de alto risco podem ser mais facilmente enfrentadas, em vez
de servirem como desencadeadores que precipitam os comportamentos
excessivos. As adicções positivas, com uma ênfase sobre o relaxamento e
exercícios aeróbicos, são discutidas com maiores detalhes no Capítulo 5.
A programação de períodos de tempo livre durante o dia, quando o
cliente pode buscar seus próprios interesses (por exemplo, fazer compras,
almoçar com um amigo, etc.) também pode oferecer equilíbrio em um quadro
de outra forma lotado de "deveres". Indulgências substitutas, ou atividades
que proporcionem uma forma imediata de autogratificação (por exemplo,
submeter-se a uma massagem, atividade sexual, comer em um bom
restaurante, etc) também podem servir como alternativas de último minuto ou
formas substitutas de auto-indulgência, em especial quando a tentação para
"ceder" às promessas de ficar "alto" com drogas é sobremaneira intensa. A
intervenção no estilo de vida também pode envolver
programas terapêuticos que têm um impacto importante sobre a vida do cliente tais como terapia
conjugal, aconselhamento ocupacional ou mudanças no ambiente social ou fisico.
Um desejo por indulgência que se derive de um estilo de vida
equilibrado pode expressar-se em formas tanto afetivas (em geral somáticas) e
cognitivas. Na forma somática, o desejo pode expressar-se na forma de
respostas de compulsões e/ou fissuras (antecipação dos efeitos da gratificação
imediata). Alternativamente, o desejo pode tomar a forma de distorções
cognitivas que preparam o palco ou "dão permissão" para uma potencial
recaída, tal como uma racionalização, negação ou Decisões Aparentemente
Irrelevantes (DAls). Cada uma destas reações pode ser combatida com
estratégias de PR. Uma vez que as fissuras e compulsões surgem por
indicadores externos, tais como visão ou cheiro de cigarros, bebidas
alcoólicas ou outras substáncias psicoativas, o cliente pode exercer muito
controle pela simples remoção de tantos estímulos tentadores quanto possível
de seu ambiente de vida cotidiana. O objetivo geral deste controle dos
estímulos pode ser resumido no velho ditado: "O que não é visto não é
lembrado". As técnicas de controle do estímulo são particularmente
importantes durante os estágios iniciais da abstinência (ver Capítulo 4 para
uma discussão mais completa sobre os procedimentos de controle do
estímulo).
O principal ponto a salientar aqui é que as fissuras e compulsões
freqüentemente assumem a forma de respostas condicionadas. Como ocorre
com outras respostas interoceptivas (como a resposta emocional
condicionada), elas têm um curso específico de ação, com determinada
latência de aparecimento, intensidade e duração. A coisa mais importante a
ser lembrada pelos clientes é que tais respostas de compulsões e fissuras
surgirão, depois diminuirão e desaparecerão sozinhas. Os indivíduos que
cedem ou "identificam-se" com essas compulsões podem manter a presunção
equivocada de que a compulsão continuará aumentando em intensidade até
que se tome impossível resistir. Ceder à fissura ou àcompulsão no pico de sua
intensidade, entretanto, aumenta a probabilidade de que o antigo hábito ou
resposta ganhe força. Por outro lado, se o indivíduo é capaz de aguardar pelo
alívio e desaparecimento da fissura sem se engajar no antigo padrão de
hábitos, a pressão interna para a resposta eventualmente desaparecerá,
através do processo de extinção.
O modo mais eficaz de lidar com fissuras e compulsões é desenvolver
um senso de distanciamento com relação a elas. Em vez de se identificar com
a fissura (por exemplo, "Eu realmente desejo um cigarro neste momento"), o
cliente pode ser treinado para monitorar a fissura ou compulsão a partir do
ponto de vista de um observador distanciado (por exemplo, "Estou sentindo
vontade de fumar ago
58 Marlatt & Gordon
o modelo PR delineado neste livro ainda está em seus estágios iniciais de desen-
volvimento. As pesquisas e trabalhos clínicos que apóiam este enfoque emergiram
amplamente na última década e, na maior parte, de 1980 em diante. Assim. apenas
alguns estudos de resultados de tratamento apareceram na literatura. comparando o
modelo PR com outros enfoques ao tratamento da adicção ou de prevenção da
recaída. Os estudos de resultado já lançados. juntamente com as pesquisas mais
básicas sobre o papel da expectativa (expectativas de auto-eficácia e de resultado) e
habilidades de enfrentamento no processo de mudança de hábitos, oferecem apoio
geralmente positivo ao modelo. A maioria desses estudos édescrita em outra parte
deste livro (com base em revisões da literatura desde meados de 1983). Apesar deste
emergente apoio empírico. muitos dos princípios básicos do modelo e a efetividade
da abordagem de PR com vários comportamentos adictivos ainda precisam ser
estabelecidos. A finalidade deste livro é oferecer aos leitores um relato de um modelo
teórico no processo de crescimento e desenvolvimento. O refinamento das presunções
básicas e aplicações clínicas do modelo ocorrerão, sem dúvida, com base nas
pesquisas futuras.
Neste ponto, muitas questões ainda permanecem sem resposta. Para citarmos
apenas algumas:
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