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Um Estudo Sistemático Sobre a

Máquina Territorial Primitiva


Pedro Peixoto Ferreira
2001

M ÁQUINAS SOCIAIS que, ao transformarem a relação da sociedade


com o território, com o déspota e com o capi-

T
omei contato com a teoria das máqui- tal em três máquinas sociais distintas (três
nas sociais em O Anti-Édipo (1976 "regimes de signos"), os autores inauguraram
[1972]), de Gilles Deleuze e Félix uma visão da sociedade enquanto operatória,
Guattari. Os autores não chegam a enquanto produção-de-si, e não mais enquan-
tratá-la como uma teoria em si, visto que ela to representação ou princípio.
aparece como parte constituinte da reflexão Meu objetivo nesta primeira parte do
mais ampla que eles desenvolvem sobre as texto não é traçar todo este trajeto, mas ape-
máquinas desejantes. É apenas no terceiro nas tentar expor de forma sistemática o modo
capítulo do livro (Selvagens, Bárbaros, Civi- de operação da primeira destas máquinas
lizados) que eles elaboram mais sociais, a Máquina Territorial Primitiva
detalhadamente esta (MTP). Cumpre,
forma de compreen- então iniciar esta
der a realidade tarefa com algumas
social, através de considerações acer-
uma espécie de "se- ca da própria noção
qüência evolutiva" de máquina social.
que parte da Máqui- O que é, afinal, uma
na Territorial máquina social?
Primitiva (MTP) e Aceitando
chega até a Máquina que uma máquina é
Capitalista Civiliza- uma "combinação
da (MCC), passando de elementos sóli-
pela Máquina Despótica Bárbara (MDB). dos, tendo cada um
A idéia subjacente a este movimento sua função especializada, e funcionando sob
evolutivo não é nova, e pode ser traçada até controle humano para transmitir um movi-
os primórdios das Ciências Sociais. Trata-se 1
mento e executar um trabalho" , temos que:
de uma divisão da história evolutiva da hu- "A máquina social é literalmente uma má-
manidade em três estágios, o primitivo, o quina, independente de qualquer metáfora,
bárbaro e o civilizado, tornada clássica por enquanto apresenta um motor imóvel e pro-
Lewis Henry Morgan mas já fortemente ar- cede aos diversos tipos de cortes: extração de
raigada no pensamento europeu desde pelo fluxo, separação de cadeia, repartição de par-
menos o século XVIII (cf. Condorcet, 1993 2
tes." (p.180) . Mas, logo de início, uma
[1795]). No entanto, ao incorporarem a estes
questão se coloca: como aceitar a idéia de
três estágios os elementos territorial, despó-
tico e capitalista e, principalmente, ao
1
analisarem os conjuntos assim formados en- Definição de máquina de Reuleaux, apresentada por
quanto máquinas (indo em busca de seu Lewis Mumford como "clássica", em trecho citado por
funcionamento), Deleuze e Guattari abriram Deleuze e Guattari (1976:179-80).
novas dimensões para o já bastante criticado 2
Exceto quando indicado, todas as referências perten-
esquema. Grosso modo, poderíamos dizer cem a Deleuze e Guattari, 1976.

1
que a sociedade funciona como uma máquina contêm [...] as condições de reprodução de
(ou antes, é literalmente uma máquina) sem seu processo", mas "remetem a máquinas
com isso transformá-la num mecanismo pré- sociais que as condicionam e as organizam,
determinado e estacionário? Como dar conta mas também limitam ou inibem o seu desen-
da mudança, do dinamismo da vida social volvimento" (p.179). Assim, se uma máquina
concreta, se a compararmos ao funcionamen- é "um composto material de elementos espe-
to de uma máquina ("independente de cializados que transmite movimento e
qualquer metáfora")? Para esclarecer este executa trabalho sob comando humano", nu-
ponto, será necessária a compreensão da dis- ma máquina social tal "composto material"
tinção entre a máquina social e a máquina seria a própria sociedade – desde os corpos
técnica, do papel funcional das disfunções na biológicos de seus membros até as suas insti-
máquina social e, principalmente, do papel tuições e máquinas propriamente técnicas.
central das máquinas desejantes no devir Mas e quando uma mesma máquina é
social. simultaneamente técnica e social? Isso ocor-
re, por exemplo, no caso do relógio, que é
M ÁQUINA SOCIAL, M ÁQUINA TÉCNICA máquina técnica ao medir o tempo uniforme
E M ÁQUINA D ESEJANTE (na cronometragem de uma corrida, por e-
xemplo) e máquina social ao assegurar a

A
diferença entre máquina social e ordem da cidade (no consenso acerca da va-
máquina técnica foi descrita da se- lidade desta medição, por exemplo). Mas
guinte forma por Deleuze e Guattari: aqui temos uma situação específica, histórica,
onde "um regime de produção técnica semi-
"Em suas formas mais simples, ditas manu- autônomo [...] tende a apropriar-se da memó-
ais, a máquina técnica implica já um elemento não ria e da reprodução", que corresponde à
humano, agente, transmissor, ou mesmo motor, que
prolonga a força do homem e permite um certo de- MCC, e que supõe "um desmantelamento das
sembaraçar. A máquina social, ao contrário, tem como grandes máquinas sociais precedentes"
peças os homens, (p.179). Ao ní-
mesmo se os con- vel da MTP,
sideramos com
suas máquinas, e os
portanto, não
integramos e inte- ocorrerá esta
riorizamos em um confusão entre
modelo institucio- os dois tipos de
nal em todos os máquina.
níveis da ação, da
transmissão e da
Com-
motricidade. Ela preendendo,
forma uma memó- assim, a distin-
ria sem a qual não ção entre
haveria sinergia do máquina social
homem e de suas máquinas (técnicas)." (p.179)
e máquina técnica, torna-se evidente o dina-
mismo e a flexibilidade inerentes à primeira,
A máquina técnica, portanto, implica em oposição à previsibilidade mecânica da
numa dualidade humano/não-humano, ao segunda (exceto, vale repetir, no contexto da
passo que a máquina social pode ser compos- MCC). Se os homens são simultaneamente os
ta apenas com componentes humanos. É operadores da máquina social e os seus com-
importante notar, porém, que ao atribuir à ponentes, temos uma situação de autogestão
máquina social a formação de "uma memória onde a produção do devir social cabe aos
sem a qual não haveria sinergia do homem e próprios membros da sociedade enquanto
de suas máquinas" técnicas, os autores pare- peças multi-funcionais. Daí a importância do
cem afirmar a prioridade daquela em relação segundo ponto levantado há pouco: a funcio-
a estas. Reforçando esta posição, eles acres- nalidade das disfunções da máquina social.
centam que as máquinas técnicas "não

2
funcionar bem" (p.192), Deleuze e Guattari
DISFUNÇÕES FUNCIONAIS estão chamando a atenção para um princípio
DA M ÁQUINA SOCIAL funcional elementar das máquinas sociais que
assume formas distintas em cada uma das
"[A máquina social] só funciona rangendo, suas três manifestações. Veremos, adiante,
desarranjando-se, explodindo em pequenas explosões
através do caso específico da MTP, como
– os disfuncionamentos fazem parte do seu próprio
funcionamento [...]. Nunca uma discordância ou um uma máquina que se baseia em disfunções
disfuncionamento anunciaram a morte de uma máqui- consegue se manter em funcionamento e,
na social, que tem o hábito, ao contrário, de alimentar- principalmente, porque não poderia ser de
se das contradições que provoca, das crises que susci- outro jeito. Antes, porém, de nos aprofun-
ta, das angústias que enquadra, e de operações
darmos nos conceitos utilizados pelos autores
infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu
isso." (p.192)
para explicar o funcionamento da MTP, te-
mos que compreender o papel central do
uando um carro (enquanto máquina desejo, das máquinas desejantes, em sua ope-

Q técnica) começa a fazer barulhos estra-


nhos, perder peças, e provocar
ratória.

M ÁQUINAS DESEJANTES
pequenas explosões, ele não está funcionan-
do bem e nós o levamos ao mecânico. Com a
"Por que ter projetado uma linha evolutiva
máquina social é o oposto. As disfunções, abstrata que supostamente representa a relação isolada
aqui, são centrais para o seu funcionamento do homem e da Natureza, em que se capta a máquina a
pois são justamente aquilo que lhe traz a partir da ferramenta e a ferramenta em função do
transformação, o devir, e a história. Disfun- organismo e de suas necessidades? [...] Parece-nos, ao
ções não ameaçam a máquina social da contrário, que a máquina deve ser imediatamente
pensada em relação a um corpo social, e não em rela-
mesma forma como ameaçam a máquina ção a um organismo biológico humano. Se é assim,
técnica, pois enquanto esta não contém "as não se pode considerar a máquina como um novo
condições de reprodução de seu processo" e segmento que sucede ao da ferramenta, numa linha
precisa ser levada ao concerto (ou ao ferro- que teria seu ponto de partida no homem abstrato.
velho), aquela as contém desde o início, e se Porque o homem e a ferramenta já são peças de uma
máquina sobre o corpo pleno de uma sociedade consi-
desdobra no tempo e no espaço justamente derada. A máquina é primeiramente uma máquina
em função de suas disfunções. É por isso que social constituída por um corpo pleno como instância
Deleuze e Guattari fazem críticas tão severas maquinizante, e pelos homens e as ferramentas que
aos "ideólogos atados a uma consciência trá- são maquinados enquanto distribuídos sobre este cor-
gica judeo-cristã" que insistem na idéia de po. Há, por exemplo, um corpo pleno da estepe que
maquina homem-cavalo-arco, um corpo pleno da
que as "sociedades primitivas" não têm histó- cidade grega que maquina homens e armas, um corpo
ria. Ora, não só as "sociedades primitivas" pleno da usina que maquina os homens e as máqui-
mas toda máquina social possui história, e nas..." (p.505-6)
esta emerge justamente das discordâncias e
dos imprevistos que introduzem em seu inte-

A
compreensão da função central das
rior a marca inextinguível do acontecimento. máquinas desejantes no devir social
A memória que garante a sinergia do homem implica uma certa concepção das
e de suas máquinas não é outra coisa senão o relações entre máquina, ferramenta, organis-
resultado desta contínua marcação que cria a mo e sociedade. É preciso colocar a máquina
história de uma máquina social através das em relação não mais com um organismo bio-
disfunções que lhe são imanentes. E se o ca- lógico, mas sim com um "corpo pleno",
pitalismo aprendeu essa lição é porque ele "instância maquinizante", sobre o qual os
resulta de "uma longa história das contingên- "homens e as ferramentas [...] são maquina-
cias e dos acidentes" que acabaram por dos". Superamos assim a visão de que as
colocá-lo "no fim da história" (p.195). máquinas seriam um desenvolvimento das
Portanto, quando afirmam que "é para ferramentas, sendo assim respostas às neces-
funcionar que uma máquina social deve não sidades de um organismo biológico, quando

3
na verdade o organismo biológico, assim quinas desejantes "não são nem projeções
como as ferramentas que ele utiliza, já são, imaginárias em forma de fantasmas, nem
desde o princípio, peças de uma máquina projeções reais em forma de ferramentas",
social. Portanto, ao invés de serem vistas que todo o "sistema das projeções deriva das
como o resultado de um aperfeiçoamento das máquinas, e não o inverso" (p.490), os auto-
ferramentas, as máquinas devem ser encara- res nos conduzem àquela essência vital, pré-
das como o meio compartilhado por homens individual, para a qual todo conhecimento é
e ferramentas para interagirem. Ao propor a secundário e do qual todo conhecimento de-
máquina não como ferramenta, mas como pende. Máquinas desejantes são, portanto, o
contexto em que um fluxo se orienta através conjunto agregado e operante de máquinas
da relação entre os homens e as suas ferra- sociais e técnicas no processo de produzirem
mentas, os autores não estão caminhando e reproduzirem a si mesmas. Elas não podem
para um determinismo mecanicista, mas, pelo ser representadas, mas apenas experiencia-
contrário, nos mostrando uma forma de supe- das, pois são a origem de toda representação.
rá-lo. Em outras palavras, ao substituir a 3
A oposição molar/molecular evidencia este
imagem de um mundo objetivo (um grande
fato, ao mostrar que "as grandes máquinas
mecanismo) sobre o qual o homem "moder-
molares supõem ligações pré-estabelecidas
no" teria mais controle e consciência que o
que o seu funcionamento não explica, já que
"primitivo" (graças ao desenvolvimento de
ele decorre delas. Só as máquinas desejantes
ferramentas e máquinas mais aperfeiçoadas)
produzem as ligações segundo as quais elas
pela de uma máquina social que engloba tan-
funcionam, e funcionam improvisando, in-
to o mundo físico como o mundo social, eles
ventando, formando-as" (p.229).
transferem o homem da condição de domina-
dor progressivo de um mecanismo para a de
"Um funcionamento molar, portanto, é um
agente de um processo produtivo de que ele é funcionalismo que não foi bastante longe, que não
simultaneamente produto e produtor. E as atingiu essas regiões onde o desejo maquina, indepen-
'máquinas desejantes' seriam, então, manifes- dentemente da natureza macroscópica do que ele
tações concretas deste engajamento maquina: elementos orgânicos, sociais, lingüísticos,
produtivo homem-ferramenta-máquina, como etc., postos a cozinhar numa mesma marmita." (p.229)
aquilo que lhe anima:
Temos aqui, portanto, uma imagem
"As máquinas desejantes não estão na nossa poderosa para as máquinas desejantes: o co-
cabeça, em nossa imaginação, elas estão nas máquinas zinhar de uma "marmita cósmica", que
sociais e técnicas. Nossa relação com as máquinas não mistura no mesmo pote os elementos mais
é uma relação de invenção nem de imitação, não so- diversos e desconexos (oriundos da máquina
mos nem os pais cerebrais nem os filhos disciplinados
social, mas relativamente autônomos em re-
da máquina. É uma relação de povoamento: povoamos
as máquinas sociais e técnicas de máquinas desejantes, lação às suas determinações), e cujo produto
e não podemos fazer de outra maneira. Devemos dizer
ao mesmo tempo: as máquinas sociais e técnicas são
apenas conglomerados de máquina desejantes em 3
A utilização dos termos "molar" e "molecular" pelos
condições molares historicamente determinadas; as
máquinas desejantes são máquinas sociais e técnicas autores deriva principalmente da física moderna, e
devolvidas às suas condições moleculares determinan- busca distinguir o comportamento estatístico de gran-
des quantidades de moléculas (como, por exemplo, na
tes." (p.502)
medição da pressão de um gás, usando a unidade
"mol") do comportamento imprevisível e caótico de
As máquinas desejantes são, portanto, uma molécula isolada. Assim como o gás é manifesta-
a manifestação concreta deste processo pro- ção estatística de um conjunto caótico de moléculas,
dutivo que, se por um lado nunca poderá ser as grandes máquinas sociais seriam manifestações
completamente representado, por outro (e por representáveis de um conjunto contingente de máqui-
nas desejantes. "As máquinas desejantes funcionam
isso mesmo) é simultaneamente a fonte pri- nas máquinas sociais, como se guardassem seu regime
meira e o destino último de toda a próprio no conjunto molar que elas formam por outro
representação. Quando afirmam que as má- lado ao nível dos grandes números." (p.232-3)

4
final é, não apenas a produção e re-produção rável lastro naquilo que chamamos de reali-
do socius, mas principalmente um direcio- dade etnográfica. Porém, como de nada
namento particular deste processo (como adiantam os fatos sem um espírito preparado
uma marmita comum teria, além da a função para interpretá-los, os autores remetem cons-
de alimentar o corpo biológico, a qualidade 5
tantemente a Nietzsche , que, como eles,
de satisfazer o paladar). Mas, no caso especí- descarta a perspectiva "troquista" – que tenta
fico da MTP, onde encontraríamos estas compreender a economia territorial a partir
máquinas desejantes? do "equilíbrio", da "convergência de interes-
6
M ÁQUINA TERRITORIAL PRIMITIVA ses" e da "circulação" – em nome da
perspectiva da "dívida" – que parte do "dese-
quilíbrio", do "desejo" e da "produção".

A
MTP é a primeira máquina social, a
primeira forma de sociedade propri- Vejamos agora alguns dos principais
amente humana (socius). Para aspectos da MTP.
tipificá-la, Deleuze e Guattari se basearam
em uma grande quantidade de etnografias e
estudos antropológicos centrados principal-
mente (mas não somente) em sociedades
4
africanas , o que garante à teoria um conside-
introduction à l'ethnocide, Ed. du Seuil, 1970; Löffler,
L.G., "L'Alliance Asymétrique chez les Mru",
4 L'Homme; Devereux, G., "Considérations ethnopsy-
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1970; Adler, A. e Cartry, M., "La Transgression et sa vazia, "indiferente às pulsões do desejo", e "a dívida é
dérision", L'Homme, julho de 1971; Cartry, M. "Clans, apenas uma superestrutura, uma forma consciente
lignages et groupments familiaux chez les Gourmant- onde se amoeda a realidade social inconsciente [infra-
ché", L'Homme, abril de 1966; Cartry, M., "La estrutura] da troca", é um exemplo de um adepto desta
Calebasse de l'excision en pays gourmantché", Jour- perspectiva, que nem por is so deixa de ser uma refe-
nal de la Societé des africanistes, 1968; Jaulin, R., La rência constante na exposição do funcionamento da
Mort Sara, Plon, 1967; Jaulin, R.; La Paux blanche, MTP (cf. p.235).

5
M OTOR IMÓVEL finito, inexaurível e intangível, onde objetos,
organismos e símbolos se encontrariam mis-

D
eleuze e Guattari nos mostram que, turados e indefinidos, justamente por serem
na MTP, tudo começa na terra: gran- eles o resultado de cortes e desvios operados
de "corpo pleno", "corpo sem neste fluxo primordial pela representação
órgãos", que preexiste ao homem e que con- recalcante. A terra é o "motor imóvel" da
tinuará a existir após sua morte. A terra é a MTP pois é o representante daquilo que não
grande realidade pré-individual do socius é representável, e portanto semiose infinita,
territorial, de onde tudo vem, para onde tudo simulacro produtivo sobre cuja superfície
vai, e sobre a qual tudo acontece. Pura inten- "plena" ("unidade imanente"; p.185) se ope-
sidade, a terra é o "motor imóvel" da MTP. A ram os cortes e desvios de "fluxos de
apreensão do funcionamento desta máquina produção, de meios de produção, de produto-
social depende, portanto, da compreensão da res e de consumidores" (p.180), e "se
elementaridade da relação do "homem primi- inscrevem as relações conectivas, disjuntivas
tivo" com a terra, e do papel do desejo nela. e conjuntivas de cada segmento com os ou-
Mas é importante ressaltar (por mais evidente tros" (p.185). Mas como estes cortes e desvios
que pareça) que a "terra" da qual falamos operam a pas-
aqui não é a sagem do
mesma de que "corpo pleno
falam os di- da deusa Ter-
cionários, cuja ra" (p.180),
definição se fluxo primor-
aproxima mais dial, único e
daquilo que os indivisível,
autores cha- para o territó-
mam de rio, onde
"solo", ou "ter- objetos, orga-
ritório": nismos e
símbolos dis-
"O solo
pode ser o ele-
tintos e
mento produtivo e o resultado da apropriação, [mas] a localizáveis
Terra é a grande estase inengendrada, o elemento interagem? Cabe agora, portanto, compreen-
superior à produção que condiciona a apropriação e a der como o desejo, maquinando homens e
utilização comuns do solo. Ela é a superfície sobre a objetos sobre o corpo pleno da terra (na for-
qual se inscreve todo o processo da produção, regis-
tram-se os objetos, os meios e as forças de trabalho,
ma de máquinas desejantes que são
distribuem-se os agentes e os produtos. [...] entidade simultaneamente produtos e produtoras de
única, indivisível, o corpo pleno que se rebate sobre as um sistema de representação), dá origem à
forças produtivas e se apropria delas como pressupos- MTP.
to natural ou divino." (p.178-9)
DESVIO DE FLUXOS
A terra de que falam Deleuze e Guatta-
ri não é, portanto, uma representação parcial

T
alvez esta seja a parte mais complexa
de uma realidade já dada (um sistema solar, do funcionamento da MTP. Grosso
uma nacionalidade, ou um contrato), mas sim modo, trata-se do processo de trans-
a "unidade primitiva, selvagem, do desejo e formar as intensidades do fluxo primordial
da produção" (p.178); ou , em outras palavras, (memória bio-cósmica) em um sistema es-
o representante recalcado daquilo que é a tendido de cadeias e dívidas (memória de
origem produtiva de toda a representação: o palavras e alianças). É um movimento aces-
desejo. A imagem mais adequada deste corpo sível a conceitos como "tensão-extensão"
pleno da terra é a de um fluxo incontido, in- (cf.Bergson, 1999), "contração-distensão"

6
(cf.Deleuze, 1999), "modulação existencial" relações entre famílias coextensivas ao campo social."
(cf.Merleau-Ponty, 1996), "processo de indi- (p.21)

viduação" (cf.Simondon, 1992) e


A "família selvagem", portanto, é
"heterogênese" (cf.Guattari, 1992), e que cap- "coextensiva e adequada ao campo social
ta precisamente a natureza da experiência histórico", ela "anima a reprodução social
humana do mundo. Mas como estamos aqui
mesma" (p.225) ao operar sua própria repro-
tratando da MTP, cumpre evocar a situação
dução. Neste contexto, o indivíduo, desde a
concreta (bastante conhecida na literatura
infância, "investe diretamente um campo
antropológica) em que isso ocorre nas "soci-
social, histórico, econômico e político, irre-
edades primitivas": a proibição do incesto.
7
dutível a qualquer estrutura mental como
Como demonstram as etnografias , a também a qualquer consideração afetiva"
proibição do incesto é o primeiro desvio de (p.211). O sistema de alianças, inaugurado
fluxo operado pela MTP ao nível do socius, pela proibição do incesto, se baseia, assim,
codificação que inaugura um sistema de tro- não tanto numa relação de afinidade entre
cas de mulheres e alianças que, até então, não cônjuges, mas principalmente numa relação
existia. Mas a situação da "família selvagem" de dívida e obrigação (não só simbólica, mas
é bastante distinta daquela que conhecemos também política e econômica) entre grupos
na MCC, onde a reprodução filiativos. Relação esta que é
do macrocosmo social não irredutível a um "sistema" ou
passa mais pela reprodução "estrutura" que lhe seria sub-
do microcosmo familiar, mas, jacente (como o desejaria
ao contrário, força esta a lhe Lévi-Strauss), justamente por
fornecer os materiais de uma ser ela a própria instância de
reprodução que é de outra produção destes "sistemas" e
natureza. A "família selva- "estruturas" (que nunca se
gem" se distingue da "família fecham, nunca se equilibram)
civilizada" também pela pluralidade de rela- pelas maquinações concretas (polimorfas e
ções e laços de parentesco possíveis e 8
multifuncionais) do desejo . "Um sistema de
efetivos que produz, e que fazem das rela-
parentesco não é uma estrutura, mas uma
ções marido/esposa, pai/filho, tio/sobrinho,
prática, uma praxis, um procedimento e até
mãe/filho, tio/sobrinha, etc., fenômenos to-
talmente diversos daqueles usuais na MCC. mesmo uma estratégia." (p.187) É justamente
Assim, diferentemente da "família civiliza- por isso que as modificações introduzidas
da", que se reproduz "no interior" de uma pelos colonizadores e missionários (que não
sociedade, a "família selvagem" só se repro- deixam de ser colonizadores também, à sua
9
duz reproduzindo também a própria maneira ) em aspectos cotidianos da vida
sociedade. Nas palavras de Deleuze e Guatta- tribal (como a localização espacial das casas,
ri: a divisão das famílias, a coleta, preparação,
distribuição e consumo de alimentos, etc.)
"As famílias selvagens formam uma práxis, têm conseqüências tão catastróficas para a
uma política, uma estratégia de alianças e de filiações;
elas são formalmente os elementos motores da repro-
8
dução social, elas não têm nada a ver com um Os autores atribuem estas maquinações às "linha-
microcosmo expressivo; o pai, a mãe, a irmã funcio- gens locais" ("os grandes codificadores"), "grupos de
nam sempre como outra coisa também, além de pai, homens residindo em um mesmo lugar, ou em lugares
mãe, irmã. E mais que o pai, a mãe, etc., há o aliado, vizinhos, que maquinam os casamentos e formam a
que constitui a realidade concreta ativa e torna as realidade concreta, muito mais que os sistemas de
filiação e as classes matrimoniais abstratas." (p.187)
9
"[A] colonização continuada por outros meios, a
7
Não apenas aquelas apresentadas pelos autores, mas colônia interior, [...] mesmo entre nós, europeus, nossa
também aquelas com as quais tive contato até agora. formação colonial íntima." (p.216).

7
MTP. Comentando um estudo de Robert Jau- sentação" composto essencialmente por três
10 elementos: o representante recalcado ("in-
lin , onde este trata do "processo de
fluxo germinal de intensidade"); a
persuasão" efetuado pelos padres e missioná-
representação recalcante ("sistema de dívi-
rios no sentido de convencer os índios a
das e alianças"); e o representante
trocarem a casa coletiva por pequenas casas
deslocado ("incesto/Édipo"). O funciona-
"familiares", Deleuze e Guattari concluem:
mento de tal sistema é descrito da seguinte
"Na casa coletiva, o apartamento familiar e a forma:
intimidade pessoal se acham fundados numa relação
com o vizinho definido como aliado, tanto que as "Em primeiro lugar, o influxo germinal de
relações interfamiliares eram coextensivas ao campo intensidade condiciona toda a representação: ele é o
social. Na nova situação, ao contrário, se produz "uma representante do desejo. Mas, se ele é chamado de
abusiva dos elementos do casal sobre si mesmos" e representante, é porque vale pelos fluxos não codifi-
sobre os filhos, de tal maneira que a família restrita se cáveis, não codificados ou decodificados. Neste
fecha num microcosmo expressivo onde cada um sentido, ele implica à sua maneira, no limite do socius,
reflete sua própria linhagem, ao mesmo tempo que o o limite e o negativo de todo socius. Também a re-
devir social e produtivo lhe escapa cada vez mais. pressão desse limite só é possível se o representante
Porque Édipo não é apenas um processo ideológico, sofre ele próprio um recalcamento, Este recalcamento
mas o resultado de uma destruição do meio-ambiente, determina o que passará e o que não passará do influ-
do habitat, etc." (p.215 nota 25) xo no sistema em extensão, o que ficará bloqueado ou
estocado nas filiações estendidas, o que, ao contrário,
mexerá e escorrerá segundo as relações de aliança, de
Édipo se apresenta, portanto, como tal maneira que se efetua a codificação sistemática dos
signo do desmantelamento de toda a MTP, fluxos. Chamamos de aliança a essa segunda instân-
principalmente porque ele opera uma "des- cia, a representação recalcante ela própria, já que as
truição do meio-ambiente, do habitat", ou filiações só se tornam estendidas em função das alian-
seja, do território, do sistema de dívidas e ças laterais que medem seus segmentos variáveis."
(p.209)
alianças inscrito sobre o corpo pleno da terra,
motor imóvel do socius territorial, represen-
A "representação é sempre repressão-
tação recalcante do desejo. O importante aqui
recalcante da produção desejante" (p.233).
é perceber que, se por um lado são as máqui-
nas desejantes (dimensão molecular) que Esta ação recalcante imanente ao sistema de
constituem, com seu engajamento coletivo, a representação é, assim, produção de limites,
máquina social (dimensão molar), por outro, sem os quais não haveria socius, mas apenas
esta máquina social só pode dar continuidade um fluxo indistinto e inapreensível. Porém,
ao processo de se reproduzir através de uma devido ao próprio modo de operação deste
operação de repressão-recalcamento desta sistema criador de limites, o incesto, na for-
produção desejante que lhe constitui. Tal ma como ele é proibido (enquanto proibição
recalcamento é a operação básica da MTP – da união de pessoas discernibilizadas), acaba
proibição do incesto, marcação dos corpos, servindo para recalcar o incesto na forma
que se tornam distintos justamente por se como ele é, de fato, desejado (re-imersão no
verem atados a uma rede de dívidas e alian- fluxo germinal intensivo, que é irrepresentá-
ças inaugurada por esta proibição – e cria, em vel). Portanto, a proibição que atinge o filho
diferentes situações, os cinco tipos de limite acaba aparecendo como "efeito retroativo da
11 representação recalcante sobre o representan-
do socius através de um "sistema de repre- te recalcado", deslocamento deste
representante recalcado por uma representa-
10 ção recalcante que "projeta sobre ele
JAULIN, Robert, La Paix Blanche: Introduction à categorias discernibilizadas que ela mesma
l'ethnocide, Ed. du Seuil, 1970. instaurou, aplica-lhe termos que não existi-
11
São eles: limite absoluto ("esquizofrenia"); limite am, antes que a aliança, justamente, tivesse
relativo ("capitalismo"); limite real ("a destruição dos organizado o positivo e o negativo no sistema
códigos"); limite imaginário ("matriz mítica"); e limite em extensão – ela o rebate sobre o que está
deslocado ("incesto/Édipo") (cf. p.223-4).

8
bloqueado nesse sistema." (p.210) O descom- 13
da relação mãe/placenta/filho sintetiza todo
passo entre o "incesto como ele é desejado" e este complexo, por ser a manifestação con-
o "incesto como ele é proibido" corresponde- creta da situação limite que é o objeto do
ria, portanto, ao trajeto percorrido pelo recalcamento.
movimento já referido que vai do corpo ple-
no da terra (fluxo primordial intensivo) ao "Tudo repousa na placenta tornada terra, o
território marcado do socius (sistema em inengendrado, corpo pleno de antiprodução [...]. É que
extensão). Não cabe aqui nos aprofundarmos a placenta, enquanto substância comum à mãe e à
no processo de confusão entre o representan- criança, parte comum de seus corpos, faz com que
esses corpos não sejam como uma causa e um efeito,
te recalcado e o representante deslocado no mas, todos os dois, produtos derivados dessa mesma
regime da MCC (caracterizado pelo Édipo), substância em relação à qual o filho é gêmeo de sua
mas sim compreender o movimento trans- mãe [...]. Eu sou o filho, e também o irmão de minha
formador essencial (que transforma mãe, e o esposo de minha irmã, e meu próprio pai."
intensidades ambíguas em sistemas discerni- (p.201)
bilizados em extensão) a que dá origem o
descompasso entre ambos na proibição do A percepção de que existem duas
incesto. linhagens, "uma contínua, germinal, [...] on-
É o deslocamento do limite que faz de o plasma germinativo forma uma
com que os fluxos, que de outra forma seriam linhagem imortal e contínua, que não depen-
incompatíveis com o socius, circulem pelo de dos corpos, mas de que dependem, ao
seu interior. Mas (e este é o ponto crucial contrário, os corpos dos pais tanto quanto os
para a MTP), no regime territorial, este des- das crianças", e outra "somática e descontí-
locamento depende de uma operação nua, apenas submissa à sucessão das
concreta (histórica) de repressão-recalque, da gerações" (p.201), é crucial para compreender
representação recalcante (alianças históricas) que se a primeira antecede a segunda, é a
sobre o representante recalcado (que é a- segunda que determina a continuidade da
histórico), para que o representante desloca- primeira. Assim, o incesto como é desejado
do (as categorias) se instaure, não é propriamente o incesto na forma como
retroativamente, sobre ele. Grosso modo, é proibido, pois aquele refere a uma realidade
estamos aqui constatando que o incesto surge que precede os termos e categorias que cons-
na cabeça do pai, não do filho, e que este só o tituem este. Mas é apenas assim, recalcando
assimila enquanto representante recalcado o irrepresentável, que se inaugura o sistema
(objeto do desejo) na medida em que a aque- de representações. É apenas deslocando o
le (que gera a representação recalcante) limite do socius para dentro dele através de
projeta sobre o fluxo germinal intensivo ca- um artifício retroativo que a produção dese-
tegorias discernibilizadas (pai, mãe, filho, tio, jante passa a tomar a forma de um socius,
irmã, etc.) que ainda não são dadas, mas que maquinando casamentos, inaugurando siste-
têm o efeito retroativo de deslocar o limite mas de alianças e dívidas. É apenas assim
absoluto do socius (fluxos não-codificáveis) que o fluxo germinativo intenso da terra pode
para o seu interior, e fazer da interpenetração ser transformado em um sistema em exten-
simultânea destas categorias e das pessoas são, e o inengendrado inicia o processo
que elas discernibilizam (dos nomes – mãe,
filho, etc. – e das pessoas – organismos bio- nomes subsistem, e não designam mais que estados
12 intensivos pré-pessoais, que poderiam também 'esten-
lógicos ) o representante deslocado. O caso
der-se' a outras pessoas, tal como ao chamar-se de
mamãe à esposa legítima, ou de irmã à esposa. [...] É
12 que não se pode nunca gozar ao mesmo tempo da
"A possibilidade do incesto exigiria as pessoas e os pessoa e do nome – o que seria, no entanto, a condição
nomes, filho, irmã, mãe, irmão, pai. Ora, no ato do do incesto." (p. 205)
incesto, podemos dispor de pessoas, mas elas perdem 13
o nome, já que esses nomes são inseparáveis da proi- Apresentado pelos autores em relação a um mito
bição que os proíbe como parceiros; ou, então, os Dogon.

9
produtivo de engendrar-se a si mesmo. A estendida. [...] É a grande memória noturna da filiação
impossibilidade do incesto como ele é proi- germinal intensiva que é recalcada em proveito de
uma memória somática extensiva, feita das filiações
bido não compromete, enfim, a eficácia da tornadas estendidas (patrilineares ou matrilineares) e
proibição, pois é no intervalo entre este simu- das alianças que elas implicam. [...] O sistema em
lacro (representante deslocado, ao qual "o extensão nasce das condições intensivas que o tornam
desejo se deixa prender como que ao próprio possível, mas reage sobre elas e as anula, recalca-as, e
impossível"; p.206) e o seu substrato material só lhes deixa como expressão, a mítica. Ao mesmo
temp o, os sinais deixam de ser ambíguos e se determi-
(representante recalcado, do qual ele não nam em relação às filiações estendidas e as alianças
pode se desvincular) que o desejo maquina o laterais; as disjunções se tornam exclusivas, limitati-
socius. Alcançamos aqui, portanto, a forma vas [...]; os nomes, as denominações não designam
como se dá o processo de distensão das in- mais estados intensivos, mas pessoas discerníveis. A
14 discernibilidade se coloca sobre a irmã e a mãe como
tensidades puras em sistemas em extensão . esposas proibidas. É que as pessoas, com os nomes
que as designam agora, não preexistem às proibições
"Em resumo, um sistema somático em exten- que as constituem como tais. Mãe e irmã não preexis-
são só pode constituir-se na medida em que as tem à sua proibição como esposas." (p.202-3)
filiações se tornam estendidas, correlativamente às
alianças laterais que se instauram. É pela proibição do Tendo, assim, compreendido a neces-
incesto com a irmã que se ata a aliança lateral, é pela sidade, o mecanismo, e as conseqüências do
proibição do incesto com a mãe que a filiação se torna
movimento inaugural da máquina social (a
passagem da ordem intensiva dos fluxos não-
14 codificáveis para a extensiva dos fluxos codi-
Mas, afinal, por que não pode haver socius sem
recalcamento?. Cito aqui algumas considerações dos ficados porque deslocados), resta agora
autores sobre este ponto, que é crucial para a compre- conhecer a forma como este movimento se
ensão do funcionamento de qualquer máquina social: manifesta nos mitos e rituais. Afinal, por que
"Mas por que o implexo ou influxo germinal é recal- é a mítica a única expressão que resta das
cado, ele que é, entretanto, o representante territorial condições intensivas?
do desejo? É que... aquilo a que ele remete, a título de
representante, é um fluxo que não seria codificável,
que não se deixaria codificar – precisamente o terror M ITO
do socius primitivo. Nenhuma cadeia poderia separar-
se, nada poderia ser extraído; nada passaria da filiação

S
egundo Deleuze e Guattari, "o recurso
à descendência, mas a descendência seria perpetua- ao mito é indispensável, [...] porque só
mente rebatida sobre a filiação no ato de reengendrar-
se a si mesmo; a cadeia significante não formaria ele determina, conforme ao pensamen-
nenhum código, ela emitiria apenas sinais ambíguos e to e à prática indígenas, as condições intensi-
seria perpetuamente roída por seu suporte energético; vas do sistema (inclusive do sistema da
o que escorreria sobre o corpo pleno da terra seria tão produção)." (p.199-200) O recurso ao mito é
desencadeado quanto os fluxos não codificados que
indispensável, portanto, porque só ele é ca-
deslizam sobre o deserto de um corpo sem órgãos. [...]
O fluxo germinal é tal que dá no mesmo dizer que paz de operar a legitimação e re-atualização,
tudo passaria ou escorreria com ele, ou, ao contrário, não só da proibição do incesto (que tem posi-
que tudo seria bloqueado. Para que fluxos sejam codi- 15
ficáveis é preciso que sua energia se deixe quantificar
ção de destaque ), como também de toda a
e qualificar – é preciso que extrações de fluxo se fa- maquinaria de devir-social em que o "homem
çam em relação com separações de cadeia –, é preciso primitivo" se vê iniciado. Como uma narra-
que alguma coisa passe, mas também que alguma ção que traz em sua forma e conteúdo o
coisa seja bloqueada, e que alguma coisa bloqueie ou
faça passar. Ora, isso é possível apenas no sistema em
extensão que discernibiliza as pessoas, e que faz dos
sinais um uso determinado, das sínteses disjuntivas 15
um uso exclusivo, das sínteses conectivas um uso Lemos, numa referência a outro estudo de Robert
conjugal. É esse realmente o sentido da proibição do Jaulin (La Mort Sara, Plon, 1967): "O discurso mítico
incesto concebida como a instauração de um sistema tem como tema a passagem da indiferença ao incesto à
físico em extensão: deve-se procurar em cada caso o proibição do incesto: implícito ou explícito, esse tema
que passa do fluxo de intensidade, o que não passa, o é subjacente a todos os mitos; ele é, portanto, uma
que faz passar ou impede de passar." (p.207) propriedade formal dessa linguagem" (p.203).

10
processo de distensão primordial que funda o "homem primitivo" atualiza não sobrevive à
socius, o mito não só coloca o "homem pri desterritorialização inerente à sua forma de
mitivo" em contato com a sua filiação germi- apreensão textual por um "homem moderno".
nal intensiva (o herói cultural, trickster, deus, O deslocamento operado pelo mito,
personagem mítico, corpo pleno), como tam- ao colocar a ordem de intensidades em cone-
bém lhe comunica todo o processo de xão ativa e produtora com o incesto, suas
transformação desde este estágio intensivo categorias e suas conseqüências, com a ori-
até o sistema somático em extensão em que gem do mundo estendido (território) e das
ele se encontra historicamente. Como repre- coisas conhecidas, com o início das alianças
sentação recalcante, ele opera e das relações de dívidas, enfim, com todo o
retroativamente, colocando seres (mesmo que sistema em extensão na forma como é expe-
ambíguos) onde só existem intensidades – rienciado pelo "homem primitivo", não chega
exigência esta ima-
nente à sua própria
forma concreta de
manifestação verbal,
que requer a repre-
sentação do
irrepresentável, e
portanto já um recal-
camento do fluxo
primordial.
Mas é impor-
tante lembrar que
"[s]e a representação
é sempre uma repres-
são-recalcante da
produção desejante,
isso ocorre, entretan-
to, de maneira muito
diversa, segundo a nunca a se descolar do processo de reprodu-
formação social considerada. [...] Não temos ção social, mantendo-se, assim, em
nenhuma razão para acreditar na universali- permanente (e evidente) descompasso com o
dade de um só e mesmo aparelho de representante recalcado. Como já vimos, é
recalcamento sócio-cultural." (p.133), que neste descompasso que se instala a produção
"[h]á sempre recalcamento social, mas o apa- social (desejo produtivo, produção desejan-
relho de recalcamento varia, notadamente de te), pois assim como a "família selvagem",
acordo com o que representa o papel do re- coextensiva ao campo social, opera, em seu
presentante sobre o qual ele incide." (p.234). microcosmo, a reprodução do socius macros-
Assim, se por um lado o mito abstrato e uni- cópico e assim conecta o "homem primitivo"
versal proposto por Lévi-Strauss em A ao seu devir social concreto, também o mito
Estrutura dos Mitos (1973:237-66) nos revela o faz, produzindo constantemente formas de
traços importantes da atividade estruturadora relação entre as categorias da representação
da inteligência humana, por outro ele obscu- recalcante (representante deslocado, como é
rece justamente o fato de que tudo muda proibido, o desejado desfigurado porque fi-
quando o representado pelo mito deixa de ser gurado) e o representante recalcado (fluxo
a representação recalcante e passa a der seu germinativo intensivo, corpo pleno da terra, o
representante deslocado, de que o substrato desejado em si). Tais relações produzidas
territorial de dívidas e alianças (contingente e pelo mito correspondem, assim, às engrena-
histórico) que a apreensão ritual do mito pelo gens que ligam as peças da MTP ao seu

11
motor imóvel, a terra: "...quase-causa da pro- confundida, e por isso mal compreendida,
dução e objeto do desejo (liga-se a ela o laço com a noção de "Queda" que caracteriza a
do desejo e de sua própria repressão)." mitologia cristã) . Esta passagem opera um
(p.179) "desmembramento do corpo pleno, uma anu-
O mito, portanto, não é apenas um lação da gemelidade, uma separação dos
"recurso expressivo do homem primitivo" sexos marcada pela circuncisão; mas tam-
(estória sobre os velhos tempos, atividade bém, uma recomposição do corpo em um
lúdica, visão metafórica do mundo, ou engo- novo modelo de conexão ou de conjugação,
do ideológico), mas sim engajamento uma articulação dos corpos por si mesmos e
produtivo de máquinas desejantes atuais e entre eles, [...] em resumo, toda uma arca de
ativas, contemporâneas de quem o narra e de alianças." (p.197) A forma como esta passa-
quem o escuta. Não existem dois mitos i- gem se dá, portanto, pode ser sintetizada na
guais, nem o mesmo mito na mesma imagem de um "corpo mítico" (pleno, indefi-
sociedade permanece sempre o mesmo. O nido, ambíguo, polivalente e "sem órgãos" –
invariável é apenas a necessidade dele, Terra) que se desmembra (em dedos, braços,
enquanto recalcamento de um limite real cotovelos, órgãos, etc.), se divide (em sexos,
16 espécies, grupos filiativos, tribos distintas,
pressentido que é então projetado sobre um
enfim, "toda uma arca de alianças" – territó-
começo primordial específico na forma de
rio), e abre espaço para toda uma
limite imaginário. Trata-se de dar forma ao
multiplicidade de corpos discernibilizados
informe (mesmo que o deformando), de co-
que passam então a ser maquinados sobre ele
municar o incomunicável, mas justamente,
num novo regime, não mais intensivo, mas
para proibi-lo e apresentá-lo como limite.
em extensão. A seqüência de acontecimentos
"Como imaginar esse pesadelo, a invasão do que conduzem de uma ordem à outra é sem-
socius por fluxos não codificados, que deslizam à pre narrada como acontecimento traumático
maneira de uma lava? Uma vaga de merda irreprimí- (quebra, ruptura, o "clímax" do mito), e cor-
vel como no mito do Velhaco, ou então o ni fluxo responde ao processo conhecido como
germinal intenso, o aquém do incesto como no mito "investimento coletivo de órgãos": produção
do Yourougou, que introduz a desordem no mundo,
agindo como representante do desejo." (p.224)
desejante em ato, desejo produtivo em ação.
O elo que conecta o mito ao ritual residiria,
As metáforas e imagens míticas (co- portanto, na atualização ritual do investi-
mo a "vaga de merda" ou o "influxo germinal mento coletivo de órgãos virtual narrado no
intenso") têm uma função prática de fazer o mito.
"homem primitivo" "imaginar esse pesadelo"
(que é irrepresentável por ser a própria "irre- RITUAL
presentabilidade"), e assim compreender e
uando afirmam que as sociedades de
cooperar com o próprio processo de recalca-
mento que o sistema de representações abre
para as máquinas desejantes; fazer o desejo
Q iniciação "compõem os pedaços de um
corpo; ao mesmo tempo, órgãos dos
desejar sua própria repressão. Basta conhecer sentidos, peças anatômicas e juntas", ou que
alguns poucos mitos "primitivos" para identi- as mitologias "cantam os órgãos-objetos par-
ficar, como traço recorrente, a ciais, e sua relação com um corpo pleno que
narração/projeção da já bastante conhecida os repele ou atrai: vaginas pregadas nos cor-
passagem desde uma ordem das intensidades pos das mulheres, pênis imenso partilhado
até os sistemas em extensão (normalmente entre os homens, ânus independente que se
atribui a um corpo sem ânus" (p.181), Deleu-
ze e Guattari estão nos apresentando este
16
"[N]ão há formação social que não pressinta ou não ponto de contato elementar entre os mitos e
preveja a forma real sob a qual o limite pode aconte- os rituais "primitivos". O investimento cole-
cer-lhe, e que ela conjura com todas as suas forças." tivo de órgãos liga o desejo ao socius, e
(p.223)

12
assim instaura no seu corpo pleno a produção ções descritas no mito inauguram no corpo
social e a produção desejante. A noção de social: uma memória estendida, das palavras
"investimento" vem aqui insistir na natureza e alianças, que só pode se consolidar através
produtiva/ativa do engajamento coletivo de do "recalcamento do influxo germinal inten-
máquinas desejantes: não estamos tratando so, grande memória bio-cósmica que faria
de um grupo de pessoas dadas (produtores), e passar o dilúvio sobre toda tentativa de cole-
nem do produto de seu trabalho (mercadoria), tividade." (p.241)
mas sim do processo de produção de pessoas
e objetos operado na MTP pelos deslocamen- "A máquina territorial primitiva codifica os
tos e recalques simbólicos e concretos fluxos, investe os órgãos, marca os corpos. [...] A
essência do socius registrador, inscritor, enquanto ele
efetuados pelas máquinas desejantes através se atribui as forças produtivas, e distribui os agentes
do sistema de representação. As referências de produção, reside nisso – tatuar, excitar, incisar,
míticas aos órgãos do recortar, escarificar, mutilar,
corpo pleno são, assim, cercar, iniciar. [...] [a marca-
re-atualizações de um ção] é um ato de fundação,
pelo qual o homem cessa de
investimento coletivo ser um organismo biológico
cuja função é, basica- e se torna um corpo pleno,
mente, criar os órgãos uma terra, sobre a qual seus
que serão capazes de órgãos se aferram, atraídos,
produzir e cortar os repelidos, miraculados con-
forme as exigências de um
fluxos que agora (de- socius. Que os órgãos sejam
pois que o sistema de talhados no socius, e que os
representação deslocou fluxos escorram sobre ele.
os limites com sua ope- Nietzsche diz: trata-se de
ratória retroativa) fazer para o homem uma
passarão pelo interior memória." (p.184)
do socius. Tal operação,
ao discernibilizar no É, portanto, a-
sistema em extensão os través da marcação do
órgãos que produzirão e corpo biológico tornado
aqueles que cortarão os pleno do "homem pri-
fluxos, nos conduzem mitivo" (a
finalmente àquilo que "mnemotécnica mais
Deleuze e Guattari cruel"; p.234) que se
chamam de "a mais alta tarefa da máquina opera o ni vestimento coletivo de seus órgãos
social" (p.180): a "codificação dos fluxos". (deslocamento dos limites do socius para seu
interior), cujos fluxos são então incorporados
A codificação dos fluxos pode ser ao sistema de dívidas e alianças e nele pas-
17
vista como a forma geral de uma série de sam a sofrer e produzir cortes e desvios . O
operações específicas que promovem o já recalcamento da "velha memória bio-
conhecido movimento de distensão das inten- cósmica" (p.234), por ser o primeiro deslo-
sidades para o sistema em extensão. camento do representante do desejo
Recalcamento, inscrição, marcação, nomea- 18
(recalcamento primário ), é assim a inicia-
ção, classificação, etc., são todas instâncias
específicas desta empresa fundamental da
máquina social. Porém, é a marca- 17
Este ponto foi retomado magistralmente por Pierre
ção/inscrição de signos no próprio corpo
Clastres no décimo capítulo de A Sociedade Contra o
biológico do "homem primitivo" ("tarefa que Estado (2003).
resume todas as outras"; (p.183) que inaugura, 18
em sua subjetividade, aquilo que as proibi- A relação entre o "recalcamento primário" (ligado
ao regime de intensidades do corpo pleno) e o secun-

13
ção do sujeito enquanto membro do socius, das são a própria materialização da memória
inauguração de uma memória das palavras, estendida inaugurada pela marcação. Mas
das alianças. Mas esta iniciação é também a para dar conta do funcionamento desta "eco-
introdução do "homem primitivo" em um nomia primitiva", cabe agora tratar daquilo
sistema de dívidas que preside a troca não que é apresentado como a "mola de uma tal
apenas de objetos ou favores, mas também de economia" (p.190), "forma primitiva da mais-
mulheres, espíritos, e tudo mais o que circule valia" (p.191), "peça indispensável a toda
na MTP. codificação dos fluxos" (p.208): a "mais-valia
de código".
"Toda a estupidez e o arbitrário das leis, toda
Referindo-se à "fórmula célebre" de
a dor das iniciações, todo o aparelho perverso da re-
pressão e da educação, os ferros rubros e os Marcel Mauss acerca das obrigações envol-
procedimentos atrozes só têm esse sentido, domar o 20
vidas no "sistema primitivo de dádivas" ,
homem, marcá-lo na sua carne, torná-lo capaz de
aliança, formá-lo na relação credor-devedor que, dos
Deleuze e Guattari sintetizam da seguinte
dois lados, resulta ser um assunto de memória (uma forma a noção de mais-valia de código:
memória tendida para o futuro)." (p.241)
"[C]ada separação de cadeia produz, de um
É pondo, "à força, a produção no de- lado ou de outro, nos fluxos de produção, fenômenos
de excesso e de carência, de falta e de acumulação,
sejo", e inserindo, "à força, o desejo na que se acham compensados por elementos não trocá-
produção e na reprodução sociais", que os veis do tipo prestígio adquirido ou consumo
rituais de marcação fabricam os homens e distribuído. [...] Em resumo, as separações de cadeia
seus órgãos enquanto "peças e engrenagens significante, segundo as relações de aliança, engen-
dram mais -valias de código ao nível dos fluxos, donde
da máquina social" (p.184). Os "blocos de
decorrem as diferenças de estatuto para as linhas filia-
dívida abertos, móveis e finitos", surgem, tivas (por exemplo, a posição superior ou inferior dos
portanto, como o sentido em que correm os doadores ou tomadores de mulheres). A mais -valia de
fluxos que movimentam esta máquina, que é código efetua as diversas operações da máquina terri-
social e desejante. "Abertos" porque indisso- torial primitiva: separar segmentos de cadeia,
organizar as extrações de fluxo, repartir as partes que
ciáveis das contingências concretas e
cabem a cada um." (p.190-1).
históricas, "móveis" pois polissêmicos e mul-
tivalentes, "finitos" porque operantes em uma Assim, a mais-valia de código é ima-
19
máquina segmentária , estes blocos de dívi- nente ao mecanismo da MTP enquanto
produto das separações de cadeia e produção
dário (que age sobre o sistema já em extensão) é apre- de novas separações. Mas como a mais-valia
sentada da seguinte forma: "[...] a inscrição sobre o
socius, com efeito, é o agente de um recalcamento
secundário ou 'propriamente dito', que se acha neces- relatividade dos segmentos. É que cada segmento só
sariamente em relação com a inscrição desejante do mede seu comprimento, e existe como tal, por oposi-
corpo sem órgãos, e com o recalcamento primário que ção a outros segmentos, em uma série de degraus
este exerce já no domínio do desejo; ora, essa relação ordenados, uns em relação aos outros: a máquina
é essencialmente variável." (p.233-4) Em outras pala- segmentária mistura competições, conflitos e rupturas
vras: se para se submeter à proibição do incesto – através das variações de filiação e das flutuações de
recalcamento secundário – é necessário se reconhecer aliança. Todo o sistema evolui entre esses dois pólos,
nas categorias desta proibição (pois seus efeitos dife- o da fusão por oposição a outros grupos, o da cisão
rem no caso da mãe, do pai, do filho, etc.) – por formação constante de novas linhagens que aspi-
recalcamento primário –, a variabilidade da relação ram à independência, com capitalização de alianças e
reside na natureza provisória e contingente deste reco- de filiação" (p.193-4).
nhecimento. 20
"[O] espírito da coisa dada [...] faz com que os dons
19
Por "máquina segmentária" os autores se referem à devam ser devolvidos de maneira usurária, sendo
forma segmentária das relações hierárquicas entre as signos territoriais de desejo e de potência, princípios
unidades filiativas (grupos de descendência) e as uni- de abundância e de frutificação de bens." (p.191). O
dades territoriais (grupos de aliados). "Entre o texto de Mauss a que se referem é, provavelmente, o
inalienável de filiação e o móvel de aliança, todas as Ensaio Sobre a Dádiva: Forma e razão da troca nas
espécies de penetrações vêm da variabilidade e da sociedades arcaicas (Mauss, 1974:37-184 [1924]).

14
de código surge em primeiro lugar? Trata-se como a mais valia que o olho tira". E se no
daquilo que Deleuze e Guattari chamaram de triângulo selvagem tudo é ativo, "tudo é agi-
"triângulo selvagem": "extraordinário com- do ou reagido" (p.240), e apenas o iniciado é
posto da voz falante, do corpo marcado e do passivo, é porque a ação não se encontra ao
olho que goza." (p.241) Máquina desejante, nível das pessoas, mas sim ao nível das séries
"sistema da dívida ou representação territori- de órgãos e objetos parciais que são maqui-
al", o triângulo selvagem consiste na relação 22
nados pelo triângulo . É preciso lembrar
entre três elementos que, no regime da MTP, aqui que os sistemas gráficos não têm, na
conservam uma autonomia relativa: os pares MTP, as mesmas características que adqui-
21
"voz-audição", "mão-grafia" e "olho-dor" . rem nas máquinas sociais posteriores. A
"[T]erritório de ressonância e de retenção, escrita alinhada sobre a voz (como nós a co-
teatro da crueldade" o triângulo selvagem nhecemos) é desconhecida (ou antes,
não é mais do que a "máquina primitiva de conjurada) na MTP, pois resulta de uma cris-
marcação", informada pelo mito e formadora talização das relações entre ambas ao nível
de mitos, porta de entrada do socius constru- de uma voz fictícia (a gramática) que elimina
ída à força no seu corpo pleno, inauguração a autonomia relativa (sua multivocalidade)
de todo o sistema em extensão de dívidas e que fazia gozar o olho coletivo quando diante
alianças (por ser a dívida a unidade de alian- da sua convergência forçada e dolorida na
ça, e a aliança a própria representação carne do iniciado. "[U]ma dança sobre a ter-
inscrita e inscritora), e produção da mais- ra, um desenho sobre uma parede, uma marca
valia de código. E o segredo da produção sobre o corpo" (p.238), são todos exemplos de
desta mais-valia reside justamente na tão um "sistema gráfico independente da voz,
ressaltada "crueldade" desta operação. que não se alinha sobre ela e não se subordi-
na a ela, mas lhe é conectado, coordenado
"O paciente nos rituais de aflição não fala, 'em uma organização de certa maneira radi-
mas recebe a fala. Ele não age, mas é passivo sob a
ação gráfica, recebe o selo do signo. E sua dor, o que é
ante' e pluridimensional" (p.239); um
ela senão um prazer para o olho que a olha, o olho "geografismo primitivo" que, preservando a
coletivo ou divino que não está animado por nenhuma autonomia relativa entre voz e escrita, som e
idéia de vingança, mas apenas apto a captar a relação sentido, movimento e rastro, preserva tam-
sutil entre o signo gravado no corpo e a voz saída de bém as características próprias de cada um. O
uma face – entre a marca e a máscara. Entre esses dois
elementos do código, a dor é como a mais -valia que o
signo gravado no corpo, portanto, "não é
olho tira, captando o efeito da fala ativa sobre o corpo, semelhança ou imitação, nem efeito de signi-
mas também a reação do corpo enquanto ele é agi- ficante, mas posição e produção de desejo."
do."(p.240) (p.239) Não cabe ao operador do ritual expli-
car ao iniciado o significado do signo que
Mas se "[a] dor é como a mais valia está marcando em sua carne (como se a pró-
que o olho tira", não se trata apenas da dor pria operação de marcação estivesse
física experienciada no ato de marcação; a referindo a uma instância abstrata que lhe é
memória que fica desta dor, que é também superior), mas sim ao próprio signo criar este
memória de uma passagem sem retorno para sentido no ato de sua marcação. E é justa-
o círculo dos iniciados/marcados, também "é mente aí que reside aquilo que Deleuze e

21 22
É importante notar que não se tratam nem de obje- Um timbre distinto de voz, um ritmo especial da
tos (voz, mão, olho) dados e nem de ações (fala, fala, um objeto de incisão escolhido cuidadosamente,
grafia, dor) abstratas, mas sim dos agregados ativos e uma parte do corpo particularmente importante, uma
específicos que uma voz falante estabelece com um período de tempo estipulado, um espaço geográfico
ouvinte, uma mão escritora com uma grafia, e um olho específico, etc. "As unidades nunca estão em pessoas,
vidente com a dor produzida pelo processo. "[V]oz no sentido próprio ou 'privado', mas em séries, que
que fala ou salmodia, signo marcado em plena carne, determinam as conexões, disjunções e conjunções de
olho que retira gozo da dor" (p.240). órgãos." (p.181)

15
Guattari chamaram de "o alto coeficiente de este processo acabou se realizando na MCC.
afinidade entre a MTP e a máquina desejan- Para o presente texto, basta percebermos que
te". se o que determina o coeficiente de afinidade
entre a máquina social e as máquinas dese-
COEFICIENTE DE AFINIDADE jantes é a capacidade efetiva destas de
influenciarem no devir daquelas, dando con-

A
noção de "coeficiente de afinidade" tinuidade assim ao seu próprio devir.
vem sugerir que entre as máquinas Deleuze e Guattari nos mostraram
sociais (nível molar) e as máquinas que "os códigos primitivos, no momento
desejantes (nível molecular) podem existir mesmo em que se exercem com um máximo
graus variados de afinidade, conforme: (1) de vigilância e de extensão sobre os fluxos
"seus regimes respectivos sejam mais ou me- do desejo, encadeando-os num sistema de
nos próximos"; (2) "as segundas tenham mais crueldade, guard[a]m infinitamente mais afi-
ou menos chance de fazer passar suas cone- nidade com as máquinas desejantes do que a
xões e suas interações no regime estatístico axiomática capitalista, que libera entretanto
das primeiras"; (3) "as primeiras operem mais fluxos decodificados." (p.234)
ou menos um movimento de deslocamento
em relação às segundas"; (4) "os elementos "É que o desejo não está ainda na armadilha,
ainda não foi introduzido num sistema de impasses, os
mortíferos permaneçam presos no mecanis- fluxos não perderam nada da sua polivocidade, e o
mo do desejo, encaixados na máquina social, simples representado na representação não tomou
ou, ao contrário, se reunam em um instinto ainda o lugar do representante." (p.234)
de morte estendido em toda a máquina social
e esmagando o desejo" (p.233). Em outras palavras, devemos nos
Lembrando que as máquinas sociais perguntar: como se estabelece a relação entre
são um engajamento coletivo de máquinas o representante deslocado e o representante
desejantes, e que as máquinas desejantes são recalcado em uma sociedade específica?
agenciamentos específicos de partes e peças Qual é a margem de indeterminação aberta
da máquina social, temos que as máquinas pelo descompasso entre o ambos (intervalo
sociais, mesmo dependendo e se originando onde se instala a produção desejante)? Como
das máquinas desejantes, podem desenvolver os símbolos deste sistema de representação
mecanismos que limitem a ação destas. Isso se organizam sobre a superfície de inscrição
se dá pela própria natureza do sistema de do socius? Encontra o desejo os elementos
representação, recalcador por princípio, que adequados para maquinar, para fazer-se dese-
não só permite como exige que o represen- jo produtivo?
tante deslocado do desejo se confunda com o A MTP, como se viu, é bastante feliz
representante recalcado. A transformação, na a este respeito. Mesmo quando as categorias
MCC, dos limites dos socius (que antes eram da representação recalcante conseguem efeti-
absolutos, deslocados ou imaginários) em vamente deslocar o representante do desejo,
limites relativos, é a realização mais desen- este deslocamento não tem nunca o efeito de
volvida que conhecemos deste processo. um descolamento do sistema das contingên-
Neste caso, a reprodução social macroscópi- cias concretas, das maquinações históricas,
ca passa a se dar à revelia da pro-
dução desejante microscópica, e
temos um socius, onde o desejo,
ao invés de maquinar o devir
social, é maquinado por ele, sob
pena de comprometer a própria
continuidade deste devir. Mas
não cabe aqui entrarmos nas
complexidades acerca de como

16
das dívidas contraídas e das alianças efetu- (ô) INTENSIDADE EXTENSÃO (ó)
adas. A operação de inscrição do triângulo terra território
selvagem é, portanto, um lastro de desejo numen socius
produção desejante produção social
que mantém a MTP sempre em relação máquina desejante máquina social
direta com as máquinas desejantes que a molecular molar
constituem. "Um símbolo, um fetiche são fluxo decodificado/não-codificado fluxo codificado/deslocado
regime de um só e mesmo ser ou regime de fluxos variados, qualita-
manifestações de máquina desejante" fluxo, variando em intensidade tivamente diferenciados
(p.233); "[u]m símbolo é unicamente uma variação de intensidades variação de qualidade
inclusão, ilimitado exclusão, limites
máquina social que funciona como máqui- disjunções inclusivas sínteses disjuntivas
na desejante, uma máquina desejante que corpo sem órgãos órgãos
funciona numa máquina social, um inves- corpo pleno objetos parciais, membros
corpo mítico corpo biológico/corpo social
timento da máquina social pelo desejo." bi-sexualismo divisão dos sexos
(p.229) Polívocos, inscritos na carne, liga- sinais ambíguos sinais definidos
signos neutros signos positivos ou negativos
dos ao corpo pleno do socius, tais símbolos implexo germinal complexo somático
têm poderes insuspeitados. E este será, tal- variações pré-pessoais de intensi- pessoas discernibilizadas
vez, o motivo pelo qual se pode dizer que dade
nomes designam estados intensi- nomes designam pessoas discerní-
os signos, na MTP, "comandam as coisas vosveis
que significam", e que o artesão dos signos, fluxo germinal intensi- figura edipiana extensi-
vo=representante do desejo va=representante deslocado
"longe de ser um simples imitador, executa indiferença ao incesto proibição do incesto
uma obra que lembra a obra divina" (p.239). influxo germinal de intensidade superfície de inscrição extensa
linhagem germinativa aliança
linhagem contínua e germinal linhagem somática e descontínua
O FUNCIONAMENTO DA M ÁQUINA filiação intensiva filiação estendida (linhagens,
hierarquias)
memória bio-cósmica, bio- memória de palavras, alianças,

C
omo vimos, as máquinas sociais são filiativa estendida (que tende para o futuro,
por separar o presente em extensão
resultado molar de um engajamento do passado intenso)
coletivo de máquinas desejantes grande memória noturna da memória somática extensiva
moleculares. Vimos também que as máqui- filiação germinal intensiva
vertical horizontal/lateral
nas desejantes são agrupamentos QUADRO 1
específicos e contingentes de objetos e par- 23
histórica bastante específica daquele) ? Co-
tes de um corpo pleno do socius enquanto
mo demonstram os estudos de Guattari sobre
instância maquinizante, o que torna impossí-
vel o estabelecimento de uma relação causal os ritornelos, "[a] distância entre o homem e
o animal não libera as essências distintas,
entre ambas (uma pressupõe a existência
prévia da outra). E isso apenas comprova um mas agenciamentos diferentes de seus com-
ponentes de semiotização", sendo
fato já bem conhecido (apesar de continua-
"impossível de apreender as vias de passa-
mente recalcado): a formação de sociedades
animais (com linguagem, uso de ferramentas, gem entre o inato, o saber e a experiência,
entre as codificações biológicas, a adaptação
e até aprendizado) antecede o surgimento da
humanidade. Apesar de ter feito deste o seu ecológica e as semiotizações coletivas"
mote, a sociobiologia findou por fazer desan- (Guattari, 1988:116-7). A noção de que, desde
dar a receita ao definir-se como "o estudo o início, homens e ferramentas são peças de
sistemático da base biológica de todos os
comportamentos sociais", delegando assim 23
os "detalhes específicos da cultura" à condi- Tim Ingold apontou com maestria a contradição que
está na base da visão biológica do ser humano: "[T]he
ção de um "sistema auxiliar" (Wilson,
historical process, which purports to raise humanity
1980:284). Afinal, por que a cultura seria um onto a level of existence above the purely biophysical,
"sistema auxiliar" em relação ao "sistema is presupposed by science as providing the platform
biológico" se este só existe com aquele (e from which its practitioners – who are of course hu-
mais precisamente com uma manifestação mans too – can launch their declarations to the effect
that the human is just another species of nature" (In-
gold, 2000:388).

17
uma máquina soci- FLUXOGRAMA ENERGÉTICO DA MTP estatístico/molar
al, desloca a ênfase CICLO VASTO CICLO das máquinas soci-
dos organismos e ESTREITO ais através da sua
FLUXOS DE CADEIAS DE
objetos para os PRODUÇÃO INSCRIÇÃO
limitação parcial.
processos produti- Extração de Cadeia Estoque ENERGIA Mas, uma vez ini-
vos e criativos Fluxo Significante Filiativo POTENCIAL ciado este
engendrados por ñ processo, uma vez
Orientação Separação Blocos ENERGIA
eles. Portanto, se de Fluxo de cadeia de Dívidas e CINÉTICA deslocados e fluin-
não existe nenhum Alianças ÷ ò ø do no interior do
QUADRO 2
substrato material socius, os fluxos
que distinga a humanidade do resto do uni- de desejo passam a ser extraídos e desviados
verso, vamos encontrar esta distinção na em função das determinações dos grupos
noção de máquina social: produtora de seres filiativos, blocos de alianças, e das diversas
humanos, por corresponder a seu processo de operações da MTP.
autoprodução desejante. O Quadro 2 busca sintetizar tais ope-
Mas ao buscar no desejo (e não no rações. Ele apresenta dois ciclos (um vasto,
cérebro, no DNA, no polegar opositor ou em entre os fluxos de produção e as cadeias de
qualquer outro "bode expiatório") o princípio inscrição, e outro estreito, entre o estoque
produtivo do socius, Deleuze e Guattari des- filiativo e os blocos de dívidas e alianças), e
locam a nossa atenção, de um mundo dado e tem duas dimensões: lendo as colunas, te-
que foi progressivamente dominado pelo mos as operações de fluxo (extração e
homem para um mundo cuja formação ainda orientação), as operações de cadeia (signifi-
está em andamento, e na qual o homem tem cante e de separação), as unidades de filiação
papel criador. Isto faz com que a linha evolu- e aliança, e os estados energéticos (potencial
tiva [?]ð[primatas]ð[homem primitivo]ð ou cinético); lendo as linhas, temos a consti-
[homem bárbaro]ð[homem civilizado], cujo tuição do estoque filiativo pelas extrações de
início não podemos traçar, se transforme em fluxo realizadas pela cadeia significante
um movimento que parte de um fluxo inten- (concentração energia potencial do sistema),
sivo (único, primordial, "grande estase e temos a produção dos blocos de dívidas e
inengendrada", pura intensidade, de onde alianças através das orientações de fluxo ope-
tudo provém e para o qual tudo retorna), e radas pelas separações de cadeia (gasto de
que se desdobra, pela sua contínua divisão, energia cinética do sistema) 24 . Um ponto
na criação de um espaço em extensão; um
espaço sobre o qual se maquinam os corpos e
objetos, e que é, por sua vez, modificado e
re-criado por eles. O Quadro 1 busca tipificar 24
"Há como que um ciclo vasto dos fluxos de produ-
os dois pólos ideais entre os quais se dá, no ção e das cadeias de inscrição, e um ciclo mais
caso da MTP, esse movimento que podería- estreito, entre os estoques de filiação que encadeiam
mos chamar de "distensão". os fluxos e os blocos de aliança que fazem fluir as
Talvez possamos pensar no fluxo in- cadeias. [...] As extrações de fluxo constituem um
tensivo como sendo a eletricidade, que não estoque filiativo na cadeia significante; mas inversa-
só passa através dos cabos e peças das má- mente, as separações de cadeia constituem dívidas
móveis de alianças, que orientam e dirigem os fluxos.
quinas dando-lhes movimento, mas também [...] Tudo se passa como se o estoque constituísse uma
as constituem ao nível microscópico, enquan- energia superficial de inscrição ou de registro, a ener-
to um agregado de prótons e elétrons, cargas gia potencial do movimento aparente; mas a dívida é a
elétricas de intensidades variadas. O movi- direção atual desse movimento, energia cinética de-
mento que vai das intensidades para o terminada pelo caminho respectivo dos dons e
contradons sobre essa superfície. [...] Não apenas os
sistema em extensão corresponde, portanto, fluxos e as cadeias, mas os estoques fixos e os blocos
ao movimento que faz passar as determina- móveis, enquanto implicam, por sua vez, relações
ções moleculares do desejo no regime entre cadeias e fluxos nos dois sentidos, estão num
estado de relatividade perpétua: seus elementos vari-

18
importante aqui é a relação problemática homem. Mas uma marcação é sempre marca-
entre a filiação e a aliança. Nos mitos, a ali- ção de alguma coisa, e é a proibição do
ança é apresentada "como sobrevindo a um incesto que corresponde ao primeiro desvio
certo momento nas linhas filiativas", mas, de fluxo da MTP. É preciso que haja socie-
num outro sentido podemos afirmar que ela dade para que haja a proibição do incesto
"já esteja aí desde sempre " (p.197), que "nes- (como vimos, ele surge na cabeça do pai),
se sistema em extensão, não há filiação porém, é ele o ato inaugural das sociedades
primeira, nem de primeira geração ou de tro- propriamente humanas. Proibido de possuir
ca inicial, mas sempre e já alianças" (p.199). sua própria mãe, e assim consumir seu supor-
Isso se dá porque os sistemas de parentesco te energético no infinito re-engendrar-se, o
não são um "exercício de [...] combinatória filho deve sair em busca de uma esposa, o
lógica, regulando o jogo das trocas, como que coloca em movimento o sistema de dívi-
queria Lévi-Strauss", mas sim "um sistema das e alianças intertribais que a antropologia
físico que se exprimirá naturalmente em ter- tanto conhece. O importante, porém, é perce-
mos de dívidas" (p.199). ber que tal sistema não parte da deliberação
de negociantes com interesses convergentes
"Filiação e aliança são como que duas formas (como se um sistema inicialmente em equilí-
de um capital primitivo; capital fixo ou estoque filiati- brio fosse temporariamente desequilibrado),
vo, capital circulante ou blocos móveis de dívidas. mas de uma disfunção inerente à máquina
Correspondem-lhes duas memórias, uma bio-filiativa,
social: um "sistema de crueldade" que inau-
outra de aliança e de palavras." (p.186)
gura a dívida, a memória de um descompasso
entre o fluxo intensivo desejado e o sistema
A filiação é "administrativa e hierár-
em extensão representado, e o desejo produ-
quica", enquanto que a aliança é "política e
tivo de percorrê-lo. Mas não se trata de uma
econômica, e exprime o poder enquanto ele
falta que um dia será satisfeita. O fluxo in-
não se confunde com a hierarquia nem se
tensivo desejado é imanente ao corpo pleno,
deduz dela, [e] economia, enquanto ela não
que é também o corpo do iniciado, e o seu
se confunde com a administração" (p.186). recalcamento é condição necessária para a
Estamos falando aqui de uma economia que, produção social. Trata-se, na verdade, daqui-
se obedece ao princípio marxista da determi- lo que chamamos de disfunção funcional.
nação infra-estrutural (cf. p.187), difere do A proibição do incesto, portanto, ope-
capitalismo ao colocar no coração desta in- ra o próprio devir social, na medida em que a
fra-estrutura o desejo. O desejo maquina as "família selvagem" é coextensiva ao seu
alianças a partir das linhas filiativas, mas não campo de produção e reprodução. O recal-
é determinado por elas. "Não há, portanto, camento da memória filiativa intensa, ao
nenhum momento em que a aliança derivaria produzir os limites do socius (para além dos
da filiação, mas todas as duas compõem um quais não se pode ir sem destruí-lo), inaugura
ciclo essencialmente aberto onde o socius um sistema de representações que, bloquean-
age sobre a produção, mas, também, onde a do parcelas de fluxos, inicia o movimento de
produção reage sobre o socius." (p.187) A distensão, produtor dos descompassos entre o
questão não se resolve a não ser que entre em desejado e o seu representante, onde se insta-
ação o mecanismo mítico/ritual de recalca- la então o desejo produtivo.
mento da memória intensa de filiação que, à O recurso ao mito é indispensável
força, lhe imponha (mas nunca com pleno pois é ele a voz que comunica o incomunicá-
sucesso) uma memória estendida de alianças vel, e traça todo o processo que legitima a
contingentes. sua proibição no contexto concreto experien-
É a marcação dos corpos que corta os ciado pelo "homem primitivo". Em conjunto
fluxos, e inaugura esta memória estendida no com uma mão que grava no corpo pleno do
iniciado a marca do território, e com um olho
am, mulheres, bens de consumo, objetos rituais, direi- que observa o corpo agido e reagido retiran-
tos, prestígios e estatutos." (p.189-90)

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do da dor uma mais-valia de código (que REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
corresponde à memória agora estendida), a
voz do mito opera o investimento coletivo de BERGSON, Henri – 1999 – Matéria e Memória:
órgãos, que transforma então este corpo em Ensaio sobre a relação do corpo com o
espírito, Trad. Paulo Neves, Martins Fontes,
corpo social, órgão do socius, peça da má-
São Paulo [1939]
quina social. O ritual de marcação é assim CLASTRES, Pierre – 2003 – A Sociedade Contra o
"ato de fundação", que coloca, "à força", a Estado: Pesquisas de Antropologia Política,
produção no desejo e o desejo na produção e Trad. Theo Santiago, Cosac&Naify, São Pau-
reprodução social. Mas para ser eficaz, é ne- lo [1973]
cessário que os três lados deste triângulo CONDORCET, Marie J.A.N.de C – 1993 – Esboço de
selvagem mantenham a autonomia relativa um quadro histórico dos progressos do espí-
rito humano, Editora da Unicamp, Campinas
que garante à mão-grafia, à voz-audição, e ao [1793]
olho-dor a manutenção de um alto coeficien- DELEUZE, Gilles – 1999 – Bergsonismo, Trad. Luiz
te de afinidade entre a máquina social e as B.L. Orlandi, Ed.34, São Paulo
máquinas desejantes. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix – 1976 – O
O fim desta estória se dá, seja na Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia,
transformação da MTP em MDB nos grandes Trad. Georges Lamazière, Imago, Rio de Ja-
impérios (quando a codificação é englobada neiro [1972]
INGOLD, Tim – 2000 – The Perception of the
pela sobrecodificação como principal opera- Environment, Routledge, London
ção de reprodução da máquina social), seja LÉVI-STRAUSS, Claude – 1973 – Antropologia Es-
na transformação dela pela chegada da MCC trutural, Trad. Chaim S. Katz e Eginardo
no processo colonizador (quando a codifica- Pires, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro
ção é colocada em segundo plano pelo [1958]
processo de descodificação generalizada). GUATTARI, Félix – 1992 – Caosmose: Um novo
paradigma estético, Trad. Ana Lúcia de Oli-
Todo o esforço da MTP em codificar os flu-
veira e Lúcia Cláudia Leão, Ed.34, Rio de
xos, domando-os na formação do socius e Janeiro
desenvolvendo mecanismos de controle que MAUSS, Marcel – 1974 – Sociologia e Antropologia,
dêem conta de suas disfunções, são desloca- E.P.U. e EDUSP, São Paulo
dos do centro da reprodução social ao serem MERLEAU-PONTY, Maurice – 1996 – Fenomenolo-
assaltados, inadvertidamente, por uma má- gia da Percepção, Trad. Carlos Alberto
quina social de funcionamento diverso, com Ribeiro de Moura, Martins Fontes, São Paulo
[1945]
outro corpo pleno, e outro regime de máqui- SIMONDON, Gilbert – 1992 – The Genesis of the
nas desejantes. “Ela previu tudo, codificando Individual, Trad. Mark Cohen e Sanford
a dor e a morte – salvo a maneira pela qual Kwinter, in CRARY, Jonathan; KWINTER,
sua própria morte ia chegar-lhe de fora.” Sanford (Eds.), Incorporations, Zone, New
(p.242). Trata-se, no entanto, de assunto para York, pp.296-319
outro texto.

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