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ARTIGO ARTICLE
Escola: lugar de estudar e de comer

School: a place for studying and eating

Maria do Carmo Soares de Freitas 1


Maria Cecília de Souza Minayo 2
Lilian Barbosa Ramos 1
Gardênia Vieira Fontes 1
Ligia Amparo Santos 1
Elizeu Clementino de Souza 3
Anderson Carvalho dos Santos 3
Sara Emanuela Mota 3
Janaina Braga de Paiva 3
Tânia Mara Bernardelli 3
Franklin Demétrio 4
Isadora Menezes 3

Abstract This study seeks to discuss the signifi- Resumo Este estudo tem por objetivo discutir sig-
cance of school nutrition expressed by students in nificados sobre alimentação escolar atribuídos por
public schools from the state of Bahia, Brazil. The estudantes em escolas públicas na Bahia. Trata-se
objective is to understand the symbolic aspects de compreender aspectos simbólicos associados à
associated with school nutrition. The results of a alimentação escolar na complexidade do mundo
survey into the significance of nutrition offered cotidiano da escola. Utiliza-se uma abordagem
by the Brazilian School Nutrition Program qualitativa para a compreensão do comer na esco-
(PNAE) expressed by students from six public la e das noções sobre alimentação saudável, a par-
schools in municipalities in the state of Bahia, tir das narrativas orais e escritas desses adoles-
Brazil, are presented. A qualitative approach to centes. Os relatos enunciam oposições entre ali-
understand nutrition at school and notions about mentação estranha e familiar e vice-versa. O que é
healthy food by analyzing oral and written nar- familiar torna-se estranho a depender do tempo/
ratives of adolescents is used. The reports point to lugar. Citam diversos exemplos de alimentos que
opposing stances between food in the home and são da tradição, mas que se tornam estranhos ou
food outside the home. What is customary can não habituais ao horário. A cultura alimentar dos
appear strange depending on the time and place. estudantes requer a obtenção de alimentos em dois
In this sense, they do not make an association momentos: merenda e almoço (ou jantar). Enti-
between healthy food and PNAE. The food cul- dades estas que são distintas, não se mesclam e de-
ture requires students to eat food on two occa- vem estar presentes na escola, pois para estes ato-
1
Departamento de Nutrição,
sions: breakfast and lunch (or dinner). These are res sociais, estudar e comer são necessidades que se
Escola de Nutrição,
Universidade Federal da aspects that are distinct, however they must be complementam.
Bahia. Rua Araújo Pinho 32, combined in school, because for these social ac- Palavras-chave Significados da alimentação esco-
Canela. 40110-150
tors, studying and eating are necessities that com- lar, Análise de narrativas, Alimentação saudável
Salvador BA.
carmofreitas@uol.com.br plement each other.
2
Claves, Escola Nacional de Key words The significance of school nutrition,
Saúde Pública, Fundação
Analysis of narratives, healthy food
Oswaldo Cruz.
3
Centro Colaborador em
Alimentação e Nutrição do
Escolar (Cecane/UFBA).
4
Centro de Ciência da
Saúde, Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia.
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Freitas MCS et al.

Introdução lência se expressam num cotidiano de poucas


expectativas de melhoria de vida6.
Este estudo apresenta resultados de uma pesqui- Opta-se em focalizar o cotidiano escolar por
sa sobre os significados da alimentação escolar entender a importância das interações sociais em
(especificamente, refeições oferecidas pelo Pro- cada contexto específico, com seus símbolos e
grama Nacional de Alimentação Escolar – PNAE) representações da alimentação. A identificação
atribuídos por estudantes. O referido programa dos significados da alimentação escolar pelo es-
criado na década de 1950 para atender priorita- tudante revela sua condição sociocultural e eco-
riamente escolas da rede pública, constitui-se nômica ademais de seus valores culturais sobre
basicamente, na oferta de refeições para o estu- o comer-na-escola. Em função da complexidade
dante do ensino básico, fornecendo um mínimo deste objeto de estudo, busca-se aproximação
de 20% das suas necessidades nutricionais e con- com disciplinas das ciências humanas para dar
tribuindo para o crescimento e desenvolvimento suporte a análise das narrativas7-12.
biopsicossocial, a aprendizagem e o rendimento
escolar1,2.
De maneira geral, o PNAE depende das con- Metodologia
dições administrativas municipais para recepcio-
nar e desenvolver o programa, bem como do A pesquisa foi realizada durante o período letivo
modo como os gestores o concebem e entendem de agosto de 2007 a junho de 2008, em dois gru-
o repasse de recursos do governo federal calcula- pos de estudantes de escolas públicas: os que re-
do pelo censo escolar. Sobretudo, o PNAE neces- cebem o PNAE, e os que já receberam e continua-
sita do acompanhamento do Conselho de Ali- ram na mesma escola, em séries mais avançadas.
mentação Escolar – CAE, local. Apesar do bai- As escolas escolhidas por pesquisadores do Cen-
xíssimo custo da refeição por estudante (confor- tro Colaborador em Alimentação e Nutrição do
me Resolução nº 67 do FNDE em 28/12/2009)1, Escolar da Universidade Federal da Bahia (CE-
há lugares que a alimentação escolar se institui CANE/UFBA), pela facilidade de acesso e pelo
como o melhor momento das crianças na escola, interesse dos supervisores e diretores das escolas
com preparações variadas e comensalidade. em avaliar a aceitação do PNAE por seus estu-
O PNAE atende, nacionalmente, a aproxima- dantes. As escolas estão situadas no centro urba-
damente 45 milhões de crianças e adolescentes2. no, subúrbio ferroviário de Salvador, sede do
Entretanto, mesmo com sua magnitude e im- município de Lauro de Freitas e comunidade de
portância social, é preciso conhecer como seus Santana no Distrito de Ilha de Maré.
usuários o significam e tentar torná-lo positivo Participaram do estudo 160 escolares adoles-
em áreas onde se encontra precário. centes de 12 a 18 anos, todos das camadas popu-
Vale lembrar que o PNAE é uma política pú- lares. São estes: 1) estudantes das quartas e quin-
blica que discursa sobre a complementação da tas séries do curso fundamental (já possuem
alimentação diária para evitar sensações de fome noções de ciências naturais e saúde oferecidas
no momento do ensino/aprendizagem, institu- pelos currículos escolares); 2) estudantes da pri-
indo um vínculo entre alimentação e escola. Para meira série do ensino médio e recém-egressos do
o estudante que padece de desnutrição, a alimen- PNAE. Os supervisores pedagógicos assinaram
tação do PNAE é fundamental, pois, ao reduzir a os termos de consentimento livre e esclarecido
privação vivida, a escola inscreve, nesses jovens, para a realização da coleta de dados junto aos
um valor social articulado ao comer3. estudantes.
Em meio a tantos objetos observados no co- Solicitou-se redações sobre o tema alimenta-
tidiano alimentar das escolas sublinha-se a redu- ção na escola e depois realizou-se entrevistas aten-
ção da prevalência da desnutrição, em termos dendo aos princípios da abordagem qualitativa
gerais, no Brasil4 e aumento de frequência de so- que privilegia a compreensão dos enunciados dos
brepeso e obesidade4,5. Um problema de saúde sujeitos. Estes manifestaram opiniões, sentimen-
decorrente de hábitos não saudáveis. Desses pres- tos e experiências sobre o tema investigado7.
supostos, elege-se neste estudo a compreensão e Quanto à metodologia, recorremos aos estudos
a interpretação dos significados da alimentação de Minayo7 e Goldemberg8 que deram pistas im-
escolar, por estudantes de escolas públicas na portantes para a realização do trabalho de cam-
periferia da cidade do Salvador e de municípios po e análises. Outras referências citadas mais
próximos ao grande centro soteropolitano, onde adiante atendem especificidades da análise de
os efeitos da realidade social, de exclusão e vio- narrativas. A pesquisa teve as seguintes fases:
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1) Contextualização da organização de cada Os textos redigidos por escolares, alguns com
escola e a estrutura que oferecem para o acesso à duas frases, outros com quatro e cinco parágra-
alimentação pelo PNAE; a observação registrou fos, formaram um volume suficiente para dar
práticas alimentares; aos pesquisadores a certeza de que a lógica inter-
2) Contato com escolares que voluntariamente na desses sujeitos estava definida e de que seria
colaboraram com as redações e a realização das possível encontrar categorias de análise7,12. Ao
entrevistas. Para a obtenção das informações sig- imergir na interpretação dos conteúdos agregou-
nificativas sobre a alimentação na escola, adota- se informações da observação dos pesquisado-
se a “técnica de redação” que teve a aquiescência res sobre as práticas alimentares no recreio, con-
do corpo docente em cada unidade. Sobre isso, versas entre os escolares, brincadeiras e silêncios
autores como, Elizeu Souza9 e Paul Ricoeur10 con- durante as refeições.
sideram a narrativa (escrita e oral) como a possi- No processo de análise elegeu-se dois eixos
bilidade do sujeito lembrar, eleger e mostrar re- centrais para dar conta das contradições inter-
presentações sobre sua identidade, suas práticas, nas sobre a alimentação: familiaridade e estra-
situações que marcam escolhas e aprendizagens. nhamento. Um diz respeito à aceitação, outro,
Em cada sala de aula explicou-se aos estudantes o expressa recusa às preparações e a outros ali-
objetivo do trabalho. Depois, fizeram as redações mentos oferecidos. A partir desses eixos, surgi-
sobre a alimentação na escola. Colaboraram com ram as categorias:1) “o lugar do alimento”; 2) “o
este trabalho, 120 estudantes das 4ª e 5ª séries e 40 não-lugar” ou “fora-de-lugar” do alimento; 3) a
do curso médio. Ambos os grupos narraram bre- noção de saudável como bem.
ves parágrafos de suas experiências sobre a ali-
mentação na escola e expressaram seus desejos; o
que falta no PNAE; o que gostam de comer ou Resultados e discussão
não; a concepção de fome; alimentos que quise-
ram destacar ao lembrar a infância, a casa e a rua. Do ponto de vista dos escolares, existe uma força
Os autores das narrativas escritas foram solicita- na dualidade entre bom ou ruim de comer. Nas
dos a colocar nomes fictícios ou apenas suas ini- narrativas, surge a intertextualidade que se asso-
ciais para identificar seus textos. cia a lugares, aparências, gosto, sociabilidade,
3) Realizadas entrevistas narrativas confor- familiaridade e estranhamento. Colocam-se em
me a referência de Jovchelovitch e Bauer11. A sele- jogo termos contraditórios, em que o familiar se
ção dos entrevistados (total de 30, sendo cinco torna estranho e vice-versa. É considerado estra-
em cada escola), privilegiou os que apresenta- nho a associação banana e biscoito; laranja e pão;
ram mais informações nas redações. As entre- mingau de tapioca com gosto de remédio; feijão
vistas tiveram a duração de aproximadamente ou sopa no meio da manhã ou no meio da tarde,
quarenta minutos e seguiram um roteiro de ques- ou no lugar do recreio. São alimentos familiari-
tões sobre a experiência da alimentação ofereci- zados, mas ao mesmo tempo estranhados, pois,
da pela escola, hábitos, preferências, motivos de encontram-se fora-do-lugar da tradição, do há-
rejeição ou aceitação dos alimentos, opiniões so- bito. Para a cultura da região, sopa é jantar, e se
bre o comer na vida cotidiana. oferecida fora desse lugar torna-se comida de
4) As informações obtidas foram analisadas doente ou de idoso. Para os escolares tomar sopa
com a minuciosa leitura, agrupando categorias e no recreio está errado ou não é saudável. Refe-
selecionando os termos significantes semelhan- rem-se a merenda e a comida como entidades
tes e opostos9, 12,13. Valorizam-se as experiências distintas sendo a primeira prazerosa e a segunda
pessoais no cotidiano da escola, sobretudo os uma necessidade. Gostariam de merendar qual-
significados da alimentação oferecida pelo PNAE. quer coisa ou uma besteira, diferente do que po-
deriam comer no almoço ou no jantar, na escola.
A análise das narrativas dos escolares O termo besteira nas escolas urbanas (a exceção
de Ilha de Maré) está no mesmo campo semân-
Das narrativas (redações e entrevistas trans- tico que merenda e brincadeira.
critas) emergiram indícios relembrados da in- Embora nos últimos anos algumas mudan-
fância, sensações do comer, valores simbólicos, ças efetuadas na normatividade do PNAE tenham
noções de necessidade que ora se confundiam contribuído para avanços na concepção do pro-
com fragmentos de discursos técnicos científi- grama como política educacional também volta-
cos, obtidos em conteúdos disciplinares da esco- da à alimentação saudável, a observação do coti-
la, ora eram apreensões das tradições familiares. diano das escolas visitadas mostra algumas difi-
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Freitas MCS et al.

culdades neste processo. De maneira geral, o de autodesignações sobre necessidade em oposi-


PNAE oferece apenas uma refeição. Os jovens ção ao prazer de comer.
não se sentem alimentados como gostariam, pois Nas narrativas há termos significantes, uni-
para eles vários tipos de refeições encontram-se dades léxicas como palavras ou sentenças que se
fora-de-lugar. E ninguém explica porque nos dão articulam entre os textos para dar sentido12,13 ao
sopinha na merenda (ME). A sopa é uma refeição comer na escola. A análise se torna complexa pela
comum neste programa, mas sugerida pelos es- pluralidade dos sentidos que circulam entre a
colares para ser oferecida no jantar, como o ha- aparência da refeição e a experiência do comer de
bitual em suas unidades domésticas. cada estudante.
Em geral, as relações domésticas – aquelas Entre familiaridade e estranhamento for-
que os antropólogos denominam relações pri- mam-se duas imagens: o lugar e o não lugar,
márias – são as que produzem hábitos que aten- quebrando o sistema binário anterior. Merenda
dem às necessidades básicas13. Na familiaridade é lugar de lanche leve, frutas ou sucos, momento
há referências, identidades, aceitação e valores de recreio. A alimentação pode estar fora-de-lu-
pertencentes à percepção de todas as coisas da gar quando não se combina com o recreio, ou
naturalidade do cotidiano. É familiar o tempo e seja, quando se oferece uma refeição cultural-
o lugar de comer determinados alimentos, pre- mente concebida como almoço ou jantar. Nesses
parações, como um hábito que se adquire em casos, o alimento perde sentido cultural e por
cada contexto situacional. isso os escolares não se sentem alimentados como
A implementação do PNAE promove uma gostariam. Ainda que gostem de feijão tropeiro,
resistência típica em crianças e adolescentes nestes entendem que é errado comer esta refeição no
ambientes estudados. Observa-se que no momen- meio da manhã. Para tanto, expressam justifica-
to da merenda, algumas vezes, escolares jogam tivas. Dizem que os alimentos do programa não
alimentos uns nos outros, como a guerra de la- são os de sua geração e que o lugar da merenda
ranjas, outros gritam que não querem comer al- (ou do recreio) é invadido por comidas. Com
guns alimentos (em geral sopas e mingaus de isso há uma ruptura do sentido de recreação,
milho e aipim). A recusa é motivada porque, no pois o recreio é lugar de brincar e nesse sentido se
imaginário dos escolares, estas preparações são deveria comer besteira. Sobre isto, vale lembrar o
representacionais da condição senil e infantil. Sig- clássico estudo coordenado por Woorthman14
nifica que não devem ser oferecidos na escola, mas em 1978, ao analisar o termo besteira como lan-
em casa, ou devem estar em outro lugar (no jan- che, usado em várias cidades do país (ainda hoje,
tar). Sobre o mingau costumam dizer: Não sei por esta expressão possui semelhante conotação).
que dão papinha de neném pra gente (LF). O sentido de fome, presente nas narrativas,
Em outras palavras, as práticas alimentares aparece em ambos os grupos de escolares. Entre-
na escola são como unidades conservadas, inal- tanto, o comer na escola fica mais evidente em
teradas e sem avaliação. Na interpretação de al- narrativas dos que estão vivenciando o progra-
guns jovens: É sempre a mesma sopa (AS). Sopa de ma. Eles falam de fome e necessidade: A gente
manhã é horrível. A gente come porque não tem engana a fome com essa merenda para não ter mais
outra coisa (BN). vontade de almoçar (NA); Pra mim não adianta:
Não se trata de analisar o familiar e o estra- como e fico sentindo falta (AS); Falar dessas coisas
nho como sistemas incompatíveis, um em rela- (fome) dá vergonha (CM). Essa merenda engana a
ção ao outro, mas relacioná-los como duas ma- barriga (PL); é tapeação (NA).
neiras de decifrar a lógica do programa. Nesse Em diferentes contextos não se observou di-
aspecto, diversos termos analíticos se conectam ferenças culturais acentuadas. Alguma variação
a estas estruturas gerando uma relação estraté- aparece no sentido de aceitação ou rejeição de
gica e polissêmica sobre a alimentação na escola: mingaus de milho e mandioca. Estes são mais
Só como aqui porque não tem jeito (MS). Ou o aceitos na comunidade tradicional de pesca que
contrário: Adoro tudo. O feijão é melhor (SA); E na região urbana.
ainda: Todo dia é igual: sopa ruim, mingau ruim; Há escolares que consomem quaisquer refei-
Lanche bom é só o de mãe (AM). Tem vezes que eu ções oferecidas pelo PNAE, outros rejeitam certos
como e às vezes que não dá para comer, é muito cardápios. Alguns, sem dinheiro para comprar
ruim, e vou passando (NA). Esta aluna de onze produtos dos pequenos comércios de alimentos
anos, passa pela merenda, como um rito estraté- na vizinhança da escola, sentem-se forçados a con-
gico de aceitação do alimento, porque o necessi- sumir o que lhes são oferecidos, mesmo sendo ali-
ta. Aqui, e em outros momentos, há construções mentos processados, lácteos com soja, fora de seus
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hábitos. Com isso, há reações: passam mal, vomi- que sentem por sopa quando servida no meio da
tam, sentem náuseas, estranham produtos indus- manhã, e da falta de comensalidade motivada por
trializados com sabores de morango. Há situações precárias condições físicas na escola. Ninguém
inversas, e querem repetir a merenda. conseguia se sentar para comer e conversar (uma
A alimentação na escola tem relação com a estudante do ensino médio ao relembrar o PNAE).
comida da casa e há sempre um hábito a se ad- Tempo e espaço da alimentação escolar são
quirir. Hábito enquanto inscrição da cultura e da expressos através de frases bastante significati-
identidade dos sujeitos, uma condição estrutu- vas: Recreio não é lugar de comida; comida é meio
rante3. Em geral, o hábito alimentar referente ao dia, sopa é jantar; recreio é para brincar, e qual-
almoço desses escolares, no cotidiano domésti- quer alimento oferecido no momento do recreio é
co, é predominantemente à base de farinha de besteira. Mais significativas são as tipificações
mandioca, feijão, carne seca, frango, macarrão. sobre tempos e lugares de comer: Lanche e comi-
Quase não há verduras. Às vezes, em casa a gente da é em casa; merenda é na escola; besteira é na
come abóbora, maxixe e quiabo (MJ). Quando rua; alimentação saudável (referindo-se às teori-
não há condições de manter o feijão diário, as sobre nutrição) só nos cadernos.
come-se pirão de farinha com temperos. À noite Por saudável, entendemos um tipo de alimen-
é quase sempre pão com margarina ou cuscuz de tação que garante nutrientes necessários aos pro-
milho, biscoitos, café. Conforme alguns enunci- cessos fisiológicos para o desenvolvimento físico
ados, a principal alimentação está na escola, por- e mental do indivíduo, em correspondência com
que em casa não há para todos. Mãe pede pra os hábitos alimentares regionais16. Na matéria
comer tudo que a escola dá (AS). que trata das ciências naturais nas escolas públi-
E ao relembrar da alimentação na escola, os cas estudadas, constatou-se que desde a quarta
estudantes do ensino médio se curvam em silên- série há conceitos explicativos sobre alimentos,
cio e escrevem: A hora da merenda era a mais principais nutrientes e organismo humano. Com
esperada; a melhor parte do colégio. Não me lem- isto, os professores tentam mostrar as fontes de
bro de coisa ruim. Adorava almôndegas de soja, minerais e vitaminas dos alimentos que estão na
arroz com soja bem temperado (MA). O que era natureza. É transmitida para eles a noção de sau-
ruim a gente não lembra mais; uns vomitavam a dável como um bem para o corpo. Entretanto,
sopa, isso não esqueci (AM). A merenda ajudava em geral, os conteúdos estão dissociados do co-
todo mundo (PA). tidiano sociocultural dos estudantes.
Nas conversas com os escolares do curso fun- Escolares do curso fundamental atribuem sig-
damental, escola é lugar de comer, encontrar nificados ao saudável, referindo-se ao bem-estar
amigos, namorar, estudar português e matemá- do corpo. A alimentação saudável é concebida
tica. Não há dúvidas que entre os sexos ocorrem como pureza do corpo, uma espécie de renova-
diferentes valores sobre o comer. O vínculo da ção dietética. Reconhecem que: Não se deve comer
alimentação com o feminino ocorre desde cedo. fritura por causa do colesterol, pode fazer mal ao
As meninas adquirem um modo de pensar o cui- coração (VN). Colesterol suja o sangue (SM). O
dado alimentar distinto do menino15. Mas am- certo é comer feijão e verduras, o sangue fica bom
bos entendem o comer como necessidade física e (ES). Entendem que podem comer besteiras como
satisfação emocional. A distinção de gênero neste batatas fritas e doces, depois fazer dieta para lim-
estudo está em relação à aparência do alimento. par o sangue. Uma estudante diz que saudável é
São as adolescentes, em todas as escolas pesqui- comer o que gosta e não fazer exagero (BN).
sadas, que mais reclamam da falta de higiene dos As noções sobre alimentação saudável são
alimentos e expressam com maior ênfase sobre a retiradas de proposições generalizadas da abor-
importância de comer o que a escola pode ofere- dagem biomédica, que autorizam essa represen-
cer. São elas que falam da necessidade de uma tação para qualquer grupo humano, indepen-
alimentação saudável. Cuidado e gênero ficam dente de onde viva16. Na sala de aula, em geral,
em evidência. Para meninos e rapazes, merenda não se faz relação entre alimentos, saúde, indiví-
no lugar do horário do recreio deveria ser apenas duos e sociedade, com isso, há um vazio de en-
lanches. Tanto as adolescentes quanto eles enten- tendimento entre noções do “saudável instituí-
dem o recreio como lugar de recriação, com brin- do” e os hábitos alimentares.
cadeiras de correr e gritar, dar risada, um rito Com as insatisfações dos escolares sobre as
diferenciador do espaço das aulas. refeições do PNAE, surgem ofertas alternativas
Ao comparar as redações dos dois grupos, dentro e fora do estabelecimento: lanches de fri-
identificamos semelhanças, a exemplo da rejeição turas (pastéis e coxinhas de frango); e muitas
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vezes há cantinas no interior da escola para a colares entrevistados, são expressões que tam-
venda de balas, refrigerantes, pipocas etc. E mes- bém representam a qualidade da alimentação
mo reconhecendo noções sobre alimentação sau- escolar. Para eles, a merenda oficial, ao tomar o
dável, os escolares nem sempre fazem relação lugar do recreio, deveria oferecer apenas coisas
entre saúde e PNAE. Consequentemente, meren- prazerosas e não comida sem gosto (AM) ou co-
da é brincadeira de recreio e não é nada sério! mida séria (ME). Comida séria é almoço ou jan-
Os escolares preferem salsicha no pão e batati- tar e nunca uma merenda. Entende-se que o
nha frita; reconhecem que trocariam um prato de PNAE necessita enfatizar ações educativas para
almoço por um cachorro-quente ou um sanduí- obter outras significações de seus consumidores.
che misto. Na comunidade tradicional de pesca já Para eles, há pouca variedade de cardápios no
existem novos valores do comer produzindo prin- PNAE e o que mais desejam são os alimentos
cipalmente nos jovens, atração e desejo por lan- midiáticos ou de rua como batata-frita, refrige-
ches midiáticos: hambúrgueres e refrigerantes. rante, biscoitos recheados, pipoca doce etc. Estes
Entretanto, ainda que não tenham este tipo alimentos representam para os atores sociais o
de lanche na escola entendem que não pode ha- sentido de estarem-no-mundo-moderno, globa-
ver escola sem merenda. Para eles escola é lugar lizado, midiático. São os lanches do deleite. So-
de estudar e de comer. E o lugar de comer é no bre isto, somente um projeto de educação pode-
tempo do recreio, do almoço ou do jantar. Ser ria apreender novos sentidos da cultura local3
saudável é fazer parte desse tempo, para outros é gerando alternativas saudáveis aos alimentos
sentirem-se livres para comer o que quiserem. midiáticos nocivos à saúde.
Ainda há os que entendam a racionalidade do A alimentação escolar oferecida pelo PNAE
bem para o corpo como uma necessidade con- pode ser repensada para atender às solicitações
forme aprendem nas aulas de ciências na quarta significativas da cultura dos escolares em seus
série do curso fundamental. contextos sociais. Pois, além do fornecimento das
refeições, o programa, que tem nas suas diretri-
zes o fortalecimento das ações educativas, ao se
Conclusão operacionalizar na grande rede escolar, enfrenta
dificuldades para instituir na comunidade esco-
A ênfase colocada na percepção dos escolares so- lar de maneira transversal e interdisciplinar, uma
bre o comer na escola confirma que estes possu- preocupação com alimentação e saúde e a assun-
em uma cultura alimentar e são também influen- ção dos atos de nutrição e alimentação como ri-
ciados por novidades do mercado consumidor e tuais do cotidiano. Todas as informações aqui
pela propaganda. Essa dinâmica ocorre indepen- analisadas permitem refletir ações do PNAE con-
dentemente do apelo da escola de se ter uma ali- siderando a carência alimentar dos estudantes,
mentação saudável. Também os escolares mani- seus desejos e hábitos. E, sendo o comer um ato
festam a necessidade de alimentarem-se na escola. cultural tão profundo e carregado de significa-
As categorias alimento-familiar e estranho dos17, é importante que a lógica pedagógica da
influenciam a construção de outras percepções alimentação da escola vá ao encontro dos signi-
como: alimento do lugar e alimento fora-de-lu- ficados que os próprios estudantes aportam so-
gar (esta estrutura nega o recreio como lugar de bre a escola e o comer. Embora este aspecto já
comida). Estranham alimentos fora-do-lugar do tenha sido acolhido pela dimensão normativa da
hábito; ou mesmo familiar, o alimento pode se alimentação escolar, é necessário ser pensado e
tornar estranho se for oferecido num tempo dis- assumido no âmbito mesmo da escola – onde as
tinto do habitual. Este é um dos motivos da rejei- especificidades locais, regionais e globais ganham
ção de algumas refeições do PNAE. expressão – e traduzido em ações criativas. A dis-
Conclui-se que os escolares desejam obter posição para uma relação dialógica entre a escola
merenda e comida. Estas são entidades concretas e a sua comunidade assistida poderá sinalizar na
e distintas em tempo e espacialidade, como ocor- direção de uma compreensão e enfrentamento
re na tradição alimentar da sociedade brasileira. dos aspectos envolvidos com o comer saudável
No entanto, no campo simbólico, para estes es- na escola.
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Colaboradores

MCS Freitas, MCS Minayo, LB Ramos, GV Fon-


tes, LA Santos, EC Souza, AC Santos, SE Mota,
JB Paiva, TM Bernardelli, F Demétrio e I Mene-
zes participaram igualmente de todas as etapas
de elaboração do artigo.

Referências

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