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Georges Bataille

O Azul do Céu

Tradução:
Maria Lucia Machado

1986
Copyright ©Jean-Jacques Pauvert, 1957.

Titulo original: Le Bleu du Ciel.

Copyright ©da tradução: Editora Brasiliense S. A.

Capa:

Cristina Burger

Revisão:

M. Sylvia Correa

Lúcio F. Mesquita Filho

Digitalização: LAVRo

Editora Brasiliense S.A.

R. General Jardim, 160

01223 - São Paulo - SP

Fone (011)231-1422
ÍNDICE

Prólogo

Introdução

PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

O mau presságio

Os pés maternais

História de Antônio

O azul do céu

O dia dos mortos


No calor do período entre guerras e da Guerra Civil espanhola, o maldito Georges Bataille escreveu
O Azul do Céu. Esquecido por mais de 20 anos, o livro só seria publicado em 1957, com o pedido
insistente e emocionado de seus amigos.

Um homem angustiado e torturado por conflitos íntimos, que se perde em paixões tortuosas e se
consome até a beira da morte. Uma história de amor e morte onde o erotismo — ou mais exatamente
a perdição — se transforma numa forma de conhecimento humano.

A André Masson
PRÓLOGO

Um pouco mais, um pouco menos, todo homem fica preso ás narrativas, aos romances que lhe
revelam a verdade múltipla da vida. Apenas essas narrativas, por vezes lidas nos transes, situam-no
diante do destino. Devemos, portanto, procurar apaixonadamente o que podem ser as narrativas —
como orientar o esforço pelo qual o romance se renova, ou melhor, se perpetua.

A preocupação com técnicas diferentes, que remedeiam, à saciedade, formas conhecidas, ocupa
com efeito os espíritos. Mas eu me explico mal — se queremos saber o que um romance pode ser —
que um princípio não seja de início descoberto e bem delimitado. A narrativa que revela as
possibilidades da vida não atrai necessariamente, mas incita um momento de fúria, sem o qual seu
autor estaria cego para essas possibilidades excessivas. Acredito nisto: somente a prova sufocante,
impossível, dá ao autor o meio de atingir a visão longínqua esperada por um leitor cansado dos
limites próximos impostos pelas convenções.

Como nos deter em livros aos quais, sensivelmente, o autor não foi coagido?

Quis formular esse princípio. Renuncio a justificá-lo.

Limito-me a fornecer títulos que correspondem à minha afirmação (alguns títulos..., poderia dar
outros, mas a desordem é a medida de minha intenção): Wuthering Heights, O Processo, Em Busca
do Tempo Perdido , O Vermelho e o Negro , Eugénie de Franval, L’Arrêt de Mort, Sarrazine, O
Idiota[1]...

Quis exprimir-me pesadamente.

Mas não insinuo que um sobressalto de fúria ou que a prova do sofrimento, sozinhos, garantem
às narrativas seu poder de revelação. Falei disso aqui para chegar a dizer que só um tormento que me
devastava está na origem das monstruosas anomalias de O Azul do Céu. Essas anomalias
fundamentam O Azul do Céu. Mas estou tão longe de pensar que esse fundamento basta para o valor,
que havia renunciado a publicar este livro, escrito em 1935. Hoje, amigos que a leitura do
manuscrito emocionara incitaram-me á sua publicação. Afinal, entreguei-me ao seu julgamento. Mas
tinha mesmo, por assim dizer, esquecido da sua existência.

Desde 1936, havia decidido não pensar mais nele.

Além disso, entrementes, a guerra da Espanha e a guerra mundial haviam dado aos incidentes
históricos ligados à trama deste romance um caráter de insignificância: diante da própria tragédia,
como prestar atenç3o aos seus sinais anunciadores?

Essa razão combinava-se com a insatisfação, o mal-estar que em si mesmo o livro me inspira.
Mas hoje essas circunstâncias tomaram-se tão distantes que a minha narrativa, escrita, por assim
dizer, no calor do acontecimento, apresenta-se nas mesmas condições que outras, que uma escolha
voluntária do autor situa em um passado insignificante. Hoje estou longe do estado de espírito de que
o livro nasceu; mas afinal como essa razão, decisiva em seu tempo, não está mais em jogo, entrego-
me ao julgamento de meus amigos.
INTRODUÇÃO

Numa espelunca de bairro em Londres, um lugar excêntrico dos mais sujos, no subsolo, Dirty
estava bêbada. Estava bêbada no último grau, eu estava perto dela (minha mão ainda tinha um
curativo, consequência de um ferimento de copo quebrado). Naquele dia, Dirty usava um vestido de
noite suntuoso (mas eu estava mal barbeado, o cabelo em desalinho). Ela esticava as longas pernas,
presa de uma convulsão violenta. A espelunca estava cheia de homens cujos olhos tomavam-se muito
sinistros. Aqueles olhos de homens perturbados faziam pensar em charutos apagados. Dirty apertava
as coxas nuas com as duas mãos. Gemia mordendo uma cortina suja. Estava tão bêbada quanto
bonita: revirava os olhos espantados e furiosos fixando a luz do gás.

— O que há? — gritou ela.

Ao mesmo tempo, teve um sobressalto, semelhante a um canhão que atira numa nuvem de poeira.
Os olhos saltados, como um espantalho, veio-lhe uma torrente de lágrimas.

— Troppmann! — gritou de novo,

Ela me olhava abrindo olhos cada vez maiores. Com suas longas mãos sujas, acariciou minha
cabeça de ferido. Minha testa estava úmida de febre. Ela chorava como se vomita, com uma louca
súplica. Soluçava tanto que seu cabelo ficou molhado de lágrimas.

Em todos os sentidos, a cena que precedeu essa orgia repugnante — em consequência da qual
ratos devem ter rondado ao redor de dois corpos espalhados no chão — foi digna de Dostoievski...

A embriaguez nos havia lançado á deriva, em busca de uma sinistra resposta para a mais sinistra
obsessão.
Antes de sermos totalmente atingidos pela bebida, tínhamos sabido encontrar o caminho de um
quarto do Savoy. Dirty havia notado que o ascensorista era muito feio (apesar de seu belo uniforme,
parecia um coveiro).

Ela me disse isso rindo vagamente. Já falava arrevesado, falava como uma mulher bêbada:

— Você sabe — a cada instante interrompia-se bruscamente, sacudida pelo soluço — eu era
garota... me lembro... vim aqui com minha mãe... aqui... há uns dez anos... então, devia ter doze
anos... Minha mãe era uma velha alta e pesada tipo rainha da Inglaterra... Então, justamente, saindo
do elevador, o ascensorista... aquele ali...

— Qual?... aquele ali?...

— Sim. O mesmo de hoje. Ele não ajustou o elevador... o elevador ficou muito alto... ela ficou
estendida de comprido... fez pluf... minha mãe...

Dirty estourou de rir e, como uma louca, não conseguia mais parar.

Procurando penosamente as palavras, disse-lhe:

— Não ria mais. Você nunca vai terminar sua história.

Ela parou de rir e se pôs a gritar:

— Ah! Ah! estou ficando idiota... Não, não, termino minha história... minha mãe, ela não se
mexia... a saia dela levantada... sua saia comprida..., como uma morta... não se mexia mais... eles a
ergueram para colocá-la na cama... ela começou a vomitar... estava hiperbêbada... mas, um minuto
antes, nem se notava... aquela mulher... parecia um dogue... dava medo...

Envergonhado, disse a Dirty:

— Gostaria de cair como ela diante de você...

— Vai vomitar? — perguntou Dirty sem rir.

Beijou-me na boca.

— Talvez.

Fui para o banheiro. Estava muito pálido e, sem nenhuma razão, me olhei longamente num
espelho: estava desagradavelmente despenteado, meio vulgar, os traços inchados, nem sequer feios,
o ar fétido de um homem ao sair da cama.

Dirty estava sozinha no quarto, um quarto amplo, iluminado por uma quantidade de lâmpadas no
teto. Passeava andando reto em frente como se não fosse mais parar: parecia literalmente louca.
Estava decotada até a indecência. Sob as luzes, seu cabelo loiro tinha um brilho insuportável
para mim.

Mas me dava uma impressão de pureza — havia nela, até na sua devassidão havia uma candura
tal que, por vezes, desejaria colocar-me aos seus pés: tinha medo dela. Via que não aguentava mais.
Estava a ponto de cair. Começou a respirar mal, a respirar como um animal: sufocava. Seu olhar
mau, acossado, teria me feito perder a cabeça. Ela se deteve: devia estar retorcendo as pernas sob o
vestido. Com certeza ia delirar.

Tocou a campainha para chamar a camareira.

Depois de alguns instantes, entrou uma empregada bem bonita, ruiva, de pele fresca: pareceu
sufocada por um cheiro raro em um lugar tão luxuoso — um cheiro de bordel de baixa categoria.
Dirty não ficava mais em pé a não ser apoiada na parede: parecia sofrer horrivelmente. Naquele dia,
não sei onde, cobrira-se de perfumes baratos mas, no estado indescritível em que se encontrava,
exalava além disso um cheiro azedo de nádega e axila que misturado aos perfumes lembrava fedor
farmacêutico. Tinha ao mesmo tempo cheiro de whisky, arrotava...

A jovem inglesa estava embaraçada.

Você, preciso de você — fez Dirty —, mas primeiro é preciso ir buscar o ascensorista:
tenho uma coisa para dizer a ele.

A empregada desapareceu e Dirty, que dessa vez cambaleava, foi sentar-se numa cadeira. Com
muito custo conseguiu colocar no chão ao seu lado uma garrafa e um copo. Seus olhos tornavam-se
pesados.

Procurou-me com os olhos e eu não estava mais lá. Ficou desnorteada. Chamou-me com voz
desesperada:

— Troppmann!

Não houve resposta.

Ela se levantou e várias vezes quase caiu. Chegou â entrada do banheiro: me viu caído num
assento, lívido e desfeito; na minha loucura, acabava de reabrir o ferimento da minha mão direita: o
sangue que tentava estancar com uma toalha pingava rapidamente no chão. Dirty, diante de mim,
olhava-me com olhos de animal. Enxuguei o rosto; assim, cobri de sangue a testa e o nariz. A luz
elétrica se tomava ofuscante. Era insuportável: aquela luz esgotava os olhos.

Bateram na porta e a camareira entrou acompanhada do ascensorista.


Dirty desabou na cadeira. Ao final de um tempo que me pareceu muito longo, sem ver nada e
com a cabeça baixa, perguntou ao ascensorista:

— Estava aqui em 1924?

O ascensorista respondeu que sim.

— Quero lhe perguntar: a velha alta... aquela que saiu do elevador e caiu, vomitou no chão...
Lembra-se?

Dirty falava sem ver nada, como se tivesse os lábios mortos.

Os dois empregados, horrivelmente constrangi-dos, lançavam-se olhares oblíquos para


interrogar-se e observar-se mutuamente.

— Eu me lembro, é verdade, admitiu o ascensorista.

(Esse homem de uns quarenta anos tinha um rosto de coveiro malandro, mas aquele rosto parecia
ter marinado no azeite, á força de untuosidade.)

— Um gole de whisky? — perguntou Dirty.

Ninguém respondeu, os dois personagens estavam em pé com deferência, esperando


penosamente.

Dirty pediu sua bolsa. Seus movimentos esta- vam tão pesados que ela passou um longo minuto
antes de enfiar a mão no fundo da bolsa. Quando encontrou, jogou um pacote de notas no chão
dizendo simplesmente:

— Dividam...

O coveiro achava uma ocupação. Apanhou aquele pacote precioso e contou as libras em voz
alta. Eram vinte. Entregou dez à camareira.

— Podemos nos retirar? — perguntou depois de um tempo.

— Não, não, ainda não, por favor, sentem-se.

Ela parecia sufocar, o sangue lhe subia ao rosto.

Os dois empregados tinham ficado de pé, observando grande deferência, mas também ficaram
vermelhos e angustiados, em parte por causa da importância espantosa da gorjeta, em parte por causa
de uma situação inverossímil e incompreensível.

Muda, Dirty mantinha-se na cadeira. Passou-se um longo momento: a gente poderia ouvir os
corações no interior dos corpos. Avancei até a porta, o rosto lambuzado de sangue, pálido e doente,
estava com soluço, a ponto de vomitar. Os empregados terrificados viram um filete de água correr ao
longo da cadeira e das pernas de sua bela interlocutora: a urina formou uma poça que se espalhou
pelo tapete enquanto um ruído de entranhas relaxadas se produzia pesadamente sob o vestido da
moça, transtornada, escarlate e retorcida sobre a sua cadeira como um porco sob uma faca...

A camareira, enojada e trêmula, precisou lavar Dirty, que parecia ter voltado a ficar calma e
feliz. Deixava que a limpassem e ensaboassem. O ascensorista arejou o quarto até que o cheiro
desapareceu completamente.

Em seguida, fez um curativo para estancar o sangue do meu ferimento.

Todas as coisas estavam em ordem de novo: a camareira acabava de arrumar a roupa de cama.
Dirty, mais bonita que nunca, lavada e perfumada, continuava a beber e estendeu-se na cama. Fez o
ascensorista sentar-se. Ele sentou-se perto dela numa poltrona. Naquele momento a embriaguez a fez
abandonar-se como uma criança, como uma menina.

Mesmo quando não dizia nada, parecia abandonada.

Por vezes, ria sozinha.

— Conte-me — disse afinal ao ascensorista —, depois de tantos anos que está no Savoy, deve
ter visto coisas horrorosas.

— Oh, nem tanto — respondeu ele —, não sem terminar de engolir um whisky, que pareceu
animá- lo e colocá-lo à vontade. Em geral, os clientes são bem corretos aqui.

— Oh, corretos, não é? É uma maneira de ser: como minha falecida mãe que deu com a cara no
chão na sua frente e vomitou nas suas mangas...

E Dirty arrebentou de rir de uma maneira dissonante, no vazio, sem encontrar eco.

Prosseguiu:

— E sabe por que eles são todos corretos? Têm medo, ouça, eles batem o queixo, é por isso que
não ousam mostrar nada. Sinto isso porque eu também tenho medo, mas sim, você entende, meu
rapaz... mesmo de você. Morro de medo...

— A senhora não quer um copo d’água? — perguntou timidamente a camareira.

— Merda! — respondeu brutalmente Dirty, mostrando-lhe a língua. — Estou doente, eu, entenda,
e tenho uma coisa na cabeça, eu.

Depois:
— Vocês não se importam, mas isso me enoja, ouviram?

Suavemente, com um gesto, consegui interrompê-la.

Eu a fiz beber mais um gole de whisky, dizendo ao ascensorista:

— Confesse que, se dependesse de você, a estrangularia!

— Você tem razão — ganiu Dirty —, olhe essas enormes patas, essas patas de gorila, é peludo
como colhões.

— Mas — protestou o ascensorista, horrorizado, que se levantara —, a senhora sabe que estou a
seu serviço.

— Mas não, idiota, acredite, não preciso dos teus colhões. Estou com náuseas.

Arrotando, soltou uma risada.

A camareira correu e trouxe uma bacia. Ela parecia o próprio servilismo, perfeitamente honesta.
Eu estava sentado, inerte, lívido e bebia cada vez mais.

— E você, aí, a moça honesta — fez Dirty, desta vez dirigindo-se à camareira —, você se
masturba e olha bules de chá nas vitrinas para montar casa; se eu tivesse um traseiro como o seu,
mostraria pra todo mundo; sem isso, um dia a gente morre de vergonha, a gente encontra o buraco se
coçando.

De repente, assustado, eu disse à camareira:

— Jogue-lhe um pouco de água no rosto... você está vendo que ela está alterada.

A camareira imediatamente se apressou. Pôs uma toalha molhada na testa de Dirty.

Penosamente, Dirty foi até a janela. Viu lá embaixo o Tâmisa e, ao fundo, algumas das
construções mais monstruosas de Londres ampliadas pela obscuridade. Vomitou rapidamente ao ar
livre. Aliviada, chamou-me e eu segurei sua testa olhando o imundo esgoto da paisagem, o rio e as
docas. Na vizinhança do hotel, edifícios luxuosos e iluminados surgiam com insolência.

Eu quase chorava olhando Londres, de tão perdido de angústia. Lembranças de infância, como
as meninas que brincavam comigo de diabolô ou de pigeon vole (espécie de jogo de salão)
associavam-se, enquanto respirava o ar fresco, à visão das mãos de gorila do ascensorista. Aliás, o
que acontecia parecia-me insignificante e vagamente cômico. Eu mesmo, estava vazio. A custo
imaginava preencher esse vazio com a ajuda de novos horrores. Sentia-me impotente e aviltado.
Nesse estado de obstrução e de indiferença, acompanhei Dirty até a rua. Dirty me arrastava. No
entanto, não teria podido imaginar uma criatura humana que fosse um destroço mais ao sabor da
corrente.

A angústia que não deixava o corpo distendido um instante é, aliás, a única explicação para uma
facilidade maravilhosa: conseguíamos satisfazer qualquer desejo, desprezando as barreiras
estabelecidas, tanto no quarto do Savoy como na espelunca, onde podíamos.
PRIMEIRA PARTE
Eu sei.

Morrerei em condições desonrosas.

Meu gozo hoje é ser um objeto de horror, de aversão, para o único ser ao qual estou ligado.

O que quero: o que pode acontecer de pior a um homem que risse disso.

A cabeça vazia onde "eu” sou tomou-se tão medrosa, tão ávida, que só a morte poderia
satisfazê-la.

Há alguns dias, cheguei — realmente, e não em um pesadelo — a uma cidade que parecia o
cenário de uma tragédia. Uma noite, — só digo isso para rir de uma maneira mais infeliz — não
estive bêbado sozinho a olhar dois pederastas velhos que rodopiavam dançando, realmente, e não em
um sonho. No meio da noite o Comendador entrou no meu quarto: durante a tarde, passando diante da
sua sepultura, o orgulho me havia levado a convidá-lo ironicamente. Sua chegada inesperada me
apavorou.

Diante dele, eu tremia. Diante dele, era um destroço.

Perto de mim jazia a segunda vitima: a extrema aversão de seus lábios os tomava semelhantes
aos lábios de uma morta. Escorria deles uma gosma mais horrenda que o sangue. Desde aquele dia,
estive condenado a esta solidão que recuso, que já não tenho estômago para suportar. Mas não teria
senão um grito para repetir o convite e, se confiasse numa cólera cega, já não seria eu que me iria,
seria o cadáver do velho.

A partir de um ignóbil sofrimento, de novo a insolência que, apesar de tudo, persiste de maneira
dissimulada, cresce, primeiro lentamente, depois, de repente, num clarão, me cega e me exalta numa
felicidade sustentada contra toda razão.

A felicidade no momento me embriaga, me inebria.


Eu a grito, eu a canto com toda a força.

Em meu coração idiota, a idiotice canta a plenos pulmões.

EU TRIUNFO!
SEGUNDA PARTE
O MAU PRESSÁGIO
1

Durante o período da minha vida em que fui mais infeliz, encontrei muitas vezes — por razões
pouco justificáveis e sem sombra de atração sexual — uma mulher que só me atraía por um aspecto
absurdo: como se minha sorte exigisse que um pássaro de mau agouro me acompanhasse naquela
circunstância. Quando voltei de Londres, em maio, estava desorientado e num estado de
superexcitação, quase doente, mas aquela mulher era esquisita, não percebeu nada. Eu havia deixado
Paris em junho para ir ao encontro de Dirty em Prüm: depois Dirty, exasperada, havia me deixado.
Na minha volta, eu era incapaz de sustentar por muito tempo uma atitude convencional. Encontrei o
“pássaro de mau agouro” o mais frequentemente que podia. Mas acontecia ter crises de exasperação
diante dela.

Ela se inquietava com isso. Um dia, me perguntou o que acontecia comigo: disse-me um pouco
mais tarde que havia tido a impressão de que eu ia ficar louco de um momento para o outro.

Eu estava irritado. Respondi-lhe:

— Absolutamente nada.

Ela insistiu:

— Compreendo que não tenha vontade de falar: sem dúvida será melhor que eu o deixe agora.
Você não está bastante tranq uilo para examinar projetos... Mas assim mesmo gostaria de lhe dizer:
acabei ficando inquieta... O que vai fazer?

Olhei-a nos olhos, sem sombra de resolução. Devia ter um ar desorientado, como se quisesse
fugir de uma obsessão inevitável. Ela desviou a cabeça. Eu lhe disse:

— Sem dúvida você imagina que bebi?

— Não, por quê? Isso lhe acontece?

— Muitas vezes.
— Não sabia (tomava-me por um homem sério, absolutamente sério mesmo, e, para ela, o
alcoolismo era inconciliável com outras exigências). Apenas... você parece exausto.

— Seria melhor voltar ao projeto.

— Você está visivelmente cansado demais. Está sentado, parece que vai cair...

— É possível.

— O que há?

— Vou ficar louco.

— Mas por quê?

— Sofro.

— Que posso fazer?

— Nada.

— Não pode me dizer o que tem?

— Não creio.

— Telegrafe para sua mulher voltar. Ela não é obrigada a ficar em Brighton, não?

— Não, aliás ela me escreveu. Ê melhor que não venha.

— Ela sabe do estado em que você está?

— Também sabe que não mudaria nada.

Aquela mulher ficou perplexa: deve ter pensado que eu era insuportável e pusilânime mas que,
no momento, seu dever era me ajudar a sair daquilo. Afinal, decidiu-se a me dizer num tom brusco:

— Não posso deixá-lo assim. Vou acompanhá-lo até sua casa... ou á casa de amigos... como
quiser...

Não respondi. Naquele momento, as coisas, na minha cabeça, começavam a se obscurecer.


Estava farto.

Ela me acompanhou até em casa. Não pronunciei mais uma palavra.


2

Em geral a via em um bar-restaurante atrás da Bolsa. Eu a fazia comer comigo. Dificilmente


chegávamos a terminar uma refeição. O tempo era gasto em discussões.

Era uma moça de vinte e cinco anos, feia e visivelmente suja (as mulheres com as quais saía
anteriormente eram ao contrário bem vestidas e bonitas). Seu sobrenome, Lazare, correspondia
melhor ao seu aspecto macabro que seu nome. Era estranha, bastante ridícula mesmo. Era difícil
explicar o interesse que tinha por ela. Era preciso supor uma desordem mental. Era assim, pelo
menos, com os amigos que eu encontrava na Bolsa.

Ela era, naquele momento, o único ser que me fez escapar do abatimento: mal havia passado a
porta do bar — sua silhueta vigorosa e negra à entrada, naquele lugar consagrado à sorte e á fortuna,
era uma estúpida aparição do azar — eu me levantava, a levava à minha mesa. Ela usava roupas
pretas, mal cortadas e manchadas. Parecia não ver nada diante dela, frequentemente esbarrava nas
mesas ao passar. Sem chapéu, seus cabelos curtos, duros e mal penteados, davam-lhe asas de corvo a
cada lado do rosto. Tinha um grande nariz de judia magra, de pele amarelada, que saía daquelas asas
sob óculos de aço.

Ela causava mal-estar: falava lentamente com a serenidade de um espírito estranho a tudo; a
doença, o cansaço, a privação ou a morte não significavam nada aos seus olhos. O que supunha por
antecipação, nos outros, era a mais calma indiferença. Exercia um fascínio, tanto por sua lucidez
como por seu pensamento de alucinada. Eu lhe entregava o dinheiro necessário à impressão de uma
minúscula revista mensal a que ela dava muita importância. Nela defendia os princípios de um
comunismo bem diferente do comunismo oficial de Moscou. Na maior parte das vezes eu pensava
que era positivamente louca, que, de minha parte, era uma brincadeira maldosa prestar-me ao seu
jogo. Eu a via, imagino, porque sua agitação era tão destrambelhada, tão estéril quanto a minha vida
privada, ao mesmo tempo tão perturbada quanto. O que mais me interessava era a avidez doentia que
a levava a dar sua vida e seu sangue pela causa dos deserdados. Eu refletia: seria um sangue fraco de
virgem suja.
3

Lazare me acompanhou. Entrou em minha casa. Pedi que me deixasse ler uma carta de minha
mulher que me esperava. Era uma carta de oito ou dez páginas. Minha mulher dizia que não aguentava
mais. Acusava-se de ter me perdido enquanto tudo tinha acontecido por minha culpa.

Essa carta me transtornou. Tentei não chorar, mas não consegui. Fui chorar sozinho no banheiro.
Não podia parar e, saindo, enxugava as lágrimas que continuavam a correr.

Disse a Lazare, mostrando-lhe meu lenço molhado:

— É lamentável.

— Teve más notícias de sua mulher?

— Não, não ligue, estou perdendo a cabeça agora, mas não tenho motivo preciso.

— Mas nada de mau?

— Minha mulher conta um sonho que teve...

— Como um sonho?...

— Isso não tem importância. Pode ler se quiser. Só que não vai entender.

Passei-lhe uma das folhas da carta de Édith (não achava que Lazare compreenderia mal, mas que
ficaria assombrada). Eu me dizia: talvez seja megalomaníaco, mas é preciso passar por isso, Lazare,
eu, ou não importa quem.

O trecho que fiz Lazare ler não tinha nada a ver com aquilo que havia me perturbado na carta.
“Esta noite, escrevia Édith, tive um sonho que não acabava mais e que me deixou um peso
insuportável. Conto a você porque tenho medo de guarda-lo só para mim.

“Estávamos os dois com vários amigos e alguém disse que se você saísse seria assassinado. Era
porque você havia publicado artigos políticos... Seus amigos afirmaram que isso não tinha
importância. Você não disse nada, mas ficou muito vermelho. Não queria absolutamente ser
assassinado, mas seus amigos o arrastaram e todos vocês saíram.

“Chegou um homem que vinha para matá-lo. Para isso era preciso que acendesse uma lâmpada
que tinha na mão. Eu andava ao seu lado e o homem, que queria me fazer entender que o mataria,
acendeu a lâmpada: a lâmpada disparou uma bala que me atravessou.

“Você estava com uma moça e, naquele momento, compreendi o que queria e lhe disse: ‘Já que
vão matá-lo, pelo menos, enquanto está vivo, vá com essa moça para um quarto e faça o que quer
com ela’. Você respondeu: ‘Eu quero’. Foi para o quarto com a moça. Em seguida, o homem disse
que estava na hora. Acendeu de novo a lâmpada. Saiu uma segunda bala que era destinada a você,
mas senti que era eu que a recebia, e estava acabado para mim. Passei a mão na garganta: estava
quente e pegajosa de sangue. Foi horrível...”

Eu estava sentado em um divã ao lado de Lazare que lia. Recomecei a chorar tentando me
conter. Lazare não entendia que eu chorasse por causa do sonho. Disse-lhe:

— Não posso lhe explicar tudo, apenas me comportei como um covarde com todos aqueles que
amei. Minha mulher se sacrificou por mim. Ficava louca por mim enquanto eu a enganava. Você
entende: quando li essa história que ela sonhou, queria que me matassem à ideia de tudo o que fiz...

Lazare me olhou, então, como se olha alguma coisa que supera aquilo que se esperava. Ela, que
considerava tudo, habitualmente, com olhos fixos e firmes, pareceu de repente perturbada: estava
como atacada de imobilidade e não dizia mais uma palavra. Olhei-a no rosto, mas as lágrimas saíam
dos meus olhos contra a minha vontade.

Estava dominado por uma vertigem, estava tomado por uma necessidade pueril de gemer:

— Eu deveria explicar-lhe tudo.

Falava com lágrimas. Às lágrimas escorriam pela minha face e caíam nos meus lábios.
Expliquei a Lazare o mais brutalmente que pude tudo o que havia feito de imundo em Londres com
Dirty.

Disse-lhe que enganava minha mulher de todas as maneiras, mesmo antes, que tinha ficado
apaixonado por Dirty a ponto de não tolerar mais nada quando compreendia que a perdera.

Contei minha vida inteira àquela virgem. Contada a tal moça (que, na sua feiúra, só podia
suportar a existência grotescamente, reduzida a uma rigidez estóica), era de uma impudência que me
envergonhava.
Jamais havia falado a ninguém do que me acontecera e cada frase me humilhava como uma
vileza.
4

Na aparência, eu falava como um infeliz, de uma maneira humilhada, mas era uma trapaça. No
fundo, permanecia cinicamente desdenhoso, diante de uma moça feia como Lazare. Expliquei-lhe:

— Vou lhe dizer por que tudo deu errado: é por uma razão que certamente lhe parecerá
incompreensível. Jamais tive mulher mais bela ou mais excitante que Dirty: me fazia mesmo perder
completamente a cabeça, mas na cama, eu era impotente com ela...

Lazare não compreendia uma palavra da minha história, começava a irritar-se. Interrompeu-me:

— Mas, se ela o amava, isso era tão ruim?

Estourei de rir e, mais uma vez, Lazare pareceu constrangida.

Confesse — disse eu —, que não se inventaria uma história mais edificante: os libertinos
desconcertados, reduzidos a enojar-se um ao outro. Mas... é melhor eu falar seriamente: não queria
jogar os detalhes na sua cara, contudo, não é difícil nos compreender. Ela estava tão habituada
quanto eu aos excessos e não podia satisfazê-la com trejeitos. (Falava em voz baixa. Tinha a
impressão de ser imbecil, mas tinha necessidade de falar; de tanto desespero — e por mais estúpido
que isso seja — era melhor que Lazare estivesse ali. Ela estava lá e eu estava menos desorientado.)

Expliquei-me:

— Não é difícil de entender. Eu empregava todas as minhas forças. O tempo passava em


esforços inúteis. No final, ficava num estado de extremo esgotamento físico, mas o esgotamento
moral era pior. Tanto para ela como para mim. Ela me amava e, no entanto, no final, me olhava
estupidamente, com um sorriso fugidio, amargo mesmo. Excitava-se comigo e eu me excitava com
ela, mas só chegávamos a nos enojar. Você entende: a gente se toma asqueroso... Tudo era
impossível. Eu me sentia perdido e, naquele momento, só pensava em me jogar debaixo de um trem...

Detive-me por um instante. Disse ainda:


— Havia sempre um quê de coisa morta...

— O que você quer dizer?

— Sobretudo em Londres... Quando estive em Prüm para reencontrá-la, estava combinado que
não aconteceria mais nada do gênero, mas para que... Você não pode imaginar a que grau de
aberração é possível chegar. Eu me perguntava por que era impotente com ela e não com as outras.
Tudo ia bem quando desprezava uma mulher, por exemplo uma prostituta. Apenas, com Dirty, sempre
tinha vontade de me lançar aos seus pés. Eu a respeitava demais, e a respeitava justamente porque
estava perdida em libertinagens... Tudo isto deve ser incompreensível para você...

Lazare me interrompeu:

— De fato, não compreendo. Aos seus olhos, a libertinagem degradava as prostitutas que vivem
dela. Não vejo como podia enobrecer essa mulher...

A nuança de desprezo com que Lazare havia pronunciado “essa mulher” me deu a impressão de
um intrincado contra-senso. Olhei as mãos da pobre moça: as unhas imundas, a cor da pele um pouco
cadavérica; passou pela minha cabeça a ideia de que, sem dúvida, não se lavara ao sair de certo
lugar... Nada de penoso para os outros, mas Lazare me repugnava fisicamente. Olhei-a no rosto. Em
tal estado de angústia, me senti acossado — prestes a me tornar meio louco — era ao mesmo tempo
cômico e sinistro, como se tivesse um corvo, um pássaro de mau agouro, um devorador de restos
sobre o pulso.

Pensei: enfim ela encontrou uma boa razão para me desprezar. Olhei minhas mãos: estavam
bronzeadas pelo sol e limpas; minhas roupas claras de verão estavam em bom estado. As mãos de
Dirty eram na maior parte das vezes deslumbrantes, as unhas cor de sangue fresco. Por que me deixar
desconcertar por aquela criatura frustrada e cheia de desprezo pela sorte da outra? Eu devia ser um
covarde, um paspalhão mas, no estado em que estava, admitia isso sem inquietação.
5

Quando respondi á pergunta — depois de ter esperado longo tempo, como se estivesse
embotado — queria apenas aproveitar uma presença, bastante vaga, para escapar de uma solidão
intolerável. Apesar do seu aspecto horrível, aos meus olhos Lazare mal tinha uma sombra de
existência. Disse-lhe:

— Dirty é o único ser no mundo que já me compeliu â admiração... (em certo sentido, eu mentia:
talvez não fosse a única, mas, em um sentido mais profundo, era verdade). Acrescentei: era
inebriante para mim que fosse tão rica; assim ela podia cuspir no rosto dos outros. Tenho certeza: ela
a teria desprezado. Não é como eu...

Tentei sorrir, esgotado de cansaço. Contra minha expectativa, Lazare deixou passar minhas
frases sem baixar os olhos: tinha ficado indiferente. Continuei:

— Agora, prefiro ir até o fim... Se quiser, vou lhe contar tudo. Em certo momento, em Prlim,
ima- ginei que era impotente com Dirty porque era necrófilo...

— O que está dizendo?

— Nada de insensato.

— Não entendo...

— Você sabe o que quer dizer necrófilo,

— Porque você zomba de mim?

Eu me impacientava.

— Não zombo de você.

— O que isso quer dizer?


— Não muita coisa.

Lazare reagia pouco, como se se tratasse de uma criancice presunçosa. Retrucou:

— Você tentou?

— Não. Jamais cheguei a isso. A única coisa que me aconteceu: uma noite que passei em um
apartamento onde uma mulher idosa acabava de morrer — ela estava na cama, como qualquer outra,
entre os dois círios, os braços dispostos ao longo do corpo, mas sem as mãos juntas. Não havia
ninguém no quarto durante a noite. Naquele momento, eu me dei conta.

— Como?

— Acordei por volta das três horas da manhã. Tive a ideia de ir ao quarto onde estava o
cadáver. Estava aterrorizado, mas por mais que tremesse, permaneci diante daquele cadáver. Afinal,
tirei meu pijama.

— Até onde você foi?

— Não me movi, estava perturbado a ponto de perder a cabeça; aconteceu de longe,


simplesmente, olhando.

— Era uma mulher ainda bonita?

— Não. Completamente murcha.

Pensava que Lazare acabaria por ficar irritada, mas ela ficara tão calma quanto um cura ouvindo
uma confissão. Limitou-se a me interromper:

— Isso não explica por que você estava impotente?

— Sim. Ou, pelo menos, quando vivi com Dirty, pensava que era a explicação. Em todo caso,
compreendi que as prostitutas tinham pra mim uma atração análoga à dos cadáveres. Assim, havia
lido a história de um homem que as tomava com o corpo empoado de branco, simulando a morte
entre dois círios, mas a questão não era essa. Falei com Dirty sobre o que se podia fazer e ela se
irritou comigo...

— Por que Dirty não simulava a morte por amor a você? Suponho que não teria recuado por tão
pouco.

Encarei Lazare, surpreso de que ela olhasse o caso de frente: eu tinha vontade de rir.

— Ela não recuou. Aliás, é pálida como uma morta. Em particular, em Prüm, estava um pouco
doente. Um dia até me propôs chamar um padre católico: queria receber a extrema-unção simulando
a agonia diante de mim, mas a comédia me pareceu intolerável. Era evidentemente risível, mas
sobretudo assustador. Não aguentávamos mais. Uma noite, ela estava nua na cama, eu estava em pé
perto dela, igualmente nu. Ela queria me excitar e me falava de cadáveres... sem resultado... Sentado
na beira da cama, comecei a chorar. Disse-lhe que era um pobre idiota: estava aniquilado na beira da
cama. Ela ficara lívida: suava frio... Começou a bater o queixo. Eu a toquei, estava fria. Tinha os
olhos revirados. Estava horrível de se ver... Imediatamente tremi como se a fatalidade me agarrasse
pelo punho para torcê-lo, a fim de me obrigar a gritar. Estava com tanto medo que nem chorava mais.
Minha boca ficou seca. Vesti uma roupa. Quis tomá-la nos braços e falar-lhe. Me repeliu por horror a
mim. Estava realmente doente...

Vomitou no chão. É preciso dizer que havíamos bebido a noite inteira..., whisky.

— Claro, interrompeu Lazare.

— Por que “claro”?

Olhei Lazare com ódio. Continuei:

— Aquilo terminou dessa maneira. A partir daquela noite não suportou mais que eu a tocasse.

— Ela o abandonou?

— Não imediatamente. Até continuamos a morar juntos por vários dias. Ela me dizia que não me
amava menos; ao contrário, sentia-se ligada a mim, mas tinha horror de mim, um horror invencível.

— Nessas condições, você não podia desejar que isso durasse.

— Não podia desejar nada, mas à ideia de que ela me abandonaria, perdia a cabeça. Chegamos
a tal ponto que, nos vendo num quarto, qualquer um teria pensado que havia um morto ali. Íamos e
vínhamos sem dizer palavra. De tempos em tempos, raramente, nos encarávamos. Como isso pôde
durar?

— Mas como se separaram?

Um dia ela me disse que precisava partir. Não queria dizer para onde ia. Eu lhe pedi para
acompanhá-la. Ela me respondeu: talvez. Fomos juntos até Viena. Em Viena, tomamos um carro até o
hotel. Quando o carro parou, disse-me para arranjar as coisas com o quarto e esperá-la no hall:
primeiro precisava ir ao correio. Mandei retirar as valises e ela ficou no carro. Partiu sem dizer uma
palavra: eu tinha a impressão de que ela havia perdido a cabeça. Havíamos combinado ir a Viena há
bastante tempo e eu lhe dera meu passaporte para pegar minhas cartas. Além disso, todo o dinheiro
que tínhamos estava na sua bolsa. Esperei três horas no hall. Era de tarde. Naquele dia havia um
vento violento com nuvens baixas, mas não se podia respirar, de tanto calor. Era evidente que ela não
voltaria mais e, naquele instante, pensei que a morte se aproximava de mim.

Desta vez, Lazare, que me olhava, parecia comovida. Eu me detivera, ela própria humanamente
me pediu para lhe dizer o que acontecera. Retomei:
— Eu me fiz levar ao quarto onde havia duas camas e todas as suas bagagens... Posso dizer que
a morte entrava na minha cabeça... não me lembro mais do que fiz no quarto... Em certo momento, fui
até a janela e a abri: o vento fazia um ruído violento e a tempestade se aproximava. Na rua, bem
diante de mim, havia uma bandeirola preta muito comprida. Tinha bem uns oito ou dez metros de
comprimento. O vento tinha despregado metade da haste: parecia um bater de asa. Ela não caía: batia
ao vento com um grande barulho á altura do teto: desenrolava-se tomando formas atormentadas:
como um rio escuro que corresse nas nuvens. O incidente parece estranho á minha história, mas para
mim era como se um poço escuro se abrisse na minha cabeça e eu tinha certeza, naquele dia, de
morrer sem demora: olhei para baixo, mas havia uma sacada no andar inferior. Passei o puxador da
cortina em volta do pescoço. Parecia sólido: subi numa cadeira e amarrei o cordão, em seguida quis
me certificar. Não sabia se poderia ou não me segurar quando tivesse derrubado a cadeira com um
golpe de pé. Mas desamarrei o cordão e desci da cadeira. Caí inerte no tapete. Chorei até não poder
mais... Afinal, me levantei: lembro-me de estar com a cabeça pesada. Tinha um sangue-frio absurdo,
ao mesmo tempo, sentia que estava ficando louco. Eu me levantei com o pretexto de olhar o destino
bem de frente. Voltei à janela: a bandeirola preta continuava lá, mas chovia a cântaros; estava
escuro, havia relâmpagos e um grande barulho de trovão...

Isso não interessava Lazare, que me perguntou:

— De onde vinha a sua bandeirola preta?

Queria constrangê-la, envergonhado talvez por ter falado como megalomaníaco; disse, rindo:

— Você conhece a história da toalha preta que cobre a mesa do jantar quando Don Juan chega?

— Qual a relação com a sua bandeirola?

— Nenhuma, só que a toalha era preta... A bandeirola estava suspensa em honra da morte de
Dollfuss.

— Você estava em Viena no momento do assassinato?

— Não, em Prüm, mas cheguei a Viena no dia seguinte.

— Estando no lugar, deve ter ficado comovido.

— Não. (Aquela moça insensata, com sua feiúra, horrorizava-me pela constância de suas
preocupações.) Aliás, mesmo que a guerra tivesse resultado disso, teria correspondido ao que eu
tinha na cabeça.

— Mas como a guerra teria podido corresponder a qualquer coisa que tivesse na cabeça? Teria
ficado contente se houvesse guerra?

— Por que não?


— Acha que uma revolução poderia seguir-se à guerra?

— Falo da guerra, não daquilo que a sucederia.

Acabava de chocá-la mais brutalmente que por tudo que pudesse lhe dizer.
OS PÉS MATERNAIS
1

Encontrava Lazare com menos frequência.

Minha existência havia tomado um curso cada vez mais tortuoso. Bebia álcool aqui ou ali,
andava sem rumo definido e, finalmente, pegava um táxi para voltar para casa; então, no fundo do
táxi, pensava em Dirty perdida e soluçava. Já nem sofria mais, não tinha mais a menor angústia, só
sentia na minha cabeça uma estupidez acabada, como uma infantilidade que não terminaria mais.
Espantava-me com as extravagâncias com as quais tinha podido sonhar — pensava na ironia e na
coragem que tivera — quando queria provocar o destino: de tudo isso restava-me apenas a
impressão de ser uma espécie de idiota, muito tocante talvez, ridículo, em todo caso.

Ainda pensava em Lazare e, a cada vez, tinha um sobressalto: graças á minha fadiga, ela havia
tomado uma significação análoga à da bandeirola preta que me assustara em Viena. Em consequência
de algumas palavras desagradáveis que havíamos trocado sobre a guerra, eu já não via apenas
naqueles presságios sinistros uma ameaça relativa à minha existência, mas uma ameaça mais geral,
suspensa sobre o mundo... Sem dúvida, não existia nada de real que justificasse uma associação entre
a guerra possível e Lazare que, ao contrário, pretendia ter horror ao que concerne â morte: no
entanto, tudo nela, seu andar brusco e sonâmbulo, o tom da sua voz, a capacidade que tinha de
projetar em torno dela uma espécie de silêncio, sua avidez de sacrifício contribuíam para dar a
impressão de um pacto que teria feito com a morte. Eu sentia que tal existência só podia ter sentido
para homens e para um mundo destinado à desgraça. Um dia, uma luz se fez na minha cabeça e decidi
imediatamente me desvencilhar das preocupações que tinha em comum com ela. Esse ajuste
inesperado tinha o mesmo lado ridículo do resto da minha vida...

Sob o choque dessa decisão, tomado de hilari- dade, saí de casa a pé. Depois de uma longa
caminhada, topei com a calçada do café de Flore. Sentei- me á mesa de pessoas que mal conhecia.
Tinha a impressão de ser inoportuno, mas não ia embora. Os outros falavam, com a maior seriedade,
de cada coisa que havia acontecido e sobre a qual era útil estar informado: todos me pareciam de
uma realidade precária e de crânio vazio. Eu os escutei durante uma hora sem dizer mais que algumas
palavras. Em seguida fui ao bulevar Montparnasse, a um restaurante à direita da estação: ali comi, na
calçada, as melhores coisas que podia pedir e comecei a beber vinho tinto, um pouco demais. Ao
final da refeição, era muito tarde, mas chegou um casal formado por mãe e filho. A mãe não era
idosa, ainda sedutora e magra, tinha uma desenvoltura encantadora: isso não tinha interesse mas,
como pensava em Lazare, ela me pareceu tanto mais agradável de ver quanto me parecia rica. Seu
filho estava diante dela, muito jovem, quase mudo, vestido com um suntuoso temo de flanela cinza.
Pedi café e comecei a fumar. Fiquei perturbado de ouvir um grito de dor violento, prolongado como
um estertor: um gato acabava de lançar-se à garganta de um outro, ao pé dos arbustos que formavam a
guia da calçada e precisamente sob a mesa dos dois comensais que eu olhava. A jovem mãe em pé
lançou um grito agudo: ficou pálida. Logo compreendeu que se tratava de gatos e não de seres
humanos, começou a rir (ela não era risível, mas simples). As garçonetes e o dono vieram para a
calçada. Riam dizendo que se tratava de um gato conhecido por ser agressivo com os outros. Eu
próprio ria com eles.

Em seguida, deixei o restaurante acreditando estar de bom humor mas, andando por uma rua
deserta, não sabendo aonde ir, comecei a soluçar. Não conseguia parar de soluçar: andei tanto tempo
que cheguei muito longe, na rua onde moro. Naquele momento, ainda chorava. Na minha frente, três
garotas e dois rapazes barulhentos riam ás gargalhadas: as garotas não eram bonitas mas, sem dúvida
alguma, maliciosas e agitadas. Deixei de chorar e os segui lentamente até a minha porta: o tumulto me
excitou a tal ponto que em lugar de entrar em casa, voltei deliberadamente sobre meus passos. Parei
um táxi e fui ao dancing Tabarin. No momento mesmo em que entrei, uma porção de dançarinas quase
nuas estava na pista: várias delas eram bonitas e jovens. Eu me havia feito instalar â beira da pista
(tinha recusado qualquer outro lugar), mas a sala estava repleta e o tablado no qual minha cadeira se
encontrava era elevado: assim, a cadeira estava em falso: eu tinha a impressão de que, de um
momento para o outro, podia perder o equilíbrio e me estatelar no meio das mulheres nuas que
dançavam. Estava vermelho, fazia muito calor, precisava enxugar o suor do rosto com um lenço já
molhado e era difícil deslocar meu copo de bebida da mesa até minha boca. Nessa ridícula situação,
minha existência em equilíbrio instável sobre uma cadeira tornava-se a personificação da desgraça:
ao contrário, as dançarinas na pista inundada de luz eram a imagem de uma felicidade inacessível.

Uma das dançarinas era mais esbelta e mais bela que as outras: chegava com um sorriso de
deusa, usando um vestido de noite que a tornava majestosa. Ao final da dança, ficava inteiramente
nua mas, nesse momento, era de uma elegância e de uma delicadeza inacreditáveis: o clarão lilás dos
projetores fazia de seu longo corpo nacarado uma maravilha de uma palidez espectral. Eu olhava seu
traseiro nu com o arrebatamento de um menino: como se, em toda a minha vida, não tivesse visto
nada de tão puro, nada de tão pouco real, de tão bonito que era. Na segunda vez que o lance do
vestido desabotoado se produziu, tirou-me a respiração a tal ponto que me segurei na cadeira,
esvaziado. Deixei a sala. Vaguei de um café para uma rua, de uma rua para um ônibus noturno; sem
ter tido a intenção, desci do ônibus e entrei no Sphynx. Desejava uma após outra as mulheres
oferecidas naquela sala ao primeiro que aparecesse; não tinha a ideia de subir a um quarto: uma luz
irreal não cessara de me desnortear. Em seguida, fui ao Dome e estava cada vez mais abatido. Comi
uma salsicha grelhada bebendo champanha doce. Era reconfortante mas bem ruim. Àquela hora
tardia, naquele lugar aviltante, restava pouca gente, homens moralmente grosseiros, mulheres velhas
e feias. Entrei em seguida num bar onde uma mulher vulgar, muito pouco bonita, estava sentada num
tamborete a cochichar com o barman resmungando. Parei um táxi e, desta vez, fui para casa. Eram
mais de quatro horas da manhã mas, em lugar de deitar e dormir, bati um relatório à máquina, com
todas as portas abertas.

Minha sogra, instalada em casa por favor (cuidava da casa na ausência de minha mulher),
acordou. Chamou-me de sua cama e gritou de uma ponta a outra do apartamento através da sua porta:

— Henri... Édith telefonou de Brighton por volta das onze horas; você sabe que ficou muito
decepcionada de não o encontrar.

De fato, eu tinha no bolso, desde a véspera, uma carta de Édith. Dizia que telefonaria naquela
noite depois das dez horas, e era preciso que eu fosse um frouxo para ter esquecido. Havia até
mesmo saído de novo quando me encontrara diante da minha porta! Não podia imaginar nada de mais
odioso. Minha mulher, que eu havia vergonhosamente abandonado, me telefonava da Inglaterra, por
apreensão; durante esse tempo, esquecendo-a, arrastava minha decadência e minha idiotia por
lugares detestáveis. Tudo era falso, até meu sofrimento. Recomecei a chorar o quanto podia: meus
soluços não tinham pé nem cabeça.

O vazio continuava. Um idiota que se embebeda e que chora, eu me transformava nisso


comicamente. Para escapar ao sentimento de ser um resto esquecido o único remédio era beber
álcool e mais álcool. Tinha a esperança de acabar com a minha saúde, talvez até mesmo acabar com
uma vida sem razão de ser. Imaginei que o álcool me mataria, mas não tinha ideia precisa. Talvez
continuasse a beber, então morreria; ou não beberia mais... No momento, nada tinha importância.
2

Saí razoavelmente bêbado de um táxi diante do Francis. Sem dizer nada, fui sentar-me a uma
mesa ao lado de alguns amigos que tinha vindo encontrar. Ter companhia era bom para mim, a
companhia me afastava da megalomania. Não era o único a ter bebido. Fomos jantar em um
restaurante de motoristas: havia apenas três mulheres. A mesa logo ficou coberta por uma quantidade
de garrafas de vinho tinto vazias ou meio vazias.

Minha vizinha se chamava Xénie. Ao final do jantar, disse-me que estava voltando do campo e
que na casa onde havia passado a noite havia visto no banheiro um urinol cheio de um líquido
esbranquiçado no meio do qual uma mosca se afogava: falava disso com o pretexto de que eu comia
um coração de nata (tipo de queijo) e a cor do leite a enojava. Ela comia chouriço e bebia todo o
vinho tinto que eu lhe servia. Engolia os pedaços do chouriço como uma moça de fazenda, mas isso
era uma afetação. Era simplesmente uma mulher desocupada e muito rica. Vi diante do seu prato uma
revista de vanguarda de capa verde que arrastara consigo. Abri-a e dei com uma frase na qual um
pároco rural retirava um coração do esterco na ponta de um forcado. Estava cada vez mais bêbado e
a imagem da mosca afogada em um urinol associava-se ao rosto de Xénie. Xénie estava pálida, tinha
no pescoço uns feios tufos de cabelo, garatujas.[2] Suas luvas de pele branca estavam imaculadas
sobre a toalha de papel ao lado das migalhas de pão e das manchas de vinho tinto. A mesa falava a
altos brados. Escondi um garfo na mão direita, estendi suavemente a mão sobre a coxa de Xénie.

Naquele momento, eu estava com uma voz trêmula de bêbado, mas em parte era uma comédia.
Disse-lhe:

— Você tem o coração frio...

Comecei a rir de repente. Acabava de pensar (como se isto tivesse alguma coisa de engraçado):
um coração de nata... Estava ficando com vontade de vomitar.
Ela estava aparentemente deprimida, mas respondeu sem mau humor, conciliatória:

— Vou decepcioná-lo, mas é verdade: ainda não bebi bastante e não gostaria de mentir para
agradá-lo.

— Então... — disse eu.

Através do vestido, cravei brutalmente os dentes do garfo na coxa. Ela lançou um grito e no
movimento desordenado que fez para escapar de mim, derrubou dois copos de vinho tinto. Afastou a
cadeira e precisou levantar o vestido para ver o ferimento. A roupa de baixo era bonita, a nudez das
coxas me agradou; um dos dentes, mais pontudo, havia atravessado a pele e o sangue corria, mas era
um ferimento insignificante. Eu me apressei: ela não teve tempo de me impedir de colar os lábios
diretamente na coxa e engolir a pequena quantidade de sangue que eu acabava de fazer correr. Os
outros olhavam, um pouco surpresos, com um riso embaraçado... Mas viram que Xénie, por mais
pálida que estivesse, chorava com moderação. Estava mais bêbada do que pensara: continuou a
chorar, mas sobre o meu braço. Então, enchi seu copo caído de vinho tinto e a fiz beber.

Um de nós pagou; depois a soma foi dividida, mas exigi pagar para Xénie (como se quisesse
tomar posse dela); falou-se de ir ao Fred Payne. Todo mundo se amontoou em dois carros. O calor da
pequena sala estava sufocante; dancei uma vez com Xénie, depois com mulheres que nunca tinha
visto. Ia tomar ar diante da porta, arrastando ora uma, ora outra — uma vez mesmo, foi Xénie — para
beber whiskies nos balcões de bares vizinhos. De tempos em tempos, voltava ao salão; afinal,
instalei-me encostado na parede, diante da porta. Estava bêbado, Encarava os que passavam. Não sei
por que um dos meus amigos havia tirado o cinto e o segurava na mão. Eu o pedi a ele. Dobrei-o e
me diverti brandindo-o diante das mulheres como se fosse golpeá-las. Estava escuro, eu não via mais
nada e já não compreendia; se as mulheres passavam com homens, fingiam não ver nada. Chegaram
duas moças e uma delas, diante daquele cinto levantado como uma ameaça, enfrentou-me, insultando-
me, cuspindo-me seu desprezo no rosto: era realmente bonita, loira, o rosto firme, com classe. Virou-
me as costas com aversão e passou pela entrada do Fred Payne. Eu a segui no meio dos bebedores
espremidos em volta do bar.

— Por que não gosta de mim? — disse-lhe eu, mostrando o cinto, brincando —. Tome um gole
comigo. Agora ela ria, olhando-me no rosto.

— Bom — fez ela.

Como se não quisesse ficar em dívida com aquele rapaz bêbado que lhe mostrava estupidamente
um cinto, acrescentou:

— Tome.

Tinha na mão uma mulher nua de cera maleável; a parte inferior da boneca estava envolta em
papel; atentamente, imprimia ao busto um movimento muito sutil: não se podia ver nada de mais
indecente. Com certeza, era alemã, muito descolorida, o andar arrogante e provocante: dancei com
ela e lhe disse não sei que asneiras. Sem pretexto, parou no meio da dança, tomou um ar grave e me
olhou fixamente. Estava cheia de insolência.
— Olhe — disse ela.

E levantou o vestido acima da meia: a perna, as ligas floridas, as meias, a roupa de baixo, tudo
era luxuoso; com o dedo, apontava a carne nua. Continuou a dançar comigo e vi que conservava na
mão a lastimável boneca de cera: tais bugigangas são vendidas á entrada dos music-halls, o
vendedor gagueja uma arenga de fórmulas, assim: “sensacional ao toque”... A cera era suave: tinha a
flexibilidade e o frescor da carne. Ela a brandiu ainda uma vez depois de me ter deixado e, dançando
sozinha uma rumba diante do pianista negro, imprimia-lhe uma ondulação provocante, análoga á sua
dança: o negro a acompanhava ao piano, rindo às gargalhadas; ela dançava bem, á sua volta as
pessoas começaram a bater palmas. Então ela tirou a boneca do cartucho de papel e a lançou sobre o
piano estourando de rir: o objeto caiu sobre a madeira do piano com um ruidozinho de corpo
estatelado; de fato, suas pernas se estatelaram, mas tinha os pés cortados. As barriguinhas das pernas
róseas mutiladas, as pernas abertas, eram exasperantes e ao mesmo tempo sedutoras. Encontrei uma
faca sobre uma mesa e cortei uma fatia rosada de barriga de perna. Minha companheira provisória
apoderou-se do pedaço e o colocou na minha boca: tinha um horrível gosto de vela amarga. Eu o
cuspi no chão, enojado. Não estava inteiramente bêbado; percebi o que aconteceria se acompanhasse
aquela mulher a um quarto de hotel (restava-me bem pouco dinheiro, só podia sair disso com os
bolsos vazios, ainda que me deixasse insultar, cumular de desprezo).

A moça me viu falar com Xénie e com outros; sem dúvida pensou que precisaria ficar com eles
e que não poderia dormir com ela: bruscamente, disse-me até logo e desapareceu. Pouco depois
meus amigos deixaram o Fred Payne e eu os acompanhei: fomos beber e comer no Graff. Eu
permanecia sem dizer nada no meu lugar, sem pensar em nada, começava a passar mal. Fui ao lavabo
com o pretexto de que estava com as mãos sujas e despenteado. Não sei o que fiz: um pouco mais
tarde, estava meio adormecido quando ouvi chamar “Troppmann”’. Estava sem calças, sentado no
vaso. Pus as calças de novo, saí e o amigo que havia me chamado disse que eu tinha desaparecido
por três quartos de hora. Fui me sentar á mesa dos outros mas, pouco depois, aconselharam- me a
voltar ao banheiro: estava muito pálido. Voltei para lá, passei um longo tempo vomitando. Em
seguida, todo mundo dizia que era preciso ir embora (já eram quatro horas). Levaram-me para casa
no bagageiro de um carro.

No dia seguinte (era domingo), ainda estava doente e o dia se passou numa letargia odiosa,
como se já não restassem recursos a utilizar para continuar a viver: me vesti por volta das três horas
com a ideia de ir ver algumas pessoas e tentei, sem conseguir, parecer um homem em estado normal.
Voltei para dormir cedo: estava com febre e.com dor no interior do nariz, como acontece depois de
longos vômitos; além disso, ficara com as roupas encharcadas de chuva e tinha frio.
3

Dormi um sono doentio. Toda a noite, pesadelos ou sonhos penosos se sucederam, acabando de
me esgotar. Levantei-me, mais doente do que nunca. Lembrei do que acabava de sonhar: encontrava-
me, á entrada de uma sala, diante de uma cama com colunas e dossel, uma espécie de carro fúnebre
sem rodas: essa cama, ou esse carro fúnebre, estava rodeada por certo número de homens e de
mulheres, aparentemente os mesmos companheiros da noite anterior. A grande sala era sem dúvida
um palco de teatro, aqueles homens e aquelas mulheres eram atores, talvez os diretores de um
espetáculo tão extraordinário que a espera me dava angústia... Quanto a mim, estava à distância, ao
mesmo tempo ao abrigo, em uma espécie de corredor nu e deteriorado, situado em relação à sala da
cama como as poltronas dos espectadores o são em relação ao palco. A atração esperada devia ser
perturbadora e cheia de um humor excessivo: esperávamos um verdadeiro cadáver. Nesse momento,
notei um ataúde deitado no meio da cama de dossel: a tábua superior do ataúde desapareceu
deslizando sem ruído como uma cortina de teatro ou como um tampo de caixa de jogo de xadrez, mas
o que apareceu não era horrível. O cadáver era um objeto de forma indefinível, uma cera rosa de um
frescor brilhante; aquela cera lembrava a boneca de pés cortados da moça loira, nada de mais
sedutor; aquilo correspondia ao estado de espírito sarcástico, silenciosamente arrebatado, dos
espectadores; uma peça cruel e divertida, cuja vítima permanecia desconhecida, acabava de ser
pregada. Pouco depois, o objeto róseo, ao mesmo tempo inquietante e sedutor, ampliou-se em
proporções consideráveis: tomou o aspecto de um cadáver gigante esculpido em mármore branco
com veios rosa ou amarelo ocre. A cabeça desse cadáver era um imenso crânio de jumento; seu
corpo, uma espinha de peixe ou uma enorme mandíbula inferior desdentada, estirada em linha reta;
suas pernas prolongavam essa espinha dorsal no mesmo sentido das de um homem; elas não tinham
pés, eram os tocos longos e nodosos das patas de um cavalo. O conjunto, hilariante e horrendo, tinha
o aspecto de uma estátua de mármore grega, o crânio estava coberto por um capacete militar,
empoleirado no topo da mesma maneira que um chapéu de palha numa cabeça de cavalo. Eu não
sabia mais, pessoalmente, se devia ficar angustiado ou rir e se tornou claro que, se risse, aquela
estátua, aquela espécie de cadáver, era uma zombaria abrasadora. Mas, se tremesse, ela se
precipitaria sobre mim para me fazer em pedaços. Não pude compreender nada: o cadáver deitado
tornou-se uma Minerva de toga, couraçada, erguida e agressiva sob um capacete: aquela Minerva era
ela própria de mármore, mas agitava-se como uma louca. Continuava á maneira violenta a zombaria
que me arrebatava e que, todavia, me deixava confundido. Havia, no fundo da sala, uma extrema
hilaridade, mas ninguém ria. A Minerva se pôs a girar uma cimitarra de mármore: tudo nela era
cadavérico: a forma árabe de sua arma indicava o lugar onde as coisas se passavam: um cemitério
com monumentos de mármore branco, de mármore lívido. Ela era gigante. Impossível saber se eu
devia levá-la a sério: ela se tornou até mais equívoca. Nesse momento, não havia dúvida de que, da
sala onde se agitava, desceu para a ruela em que eu estava medrosamente instalado. Então eu tinha
me tornado pequeno e, quando me percebeu, viu que estava com medo. E meu medo a atraía: fazia
movimentos de uma loucura grotesca. De repente, desceu e se precipitou sobre mim fazendo girar sua
arma macabra com um vigor cada vez mais louco. Estava a ponto de ter sucesso: eu estava
paralisado de horror.

Logo compreendi que, nesse sonho, Dirty, enlouquecida e ao mesmo tempo morta, havia tomado
a vestimenta e o aspecto da estátua do Comendador e que assim, irreconhecível, precipitava-se sobre
mim para aniquilar-me.
4

Antes de ficar completamente doente, minha vida era de ponta a ponta uma alucinação doentia.
Estava desperto, mas todas as coisas passavam depressa demais diante dos meus olhos, como em um
sonho mau. Depois da noite passada no Fred Payne, saí á tarde na esperança de encontrar algum
amigo que me ajudasse a retornar à vida normal. Tive a ideia de ir ver Lazare na casa dela. Sentia-
me muito mal. Mas em lugar daquilo que havia procurado, esse encontro pareceu um pesadelo, até
mesmo mais deprimente que esse sonho que teria na noite seguinte.

Era uma tarde de domingo. Naquele dia, fazia calor e não havia vento. Encontrei Lazare no
apartamento em que mora na rua Turenne em companhia de um personagem tal que, avistando-o,
passou-me pela cabeça a ideia cômica de que precisaria conjurar a má sorte... Era um homem muito
alto que se parecia da maneira mais penosa com a imagem popular de Landru. Tinha pés grandes,
uma jaqueta cinza claro, larga demais para o seu corpo descarnado. A lã dessa jaqueta tinha partes
desbotadas e ruças; sua velha calça lustrosa, mais escura que a jaqueta, descia como um saca-rolhas
até o chão. Era de uma polidez distinta. Tinha como Landru uma bela barba castanho sujo e seu
crânio era careca. Exprimia-se rapidamente, com termos escolhidos.

No momento em que entrei no aposento, sua silhueta destacava-se contra o fundo do céu
nublado: estava em pé diante da janela. Era um ser enorme. Lazare apresentou-me a ele e, nomeando-
o, disse-me que era seu padrasto (não era, como Lazare, de raça judia; devia ter se casado com a mãe
em segundas núpcias). Chamava-se Antoine Melou. Era professor de filosofia em um liceu de
província.

Quando a porta do aposento foi fechada atrás de mim e que precisei sentar-me, absolutamente
como se tivesse caído numa cilada, diante daqueles dois personagens, senti um cansaço e um enjôo
mais incômodos que nunca: imaginava ao mesmo tempo que, pouco a pouco, ia perder a compostura.
Lazare me havia falado várias vezes de seu padrasto, dizendo-me que, de um ponto de vista
estritamente intelectual, era o homem mais sutil, mais inteligente que conhecia. Eu estava
terrivelmente incomodado com sua presença. Então eu estava doente, meio demente, não me teria
surpreendido se, em lugar de falar, ele tivesse aberto muito a boca: imaginava que teria deixado a
baba escorrer na barba sem dizer uma palavra...

Lazare estava irritada com a minha chegada imprevista, mas o mesmo não acontecia com seu
padrasto: imediatamente feitas as apresentações (durante as quais havia ficado imóvel, sem
expressão), mal se sentara em uma poltrona meio quebrada, ele se pôs a falar:

— Estou interessado, senhor, em pô-lo a par de uma discussão que, confesso, coloca-me em um
abismo de perplexidade...

Com sua voz comedida de ausente, Lazare tentou detê-lo:

— Meu querido pai, não acha que tal discussão é sem saída e que... não vale a pena cansar
Tropp- mann. Ele parece esgotado.

Mantive a cabeça baixa, os olhos fixos no assoalho aos meus pés. Disse:

— Isto não importa. Explique assim mesmo de que se trata, isso não compromete... Eu falava
baixo, sem convicção.

— Aqui está — retomou o sr. Melou —, minha enteada acaba de expor-me o resultado de
meditações árduas que literalmente a têm absorvido há alguns meses. A dificuldade, aliás, não me
parece residir nos argumentos muito hábeis e, na minha modesta opinião, convincentes, que utiliza
com o objetivo de decifrar o impasse no qual a história está comprometida pelos acontecimentos que
se desenvolvem sob os nossos olhos...

A vozinha suave era modulada com uma elegância excessiva. Eu nem mesmo escutava: já sabia
o que ia dizer. Estava acabrunhado com a sua barba, com o aspecto sujo da sua pele, com os seus
lábios cor de tripa que articulavam tão bem enquanto suas grandes mãos se erguiam no intuito de
acentuar as frases. Compreendi que havia concordado com Lazare em admitir a derrocada das
esperanças socialistas. Pensei: eis aí em má situação, as duas zebras, as esperanças socialistas
aniquiladas... estou bem doente...

O sr. Melou prosseguia, anunciando com sua voz professoral o “dilema angustiante” colocado
ao mundo intelectual nessa época deplorável (segundo ele, era uma infelicidade para todo
depositário da inteligência viver justamente hoje). Articulava enrugando a testa com esforço:

— Devemos amortalhar-nos em silêncio? Devemos nós, ao contrário, oferecer nosso concurso


às últimas resistências dos trabalhadores, destinando- nos desta maneira a uma morte implacável e
estéril?

Por alguns instantes permaneceu calado, fixando com os olhos a ponta de sua mão erguida.
— Louise — conclui ele — inclina-se para a solução heróica. Não sei o que pensa
pessoalmente, senhor, das possibilidades deixadas ao movimento de emancipação operária. Permita-
me, então, colocar este problema... provisoriamente (com estas palavras, olhou-me com um sorriso
fino; deteve-se longamente, dava a impressão de um costureiro que, para melhor avaliar o efeito,
recua um pouco)... no vazio, sim, é bem isso que é preciso dizer (juntou as mãos uma na outra e,
muito suavemente, as esfregou), no vazio... Como se nos encontrássemos diante dos dados de um
problema arbitrário. Sempre temos o direito de imaginar, independentemente de um dado real, um
retângulo ABCD... Enunciemos, se quiser, no caso presente: seja a classe trabalhadora
inelutavelmente destinada a perecer...

Eu escutava isso: a classe trabalhadora destinada a perecer... Estava muito distraído. Nem
mesmo pensava em me levantar, em sair batendo a porta. Olhava Lazare e estava embrutecido.
Lazare estava sentada em outra poltrona, o ar resignado e, contudo, atento, a cabeça para a frente, o
queixo na mão, o cotovelo sobre o joelho. Era muito pouco menos sórdida e mais sinistra que seu
padrasto. Não se moveu e interrompeu-o:

— Sem dúvida, quer dizer “destinada a sucumbir politicamente”...

O enorme fantoche gargalhou. Ria guinchando. Concedeu de boa vontade:

— Evidentemente! Não postulo que pereçam todos corporalmente...

Não pude me impedir de dizer:

— O que quer que isso me faça?

— Talvez tenha me expressado mal, senhor...

Então Lazare, com um tom entediado:

— Você o desculpará por não lhe dizer camarada, mas meu padrasto habituou-se às discussões
filosóficas... com seus colegas...

O sr. Melou estava imperturbável. Continuou.

Eu estava com vontade de mijar (já balançava os joelhos):

— Nós nos encontramos, é preciso dizê-lo, diante de um problema miúdo, exangue, e tal que, à
primeira vista, parece que sua substância se esquiva (fez um ar desolado, uma dificuldade que apenas
ele podia ver o esgotava, esboçou um gesto de mão), mas suas consequências não poderiam escapar
a um espírito tão cáustico, tão inquieto como o seu...

Voltei-me para Lazare e disse-lhe:

— Desculpe-me, mas preciso pedir-lhe que me indique o banheiro...


Ela teve um momento de hesitação, não entendendo, depois levantou-se e me indicou a porta.
Mijei demoradamente, em seguida imaginei que poderia vomitar e me esgotei em esforços inúteis,
enfiando dois dedos na garganta e tossindo com um barulho horroroso. Contudo, isso me aliviou um
pouco, voltei ao aposento onde estavam os outros dois. Permaneci de pé, pouco à vontade e,
imediatamente, disse:

— Refleti sobre seu problema mas, em primeiro lugar, farei uma pergunta.

O jogo das suas fisionomias me fez saber que — por mais confundidos que estivessem — “meus
dois amigos” me ouviriam atentamente:

— Creio que estou com febre (de fato, estendi a Lazare minha mão muito quente).

— Sim, disse-me Lazare com lassidão, deveria voltar para casa e deitar-se.

— De qualquer modo, há uma coisa que gostaria de saber: se a classe operária está fodida, por
que são comunistas... ou socialistas?... como quiserem...

Olharam-me fixamente. Depois olharam um para o outro. Enfim Lazare respondeu, eu mal a
ouvi:

— Aconteça o que acontecer, devemos estar do lado dos oprimidos.

Pensei: ela é cristã. Evidentemente!... e eu, eu venho aqui.. Estava fora de mim, não aguentava
mais de vergonha...

— Em nome de que “é preciso”? Para quê?

— Sempre se pode salvar a alma — disse Lazare.

Deixou cair a frase sem se mover, sem nem mesmo erguer os olhos. Dava-me a impressão de
uma convicção inquebrantável.

Eu me sentia empalidecer; estava novamente com muito enjôo... Contudo, insisti:

— Mas o senhor?

— Oh... — fez o sr. Melou, os olhos perdidos na contemplação de seus dedos magros,
compreendo muito bem sua perplexidade. Eu mesmo estou perplexo, ter-ri-vel-men-te perplexo...
Tanto mais que... acaba de destacar, em poucas palavras, um aspecto imprevisto do problema... Oh,
oh! (ele sorriu na sua longa barba) veja o que é ter-ri-vel-men-te interessante. De fato, minha cara
filha, por que ainda somos socialistas... ou comunistas?... Sim, por quê?...

Ele pareceu abismar-se em uma meditação imprevista. Pouco a pouco, deixou pender, do alto de
seu imenso busto, uma cabecinha longamente barbuda. Vi seus joelhos angulosos. Depois de um
silêncio constrangedor, abriu intermináveis braços e, tristemente, ergueu-os:
— As coisas chegam a isso, nós nos parecemos com o camponês que tivesse trabalhado a sua
terra para o temporal. Ele passaria diante dos seus campos, a cabeça baixa... Saberia que o granizo é
inevitável...................................................................................................................................................

— Então... chegado o momento... ele se mantém diante da sua colheita e, como eu próprio o faço
agora (sem transição, o absurdo, o ridículo personagem tornou-se sublime, de repente sua voz
delicada, sua voz suave havia ganho alguma coisa de glacial), erguerá para nada seus braços para o
céu... esperando que o raio o atinja... a ele e a seus braços...

Com estas palavras, deixou cair seus próprios braços. Tornara-se a perfeita imagem de um
desespero horrível.

Eu o compreendi. Se não fosse embora, recomeçaria a chorar: eu mesmo, por contágio, tive um
gesto desencorajado, saí, dizendo quase em voz baixa:

— Até logo, Lazare.

Depois, passou pela minha voz uma simpatia impossível:

— Até logo, senhor.

Chovia a cântaros, eu não tinha chapéu nem casaco. Imaginei que o caminho não era longo.
Andei por quase uma hora, incapaz de deter-me, gelado pela água que havia encharcado meus
cabelos e minhas roupas.
5

No dia seguinte, essa escapada para uma realidade demente tinha saído da minha memória.
Acordei perturbado. Estava perturbado pelo medo que acabava de sentir em sonho, estava
desvairado, queimando de febre... Não toquei no café da manhã que minha sogra colocou na minha
cabeceira. Minha vontade de vomitar perdurava. Por assim dizer, não tinha cessado desde a
antevéspera. Mandei comprar uma garrafa de mau champanha. Bebi um copo gelado: depois de
alguns minutos, me levantei para ir vomitar. Depois do vômito, deitei de novo, estava ligeiramente
aliviado, mas a náusea não demorou a voltar. Estava tomado por tremores e batimentos de queixo:
estava evidentemente doente, sofria de uma maneira muito desagradável. Recaí numa espécie de sono
horrível: todas as coisas começaram a se despregar, coisas obscuras, horrendas, informes, que
absolutamente teria sido preciso fixar; não havia nenhum meio. Minha existência se fazia em pedaços
como uma matéria apodrecida... O médico veio, examinou-me dos pés à cabeça. Finalmente, decidiu
voltar com um outro; pela sua maneira de falar, compreendi que talvez fosse morrer (sofria
horrivelmente, sentia em mim alguma coisa de emperrado e experimentava uma violenta necessidade
de repouso: assim, não tinha a mesma vontade de morrer dos outros dias). Tinha uma gripe,
complicada por sintomas pulmonares bastante graves: inconscientemente, expusera-me ao frio na
véspera, sob a chuva. Passei três dias em um estado horrível. Com exceção da minha sogra, da
empregada e dos médicos, não vi ninguém. No quarto dia, estava pior, a febre não havia baixado.
Não me sabendo doente, Xénie telefonou: disse lhe que não saía do quarto e que ela podia vir me
ver. Chegou um quarto de hora depois. Ela era mais simples do que eu havia imaginado: era mesmo
muito simples. Depois dos fantasmas da rua Turenne, ela me parecia humana. Mandei trazer uma
garrafa de vinho branco, explicando-lhe com dificuldade que teria prazer em vê-la beber vinho —
por gosto por ela e pelo vinho — eu só podia beber caldo de legumes ou suco de laranja. Ela não
colocou nenhum obstáculo para beber o vinho. Disse-lhe que, na noite em que estava bêbado, havia
bebido porque me sentia muito infeliz.

Ela bem o vira, dizia.

— Você bebia como se quisesse morrer. O mais depressa possível. Eu bem que quis... mas não
gosto de impedir que bebam e, além disso, também eu tinha bebido.

Sua falação me esgotava. Entretanto, obrigou - me a sair um pouco da prostração. Surpreendia-


me de que a pobre moça tivesse compreendido tão bem mas, para mim, não servia de nada. Mesmo
admitindo que, mais tarde, escape da doença. Tomei-lhe a mão, atraí-a para mim e passei-a
suavemente pelo meu rosto para que a picasse a barba áspera que vinha crescendo há quatro dias.

Disse-lhe rindo:

— Impossível beijar um homem tão mal barbeado.

Ela atraiu minha mão e beijou-a longamente. Surpreendeu-me. Não soube o que dizer. Tentei
explicar-lhe, rindo — falava muito baixo, como as pessoas muito doentes: estava com dor de
garganta:

— Por que beija a minha mão? Você bem sabe. No fundo, sou ignóbil.

Teria chorado à ideia de que ela não podia nada. Eu não conseguia superar nada.

Ela me respondeu simplesmente:

— Eu sei. Todo mundo sabe que tem uma vida sexual anormal. Por mim, pensei que você estava
sobretudo muito infeliz. Sou muito tola, muito alegre. Só tenho bobagens na cabeça mas, desde que o
conheço e que ouvi falar dos seus hábitos, pensei que as pessoas que têm hábitos ignóbeis... como
você... é provavelmente porque sofrem.

Olhei-a longamente. Ela me olhava também sem nada dizer. Viu que, a contragosto, as lágrimas
corriam dos meus olhos. Não era muito bonita, mas tocante e simples: nunca a teria imaginado tão
verdadeiramente simples. Disse-lhe que a amava muito, que, para mim, tudo se tornava irreal: talvez
não fosse ignóbil — em última análise — mas era um homem perdido. Seria melhor que morresse
agora, como esperava. Estava tão esgotado pela febre, e por um horror tão profundo, que não podia
explicar-lhe nada; aliás, eu mesmo não entendia nada...

Então ela me disse, com uma brusquidão quase louca:

— Não quero que morra. Cuidarei de você. Gostaria tanto de ajudá-lo a viver...

Tentei fazê-la ser razoável:

— Não. Não pode fazer nada por mim, ninguém pode mais nada...

Disse-lhe isso com tal sinceridade, com um desespero tão evidente, que ficamos silenciosos, um
e outro. Ela mesma não ousou mais dizer nada. Naquele momento, sua presença era desagradável.
Depois daquele silêncio, uma ideia começou a agitar-me internamente, uma ideia estúpida,
odienta, como se, de repente, a vida estivesse em jogo, ou melhor, na ocasião, mais que a vida.
Então, ardendo em febre, disse-lhe com uma exasperação demente:

— Ouça-me, Xénie — comecei a perorar e estava fora de mim sem razão — você se misturou á
agitação literária, deve ter lido Sade, deve ter achado Sade formidável, como os outros. Os que
admiram Sade são escroques, entende? Escroques...

Ela me olhou em silêncio, não ousava dizer nada. Continuei:

— Eu me irrito, estou furioso, exausto, as frases me escapam... Mas por que fizeram isso com
Sade?

Quase gritei:

— Eles comeram merda, sim ou não?

Eu estertorava tão loucamente, de repente, que pude me erguer e, com minha voz alquebrada,
esgoelava-me tossindo:

— Os homens são lacaios... Se há um que tem o ar de um senhor, há outros que estouram de


vaidade... mas... aqueles que não se inclinam diante de nada estão nas prisões ou debaixo da terra... e
a prisão ou a morte para alguns... isso significa o servilismo para todos os outros...

Xénie pousou suavemente a mão na minha testa:

— Henri, eu te suplico — ela se tornava agora, curvada sobre mim, uma espécie de fada
sofredora e a paixão inesperada de sua voz baixa me queimava — pare de falar... você está febril
demais para continuar falando...

Estranhamente, uma distensão sucedeu-se á minha excitação doentia: o som estranho e importuno
de sua voz havia me enchido de um torpor semifeliz. Olhei Xénie muito demoradamente, sem nada
dizer, sorrindo-lhe: vi que usava um vestido de seda azul marinho com gola branca, meias claras e
sapatos brancos; seu corpo era esbelto e parecia bonito sob aquele vestido; seu rosto era fresco sob
os cabelos pretos bem penteados. Lamentei estar tão doente.

Disse-lhe sem hipocrisia:

— Você me agrada muito hoje. Acho-a bonita, Xénie. Quando me chamou de Henri e me disse
tu, isso me pareceu bom.

Ela pareceu feliz, louca de alegria mesmo, no entanto, louca de inquietação. Na sua perturbação,
pôs-se de joelhos perto da minha cama e me beijou a testa; pus-lhe a mão nas pernas, sob a saia...
Não me sentia menos esgotado, mas não sofria mais. Bateram à porta e a velha empregada entrou sem
esperar uma resposta: Xénie se levantou, o mais depressa que pôde. Fingiu olhar um quadro, tinha o
ar de uma louca, mesmo de uma idiota. A empregada, ela também, tinha o ar de uma idiota: trazia o
termômetro e uma xícara de caldo. Eu estava deprimido pela estupidez da velha mulher, novamente
lançado na prostração. No instante anterior, as coxas nuas de Xénie eram frescas na minha mão,
agora tudo vacilava. Minha própria memória vacilava: a realidade estava em pedaços. Nada restava
além da febre, em mim a febre consumia a vida. Eu mesmo introduzi o termômetro, sem ter a coragem
de pedir a Xénie para virar as costas. A velha tinha ido embora. Parvamente, Xénie me viu remexer
as cobertas, até o momento em que o termômetro entrou. Creio que a infeliz teve vontade de rir ao me
olhar, mas a vontade de rir acabou de torturá-la. Ficou com ar desconcertado: permanecia em pé
diante de mim, descomposta, despenteada, toda vermelha; a perturbação sexual também era visível
no seu rosto.

A febre havia aumentado desde a véspera. Não me importava. Sorria mas, visivelmente, meu
sorriso era malévolo. Era mesmo tão penoso de ver que o outro, perto de mim, já não sabia mais que
careta fazer. Por sua vez, minha sogra chegou querendo saber minha febre: sem lhe responder, contei-
lhe que Xénie, que ela conhecia há bastante tempo, ficaria lá para cuidar de mim. Podia dormir no
quarto de Édith se quisesse. Eu disse isso com aversão, depois recomecei a sorrir maldosamente,
olhando as duas mulheres.

Minha sogra me odiava por todo o mal que havia feito á sua filha; além disso, sofria todas as
vezes em que as conveniências eram ofendidas. Perguntou-me:

— Não quer que telegrafe para Édith vir?

Respondi com minha voz rouca, com a indiferença de um homem que é tanto mais senhor da
situação quanto está pior:

— Não. Não quero. Xénie pode dormir aqui se quiser.

Em pé, Xénie estava meio trêmula. Apertou o lábio inferior nos dentes para não chorar. Minha
sogra estava ridícula. Tinha um ar de circunstância. Seus olhos perdidos se desnorteavam de
agitação, o que combinava bem mal com seu andar apático. Afinal, Xénie balbuciou que ia buscar
suas coisas: deixou o quarto sem dizer palavra, sem me lançar um olhar, mas compreendi que
continha os soluços.

Rindo, disse à minha sogra:

— Que ela vá para o diabo, se quiser.

Minha sogra precipitou-se para acompanhar Xénie até a porta. Eu não sabia se Xénie tinha
ouvido ou não.
Eu era o detrito que todo mundo esmaga a minha própria maldade acrescentava-se à maldade da
sorte. Havia atraído a desgraça sobre a minha cabeça e morria ali; estava só, estava frouxo. Havia
proibido de avisar Édith. No momento, senti um buraco preto em mim, compreendendo bem que
nunca mais poderia estreitá-la contra o meu peito. Chamei meus filhinhos com toda minha ternura:
não viriam. Minha sogra e a velha empregada estavam lá, perto de mim: bem que tinham cara, de
fato, uma e outra, de lavar um cadáver e atar-lhe a boca para impedi-la de se abrir risivelmente. Eu
estava cada vez mais irritável; minha sogra me deu uma injeção de cânfora, mas a agulha estava
rombuda, aquela injeção me doeu muito: não era nada, mas também não havia nada que pudesse
esperar, a não ser esses infames pequenos horrores. Em seguida tudo terminaria, mesmo a dor, e a
dor era então em mim o que restava de uma vida tumultuosa... Pressentia alguma coisa de vazio,
alguma coisa de negro, alguma coisa de hostil, de gigante... porém mais eu... Os médicos chegaram,
não saí da prostração. Podiam escutar ou apalpar o que quisessem. Eu só tinha de suportar o
sofrimento, a aversão, a abjeção, suportar para além do que podia esperar. Eles não disseram quase
nada; nem mesmo tentaram arrancar-me vãs palavras. Na manhã seguinte, voltariam, mas eu devia
fazer o necessário. Devia telegrafar à minha mulher. Não estava mais em condição de recusar.
6

O sol entrava no meu quarto, iluminava diretamente a coberta vermelho vivo da minha cama, a
janela escancarada. Naquela manhã, uma atriz de opereta cantava em casa, com as janelas abertas, a
altos brados. Reconheci, apesar da prostração, a ária de Offenbach de La Vie Parisiene. As frases
musicais ribombavam e explodiam de felicidade na sua jovem garganta. Era:

Vous souvient-il ma belle

D ’un homme quis ’appelle

Jean-Stanislas, baron de Frascata?

Você se lembra, minha bela

De um homem que se chama

Jean-Stanislas, barão de Frascata?

No meu estado, acreditava ouvir uma resposta irônica a uma interrogação que se precipitava na
minha cabeça, caminhando para a catástrofe. A linda louca (eu a descobrira outrora, até a desejara)
continuava o seu canto, aparentemente agitada por uma viva exultação:

En la sais on demière,

Quelqu ’un, sur ma prière,

Dans un grand bal à vous me présenta !

Je vous aimai, moi, cela va sans dire!


M'aimâtes-vous? je n’en crus jamais rien.

Na última temporada,

Alguém, a meu pedido,

Em um grande baile apresentou-me a você!

Amei-o, eu, não é preciso dizer!

Você me amou? jamais acreditei nisso.

Hoje, escrevendo, uma alegria aguda levou-me o sangue á cabeça, tão louca que também eu
gostaria de cantar.

Naquele dia, Xénie, que havia resolvido, no desespero que minha atitude lhe causava, vir passar
pelo menos a noite perto de mim, ia entrar sem mais demora naquele quarto ensolarado. Eu ouvia o
ruído de água que ela fazia no banheiro. A moça talvez não tivesse compreendido minhas últimas
palavras. Não sentia remorso por isso. Eu a preferia á minha sogra — pelo menos podia por um
instante me distrair às suas custas... O pensamento de que talvez precisasse pedir-lhe a comadre me
deteve: não me importava de causar-lhe repugnância, mas tinha vergonha da minha situação; estar
reduzido a fazer isso na cama pelos serviços de uma linda mulher e o fedor, eu desfalecia (naquele
momento, a morte me enojava até o medo; contudo, deveria desejá-la). Na véspera á noite, Xénie
havia voltado com uma valise, eu tinha feito uma careta, havia resmungado sem descerrar os dentes.
Tinha fingido estar exausto, a ponto de não poder articular uma palavra. Exasperado, acabara mesmo
por responder-lhe, careteando com menos reserva. Ela não tinha visto nada disso. De um momento
para o outro ia entrar: imaginava que eram necessários os cuidados de uma namorada para salvar-
me! Quando bateu, eu tinha conseguido me sentar (parecia-me que, provisoriamente, ia um pouco
menos mal). Respondi: Entre! com voz quase normal, até com uma voz um pouco solene, como se
tivesse representado um papel.

Vendo-a, acrescentei um pouco mais baixo, no tom tragicômico da decepção:

— Não, não é a morte... é apenas a pobre Xénie...

A encantadora moça olhou seu pretenso amante com olhos francos. Não sabendo o que fazer,
caiu de joelhos diante da minha cama.

Exclamou suavemente:
— Por que você é tão cruel? Queria tanto ajudá-lo a se curar.

— Eu apenas gostaria — respondi-lhe com uma amabilidade convencional — que, por agora,
você me ajudasse a fazer a barba.

— Você talvez vá se cansar? Não pode ficar como está?

— Não. Um morto mal barbeado, isso não é bonito.

— Por que quer me fazer sofrer? Você não vai morrer. Não. Você não pode morrer...

— Imagine o que suporto esperando...

Se cada um pensasse com antecedência... Mas quando eu estiver morto, Xénie, você poderá me
beijar como quiser, não sofrerei mais, não serei mais odioso. Eu te pertencerei inteiro...

— Henri! você me faz tão horrivelmente mal que já não sei mais qual de nós dois está doente...
Sabe, não é você que vai morrer, estou certa, mas eu, você me pôs a morte na cabeça, como se ela
não devesse jamais sair.

Passou-se um pouco de tempo. Eu me tornava vagamente ausente.

— Você tinha razão. Estou cansado demais para me barbear sozinho, mesmo ajudado. É preciso
telefonar ao barbeiro. Não é preciso se zangar, Xénie, quando digo que poderá me beijar... É como
se eu falasse para mim. Você sabe que tenho um gosto viciado pelos cadáveres...

Xénie havia permanecido ajoelhada, sempre a um passo da minha cama, o ar desvairado, e


assim me olhava sorrir.

Afinal, abaixou a cabeça e me perguntou em voz baixa:

— O que quer dizer? Eu te suplico, precisa me dizer tudo agora, porque tenho medo, muito
medo...

Eu ria. Ia contar-lhe a mesma coisa que a Lazare. Mas naquele dia era mais estranho. De súbito,
pensei em meu sonho: num deslumbramento, o que eu havia amado ao longo da minha vida surgia,
como um cemitério de sepulturas brancas sob uma luz lunar, sob uma luz espectral: no fundo, esse
cemitério era um bordel; o mármore funerário estava vivo, era peludo em alguns lugares...

Olhei Xénie. Pensei com um terror de criança: maternal! Xénie sofria, visivelmente. Ela disse:

— Fale... agora... fale... estou com medo, estou ficando louca...


Eu queria falar e não podia. Esforcei-me:

— Então seria preciso que lhe contasse toda a minha vida.

— Não, fale... diga apenas alguma coisa... mas não me olhe mais sem dizer nada...

— Quando minha mãe morreu...

(Não tinha mais a força de falar. Bruscamente, me lembrava: a Lazare, tinha tido medo de dizer
“minha mãe”, havia dito, na minha vergonha: “uma mulher idosa”.)

— Sua mãe?... fale...

— Ela havia morrido durante o dia. Dormi na casa dela com Édith.

— Sua mulher?

— Minha mulher. Chorei sem parar, gritando. Eu... À noite estava deitado ao lado de Édith, que
dormia...

Mais uma vez, já não tinha força para falar. Estava com piedade de mim, se pudesse, teria -
rolado no chão, teria berrado, gritado por socorro, tinha, sobre o travesseiro, o pouco fôlego de um
agonizante... havia primeiro falado a Dirty, depois a Lazare... a Xénie, deveria pedir piedade,
deveria lançar-me a seus pés... Não podia, mas a desprezava de todo o coração. Estupidamente, ela
continuava a gemer e a suplicar.

— Fale... Tenha piedade de mim... fale comigo...

—... Descalço, eu avançava pelo corredor, tremendo... Tremia de medo e de excitação diante do
cadáver, no auge da excitação... estava em transe... Tirei meu pijama... me... você entende...

Doente como estava, eu sorria. No auge do nervosismo, diante de mim, Xénie abaixou a cabeça.
Ela mal se mexia... mas, convulsivamente, alguns segundos se passaram, que não acabavam mais, ela
cedeu, deixou-se cair e seu corpo inerte estatelou-se.

Eu delirei e pensei: ela é odiosa, o momento chega, irei até o fim. Deslizei penosamente à beira
da cama. Precisei de um longo esforço. Tirei um braço, peguei a barra da sua saia e a levantei. Ela
lançou um grito terrível, mas sem se mexer: teve um tremor. Estertorava, a face diretamente no tapete,
a boca aberta.

Eu estava demente. Disse-lhe:

— Você está aqui para tornar a minha morte mais suja. Tire a roupa, agora: será como se eu
empacotasse no bordel.

Xénie endireitou-se, apoiada nas mãos, reencontrou sua voz ardente e grave:
— Se continuar com esta comédia — disse — sabe como acabará.

Levantou-se e, lentamente, foi sentar-se na beirada da janela: olhava-me, sem tremer.

— Você está vendo, vou me deixar cair... para trás...

De fato, começou o movimento que, completado, a teria derrubado no vazio.

Por mais odioso que eu seja, esse movimento me fez mal e acrescentou a vertigem a tudo o que
já desmoronava em mim. Ergui-me. Estava sufocado, disse-lhe:

— Volte. Você bem sabe. Se n ão te amasse, não teria sido tão cruel. Talvez tenha querido sofrer
um pouco mais.

Ela desceu sem pressa. Parecia ausente, o rosto marcado pelo cansaço.

Pensei: vou lhe contar a história de Krakatoa. Havia agora uma fenda na minha cabeça, tudo o
que pensava me fugia. Queria dizer uma coisa e, no mesmo instante, não tinha nada a dizer... A velha
empregada entrou trazendo numa bandeja o café da manhã de Xénie. Colocou-o sobre uma mesinha
de um só pé. Ao mesmo tempo, trazia-me um grande copo de suco de laranja, mas eu estava com as
gengivas e a língua inflamadas, tinha mais medo que vontade de beber. Xénie serviu-se de leite e
café. Eu segurava o copo na mão, querendo beber, não conseguia me decidir. Ela viu que eu me
impacientava. Segurava um copo na mão e não bebia. Era um contra-senso evidente. Xénie,
percebendo-o, logo quis livrar-me dele. Precipitou-se, mas com tal falta de jeito que derrubou,
levantando-se, a mesa e a bandeja: tudo desabou com um barulho de louça quebrada. Se naquele
momento a moça dispusesse da menor reação, teria facilmente saltado pela janela. A cada minuto,
sua presença à minha cabeceira tornava-se mais absurda. Ela sentia essa presença como
injustificável. Abaixou-se, recolheu os cacos espalhados e os colocou na bandeja: dessa maneira,
podia esconder o rosto e eu não via (mas adivinhava) a angústia que a descompunha. Enfim, enxugou
o tapete inundado de café com leite, usando uma toalha de banheiro. Eu lhe disse para chamar a
empregada, que lhe traria um outro café. Ela não respondeu, não levantou a cabeça. Eu via que não
podia pedir nada â empregada, mas não podia ficar sem comer nada.

Disse-lhe:

— Abra o armário. Vai ver uma lata onde deve haver biscoitos. Deve haver uma garrafa de
champanha quase cheia. Está morno, mas se quiser...

Ela abriu o armário e, dando-me as costas, começou a comer os biscoitos, depois, como estava
com sede, serviu um gole de champanha e bebeu-o depressa; comeu mais, rapidamente, e serviu um
segundo gole, afinal fechou o armário. Acabem de colocar tudo em ordem. Estava desamparada, não
sabendo mais o que fazer. Eu precisava tomar uma injeção de óleo de cânfora: disse-lhe isso. Ela foi
preparar no banheiro e pedir o necessário na cozinha. Depois de alguns minutos, voltou com uma
seringa cheia. Eu me coloquei de bruços com dificuldade e lhe ofereci uma nádega depois de ter
abaixado a calça do pijama. Não sabia como fazer, disse-me ela.

— Então — disse-lhe — você vai me machucar. Seria melhor pedir à minha sogra...

Sem mais demora, ela fincou resolutamente a agulha. Era impossível fazer melhor. Cada vez
mais, a presença daquela mulher que me havia posto a agulha na nádega me desconcertava. Consegui
me virar de novo, não sem dificuldade. Eu não tinha o menor pudor; ela ajudou-me a subir a calça.
Desejava que ela continuasse a beber. Sentia-me menos mal. Ela faria melhor, disse-lhe eu, em pegar
um copo e a garrafa no armário, conservá-los ao seu lado e beber.

Ela disse simplesmente:

— Como quiser.

Pensei: se continuar, se beber, eu lhe direi deite-se e ela se deitará, lamba a mesa e ela a
lamberá... eu ia ter uma bela morte... não havia nada que não me fosse odioso: profundamente odioso.

Perguntei a Xénie:

— Você conhece uma canção que começa por: J’ai rêvé d’une fleur?

— Sim. Por quê?

— Queria que a cantasse para mim. Eu a invejo por poder beber, mesmo champanha ruim. Beba
mais um pouco. É preciso acabar a garrafa.

— Como quiser.

E bebeu a grandes goles.

Continuei:

— Por que você não cantaria?

— Por que J'ai rêvé d’une fleur?

— Porque sim...

— Então. Isso ou outra coisa...

— Vai cantar, não é? Beijo sua mão. Você é gentil.

Ela cantou, resignada. Estava em pé, as mãos vazias, tinha os olhos presos ao tapete.
J’ai rêvé d* une fleur

Qui ne mourrait jamais.

]'ai rêvé d'un amour

Qui durerait toujours.

Sonhei com uma flor

Que não morreria jamais.

Sonhei com um amor

Que duraria sempre.

Sua voz grave elevava-se com muita alma e entrecortava as últimas palavras, para terminar, com
uma lassidão angustiante:

Pourquoi faut-il, hélas, que sur la Terre

Le bonheur et les fleurs soient toujours/

éphémères?

Por que é preciso, ai, que sobre a Terra

A felicidade e as flores sejam sempre

efêmeras?

Disse-lhe ainda:

— Você poderia fazer uma coisa por mim.

— Farei o que quiser.

— Teria sido bonito se tivesse cantado nua diante de mim.

— Cantado nua?
— Você vai beber um pouco mais. Fechará a porta â chave. Eu lhe deixarei um lugar perto de
mim, na cama. Agora tire a roupa.

— Mas isso não é sensato.

— Você me disse. Faz o que eu quero.

Eu a olhei sem dizer mais nada, como se a tivesse amado. Ela bebeu ainda lentamente. Olhava-
me. Em seguida, tirou o vestido. Era de uma simplicidade quase louca. Tirou o corpete sem
hesitação. Disse-lhe para pegar, no fundo do cômodo, no quartinho onde estavam penduradas as
roupas, um roupão de minha mulher. Poderia vesti-lo rapidamente se fosse preciso, se chegasse
alguém: ficaria de meias e sapatos; esconderia o vestido e o corpete que acabava de tirar.

Eu disse ainda:

— Gostaria que cantasse mais uma vez. Em seguida, você se deitará ao meu lado.

Ao final, eu estava perturbado, tanto mais que tinha o corpo mais bonito e mais jovem que o
rosto. Sobretudo, ela estava pesadamente nua nas suas meias.

Eu lhe disse novamente, e desta vez muito baixo. Foi uma espécie de súplica. Inclinei-me para
ela. Simulei o amor ardente na minha voz que tremia.

— Por piedade, cante de pé, cante com toda força...

— Se você quer — disse ela.

A voz na sua garganta se contraía, de tanto que o amor e o sentimento de estar nua a
perturbavam. As frases da canção arrulharam no quarto e todo o seu corpo parecia queimar. Um
ímpeto, um delírio parecia perdê-la e abalar sua cabeça embriagada que cantava. Oh demência! Ela
chorava quando avançou loucamente nua para a minha cama — que eu acreditava um leito de morte.
Caiu de joelhos, diante de mim para esconder as lágrimas nos lençóis.

Eu lhe disse:

— Deite-se perto de mim e não chore mais...

Respondeu:

— Estou bêbada.

A garrafa estava vazia sobre a mesa. Ela se deitou. Continuava de sapatos. Estendeu-se com o
traseiro no ar, enfiando a cabeça no travesseiro. Era estranho falar-lhe ao ouvido com uma doçura
ardente que comumente a gente só encontra à noite.

Eu lhe dizia muito baixo:

— Não chore mais, mas eu tinha necessidade de que você ficasse louca, precisava disso para
não morrer.

— Você não morrerá, está dizendo a verdade?

— Não quero mais morrer. Quero viver com você... Quando você se pôs na beirada da janela,
tive medo da morte. Penso na janela vazia... tive um medo terrível... você... e depois eu... dois
mortos... e o quarto vazio...

— Espere, vou fechar a janela, se você quiser.

— Não. É inútil. Fique ao meu lado, mais perto... quero sentir sua respiração.

Ela se aproximou de mim, mas sua boca tinha cheiro de vinho.

Disse-me:

— Você está queimando.

— Sinto-me pior — retomei eu — tenho medo de morrer... Vivi obcecado pelo medo da morte e
agora... não posso mais ver essa janela aberta, ela dá vertigem... é isso.

Xénie logo se precipitou.

— Pode fechá-la, mas volte... volte rápido...

Tudo se turvava. Por vezes, da mesma maneira, um sono irresistível triunfa. Inútil falar. As
frases já estão mortas, inertes, como nos sonhos...

Balbuciei:

— Ele não pode entrar...

— Masquem, entrar?

— Tenho medo...

— De quem você tem medo?

— ... De Frascata...

— Frascata?
— Mas não, estava sonhando. Há um outro...

— Não é a sua mulher...

— Não. Édith não pode chegar... é muito cedo...

— Mas que outro, Henri, de quem você está falando? É preciso me dizer... estou
enlouquecendo... você sabe que bebi demais...

Depois de um penoso silêncio, pronunciei:

— Ninguém vai chegar!

De repente, uma sombra irregular tombou do céu ensolarado. Agitou-se batendo na moldura da
janela. Contraído, me encolhi sobre mim mesmo, tremendo. Era um comprido tapete lançado do
andar superior: por um curto momento eu havia tremido. Na minha idiotia, havia acreditado: aquele
que chamava de “Comendador” havia entrado. Ele vinha todas as vezes que o convidava. A própria
Xénie havia sentido medo. Como eu, ficava apreensiva com uma janela onde acabava de sentar-se
com a ideia de se jogar. No momento da irrupção do tapete, ela não tinha gritado... deitara-se
encolhida contra mim, estava pálida, tinha o olhar de uma louca.

Eu perdia pé.

— Está muito escuro...

... Xénie, estendeu-se ao meu lado... ficou então com a aparência de uma morta... estava nua...
tinha seios pálidos de prostituta... uma nuvem de fuligem escurecia o céu... escondia-me o céu e a
luz... um cadáver ao meu lado, eu ia morrer?

... Mesmo essa comédia me escapava... era uma comédia.


HISTÓRIA DE ANTÔNIO
1

Poucas semanas mais tarde, eu tinha até esquecido de ter estado doente. Encontrei Michel em
Barcelona. De repente estava diante dele. Sentado a uma mesa do Criolla. Lazare lhe tinha dito que
eu ia morrer. A frase de Michel me lembrava um passado penoso.

Pedi uma garrafa de conhaque. Comecei a beber, enchendo o copo de Michel. Demorei pouco
para ficar bêbado. Conhecia há muito tempo a atração do Criolla. Ela carecia de encantos para mim.
Um rapaz vestido de mulher fazia um giro de dança na pista: usava um vestido de noite decotado até
as nádegas. As batidas de salto da dança espanhola soavam no assoalho...

Senti um profundo mal-estar. Olhava Michel. Ele não tinha o hábito do vício. Michel estava
tanto mais canhestro quanto, por sua vez, ia ficando bêbado: estava agitado na cadeira.

Eu estava exasperado. Disse-lhe:

— Queria que Lazare te visse... numa espelunca!

Ele me deteve, surpreso:

— Mas Lazare vinha muitas vezes ao Criolla.

Eu me voltei ingenuamente para Michel, como alguém desconcertado.

— Mas sim, no último ano, Lazare ficou em Barcelona e muitas vezes passava a noite no
Criolla. Isso é tão extraordinário?

O Criolla é, de fato, uma das curiosidades conhecidas de Barcelona.

Contudo, pensava que Michel estava brincando. Disse-lhe isso: a brincadeira era absurda, só de
pensar em Lazare, eu ficava doente. Sentia subir a raiva insensata que eu refreava.
Gritei, estava louco, tinha pego a garrafa na mão:

— Michel, se Lazare estivesse diante de mim, eu a mataria.

Uma outra dançarina — um outro dançarino — entrou no palco em meio às explosões de riso e
os gritos. Tinha uma peruca loira. Era belo, horrendo, cômico.

— Quero bater nela, feri-la...

Era tão absurdo que Michel se levantou. Segurou-me pelo braço. Ele estava com medo: eu
passava dos limites. Ele estava bêbado, por sua vez. Ficou com ar desorientado, caindo de novo na
cadeira.

Eu me acalmei, olhando o dançarino de cabeleira solar.

— Lazare! Não foi ela que se comportou mal, exclamou Michel. Ao contrário, disse-me que
você a havia maltratado violentamente, com palavras...

— Ela te disse isso.

— Mas ela não te quer mal.

— Não me diga mais que ela veio ao Criolla. Lazare no Criolla!...

— Veio aqui várias vezes, comigo. Ficou vivamente interessada. Não queria mais ir embora.
Devia estar sufocada. Jamais me falou das asneiras que você lhe disse.

Eu tinha me acalmado um pouco:

— Eu lhe falarei disso uma outra vez. Ela veio me ver no momento em que estava à morte! Ela
não me quer mal?... Quanto a mim, não a perdoarei jamais. Jamais? Está ouvindo? Afinal, vai me
dizer o que vinha fazer no Criolla?... Lazare?...

Não podia imaginar Lazare sentada onde eu estava, diante de um espetáculo escandaloso.
Esta-va idiotizado. Tinha a impressão de ter esquecido alguma coisa — que teria sabido no instante
anterior, que precisaria absolutamente reencontrar. Teria desejado falar, mais completamente, falar
mais alto; tinha consciência de uma perfeita impotência. Acabava de ficar inteiramente bêbado.

Michel, preocupado, tornava-se mais canhestro. Estava suando, infeliz. Quanto mais refletia,
mais se sentia vencido.

— Quis torcer-lhe o pulso — disse ele.

— ...
— Um dia... aqui mesmo...

Eu estava sob pressão, iria estourar.

Michel, no meio do barulho, riu às gargalhadas:

— Você não a conhece! Ela me pedia para lhe pregar alfinetes na pele! Você não a conhece! Ela
é intolerável...

— Por que alfinetes?

— Queria treinar...

Gritei:

— Para quê? Treinar?

Michel riu ainda mais.

— Para suportar a tortura...

De súbito, ele voltou a ficar sério, desajeitada- mente, como podia. Ficou com um ar apressado,
um ar idiota. No mesmo instante, falava. Estava irritado:

— Há outra coisa que precisa saber, absolutamente. Você sabe, Lazare enfeitiça aqueles que a
ouvem. Ela lhes parece fora do mundo. Há pessoas aqui, trabalhadores, que ela deixava pouco à
vontade. Eles a admiravam. Depois, a encontravam no Criolla. Aqui no Criolla, ela parecia uma
aparição. Seus amigos, sentados à mesma mesa, ficavam horrorizados. Não podiam compreender que
ela estivesse aqui. Um dia, um deles, exasperado, começou a beber... Estava fora de si; fez como
você, pediu uma garrafa. Bebia um gole atrás do outro. Pensei que ele dormiria com ela. Certamente,
teria podido matá-la, teria preferido ser morto por ela, mas jamais lhe teria pedido para dormir com
ele. Ela o seduzia e ele nunca teria compreendido se eu tivesse falado da sua feiúra. Mas aos seus
olhos, Lazare era uma santa. E até continuou sendo. Era um mecânico muito jovem, que se chamava
Antônio.

Fiz o que havia feito o jovem trabalhador; esvaziei meu copo e Michel, que raramente bebia,
pusera-se no meu ritmo. Entrou em um estado de extrema agitação. Quanto a mim, estava diante do
vazio, sob uma luz que me cegava, diante de uma extravagância que nos abatia.

Michel enxugou o suor das têmporas. Continuou:

— Lazare estava irritada de ver que ele bebia. Olhou-o nos olhos e disse-lhe: “Esta manhã, eu
lhe dei um papel para assinar e você assinou sem ler”. Falava sem a menor ironia. Antônio
respondeu: “Qual a importância?”. Lazare replicou: “Mas se eu lhe tivesse dado para assinar uma
profissão de fé fascista?” Antônio, por sua vez, olhou Lazare, olhou nos olhos. Estava fascinado, mas
fora de si. Respondeu pausadamente: “Eu a mataria”. Lazare lhe disse: “Você tem um revólver no
bolso?”. Ele respondeu: “Sim”. Lazare disse: “Vamos sair”. Saímos. Eles queriam uma testemunha.

Eu acabava por respirar mal. Pedi a Michel, que perdia seu ímpeto, para continuar sem demora.
Novamente, ele enxugou o suor da testa:

— Fomos para a beira do mar, ao lugar onde há degraus para descer. O dia despontava.
Andamos sem dizer uma palavra. Eu estava desconcertado, Antônio excitado, mas abatido pela
bebida, Lazare ausente, calma como um morto!...

— Mas era uma brincadeira?

— Não era uma brincadeira. Deixei acontecer. Não sei por que estava angustiado. A beira-mar,
Lazare e Antônio desceram para os degraus mais baixos. Lazare pediu a Antônio que pegasse seu
revólver e pusesse o cano no seu peito.

— Antônio fez isso?

— Tinha um ar ausente* ele também; tirou uma browning do bolso, armou-o e colocou o cano
contra o peito de Lazare.

— E então?

— Lazare perguntou-lhe: “Você não vai atirar?”. Ele não respondeu nada e ficou dois minutos
sem se mexer. Afinal, disse “não” e retirou o revólver...

— Isso é tudo?

— Antônio parecia esgotado: estava pálido e, como estava fresco, começou a tremer. Lazare
pegou o revólver, tirou o primeiro cartucho. Esse cartucho estava no cano quando ela o tinha contra o
peito, em seguida falou com Antônio. Disse-lhe: “Dê-o para mim”. Queria guardá-lo de lembrança.

— Antônio deu a ela?

— Antônio disse “Como você quiser”. Ela colocou o cartucho na bolsa.

Michel calou-se: parecia mais constrangido que nunca. Eu pensava na mosca no leite. Ele já não
sabia se devia rir ou estourar. Realmente se parecia com a mosca no leite, ou então com o mau
nadador que engole água... Não suportava a bebida. No final, estava à beira das lágrimas. Através da
música, gesticulava estranhamente, como se precisasse livrar-se de um inseto:
— Você imaginaria uma história mais absurda? — disse-me ainda.

O suor, escorrendo da testa, havia comandado sua gesticulação.


2

A história me havia atordoado.

Ainda pude perguntar a Michel — apesar de tudo estávamos lúcidos — como se não
estivéssemos bêbados, mas obrigados a ter uma atenção desesperada:

— Você pode me dizer que homem era Antônio?

Michel me apontou um rapaz a uma mesa vizinha, dizendo-me que se parecia com ele.

— Antônio? Tinha um ar arrebatado... Há quinze dias, foi preso: é um agitador.

Perguntei ainda tão gravemente quanto podia:

— Você pode me dizer qual é a situação política em Barcelona? Não sei de nada.

— Tudo vai explodir...

— Por que Lazare não vem?

— Nós a esperamos de um dia para o outro.

Então Lazare viria para Barcelona, a fim de participar da agitação.

Meu estado de impotência tornou-se tão penoso que, sem Michel, aquela noite poderia ter
acabado mal.

O próprio Michel estava com a cabeça às avessas, mas conseguiu me fazer sentar novamente.
Tentei, não sem dificuldade, lembrar-me do tom de voz de Lazare que, um ano antes, havia ocupado
uma daquelas cadeiras.
Lazare falava sempre com sangue-frio, lentamente, com um tom de voz interior. Eu ria pensando
em alguma frase lenta que tinha ouvido. Gostaria de ser Antônio. Eu a teria matado... A id eia de que
talvez amasse Lazare arrancou-me um grito que se perdeu no tumulto. Teria podido morder a mim
mesmo. Estava com a obsessão do revólver — a necessidade de atirar, de esvaziar as balas... no seu
ventre... na sua... Como se caísse no vazio com gestos absurdos, como, em sonho, damos tiros
impotentes.

Não aguentava mais: para me recobrar, precisei fazer um grande esforço. Disse a Michel:

— Tenho horror de Lazare a tal ponto que tenho medo disso.

À minha frente, Michel parecia um doente. Ele próprio fazia um esforço sobre-humano para se
dominar. Segurou a testa nas mãos, não podendo impedir-se um meio riso:

— De fato, segundo ela, você lhe manifestara um ódio tão violento... Ela mesma teve medo.
Também eu a odeio.

— Você a odeia! Há dois meses, ela veio me ver no meu leito quando acreditou que eu ia
morrer. Fizeram-na entrar; avançou para a minha cama na ponta dos pés. Quando a vi no meio do
quarto, ela permaneceu na ponta dos pés, imóvel: tinha o ar de um espantalho imóvel no meio de um
campo...

“Estava, a três passos, tão pálida como se tivesse olhado um morto. Havia sol no quarto, mas
ela, Lazare, era sombria, era sombria como o são as prisões. Era a morte que a atraía, você me
entende? Quando a vi de repente, tive tanto medo que gritei.”

— Mas, ela?

— Não disse uma palavra, não se mexeu. Eu a insultei. Tratei-a de imbecil, suja. Tratei-a de
padreca. Cheguei mesmo a lhe dizer que estava calmo, de sangue-frio, mas meu corpo inteiro tremia.
Eu gaguejava, estava com a boca seca. Disse-lhe que era penoso morrer, mas ver ao morrer um ser
tão abjeto, era demais. Gostaria que minha comadre estivesse cheia, eu lhe teria jogado a merda na
cara.

— O que ela disse?

— Disse à minha sogra que era melhor que ela se fosse, sem elevar a voz.

Eu ria. Ria. Via duplo e perdia a cabeça.

Michel, por sua vez, ria às gargalhadas:

— Ela foi embora?

— Foi embora. Eu molhei os lençóis de transpiração. Acreditei morrer naquele instante. Mas, no
final do dia, estava melhor, senti que estava salvo... Compreenda-me bem, eu devo ter lhe causado
medo. Senão, você não acha? estaria morto!

Michel estava prostrado, endireitou-se: sofria mas, ao mesmo tempo, tinha o ar que teria tido se
acabasse de saciar sua vingança; delirava:

— Lazare gosta de passarinhos: diz isso, mas mente. Mente, você entende? Ela tem um cheiro de
túmulo. Eu sei: tomei-a nos braços um dia...

Michel levantou-se. Estava lívido. Disse, com uma expressão de estupidez profunda:

— É melhor que eu vá ao banheiro.

Eu também me levantei. Michel afastou-se para ir vomitar. Todos os gritos do Criolla na cabeça,
eu estava em pé, perdido na balbúrdia. Já não compreendia: tivesse gritado, ninguém teria me
ouvido, ainda que tivesse gritado com toda a força. Não tinha nada a dizer. Não havia acabado de me
perder. Ria. Teria gostado de cuspir na cara dos outros.
O AZUL DO CÉU
1

Ao acordar, o pânico tomou-me — a ideia de me ver diante de Lazare. Vesti-me rapidamente


para ir telegrafar a Xénie para vir encontrar-me em Barcelona. Por que eu havia deixado Paris sem
ter dormido com ela? Eu a suportara, bastante mal, todo o tempo em que estava doente, contudo, uma
mulher que a gente ama pouco é mais suportável se se faz amor com ela. Estava farto de fazer amor
com prostitutas.

Vergonhosamente, eu tinha medo de Lazare. Como se tivesse contas a prestar-lhe. Lembrava-me


do sentimento absurdo que havia experimentado no Criolla. Sentia tanto medo à ideia de encontrá-la
que já não tinha ódio por ela. Levantei-me e me vesti apressadamente para telegrafar. No meu
desespero, havia sido feliz durante quase um mês. Saía de um pesadelo, agora o pesadelo me
recapturava.

Expliquei a Xénie, no telegrama, que até ali eu não tinha tido endereço estável. Desejava que
viesse a Barcelona o mais depressa possível.

Eu tinha um encontro com Michel. Ele parecia preocupado. Levei-o para almoçar em um
pequeno restaurante do Parallelo, mas ele comeu pouco, bebeu menos ainda. Eu lhe disse que não lia
os jornais. Respondeu-me, não sem ironia, que a greve geral estava prevista para o dia seguinte.
Seria melhor que eu fosse para Calella, onde tinha amigos. Ao contrário, eu fazia questão de ficar em
Barcelona onde assistiria aos distúrbios, se houvesse. Não queria misturar-me a eles, mas dispunha
de um carro que um dos meus amigos, que naquele momento estava em Calella, havia me emprestado
por uma semana. Se ele precisasse de um carro, eu podia dirigi-lo. Ele estourou de rir, com franca
hostilidade. Estava certo de pertencer a um outro lado: não tinha dinheiro, estava pronto a tudo para
ajudar a revolução. Pensei: em uma rebelião, ele estará, como habitualmente, na lua, se deixará matar
estupidamente. Todo o caso me desagradava: em certo sentido, a revolução fazia parte do pesadelo
de que acreditara sair. Não me lembrava sem um sentimento de constrangimento da noite passada no
Criolla. Michel também. Aquela noite, suponho, o preocupava, o preocupava e oprimia. Ele
encontrou um tom indefinível, — provocante, angustiado — para me dizer afinal que Lazare havia
chegado na véspera.
Diante de Michel e, sobretudo, diante dos seus sorrisos — ainda que a notícia tenha me
desconcertado por sua brusquidão — eu estava aparentemente indiferente. Nada podia fazer, disse-
lhe, com que eu fosse um trabalhador da região e não um rico francês na Catalunha por prazer. Mas
um carro podia ser útil em certos casos, mesmo em circunstâncias arriscadas (perguntei-me
imediata-mente: poderia me arrepender dessa proposta: não podia deixar de ver que, dessa maneira,
eu havia me lançado nas garras de Lazare; Lazare havia esquecido seus desacordos com Michel, não
teria o mesmo desprezo por um instrumento útil, e não havia nada que, mais que Lazare, pudesse me
fazer tremer).

Deixei Michel exasperado. Não podia negar para mim mesmo que tinha má consciência em
relação aos trabalhadores. Era insignificante, insustentável, mas eu estava tanto mais deprimido
quanto minha má consciência em relação a Lazare era da mesma ordem. Em um momento como
aquele, eu o via, minha vida não era justificável. Envergonhava-me dela. Decidi passar o fim do dia
e a noite em Calella. Já não tinha vontade naquela noite de vagar pelos bairros baixos. Entretanto, era
incapaz de ficar no meu quarto no hotel.

Depois de uns vinte quilômetros na direção de Calella (mais ou menos a metade do caminho),
mudei de opinião. No hotel eu podia ter uma resposta telegráfica de Xénie.

Voltei a Barcelona. Estava mal impressionado. Se as desordens começassem, Xénie não poderia
mais vir ao meu encontro. Ainda não havia resposta: enviei um novo telegrama pedindo a Xénie para
partir naquela noite mesmo, a menos que fosse impossível. Já não duvidava que, se Michel utilizasse
meu carro, teria todas as probabilidades de me encontrar diante de Lazare. Detestei a curiosidade
que me incitava a participar, de muito longe, da guerra civil. Em matéria de ser humano,
decididamente, eu era injustificável; sobretudo, agitava-me inutilmente. Eram apenas cinco horas e o
sol estava muito quente. No meio da rua, eu gostaria de falar com os outros; estava perdido no meio
de uma multidão cega. Não me sentia nem menos estúpido, nem menos impotente que uma criança
pequena. Voltei ao hotel; continuava não tendo resposta aos meus telegramas. Decididamente,
gostaria de me misturar aos passantes e falar mas, na véspera da insurreição, era impossível.
Gostaria de saber se a agitação havia começado nos bairros operários. O aspecto da cidade não era
normal, mas eu não conseguia levar as coisas a sério. Não sabia o que fazer e mudei de opinião duas
ou três vezes. Decidi finalmente voltar ao hotel e me estender na cama: havia alguma coisa de muito
tenso, de excitado e, no entanto, de deprimido em toda a cidade. Passei pela praça de Catalunha. Eu
ia depressa demais: um homem, provavelmente bêbado, se pôs de repente na frente do meu carro.
Dei uma freada violenta e pude evitá-lo, mas havia abalado meus nervos. Suava em grandes gotas.
Um pouco mais adiante, na Rambla, acreditei reconhecer Lazare em companhia do sr. Melou vestido
com uma jaqueta cinza e usando uma palheta. A apreensão me deixava doente (soube mais tarde com
certeza, o sr. Melou não tinha vindo a Barcelona).

No hotel, dispensando o elevador, subi a escada. Joguei-me na cama. Ouvi o barulho do meu
coração debaixo dos meus ossos. Senti o batimento das veias, penoso, nas têmporas. Por longo
tempo, perdi-me no tremor da espera. Passei água no rosto. Tinha muita sede. Telefonei para o hotel
onde Michel havia ficado. Ele não estava lá. Então pedi Paris. Não havia ninguém no apartamento de
Xénie. Consultei um guia e calculei que ela já podia estar na estação. Tentei ligar para o meu
apartamento onde, na ausência de minha mulher, minha sogra continuava a morar provisoriamente.
Pensei que minha mulher podia ter voltado. Minha sogra respondeu: Édith tinha ficado na Inglaterra
com as duas crianças. Perguntou-me se havia recebido uma carta expressa que ela havia posto num
envelope, poucos dias antes: ela a mandara por via aérea. Lembrei-me de ter esquecido no bolso uma
carta dela que, tendo reconhecido a letra, não abrira. Afirmei que sim e desliguei, irritado por ter
ouvido uma voz hostil.

O envelope, amarrotado no meu bolso, estava velho de vários dias. Depois de abri-lo, reconheci
a letra de Dirty na carta expressa. Eu ainda duvidava e rasguei febrilmente a faixa externa. Fazia um
calor horrível no quarto: era como se nunca devesse chegar a rasgar até o fim e sentia o suor escorrer
pelo meu rosto. Vi esta frase que me horrorizou: “Arrasto-me aos seus pés” (a carta começava assim,
muito estranhamente). O que ela queria que eu a perdoasse era não ter tido coragem para se matar.
Tinha vindo a Paris para me rever. Esperava que telefonasse para o seu hotel. Senti-me muito
miserável: havia tirado o fone do gancho novamente e por um instante me perguntei se chegaria a
encontrar as palavras. Consegui pedir o hotel em Paris. A espera me matou. Olhei a carta: estava
datada de 30 de setembro e estávamos em 4 de outubro. Desesperado, solucei. Depois de um quarto
de hora, o hotel respondeu que a Srta. Dorothea S... tinha saído (Dirty era apenas a abreviatura,
provocante, de Dorothea): dei as indicações necessárias. Ela podia me telefonar quando voltasse.
Desliguei: era mais do que minha cabeça podia suportar.

Eu tinha a obsessão do vazio. Eram nove horas. Em princípio, Xénie estava no trem de
Barcelona e se aproximava de mim rapidamente: imaginei a velocidade do trem brilhando de luzes
na noite aproximando-se de mim com um barulho terrível. Acreditei ter visto passar um rato, talvez
uma barata, alguma coisa escura, no assoalho do quarto, entre as minhas pernas. Era sem dúvida uma
ilusão causada pelo cansaço. Estava com uma espécie de vertigem. Estava paralisado, não podendo
me mover do hotel na espera do telefonema: não podia evitar nada; a menor-iniciativa me era
retirada. Desci para jantar no salão do hotel. Levantava-me a cada vez que ouvia o telefone. Temia
que, por engano, a telefonista chamasse o meu quarto. Pedi o guia e mandei buscar jornais. Queria os
horários dos trens que vão de Barcelona a Paris. Tinha medo de que uma greve geral me impedisse
de ir a Paris. Quis ler os jornais de Barcelona, é lia mas não entendia o que lia. Pensei que, em caso
de necessidade, iria até a fronteira com o carro.

Fui chamado ao final do jantar: estava calmo, mas suponho que se alguém tivesse dado um tiro
de revólver perto de mim, mal o teria ouvido. Era Michel. Pedia-me para ir encontrá-lo. Disse-lhe
que, no momento, não podia por causa do telefonema que esperava mas que, se ele não pudesse
passar no meu hotel, eu o encontraria ao longo da noite. Michel me deu o endereço onde encontrá-lo.
Queria absolutamente me ver. Falava como alguém que foi encarregado de dar ordens e que treme à
ideia de esquecer alguma coisa. Desligou. Dei uma gorjeta á telefonista da rede interna e voltei para
o quarto onde me estendi. Fazia um calor penoso naquele quarto. Bebi um copo d’água pego no
banheiro: a água estava morna. Tirei o paletó e a camisa. Vi meu tronco nu no espelho. Bateram para
me entregar um telegrama de Xénie: como havia imaginado, chegaria no dia seguinte pelo expresso
do meio-dia. Escovei os dentes. Esfreguei o corpo com uma toalha molhada. Não ousava ir ao
banheiro de medo de perder a chamada do telefone. Quis enganar a espera contando até quinhentos.
Não fui até o fim. Pensei que nada valia se pôr em tal estado de angústia. Não era um contra-senso
gritante? Depois da espera em Viena, não tinha conhecido nada de mais cruel. Às dez e meia, o
telefone tocou: eu estava em comunicação com o hotel onde Dirty estava hospedada. Pedi para falar
com ela pessoalmente. Não podia compreender que ela mandasse um outro falar comigo. A
comunicação estava ruim, mas consegui ficar calmo e falar claramente. Como se eu fosse o único a
ser calmo nesse pesadelo. Ela própria não tinha podido telefonar porque, no momento em que
voltara, tinha imediatamente decidido partir. Havia tido apenas o tempo de pegar o último trem para
Marselha: iria de avião de Marselha até Barcelona, onde chegaria às duas da tarde. Não tinha tido o
tempo material, não tinha podido ela mesma prevenir-me. Nem por um minuto eu havia pensado rever
Dirty no dia seguinte, não havia pensado que ela podia pegar o avião em Marselha. Não estava feliz
mas quase embotado, sentado na cama. Quis me lembrar do rosto de Dirty, da expressão turva do seu
rosto. A lembrança que tinha me escapava. Pensei que ela se parecia com Lotte Lenia mas, por sua
vez, a lembrança de Lotte Lenia me escapava. Lembrei apenas de Lotte Lenia em Mahagonny\ usava
um tailleur preto de ar masculino, uma saia muito curta, um largo palheta, meias enroladas acima do
joelho. Era alta e magra, parecia-me também que era ruiva. De qualquer maneira, era fascinante. Mas
a expressão do rosto me havia escapado. Sentado na cama, estava vestido com uma calça branca, os
pés e o tronco nus. Procurei me lembrar da canção de bordel da Ópera dos seis vinténs. Não pude
relembrar as palavras alemãs, mas apenas as francesas. Tinha a lembrança, errada, de Lotte Lenia
cantando-a. Essa lembrança vaga me dilacerava. Levantei-me descalço e cantei muito baixo mas
pungente:

Le navire de haut bord

Cent canons au bâbord

BOM-BAR-DE-RA le port...

O navio de alto bordo

Cem canhões a bombordo

BOM-BAR-DEA-RÁ o porto...

Pensei: amanhã haverá revolução em Barcelona... Ainda que sentisse muito calor, estava
transido...

Fui até a janela aberta. Havia gente na rua. Sentia-se que o dia tinha sido ardente de sol. Havia
mais frescor lá fora que no quarto. Precisava sair. Vesti uma camisa, um paletó, pus os sapatos o
mais. depressa possível e desci para a rua.
2

Entrei em um bar muito iluminado onde bebi muito rapidamente uma xícara de café: estava muito
quente, queimei a boca. Evidentemente, estava errado em tomar café. Fui pegar meu carro para ir
onde Michel havia me pedido para encontrá-lo. Toquei a buzina: o próprio Michel viria abrir a porta
do prédio.

Michel me fez esperar. Ele me fez esperar um tempo sem fim. Finalmente esperei que não
viesse. Desde o instante em que meu carro parou na frente do prédio indicado, tivera a certeza de me
encontrar diante de Lazare. Pensei: ainda que Michel me deteste, sabe que farei como ele, que
esquecerei os sentimentos que Lazare me inspira, por menos que as circunstâncias o exijam. Ele tinha
tanto mais razão de pensar assim quanto, no fundo, eu estava obcecado por Lazare; na minha
estupidez, tinha vontade de revê-la; experimentei então uma invencível necessidade de abarcar minha
vida inteira em um mesmo tempo: toda a extravagância da minha vida.

Mas as coisas se apresentavam mal. Eu ficaria reduzido a me sentar em um canto sem dizer uma
palavra: sem dúvida, em um cômodo cheio de gente, na situação de um acusado, que deve
comparecer mas que, por piedade, é esquecido. Com certeza, não teria a ocasião de exprimir meus
sentimentos a Lazare, ela pensaria então que eu me arrependia; que meus insultos deviam ser por
conta da doença. Pensei ainda de súbito: o mundo seria mais suportável para Lazare se uma desgraça
me acontecesse; deve sentir em mim o crime que exige uma reparação... Ela tenderá a me colocar em
uma história suspeita; mesmo tendo consciência disso, poderá dizer a si mesma que mais vale expor
uma vida tão decepcionante como a minha, de preferência á de um trabalhador. Eu me imaginei
morto, Dirty sendo informada de minha morte no hotel. Estava ao volante do carro e pus o pé no
acelerador. Mas não ousei apertar. Ao contrário, até toquei a buzina várias vezes, contentando-me em
esperar que Michel não viesse. No ponto em que estava, devia ir até o fim de cada coisa que a sorte
me propunha. Imaginava a contragosto, com uma espécie de admiração, a tranquilidade e a audácia
incontestável de Lazare. Eu já não levava o caso a sério. Não tinha sentido aos meus olhos: Lazare se
cercava de pessoas como Michel, incapazes de mirar, atirando como se boceja. E, no entanto, ela
tinha o espírito de decisão e a firmeza de um homem á testa de um movimento. Ria ao pensar: bem ao
contrário, eu só soube perder a cabeça. Lembrava-me do que havia lido sobre os terroristas. Há
algumas semanas, minha vida havia me afastado de preocupações comparáveis às dos terroristas. O
pior, evidentemente, seria chegar ao momento em que já não agiria segundo as minhas paixões, mas
segundo as de Lazare.

No carro, esperando Michel, eu aderia ao volante — como um animal preso na armadilha. A


ideia de que eu pertencia a Lazare, de que ela me possuía, surpreendia-me... Eu me lembrava: como
Lazare, tinha sido sujo quando era criança. Era uma lembrança penosa. De deprimente lembrava-me
particularmente disto. Tinha sido interno em um colégio. Passava as horas de estudos a me entediar,
ficava lá, quase imóvel, muitas vezes com a boca aberta. Uma noite, â luz do gás, tinha levantado
minha carteira diante de mim. Ninguém podia me ver. Tinha pego minha caneta e, segurando-a na
mão direita fechada, como uma faca, eu me dava grandes golpes de pena de aço nas costas da mão
esquerda e no antebraço. Para ver... Para ver, e ainda: Queria me enrijecer contra a dor. Eu me
fizera certo número de ferimentos sujos, menos vermelhos que enegrecidos (por causa da tinta).
Aqueles pequenos ferimentos tinham a forma de um crescente que, em corte, tinha a forma da pena.

Desci do carro e, assim, vi o céu estrelado acima da minha cabeça. Depois de vinte anos, o
menino que se feria a golpes de caneta esperava, em pé sob o céu, em uma rua estrangeira, onde
jamais tinha vindo, não sabia o que de impossível. Havia estrelas, um número infinito de estrelas.
Era absurdo, absurdo de gritar, mas de um absurdo hostil. Eu tinha pressa de que o dia, o sol se
levantasse. Pensava que no momento em que as estrelas desaparecessem, eu estaria certamente na
rua. Em princípio, tinha menos medo do céu estrelado que do amanhecer. Precisava esperar, esperar
duas horas... Lembrei-me de ter visto passar, por volta das duas horas da tarde, sob um belo sol, em
Paris — eu estava na ponte do Carrousel — uma caminhonete de açougue: os pescoços sem cabeça
dos carneiros esfolados apareciam sob as lonas e os aventais listrados de azul e branco dos
açougueiros brilhavam de limpeza: a caminhonete ia lentamente, em pleno sol. Quando era criança,
gostava do sol: fechava os olhos e, através das pálpebras, ele era vermelho. O sol era terrível, fazia
pensar em uma explosão: havia algo de mais solar que o sangue vermelho escorrendo na calçada,
como se a luz explodisse e matasse? Naquela noite opaca, eu tinha ficado inebriado de luz; assim,
novamente, Lazare não era diante de mim senão um pássaro de mau agouro, um pássaro sujo e
insignificante. Meus olhos já não se perdiam nas estrelas que brilhavam acima de mim realmente;
mas no azul do céu do meio-dia. Eu os fechava para me perder nesse azul brilhante: grandes insetos
negros surgiam dele como furacões zumbindo. Da mesma maneira que surgiria, no dia seguinte, na
hora brilhante do dia, de início ponto imperceptível, o avião que traria Dorothea... Abri aqueles
olhos, revi as estrelas sobre minha cabeça, mas estava louco pelo sol e tinha vontade de rir: o dia
seguinte, o avião, tão pequeno e tão distante que não atenuaria em nada o brilho do sol, me
apareceria semelhante a um inseto barulhento e, como estaria carregado, na gaiola envidraçada, dos
sonhos desmesurados de Dirty, seria, nos ares, para a minha cabeça de homem minúsculo, em pé no
solo — no momento em que a dor a dilaceraria mais profundamente que de hábito — o que é um
impossível, um adorável “mosquito de banheiro”. Eu rira e não era mais apenas o menino triste dos
golpes de caneta que andava naquela noite ao longo dos muros: tinha rido da mesma maneira quando
era pequeno e estava certo de que um dia, eu, porque uma insolência feliz me dirigia, eu deveria
revirar tudo, com toda necessidade tudo revirar.
3

Já não compreendia como pudera ter medo de Lazare. Se ao final de alguns minutos de espera
Michel não viesse, iria embora. Estava certo de que não viria: esperava por desencargo de
consciência. Não estava longe de ir embora, quando a porta do prédio se abriu. Michel veio até mim.
Para dizer a verdade, tinha o aspecto de um homem que vem do outro mundo. Tinha a cara de um
esgoelado... Disse-lhe que ia embora. Respondeu-me que “lá em cima” a discussão estava tão
desordenada, tão barulhenta, que ninguém se ouvia.

Perguntei-lhe:

— Lazare está lá?

— Naturalmente. Ela é que é a causa de tudo... É inútil você subir. Não aguento mais... Irei
tomar um trago com você.

— Falemos de outra coisa ?...

— Não. Creio que não poderia. Vou lhe dizer...

— É isso. Explique-se.

Eu tinha apenas vagamente o desejo de saber: naquele momento, achava Michel cômico e, com
mais razão, o que se agitava “lá em cima”.

— Trata-se de um ataque de surpresa com uns cinquenta tipos, verdadeiros “pistoleros”, você
sabe... É sério. Lazare quer atacar a prisão.

— Quando isso? Se não for amanhã, eu vou. Levarei armas. Levarei quatro homens no carro.

Michel gritou:

— É ridículo.
— Ah!

Estourei de rir.

— Não convém atacar a prisão. É absurdo.

Michel havia dito isso a altos brados. Tínhamos chegado a uma rua movimentada. Não pude
impedir-me de dizer:

— Não grite tão alto...

Eu o havia embaraçado. Ele parou, olhando em volta. Teve uma expressão de angústia. Michel
era apenas uma criança, um desmiolado.

Eu lhe disse, rindo:

— Não tem importância: você falava francês...

Tranquilizado tão depressa quanto havia tido medo, ele começou a rir também. Mas desde então
não gritou mais; até perdeu o tom desdenhoso que tinha para falar comigo. Estávamos diante de um
café, onde tomamos uma mesa afastada.

Ele se explicou:

— Você vai entender por que não convém atacar a prisão. Isso não tem interesse. Se Lazare quer
um ataque de surpresa à prisão, não é porque isso seja útil, mas por suas ideias. Lazare tem aversão
por tudo que se pareça com guerra, mas como é louca, apesar de tudo é a favor da ação direta e quer
tentar um ataque de surpresa. Quanto a mim, propus atacar um depósito de armas e ela não quer nem
ouvir falar disso porque, segundo ela, é recair na velha confusão da revolução e da guerra! Você não
conhece as pessoas daqui. As pessoas daqui são maravilhosas, mas são malucas: elas a escutam!...

— Você não me disse por que não convém atacar a prisão.

No fundo, estava fascinado pela ideia de uma prisão atacada, e achava bom que os trabalhadores
escutassem Lazare. De repente, o horror que Lazare me inspirava havia amainado. Pensei: ela é
macabra, mas é a única que compreendem: os trabalhadores espanhóis também compreendem a
Revolução...

Michel continuava a explicação, falando só paca si mesmo:

— É evidente: a prisão não serve para nada. O que se precisa em primeiro lugar é encontrar
armas. É preciso armar os trabalhadores. Se o movimento separatista não coloca as armas nas mãos
dos trabalhadores, que sentido tem ele? A prova é que os dirigentes catalães são capazes de perder o
lance porque tremem à ideia de colocar armas nas mãos dos trabalhadores... Está claro. Em primeiro
lugar é preciso atacar um depósito de armas.
Veio-me uma outra ideia: que todos eles deliravam.

Eu voltava a pensar em Dirty: da minha parte, estava morto de cansaço, de novo angustiado.

Perguntei vagamente a Michel:

— Mas que depósito de armas?

Pareceu não ouvir.

Insisti: sobre esse ponto, ele não sabia de nada, a pergunta se impunha, era mesmo embaraçosa,
mas ele não era do lugar.

— Lazare está mais adiantada?

— Sim. Tem uma planta da prisão.

— Quer que falemos de outra coisa?

Michel disse-me que precisava me deixar muito rapidamente.

Permaneceu tranquilo por um momento, sem dizer uma palavra. Depois retomou:

— Acho que isso vai acabar mal. A greve geral está prevista para amanhã cedo, mas cada um
irá para o seu lado e todo mundo se fará matar pelos guardas civis. Acabarei por acreditar que é
Lazare que tem razão.

— Como assim?

— Sim. Os trabalhadores jamais se unirão e se deixarão derrotar.

— O ataque de surpresa à prisão é impossível?

— E eu é que sei? Não sou militar...

Eu estava exasperado. Eram duas horas da manhã. Propus a Michel um encontro em um bar da
Rambla. Ele viria quando as coisas estivessem mais claras e me disse que estaria lá por volta das
cinco horas. Eu quase lhe disse que estava errado opor-se ao projeto contra a prisão, mas estava
farto. Acompanhei Michel até a porta em que o havia esperado e onde tinha deixado o carro. Não
tínhamos mais nada a nos dizer. Eu estava contente pelo menos por não encontrar Lazare.
4

Fui em seguida até a Rambla. Deixei o carro. Entrei no barrio chino. Não estava à procura de
mulheres, mas o barrio chino era o único meio de matar o tempo, à noite, durante três horas. Àquela
hora, podia ouvir cantar os andaluzes, os cantores de canto rondo. Estava fora de mim, exasperado, a
exasperação do canto rondo era a única coisa que podia se harmonizar com a minha febre. Entrei em
um cabaré miserável: no momento em que entrei, uma mulher quase disforme, uma mulher loira, com
cara de buldogue, exibia-se sobre um pequeno tablado. Estava quase nua: um lenço colorido em volta
dos rins não escondia o sexo muito escuro. Cantava e dançava com o ventre. Eu mal tinha sentado,
uma outra mulher, não menos horrenda, veio à minha mesa. Precisei beber um gole com ela. Havia
muita gente ali, mais ou menos o mesmo público do Criolla, mas mais sórdido. Fingi não saber falar
espanhol. Uma única mulher era bonita e jovem. Ela me olhou. Sua curiosidade parecia uma paixão
súbita. Estava cercada de monstros de cabeças e peitos de matrona em xales imundos. Um rapaz
jovem, quase um menino, com uma camiseta de marinheiro, os cabelos ondulados e as faces pintadas
aproximou-se da mulher que me olhava. Ele tinha um aspecto selvagem: fez um gesto obsceno,
estourou de rir, depois foi sentar-se mais adiante. Uma mulher encurvada, muito velha, coberta com
um lenço camponês, entrou com um cesto. Um cantor foi sentar-se no tablado com um guitarrista;
depois de alguns compassos da guitarra, começou a cantar... da maneira mais apagada. Naquele
momento, eu teria tido medo que cantasse, como outros, dilacerando-me com seus gritos. A sala era
grande: numa das extremidades, várias mulheres, sentadas em fila, esperavam os clientes para
dançar: dançariam com os clientes quando os turnos de canto tivessem acabado. Aquelas mulheres
eram mais ou menos jovens, mas feias, usavam vestidos miseráveis. Eram magras, mal nutridas:
algumas cochilavam, outras sorriam como imbecis, outras, subitamente, davam pequenas batidas
precipitadas com o salto no tablado. Lançavam então um olle sem eco. Uma delas, com um vestido de
tecido azul pálido, meio passada, tinha um rosto magro e lívido sob a cabeleira cor de palha:
evidentemente, morreria em alguns meses. Eu tinha necessidade de não mais me ocupar comigo, ao
menos no momento, tinha necessidade de me ocupar com os outros e de saber que cada um, sob seu
próprio crânio, estava vivo. Permaneci sem falar, talvez uma hora, observando todos os meus
semelhantes na sala. Em seguida, fui a um outro cabaré, ao contrário, cheio de animação: um
trabalhador muito jovem, de macacão, girava com uma mulher de vestido de noite. O vestido de noite
deixava á mostra as alças sujas do corpete, mas a mulher era desejável. Outros pares rodopiavam:
logo decidi ir embora. Não teria suportado por mais tempo qualquer excitação.
Voltei pela Rambla, comprei jornais ilustrados e cigarros: não eram nem quatro horas. Sentado
na calçada de um café, virava as páginas de jornal sem ver nada. Esforçava-me em não pensar em
nada. Não conseguia. Uma poeira vazia de sentido agitava-se em mim. Gostaria de me lembrar do
que era realmente Dirty. O que voltava vagamente à memória era em mim alguma coisa de
impossível, de atroz e, sobretudo, de estranho. No instante seguinte, imaginava puerilmente que iria
comer com ela em um restaurante do porto. Comeríamos toda espécie de coisas fortes de que eu
gostava, depois iríamos para o hotel: ela dormiria e eu ficaria perto da cama. Estava tão cansado que
ao mesmo tempo pensava em dormir perto dela numa poltrona, ou mesmo estendido como ela na
cama: desde que tivesse chegado, cairíamos um e outro de sono; seria evidentemente um sono ruim.
Havia também a greve geral: um grande quarto com uma vela e nada para fazer, as ruas desertas,
tumultos. Michel já não demoraria a chegar e eu deveria me livrar dele o mais depressa possível.

Gostaria de não mais ouvir falar de nada. Tinha vontade de dormir. O que pudessem me dizer
então de mais urgente passaria ao lado dos meus ouvidos. Precisava dormir, todo vestido, não
importava onde. Adormeci na minha cadeira várias vezes. O que eu faria quando Xénie chegasse. Um
pouco depois das seis horas, Michel chegou, dizendo-me que Lazare o esperava na Rambla. Não
podia sentar-se. Não haviam chegado a nada: ele tinha um ar tão vago quanto eu. Não tinha mais
vontade que eu de falar, estava sonolento, abatido.

Eu disse imediatamente:

— Vou com você.

O dia amanhecia: o céu estava pálido, já não havia estrelas. Pessoas iam e vinham, mas a
Rambla tinha alguma coisa de irreal: de uma ponta a outra dos plátanos não havia senão um único
canto atordoante de pássaro: nunca tinha ouvido nada tão imprevisto. Avistei Lazare que andava sob
as árvores. Estava de costas para nós.

— Você não quer lhe dar bom-dia? — Michel me perguntou.

Naquele momento, ela se virou e voltou na nossa direção, sempre de roupas pretas. Por um
instante eu me perguntei se ela não era o ser mais humano que jamais tinha visto; era também um rato
imundo que se aproximava de mim. Não convinha fugir e isso era fácil. De fato, eu estava ausente,
estava profundamente ausente. Apenas disse a Michel:

— Vocês dois podem ir embora.

Michel pareceu não compreender. Apertei-lhe a mão, acrescentando, sabia onde um e outro
moravam:

— Peguem a terceira rua à direita. Telefone-me amanhã à noite, se puder.

Como se Lazare e Michel, ao mesmo tempo, tivessem perdido até uma sombra de existência. Eu
já não tinha uma verdadeira realidade.

Lazare me olhou. Estava tão natural quanto possível. Olhei-a e fiz um gesto de mão para Michel.

Eles se foram.

De minha parte, dirigi-me para o hotel. Eram mais ou menos seis e meia. Não fechei as
persianas. Adormeci imediatamente, mas de um sono mau. Tinha a impressão de que era dia. Sonhei
que estava na Rússia: visitava, como turista, uma ou outra das capitais, mais provavelmente
Leningrado. Passeava no interior de uma imensa construção de ferro e vidro, que parecia a velha
Galerie des Machines. Mal amanhecia e as vidraças empoeiradas deixavam passar uma luz suja. O
espaço vazio era mais vasto e mais solene que o de uma catedral. O chão era de terra batida. Eu
estava deprimido, absolutamente só. Penetrei por uma nave lateral numa série de pequenas salas
onde eram conservadas as lembranças da Revolução; aquelas salas não formavam um verdadeiro
museu, mas os episódios decisivos da Revolução tinham acontecido ali. Haviam sido primitivamente
consagrados à vida nobre e marcada pela solenidade da corte do czar. Ao longo da guerra, membros
da família imperial tinham confiado a um pintor francês a tarefa de representar nas paredes uma
“biografia” da França: este havia narrado, no estilo austero e pomposo de Lebrun, cenas históricas
vividas pelo rei Luís XIV; no alto de uma das paredes, uma França drapejada elevava-se, portadora
de um grande tocheiro. Parecia saída de uma nuvem ou de um fragmento, ela mesma já quase
apagada, pois o trabalho do pintor, vagamente esboçado em certos trechos, tinha sido interrompido
pela rebelião: assim, aquelas paredes pareciam uma múmia pompeiana, surpreendida por uma chuva
de cinzas em plena vida, mas mais morta que qualquer outra. Só o bater de pés e os gritos dos
amotinados estavam suspensos naquela sala, onde a respiração era penosa, próxima, a tal ponto a
brusquidão terrificante da Revolução era sensível ali, de um espasmo ou de um soluço.

A sala vizinha era mais sufocante. Nas suas paredes já não havia traço do antigo regime. O teto
estava sujo, o estuque nu, mas a passagem da Revolução estava marcada por inúmeras inscrições a
carvão redigidas pelos marinheiros ou pelos operários que, comendo e dormindo naquela sala,
tinham feito questão de relatar na sua linguagem grosseira ou através de imagens, mais grosseiras
ainda, o acontecimento que havia revirado a ordem do mundo, e que seus olhos esgotados haviam
acompanhado. Eu nunca vira nada de mais exasperante, nada de mais humano também. Permanecia
ali, olhando as letras grosseiras e desajeitadas: as lágrimas me vinham aos olhos. A paixão
revolucionária subia-me lentamente à cabeça, exprimia-se ora pela palavra “fulguração”, ora pela
palavra “terror”. O nome de Lenin voltava muitas vezes naquelas inscrições traçadas em preto e, no
entanto, semelhantes a traços de sangue: estranhamente alterado, esse nome tinha uma forma feminina:
Lenova!.

Saí daquela salinha. Entrei na grande nave envidraçada, sabendo que, de um momento para o
outro, ela ia explodir: as autoridades soviéticas tinham decidido deitá-la abaixo. Não pude
reencontrar a porta e estava inquieto por minha vida, estava só. Depois de um tempo de angústia, vi
uma aberta acessível, uma espécie de janela disposta no meio das vidraças. Eu me ergui e só com
grande esforço consegui deslizar para fora.

Estava em uma paisagem desolada de fábricas, de pontes de estradas de ferro e de terrenos


baldios. Esperava a explosão que iria abalar de um só golpe, de um lado a outro, o imenso edifício
deteriorado de onde saíra. Afastei-me. Fui na direção de uma ponte. Nesse momento, um tira me
perseguiu ao mesmo tempo que um bando de crianças esfarrapadas: o tira estava aparentemente
encarregado de afastar as pessoas do lugar da explosão. Correndo, gritei para as crianças a dire-ção
na qual era preciso correr. Chegamos juntos sob uma ponte. Nesse momento, disse em russo às
crianças: “Zdies, mojno...”. “Aqui, podemos ficar.” As crianças não respondiam: estavam excitadas.
Olhávamos juntos o edifício: tornou-se visível que ele explodia (mas não ouvimos nenhum barulho: a
explosão desprendia uma fumaça escura, que não se desenrolava em volutas, mas se elevava direto
para as nuvens, semelhante a cabelos cortados à escovinha, sem o menor clarão, tudo era
irremediavelmente sombrio e poeirento...). Um tumulto sufocante, sem glória, sem grandeza, que se
perdia em vão, ao cair de uma noite de inverno. Aquela noite nem mesmo era gelada ou nevada.

Acordei.

Estava deitado, embrutecido, como se aquele sonho me tivesse esvaziado. Olhei vagamente o
teto e, pela janela, um pedaço de céu brilhante. Tinha uma sensação de fuga, como se tivesse passado
a noite em estrada de ferro, em um compartimento abarrotado.

Pouco a pouco, o que acontecia me voltou à memória. Saltei para fora da cama. Vesti-me sem
me lavar e desci para a rua. Eram oito horas.

O dia começava com encantamento. Senti o frescor da manhã, em pleno sol. Mas estava com a
boca ruim, não aguentava mais. Não tinha nenhuma preocupação com resposta, mas me perguntava
por que essa onda de sol, essa onda de ar e essa onda de vida me haviam lançado na Rambla. Eu era
estranho a tudo e, definitivamente, estava murcho. Pensei nas bolhas de sangue que se formam na
saída do orifício aberto por um açougueiro na garganta de um porco. Tinha uma preocupação
imediata: engolir aquilo que pusesse fim ao meu enjôo físico, em seguida me barbear, me lavar, me
pentear, enfim descer para a rua, beber vinho gelado e andar por ruas ensolaradas. Tomei um gole de
café com leite. Não tive coragem de voltar. Fiz a barba no barbeiro. Mais uma vez, fingi ignorar o
espanhol. Expressei-me por sinais. Saindo das mãos do barbeiro, retomei o gosto pela existência.
Voltei ao hotel para escovar os dentes o mais depressa possível. Queria tomar banho em Badalona.
Peguei o carro: cheguei em Badalona por volta das nove horas. A praia estava deserta. Tirei a roupa
no carro e não me estendi na areia: entrei correndo no mar. Parei de nadar e olhei o céu azul. Na
direção do nordeste: do lado onde o avião de Dorothea apareceria. Em pé, estava com água até o
estômago. Via minhas pernas amareladas na água, os dois pés na areia, o tronco, os braços e a
cabeça acima da água. Tinha a curiosidade irônica de me ver, de ver o que era, na superfície da terra
(ou do mar), aquele personagem quase nu, esperando que depois de algumas horas o avião saísse do
fundo do céu. Recomecei a nadar. O céu estava imenso, estava puro, e eu teria desejado rir na água.
5

Deitado de bruços, no meio da praia, finalmente me perguntei o que iria fazer com Xénie, que
chegaria primeiro. Pensei: preciso me vestir de novo bem depressa, sem demora, precisarei correr
para a estação e esperá-la. Desde a véspera, não havia esquecido o insolúvel problema que a
chegada de Xénie me colocava, mas cada vez que pensava nisso adiava a solução para mais tarde.
Talvez não pudesse me decidir antes de estar com ela. Já não gostaria de tratá-la brutalmente. Por
vezes eu havia me comportado como um bruto com ela. Não tinha remorso por isso, mas não podia
suportar a ideia de ir mais longe. Depois de um mês, eu havia saído do pior. Teria podido acreditar
que, desde a véspera, o pesadelo recomeçava, porém me parecia que não, que era outra coisa, e até
que eu iria viver. Agora sorria á ideia dos cadáveres, de Lazare... de tudo o que me havia acossado.
Virei- me no mar e, de costas, precisei fechar os olhos: tive por um instante a sensação de que o
corpo de Dirty se confundia com a luz, sobretudo com o calor: entesei-me como um bastão. Tinha
vontade de cantar. Mas nada me parecia sólido. Sentia-me tão fraco quanto um vagido, como se
minha vida, deixando de ser infeliz, fosse na sua infância uma coisa insignificante.

A única coisa a fazer com Xénie era ir buscá-la na estação e conduzi-la ao hotel. Mas não podia
almoçar com ela. Não encontrava uma explicação para lhe dar. Pensei em telefonar a Michel para lhe
pedir que almoçasse com ela. Lembrei-me de que ás vezes eles se encontravam em Paris. Por mais
louco que isso fosse, era a única solução possível. Vesti -me novamente. Telefonei de Badalona.
Duvidava da aceitação de Michel. Mas ele estava do outro lado da linha, aceitou. Conversou comigo.
Estava completamente desencorajado. Falava com a voz de um homem abatido. Perguntei-lhe se
estava ressentido por tê-lo tratado bruscamente. Não estava ressentido comigo. No momento em que
o deixara, estava tão cansado que não tinha pensado em nada. Lazare não comentou nada com ele.
Até lhe pediu notícias minhas. Achei a atitude de Michel inconsequente: um militante sério iria,
naquele dia, almoçar em um hotel elegante com uma mulher rica! Eu queria imaginar logicamente o
que tinha acontecido no final da noite: imaginei que Lazare e Michel, ao mesmo tempo, tinham sido
liquidados por seus próprios amigos, em parte como franceses estrangeiros na Catalunha, em parte
como intelectuais estranhos aos trabalhadores. Soube mais tarde que sua afeição e seu respeito por
Lazare os colocaram de acordo com um dos catalães, que propôs afastá-la como estrangeira
ignorante das condições da luta operária em Barcelona. Precisavam ao mesmo tempo afastar Michel.
No final, os anarquistas catalães que mantinham relações com Lazare permaneceram entre eles, mas
sem resultados: renunciaram a qualquer iniciativa comum e limitaram-se, no dia seguinte, a dar tiros
isoladamente sobre os telhados. Por mim, queria apenas uma coisa: que Michel almoçasse com
Xénie. Esperava, além disso, que se entendessem para passar a noite juntos, mas para começar
bastava que Michel estivesse no hall do hotel antes de uma hora, como havíamos combinado pelo
telefone.

Depois, eu me lembrei: Xénie, sempre que tinha a oportunidade, tomava públicas as suas
opiniões comunistas. Eu lhe diria que a fizera vir para que assistisse ás arruaças de Barcelona: ela
podia excitar-se à ideia de que a tivesse julgado digna de tomar parte nelas. Falaria com Michel. Por
pouco conveniente que fosse, eu estava satisfeito com essa solução, não pensei mais nisso.

O tempo passou muito depressa. Voltei a Barcelona: a cidade já tinha um aspecto desusado, as
mesas de calçada dos cafés recolhidas, as portas de ferro das lojas meio abaixadas. Ouvi um tiro: um
grevista havia atirado nos vidros de um bonde. Havia uma animação esquisita, fugaz por vezes e por
vezes pesada. A circulação de veículos era quase nula. Havia forças armadas um pouco em toda
parte. Compreendi que o carro estava exposto às pedras e aos tiros. Estava aborrecido por não estar
do mesmo lado que os grevistas, mas quase não pensava nisso. O aspecto da cidade, subitamente em
trabalho de insurreição, era angustiante.

Desisti de voltar ao hotel. Fui diretamente á estação. Ainda não havia nenhuma mudança prevista
nos horários. Avistei a porta de um estacionamento: estava entreaberta; deixei o carro ali. Eram
apenas onze e meia. Eu tinha mais de meia hora para matar antes da chegada do trem. Encontrei um
café aberto: pedi uma garrafa de vinho branco, mas não sentia prazer em beber. Pensava no sonho de
revolução que tinha tido naquela noite: eu era mais inteligente — ou mais humano — quando dormia.
Peguei um jornal catalão, mas entendia mal o catalão. O clima do café era agradável e
decepcionante. Raros fregueses: dois ou três também liam jornais. Apesar de tudo, eu tinha sido
atingido pelo mau aspecto das ruas centrais no momento em que tinha ouvido um tiro. Compreendia
que, em Barcelona, eu estava fora das coisas, enquanto em Paris estava no meio delas. Em Paris,
falava com todos que estavam perto de mim durante uma rebelião.

O trem estava atrasado. Eu estava reduzido a ir e vir na estação: a estação se parecia com a
“Galerie des Machines” por onde tinha vagado no meu sonho. A chegada de Xénie mal me
impacientava, mas se o trem tivesse um grande atraso, Michel podia impacientar-se no hotel. Dirty,
por sua vez, estaria ali em duas horas, falaria com ela, ela falaria comigo, eu a tomaria nos braços:
essas possibilidades, contudo, não eram inteligíveis. O trem de Port-Bou entrou na estação: poucos
instantes depois estava diante de Xénie. Ela ainda não havia me notado. Eu a olhava; ela se ocupava
das suas valises. Pareceu-me pequena. Tinha jogado um casaco sobre os ombros e quando quis
segurar na mão uma pequena valise e a sua bolsa, o casaco caiu. No movimento que fez para recolher
o casaco, notou-me. Eu estava na plataforma; ria dela. Ficou vermelha, vendo-me rir, ela mesma riu
muito. Peguei a pequena valise e o casaco que me passou pela janela do vagão. Por mais que risse:
estava diante de mim como uma intrusa, estranha a mim. Perguntava-me — tinha medo disso — se a
mesma coisa não ia acontecer com Dirty. A própria Dirty ia me parecer distante: Dirty era mesmo
impenetrável para mim. Xénie sorria com inquietação — experimentava um mal-estar, que se
acentuou quando veio encolher-se nos meus braços. Beijei-a nos cabelos e na testa. Pensei que se
não estivesse esperando Dirty, teria sido feliz naquele momento.

Estava resolvido a não lhe dizer de início que as coisas entre nós seriam diferentes do que
pensava. Viu meu ar preocupado. Ela era comovente: não dizia nada, simplesmente me olhava, tinha
os olhos de alguém que, não sabendo nada, está roído de curiosidade. Perguntei-lhe se tinha ouvido
falar dos acontecimentos em Barcelona. Ela havia lido alguma coisa nos jornais franceses mas só
tinha uma vaga ideia.

Eu lhe disse suavemente:

— Eles começaram a greve geral esta manhã e é provável que aconteça alguma coisa amanhã...
Você vem justamente para os tumultos.

Perguntou-me:

— Você não está aborrecido?

Creio que a olhei com ar alheado. Ela gorjeava como um pássaro, perguntou ainda:

— Vai haver uma revolução comunista aqui?

— Nós vamos almoçar com Michel T... Você poderá falar de comunismo com ele, se quiser.

— Gostaria que houvesse uma verdadeira revolução... Vamos almoçar com Michel T...? Estou
cansada, você sabe.

— É preciso almoçar primeiro... Dormirá depois. Por enquanto, fique aqui: os táxis estão em
greve. Vou voltar com um carro.

Deixei-a plantada lá.

Era uma história complicada — uma história aberrante. Eu tinha aversão pelo papel que estava
condenado a representar com ela. De novo, era obrigado a agir com ela como havia feito no meu
quarto de doente. Eu me dava conta, havia tentado escapar da minha vida indo para a Espanha, mas
havia tentado inutilmente. Aquilo de que fugia havia me perseguido, me alcançado e novamente
exigia que me portasse como louco. Não queria mais, a qualquer preço, me portar assim. Apesar
disso, quando Dirty tivesse chegado, não havia nada que não devesse tomar o rumo do pior. Andei
bastante depressa, ao sol, na direção do estacionamento. Fazia calor. Enxuguei o rosto. Invejava as
pessoas que têm um Deus em que se agarrar, enquanto eu... logo não teria mais “que os olhos para
chorar”. Alguém me encarou. Estava com a cabeça baixa. Levantei a cabeça: era um mendigo, tinha
uns trinta anos, um lenço na cabeça amarrado sob o queixo e grandes óculos amarelos de motociclista
no rosto. Encarou-me longamente com seus grandes olhos. Tinha um aspecto insolente, ao sol, um
aspecto solar. Pensei: “Talvez seja Michel, disfarçado!”. Isso era de uma estupidez infantil. Jamais
aquele estranho mendigo havia me conhecido.

Ultrapassei-o, voltei-me imediatamente. Encarou-me cada vez mais. Eu me esforçava para


imaginar sua vida. Aquela vida tinha alguma coisa de incontestável. Eu próprio podia tornar-me um
mendigo. Ele, em todo caso, o era, era para valer, e não era nenhuma outra coisa: esse era o destino
que agarrara. O que havia agarrado, eu, era mais alegre. Voltando do estacionamento, passei pelo
mesmo caminho. Ele ainda estava lá. Mais uma vez, encarou-me. Passei lentamente. Tive dificuldade
em me afastar. Gostaria de ter aquele aspecto atroz, aquele aspecto solar como ele, em lugar de
parecer uma criança que nunca sabe o que quer. Então pensei que teria podido viver feliz com Xénie.

Ela se mantinha em pé na entrada da estação, as valises no chão. Não viu meu carro chegar: o
céu estava de um azul vivo, mas tudo se passava como se a tempestade fosse estourar. Entre suas
valises, a cabeça baixa e desfeita, Xénie dava a impressão de que o chão lhe fugia. Eu pensava: no
dia, terei minha vez, no final o chão fugirá sob os meus pés, como dos seus. Chegando diante dela,
olhei-a sem sorrir, com uma expressão desesperada. Teve um sobressalto ao me ver: naquele
momento, seu rosto exprimiu sua aflição. Dominou-se ao se dirigir para o carro. Fui pegar as valises:
havia também um maço de jornais ilustrados e L’Humanité. Xénie tinha vindo a Barcelona de vagão-
leito, mas lia L ’Humanité!

Tudo se passou rapidamente: chegamos ao hotel pouco depois sem ter conversado. Xénie olhava
as ruas da cidade que via pela primeira vez. Disse-me que à primeira vista Barcelona parecia-lhe
uma cidade bonita. Mostrei-lhe grevistas e guardas de assalto aglomerados diante de um edifício.

Ela logo me disse:

— Mas isso é horrível.

Michel estava no hall do hotel. Sua solicitude tinha a falta de jeito habitual. Visivelmente, tinha
interesse por Xénie. Animara-se ao avistá-la. Mal ouviu o que ele dizia, ela subiu para o quarto que
eu tinha mandado preparar.

Expliquei a Michel:

— Agora, preciso ir embora... Você pode dizer a Xénie que deixo Barcelona de carro até esta
noite, mas sem precisar a hora?

Michel disse que eu estava com mau aspecto. Ele próprio estava com um ar aborrecido. Deixei
um bilhete para Xénie: estava enlouquecido, dizia-lhe, pelo que me acontecia, tinha todas as culpas
em relação a ela, agora quisera me comportar de outro modo, era impossível desde a véspera: como
teria eu podido prever o que me acontecia?

Insisti, conversando com Michel: eu não tinha razão pessoal para me preocupar com Xénie, mas
ela estava muito infeliz; à ideia de deixá-la sozinha, tinha um sentimento de culpa.
Apressei-me, doente à ideia de que pudessem ter sabotado o carro. Ninguém havia tocado nele.
Quinze minutos depois, cheguei ao campo de aviação. Estava uma hora adiantado.
6

Estava no estado de um cão puxando a coleira. Não via nada. Encerrado no tempo, no instante,
na pulsação do sangue, sofria da mesma maneira que um homem que se acaba de atar para matá-lo,
que procurar partir a corda. Não esperava mais nada de feliz, daquilo que esperava já não podia
saber mais nada, a existência de Dorothea era violenta demais. Poucos instantes antes da chegada do
avião, toda esperança afastada, fiquei calmo. Esperava Dirty, esperava Dorothea da mesma maneira
como se espera a morte. O agonizante, subitamente, sabe: tudo está acabado. Contudo, o que vai
acontecer um pouco mais tarde é a única coisa no mundo que importa! Eu tinha ficado calmo, mas o
avião, voando baixo, chegou bruscamente. Precipitei-me: de início não vi Dorothea. Estava atrás de
um velho alto. Não estava certo, de inicio, de que fosse ela. Aproximei-me: tinha o rosto magro de
uma doente. Estava sem forças, foi preciso ajudá-la a descer. Ela me via, mas não olhava, deixando-
se amparar sem se mexer, a cabeça baixa.

Disse:

— Um instante...

Eu lhe disse:

— Levarei você nos braços.

Não respondeu, deixou-se levar e eu a carreguei. Sua magreza era esquelética. Sofria
visivelmente. Estava inerte nos meus braços, não menos indiferente do que estaria se levada por um
carregador. Instalei-a no carro. Sentada no carro, ela me olhou. Deu um sorriso irônico, cáustico, um
sorriso hostil. O que tinha em comum com aquela que eu havia conhecido, três meses antes, bebendo
como se jamais devesse saciar-se. Suas roupas eram amarelas, cor de enxofre, da mesma cor que os
cabelos. Por longo tempo, eu tinha sido obsedado pela ideia de um esqueleto solar, os ossos cor de
enxofre: Dorothea agora era um destroço, a vida parecia abandoná-la.

Ela me disse suavemente:


— Vamos nos apressar. Precisaria estar numa cama, o mais depressa possível.

Ela não aguentava mais.

Perguntei-lhe por que não havia me esperado em Paris.

Pareceu não ouvir, mas acabou por responder:

— Não queria mais esperar.

Olhava para a frente sem ver nada.

Diante do hotel, ajudei-a a descer. Quis andar até o elevador. Eu a amparava e avançamos
lentamente. No quarto, ajudei-a a tirar a roupa. Ela me disse o necessário a meia-voz. Eu precisava
evitar causar-lhe dor e dei-lhe a roupa de baixo que ela queria. Tirando sua roupa, â media que sua
nudez apareceu (emagrecido, seu corpo era menos puro) não pude conter um sorriso infeliz: era
preferível que estivesse doente.

Ela disse com uma espécie de apaziguamento:

— Não sinto mais dor. Apenas já não tenho a menor força.

Eu não a tinha tocado com meus lábios, ela mal me olhara, mas o que acontecia no quarto nos
unia.

Quando se estendeu na cama, a cabeça bem no meio do travesseiro, seus traços se distenderam:
logo pareceu tão bela quanto antes. Por um instante, olhou-me, depois virou-se.

As persianas do quarto estavam fechadas mas os raios de sol passavam de lado a lado. Fazia
calor. Uma camareira entrou, trazendo gelo em um balde. Dorothea pediu-me para pôr gelo numa
bolsa de borracha e colocar-lhe a bolsa sobre o ventre.

Disse-me:

— É aí que dói. Fico deitada de costas com o gelo.

Disse-me ainda:

— Ontem eu tinha saído quando você telefonou. Não estou tão doente como pareço.

Sorria: mas seu sorriso era constrangedor.

— Precisei viajar de terceira até Marselha. Senão, teria partido esta noite, não antes.

— Por quê? Você não tinha dinheiro suficiente?


— Precisava guardar para o avião.

— Foi a viagem de trem que a deixou doente?

— Não. Estou doente há um mês, os movimentos do trem apenas me fizeram sentir dor: tive dor,
muita dor, durante toda a noite. Mas...

Ela tomou minha cabeça com as duas mãos e virou-se para me dizer:

— Eu estava feliz por sofrer.

Tendo falado, suas mãos que haviam me procurado me afastaram.

Mas jamais, desde que a conhecera, ela havia me falado dessa maneira.

Levantei-me. Fui chorar no banheiro.

Voltei logo. Eu simulava uma frieza que correspondia á sua. Seus traços estavam endurecidos.
Como se precisasse vingar-se da sua confissão.

Ela teve um ímpeto de ódio apaixonado, um ímpeto que a fechava.

— Se não estivesse doente, não teria vindo. Agora, estou doente: nós vamos ser felizes. Enfim
estou doente.

Na sua fúria contida, uma careta a desfigurou.

Tornou-se horrenda. Compreendi que amava nela esse movimento violento. O que amava nela
era o seu ódio, amava a feiúra imprevista, a feiúra atroz que o ódio dava aos seus traços.

O médico que eu havia pedido se fez anunciar. Estávamos adormecidos. O quarto, estranho, na
semi-obscuridade, onde acordei, parecia abandonado. Dorothea também acordou ao mesmo tempo.
Teve um sobressalto quando me percebeu. Eu estava erguido na poltrona: tentava saber onde estava.
Já não sabia mais nada. Era noite? evidentemente era dia. Atendi o telefone que tocava. Pedi â
gerência que mandasse subir o médico.

Esperava o final do exame: sentia-me muito abatido, mal acordado.

Dorothea tinha uma doença de mulher: apesar do estado grave, podia curar-se bem depressa. A
viagem havia agravado as coisas, ela não deveria ter viajado. O médico voltaria. Acompanhei-o até
o elevador. No final, perguntei-lhe como iam as coisas em Barcelona: disse-me que há duas horas a
greve era geral, nada mais andava, mas a cidade estava calma.

Era um homem insignificante. Não sei por que eu lhe disse, sorrindo tolamente.

— A calma antes da tempestade...

Ele me apertou a mão e foi embora sem responder, como se eu fosse um homem mal-educado.

Dorothea, calma, penteava-se. Passou batom.

Disse-me:

— Estou melhor... O que você perguntou ao médico?

— Há uma greve geral e talvez vá haver uma guerra civil.

— Por que uma guerra civil?

— Entre os catalães e os espanhóis.

— Uma guerra civil?

A ideia de uma guerra civil a desconcertava. Eu ainda lhe disse:

— Você deve fazer o que o médico disse... Estava errado em falar disso tão depressa: foi como
se uma sombra tivesse passado; o rosto de Dorothea se fechou.

— Por que eu iria sarar? — disse ela


O DIA DOS MORTOS
1

Dorothea havia chegado no dia 5. No dia 6 de outubro, às dez horas da noite, estava sentado
perto dela: contava-me o que tinha feito em Viena depois de ter me deixado.

Havia entrado em uma igreja.

Não havia ninguém ali e, de início, ajoelhara-se nas lajes, depois se colocara de bruços, havia
estendido os braços em cruz. Isso não tinha para ela nenhum sentido. Não havia rezado. Não
compreendia por que havia feito aquilo mas, depois de um tempo, vários trovões tinham-na abalado.
Levantara-se e, saindo da igreja, partira correndo sob a pancada de chuva.

Entrou debaixo de um pórtico. Estava sem chapéu e molhada. Sob o pórtico, havia um rapaz de
boné, um rapaz muito jovem. Ele tinha querido rir com ela. Desesperada, não conseguia rir:
aproximara-se dele e o beijara. Ela o havia tocado. Em resposta, ele a tocara. Estava arrebatada, ela
o aterrorizara.

Conversando comigo, estava tranquila. Disse-me:

— Era como um irmãozinho, tinha cheiro de molhado, eu também, mas eu estava em tal estado
que, gozando, ele tremia de medo.

Naquele momento, ouvindo Dorothea falar, eu esquecera Barcelona.

Ouvimos um toque de clarim bastante próximo. Dorothea deteve-se bruscamente. Escutava,


surpresa. Voltou a falar mas, desta vez, calou-se realmente. Tinha havido uma salva de tiros. Houve
um instante de trégua, em seguida o tiroteio recomeçou. Foi uma brusca catarata, não muito longe.
Dorothea se retesar a: não estava com medo, mas aquilo era de uma brutalidade trágica. Fui à janela.
Vi pessoas armadas de fuzis, que gritavam e corriam sob as árvores da Rambla, mal iluminada
naquela noite. Os tiros não vinham da Rambla, mas das ruas vizinhas: um galho quebrado por uma
bala caiu.
Disse a Dorothea:

— Desta vez, isto vai mal!

— O que é?

— Não sei. Sem dúvida é o exército regular que ataca os outros (os outros, eram os catalães e a
maioria de Barcelona). Estão atirando na Calle Fernando. É bem perto.

Um tiroteio violento abalou o ar.

Dorothea veio até uma das janelas. Eu me voltei. Disse-lhe gritando:

— Você está louca. Deite-se de novo imediatamente!

Ela estava com um pijama de homem. Despen- teada, descalça, tinha um rosto cruel.

Afastou-me e olhou pela janela. Eu lhe mostrei o galho quebrado no chão.

Ela voltou na direção da cama e tirou o paletó do pijama. O busto nu, começou a procurar á sua
volta: parecia louca.

Perguntei-lhe:

— O que procura? Você precisa absolutamente se deitar de novo.

— Quero me vestir. Quero ir ver com você.

— Você enlouqueceu.

— Escute-me, é mais forte que eu. Irei ver.

Ela parecia arrebatada. Estava violenta, estava fechada, falava sem réplica, agitada por uma
espécie de furor.

Naquele momento, bateram à porta abalando-a a socos. Dorothea jogou o paletó que havia
tirado.

Era Xénie. (Eu lhe tinha dito tudo na véspera, deixando-a com Michel.) Xénie tremia. Olhei
Dorothea, a vi provocadora. Muda, má, estava em pé, os seios nus.

Eu disse brutalmente a Xénie:

— É preciso voltar para o seu quarto. Não há nada mais a fazer.

Dorothea me interrompeu sem olhá-la:


— Não. Pode ficar, se quiser. Fique conosco.

Xénie estava imóvel na porta. Os tiros continuavam. Dorothea me pegou pela manga. Arrastou-
me para a outra extremidade do quarto e me disse ao ouvido:

— Tenho uma ideia horrível, você entende?

— Que ideia? Não compreendo mais. Por que convidar essa mulher para ficar?

Dorothea recuou diante de mim: tinha um ar dissimulado e, ao mesmo tempo, era evidente que
não aguentava mais. O ruído dos tiros de fuzil varava a cabeça. Ela ainda me disse, a cabeça baixa, a
voz agressiva:

— Você sabe que sou um animal!

A outra podia ouvi-la.

Precipitei-me para Xénie, suplicando-lhe:

— Vá embora imediatamente.

Xénie também me suplicou. Repliquei:

— Compreende o que vai acontecer se ficar?

Dorothea ria cinicamente fitando-a. Empurrei Xénie para o corredor: Xénie, que resistiu, me
insultava surdamente. Estava enlouquecida desde a chegada e, estou certo, sexualmente fora de si.
Empurrei-a, mas ela resistiu. Começou a gritar como um demônio. Havia no ar uma violência tão
grande; empurrei-a com todas as minhas forças. Xénie caiu com todo seu peso, estatelando-se de um
lado ao outro do corredor. Fechei a porta com o trinco. Eu tinha perdido a cabeça. Era um animal, eu
também, mas ao mesmo tempo, havia estremecido. Tinha imaginado Dorothea aproveitando-se de que
estava ocupado com Xénie para se matar saltando pela janela.
2

Dorothea estava esgotada; deixou-se amparar sem dizer uma palavra. Eu a pus na cama: deixou-
se levar, inerte em meus braços, os seios nus. Voltei para a janela. Fechei as persianas. Assustado,
entrevi Xénie fora do hotel. Atravessou a Rambla correndo. Não podia fazer nada: não podia deixar
Dorothea sozinha um instante. Vi Xénie se dirigir não para o tiroteio, mas na direção da rua onde
Michel morava. Ela desapareceu.

A noite inteira foi agitada. Não era possível dormir. Pouco a pouco, o combate aumentou de
intensidade. As metralhadoras, depois os canhões, começaram a atacar. Ouvido do quarto de hotel
onde Dorothea e eu estávamos fechados, isso podia ter algo de grandioso, mas era sobretudo
ininteligível. Passei uma parte do tempo andando naquele quarto de um lado para o outro.

No meio da noite, durante uma trégua, estava sentado na beira da cama. Disse a Dorothea:

Não compreendo que tenha entrado em uma igreja.

Estávamos calados há bastante tempo. Ela estremeceu, mas não respondeu.

Perguntei-lhe por que não dizia nada.

Sonhava, respondeu-me ela.

— Mas com o que você sonhava?

— Não sei.

Um pouco depois, disse:

— Posso me prosternar diante dele se acredito que ele não existe.

— Por que entrou na igreja?


Ela me virou as costas na cama.

Disse-me ainda:

— Você deveria ir embora. Seria melhor eu ficar sozinha agora.

— Se você prefere, posso sair.

— Você quer deixar-se matar...

— Por quê? Os fuzis não matam muita gente. Ouça: não param de atirar. Isso mostra muito bem
que os próprios obuses deixam um grande número de sobreviventes.

Ela seguia seu próprio pensamento:

— Isso seria menos falso.

Nesse momento voltou-se para mim. Olhava- me com ironia:

— Se simplesmente você pudesse perder a cabeça!

Não pestanejei.
3

No dia seguinte à tarde, o combate nas ruas, diminuído de intensidade, recomeçava severamente
de tempos em tempos. Durante uma trégua, Xénie telefonou da gerência do hotel. Gritava no
aparelho. Naquele momento, Dorothea dormia. Desci para o hall. Lazare estava lá, fazendo o
possível para dominar Xénie. Xénie, despenteada, estava suja, tinha o aspecto de uma louca. Lazare
não estava menos firme, nem menos fúnebre que de costume.

Xénie, escapando de Lazare, precipitou-se sobre mim. Como se quisesse saltar-me na garganta.

Gritava:

— O que foi que você fez?

Tinha na testa uma grande ferida que sangrava sob uma crosta rompida.

Segurei-a pelos pulsos e, torcendo-os, obriguei-a a se calar. Estava com febre, tremia.

Sem soltar os pulsos de Xénie, perguntei a Lazare o que estava acontecendo.

— Ela me disse:

Michel acaba de ser morto e Xénie está convencida de que é sua culpa.

Eu precisava fazer um esforço para dominar Xénie: ouvindo Lazare falar, ela se debatera.
Tentava selvagemente me morder as mãos.

Lazare ajudou-me a dominá-la: segurou-lhe a cabeça. Eu tremia também.

Ao final de certo tempo, Xénie ficou tranquila.

Estava enlouquecida diante de nós.


Disse com uma voz rouca:

— Por que você fez aquilo comigo?... Você me jogou no chão... como um animal...

Eu lhe havia tomado a mão e a apertava muito forte.

Lazare foi pedir uma toalha molhada. Xénie começou a falar:

—... com Michel... eu fui horrível... Como você comigo... é sua culpa... me amava, ele... só ele
no mundo me amava... Fiz com ele... o que você fez comigo... ele perdeu a cabeça... foi se deixar
matar... e agora... Michel está morto... é horrível...

Lazare colocou-lhe a toalha na testa.

Nós a amparamos cada um de um lado para conduzi-la ao seu quarto. Ela se arrastava. Eu
chorava. Vi que Lazare começava a chorar também. As lágrimas corriam pelas suas faces: não estava
nem menos senhora de si, nem menos fúnebre e era monstruoso ver suas lágrimas correrem.
Estendemos Xénie no seu quarto, na cama.

Eu disse a Lazare:

— Dirty está aqui. Não posso deixá-la sozinha.

Lazare me olhou e, naquele momento, vi que;não tinha mais coragem de me desprezar.

Disse simplesmente:

— Ficarei com Xénie.

Apertei a mão de Lazare. Conservei mesmo por um momento minha mão na sua, mas já pensava
que era Michel, que não era eu que estava morto. Em seguida apertei Xénie nos braços: gostaria
realmente de beijá-la, mas senti estar me tomando hipócrita, saí imediatamente. Quando viu que eu ia
embora, ela começou a soluçar sem se mover. Passei para o corredor. Eu também chorava, por
contágio.
4

Fiquei na Espanha com Dorothea até o final do mês de outubro. Xénie voltou para a França com
Lazare. Dorothea estava melhor a cada dia: à tarde saia ao sol comigo (tínhamos ido nos instalar em
uma aldeia de pescadores).

No final de outubro, não tínhamos mais dinheiro. Nem um, nem outro. Dorothea precisava voltar
para a Alemanha. Eu devia acompanhá-la até Frankfurt.

Chegamos a Tréves num domingo de manhã (primeiro de novembro). Precisávamos esperar a


abertura dos bancos, no dia seguinte. À tarde, o tempo estava chuvoso, mas não podíamos nos fechar
no hotel. Andamos pelo campo, até uma elevação que domina o vale da Moselle. Fazia frio, a chuva
começava a cair. Dorothea estava com um casaco de viagem de lã cinza. Seus cabelos estavam
despenteados pelo vento, estava úmida de chuva. Na saída da cidade, pedimos a um burguesinho com
grandes bigodes, de chapéu-coco, que nos mostrasse o caminho. Com uma gentileza desconcertante,
tomou Dorothea pela mão. Levou-nos ao cruzamento de onde podíamos nos localizar. Afastou-se
para nos sorrir, voltando-se. A própria Doroteha olhou-o com um sorriso desencantado. Sem ter
escutado o que dizia o homenzinho, um pouco mais adiante de nós nos enganamos. Tivemos de andar
muito tempo, longe da Moselle, por vales adjacentes. A terra, as pedras dos caminhos cavados e as
rochas nuas eram vermelho vivo: havia muitos bosques, terras aradas e prados. Atravessamos um
bosque amarelecido. A neve começou a cair. Havíamos cruzado um grupo de Hitlerjugend, crianças
de dez a quinze anos, vestidas com calça curta e bolero de veludo preto. Andavam rápido, não
olhavam ninguém e falavam com uma voz cansativa. Não havia nada que não fosse triste,
horrivelmente: um grande céu cinza que se transformava suavemente em neve que cai. Andávamos
depressa. Precisamos atravessar um planalto de terra arada. Os sulcos recentemente abertos
multiplicavam-se; acima de nós, sem cessar, a neve era levada pelo vento. À nossa volta, era imenso.
Dorothea e eu, apressando o passo por uma estradinha, o rosto fustigado pelo frio, tínhamos perdido
o sentimento de existir.

Chegamos a um restaurante encimado por uma torre: no interior, fazia calor mas havia uma luz
suja de novembro, havia ali numerosas famílias burguesas sentadas ás mesas. Dorothea, os lábios
pálidos, o rosto avermelhado pelo frio, não dizia nada: comia um bolo de que gostava. Continuava
muito bela, contudo seu rosto se perdia naquela luz, perdia-se no cinza do céu. Para descer
novamente, sem dificuldade tomamos o caminho certo, muito curto, traçado em ziguezague através do
bosque. Não nevava mais, ou quase. A neve não havia deixado rastos. íamos depressa,
escorregávamos ou tropeçávamos de vez em quando e a noite caía. Mais abaixo, na penumbra,
apareceu a cidade de Tréves. Estendia-se na outra margem da Moselle, dominada por grandes
campanários quadrados. Pouco a pouco, na noite, deixamos de ver os campanários. Passando por
uma clareira, tínhamos visto uma casa baixa, mas ampla, abrigada por jardins em caramanchão.
Dorothea falou-me de comprar essa casa e de morar nela comigo. Já não havia entre nós senão um
desencantamento hostil. Nós o sentíamos, éramos pouca coisa um para o outro, pelo menos a partir
do instante em que não estávamos mais na angústia. Nós nos apressávamos na direção de um quarto
de hotel, em uma cidade que na véspera não conhecíamos. Na sombra, acontecia de nos procurarmos.
Nós nos olhávamos olhos nos olhos: não sem temor. Estávamos ligados um ao outro, mas não
tínhamos mais a menor esperança. Numa curva do caminho um vazio abriu-se debaixo de nós.
Estranhamente, esse vazio não era menos ilimitado, aos nossos pés, que um céu estrelado sobre as
nossas cabeças. Uma multidão de pequenas luzes, agitadas pelo vento, traçava na noite uma festa
silenciosa, incompreensível. Aquelas estrelas, aquelas velas, eram centenas, em chamas sobre o
solo: o solo onde se alinhava a multidão das tumbas iluminadas. Tomei Dorothea pelo braço.
Estávamos fascinados por aquele abismo de estrelas fúnebres. Dorothea aproximou- se de mim.
Beijou-me longamente na boca. Enlaçou- me, apertando-me violentamente: depois de muito tempo,
era a primeira vez que ela se arrebatava. Apressadamente, demos, para fora do caminho, os dez
passos que dão os amantes. Continuávamos acima das tumbas. Dorothea abriu-se, eu a desnudei até o
sexo. Ela mesma me desnudou. Caímos no solo fofo e penetrei no seu corpo úmido como um arado
bem manobrado penetra na terra. A terra, sob aquele corpo, estava aberta como uma tumba, seu
ventre nu se abriu para mim como uma tumba fresca. Estávamos tomados de estupor, fazendo amor
acima de um cemitério estrelado. Cada uma das luzes anunciava um esqueleto em uma tumba,
formavam assim um céu vacilante, tão tumultuado quanto os movimentos dos nossos corpos unidos.
Fazia frio, minhas mãos se enterravam na terra: desabotoei Dorothea, sujei sua roupa de baixo e seu
peito com a terra fresca que grudara nos meus dedos. Seus seios, brotados de suas roupas, eram de
uma brancura lunar. Nós nos abandonávamos de vez em quando, distendendo-nos a tremer de frio:
nossos corpos tremiam como duas fileiras de dentes batendo uma na outra.

O vento nas árvores fez um ruído selvagem. Eu disse balbuciando a Dorothea, balbuciava,
falava selvagemente:

—... meu esqueleto... você treme de frio... bate o queixo...

Eu havia parado, pesava sobre ela sem me mexer, resfolegava como um cão. De súbito enlacei
seus rins nus. Soltei-me com todo o meu peso. Ela lançou um grito terrível. Cerrei os dentes com
todas as minhas forças. Nesse momento, escorregamos por um terreno em declive.

Havia mais abaixo um pedaço de rochedo inclinado. Se eu não tivesse detido aquele
deslizamento com um golpe de pé, teríamos caído na noite e teria podido acreditar, maravilhado, que
caíamos no vazio do céu.

Precisei, de algum modo, tirar minhas calças. Pusera-me em pé. Dirty permanecia com o traseiro
nu contra o solo. Levantou-se penosamente, agarrou uma das minhas mãos. Beijou meu ventre nu:
havia terra grudada nas minhas pernas peludas: ela a raspou para retirá-la. Agarrava-se em mim.
Fazia um jogo de movimentos sorrateiros, de movimentos de uma louca indecência. Primeiro ela me
fez cair. Levantei-me com dificuldade, ajudei-a a pôr-se de pé. Ajudei-a a vestir suas roupas, mas
era difícil, com nossos corpos e nossas roupas cobertos de terra. Não estávamos menos excitados
pela terra que pela nudez da carne; mal o sexo de Dirty ficou coberto, sob as roupas, apressei-me em
descobri-lo de novo.

Na volta, ultrapassado o cemitério, as ruas da cidadezinha estavam desertas. Atravessamos um


bairro formado de casas baixas, velhas casas no meio de jardins. Um menino passou: encarou Dirty
com espanto. Ela me fez pensar nos soldados que lutavam nas trincheiras enlameadas, mas eu tinha
pressa de estar com ela em um quarto aquecido e de tirar seu vestido no claro. O menino deteve-se
para nos ver melhor. Dirty esticou a cabeça e lhe fez uma horrível careta. O menino, rico e feio,
desapareceu correndo.

Pensei no pequeno Karl Marx e na barba que usou mais tarde, na idade adulta: hoje estava
debaixo da terra, perto de Londres, deve ter corrido, ele também, nas ruas desertas de Tréves,
quando era menino.
5

No dia seguinte, devíamos ir a Coblenz. De Coblenz, pegamos um trem para Frankfurt, onde eu
devia deixar Dorothea. Enquanto subíamos o vale do Reno, uma chuva fina caía. As margens do Reno
estavam cinzentas, mas nuas e selvagens. O trem ladeava, de tempos em tempos, um cemitério cujas
tumbas haviam desaparecido sob tapetes de flores brancas. Com a chegada da noite, vimos velas
acesas sobre as cruzes das tumbas. Devíamos nos separar algumas horas mais tarde. Às oito horas,
Dorothea teria um trem para o sul em Frankfurt; poucos minutos depois, eu pegaria o trem para Paris.
A noite caiu depois de Bingerbrück.

Estávamos sozinhos em um compartimento. Dorothea aproximou-se para falar comigo. Estava


com uma voz quase infantil. Apertou-me um braço com muita força, disse-me:

— Logo haverá guerra, não é?

Respondi suavemente:

— Não sei de nada sobre isso.

— Eu gostaria de saber. Você sabe o que penso às vezes: penso que a guerra começa. Então,
preciso avisar a um homem: a guerra começou. Vou vê-lo, mas não deve estar esperando por isso:
ele empalidece.

— E então?

— Isso é tudo.

Perguntei-lhe:

— Por que você pensa na guerra?

— Não sei. Você, teria medo se houvesse guerra?


— Não.

Ela chegou mais perto de mim, apoiando no meu pescoço uma testa muito quente:

— Escute, Henri... sei que sou um monstro, mas algumas vezes gostaria que houvesse guerra...

— Por que não?

— Você também, você gostaria? Seria morto, não é?

— Por que pensa na guerra? É por causa de ontem?

— Sim, por causa das sepulturas.

Dorothea ficou muito tempo apertada contra mim. A noite anterior me havia esgotado. Eu
começava a adormecer.

Dorothea, como eu adormecia, para me acordar, acariciou-me quase sem se mover,


sorrateiramente. Continuava a falar suavemente:

— Sabe, o homem a quem anuncio que há guerra...

— Sim.

— Ele se parece com o homenzinho de bigodes que me tomou pela mão sob a chuva: um homem
inteiramente gentil, com muitos filhos.

— E os filhos?

— Morrem todos.

— São mortos?

— Sim. A cada vez, vou ver o homenzinho. É absurdo, não é?

— É você que lhe anuncia a morte de seus filhos?

— Sim. Todas as vezes que me vê, ele empalidece. Chego com um vestido preto e, sabe, quando
me vou...

— Diga-me.

— Há uma poça de sangue, ali onde estavam as minhas pernas.

— E você?

Ela exalou como uma queixa, como se repentinamente suplicasse:


— Eu te amo...

Colou sua boca fresca na minha. Fiquei em estado de intolerável alegria. Quando sua língua
lambeu a minha, foi tão belo que teria desejado não mais viver.

Dirty, que havia tirado o casaco, estava nos meus braços com um vestido de seda de um
vermelho vivo, do vermelho das bandeiras com a suástica. Seu corpo estava nu sob o vestido. Tinha
um cheiro de terra molhada. Afastei-me dela, em parte sob a ação do nervosismo (queria me
movimentar), em parte para ir até a extremidade do vagão. No corredor, incomodei por duas vezes
um oficial S.A., muito bonito e muito alto. Tinha olhos de faiança azul que, mesmo no interior de um
vagão iluminado, estavam perdidos nas nuvens: como se houvesse escutado em si mesmo o apelo das
Walquírias, mas sem dúvida seu ouvido era mais sensível ás cornetas da caserna. Detive-me à
entrada do compartimento. Dirty diminuiu a iluminação. Estava em pé, imóvel, sob um fraco clarão:
ela me deu medo; via por trás dela, apesar da obscuridade, uma planície imensa. Dirty me olhava
mas ela mesma estava ausente, perdida em um horrível sonho. Eu me aproximei dela e vi que
chorava. Apertei-a nos braços, ela não quis me dar seus lábios. Perguntei-lhe por que chorava.

Pensei:

— Eu a conheço tão pouco quanto possível.

Ela respondeu:

— Por nada.

Rompeu em soluços.

Eu a comovi ao estreitá-la. Eu também teria soluçado. Teria desejado saber por que chorava,
mas ela não falou mais. Eu a via tal como estava quando voltara ao compartimento: em pé diante de
mim, tinha a beleza de uma aparição. Mais uma vez, tive medo dela. Pensava de repente, perdido de
angústia à ideia de que me deixaria em algumas horas: é tão ávida que não pode viver. Não viverá.
Eu tinha sob os pés o ruído das rodas nos trilhos, daquelas rodas que esmagam, nas carnes
esmagadas que se rompem.
6

As últimas horas passaram rapidamente. Em Frankfurt, eu queria ir para um quarto. Ela recusou.
Jantamos juntos: o único meio de suportar era uma ocupação. Os últimos minutos, na plataforma,
foram intoleráveis. Não tive coragem de ir embora. Devia revê-la dentro de alguns dias, mas estava
obsedado, pensava que ela morreria antes. Desapareceu com o trem.

Estava sozinho na plataforma. Fora chovia muito. Fui embora chorando. Andava penosamente.
Ainda tinha na boca o gosto dos lábios de Dirty, alguma coisa de incompreensível. Encarei um
homem da companhia das estradas de ferro. Ele passou: senti um mal-estar diante dele. Por que não
tinha nada em comum com uma mulher que eu teria podido beijar? Ele próprio tinha olhos, uma boca,
um traseiro. Aquela boca me dava vontade de vomitar. Teria desejado bater nela: ele tinha o aspecto
de um burguês obeso. Perguntei-lhe pelo banheiro (precisaria correr para lá o mais rápido possível).
Nem mesmo havia enxugado minhas lágrimas. Ele me deu uma indicação em alemão: era difícil de
entender. Cheguei à extremidade do hall\ ouvi um barulho de música violenta, um barulho de uma
aspereza intolerável. Continuava chorando. Da porta da estação, vi de longe, na outra extremidade de
uma praça imensa, um teatro bem iluminado e, na escadaria do teatro, uma parada de músicos
uniformizados: o barulho era esplêndido, ferindo os ouvidos, exultante. Estava tão surpreso que
imediatamente deixei de chorar. Já não tinha vontade de ir ao banheiro. Sob a chuva forte, atravessei
correndo a praça vazia. Abriguei-me sob o toldo do teatro.

Estava diante de crianças em formação militar, imóveis sobre a escadaria daquele teatro:
vestiam calças curtas de veludo preto e pequenas túnicas ornadas de agulhetas, tinham a cabeça
descoberta; á direita pífaros, á esquerda taróis.

Tocavam com tanta violência, com um ritmo tão brusco que eu estava com a respiração cortada
diante deles. Nada de mais seco que os taróis que martelavam, ou de mais ácido que os pífaros.
Todas aquelas crianças nazistas (algumas delas eram loiras, com um rosto de boneca) tocando para
raros passantes, na noite, diante da imensa praça vazia sob o aguaceiro, pareciam presas, rígidas
como porretes, de uma exultação de cataclismo: na frente deles, seu chefe, um fedelho de uma
magreza de degenerado, com o rosto impertinente de um peixe (de tempos em tempos, virava-se para
latir ordens, estertorava), marcava o compasso com um longo bastão de tambor-mor. Com um gesto
obsceno, erguia aquele bastão, punho sobre o baixo ventre (então ele parecia um pênis de macaco
desmesurado, enfeitado de tranças de cordinhas coloridas); com um tranco de sujo animalzinho,
elevava então o punho à altura da boca. Do ventre à boca, da boca ao ventre, cada ida e vinda,
sincopada por uma rajada de tambores. Aquele espetáculo era obsceno. Era aterrorizante: se não
dispusesse de um raro sangue-frio, como teria permanecido em pé olhando aquelas odientas
máquinas, tão calmo como diante de um muro de pedra. Cada estouro da música, na noite, era um
sortilégio, que convocava para a guerra e o assassinato. As batidas de tambor eram levadas ao
paroxismo, na esperança de se resolver finalmente em sangrentas rajadas de artilharia: eu olhava ao
longe... um exército de crianças em formação de batalha. Entretanto, estavam imóveis, mas em transe.
Eu os via, não longe de mim, enfeitiçados pelo desejo de ir para a morte. Alucinados pelos campos
ilimitados por onde, um dia, avançariam, rindo ao sol: deixariam atrás deles os agonizantes e os
mortos.

A essa maré alta do assassínio, muito mais ácida que a vida (porque a vida não é tão brilhante
de sangue quanto a morte), seria impossível opor mais que ninharias, as súplicas cômicas de velhas
senhoras. Não estavam todas as coisas destinadas ao abrasa- mento, flama e trovão unidos, tão
pálido quanto o enxofre aceso, que fica na garganta. Uma hilaridade me dava vertigem: ao me
descobrir diante dessa catástrofe, eu tinha uma ironia mórbida, aquela que acompanha os espasmos
nos momentos em que ninguém pode impedir-se de gritar. A música parou: a chuva havia cessado.
Voltei lentamente para a estação: o trem estava montado. Andei algum tempo ao longo da plataforma,
antes de entrar em um compartimento; o trem não demorou a partir.

Maio de 1935
Biografia

Nasceu em Billom em 1897 e morreu em Paris, sessenta e cinco anos depois.

Foi seminarista mas nunca padre. Trabalhou no Gabinete das Medalhas da Biblioteca Nacional como arquivista-paleógrafo. Sua
obra pode ser dividida em duas faces. Uma pública, das colaborações em inúmeras publicações como: Acéphale, Critique, Critique
Sociale, Documents e dos livros mais “teóricos”, entre eles: O Erotismo, A Experiência Interior e A Parte Maldita. E outra
oculta, onde aparece sob pseudônimos — Lord Auch e Pierre Angélique — e da qual faz parte sua ficção erótica, responsável por
sua inclusão entre os “malditos”.

Em 1937, a tuberculose obriga-o a mudar-se de Paris para Vézelay.

Em 1949, volta a ser bibliotecário em Carpentras e depois em Orléans.

Casou-se duas vezes.


[1] Eugénie de Franval, do Marquês de Sade (em Les Crimes de L’Amour)', L’Arrêt de Mort,
de Maurice Blanchot; Sarrazine, romance de Balzac, relativamente pouco conhecido, contudo, um
dos pontos altos de sua obra. (N. T)

[2] Pattes de mouche, no original, ou seja, literalmente, patas de mosca. (N. T.)

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