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LEONEL, João (Org.). Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro.

Pentecostalismo e
neopentecostalismo. Vol. 2. São Paulo: Fonte Editorial, 2012. p.157-188.

As tramas sincréticas do (neo)pentecostalismo brasileiro.

Entre o tradicional e o moderno1


Elisa Rodrigues

Introdução

De Palavra de Deus que comunica a salvação para pagãos até a condição de amuleto que
confere proteção, sorte e que concentra poderes mágicos, os usos que se fizeram da Bíblia variaram
de acordo com os contatos entre os modos religiosos (católicos, africanos e protestantes) presentes
no Brasil, a ponto de requererem tradução e divulgação por meio de pregações e vendas. 2

Esse movimento de divulgação da Bíblia iniciado com católicos teve implicações para
protestantes e pentecostais. Neste trabalho, apresentamos uma descrição de usos da Bíblia entre
evangélicos, especialmente neopentecostais, em que problematizamos a articulação de referências
herdadas do catolicismo e do pentecostalismo. Portanto, verificando em que medida tais usos repõem
esse conjunto de referências histórica e culturalmente construídas e, se dialogam com ele
resignificando-o. Interessa-nos especialmente uma possível fusão de horizontes, semânticos e
simbólicos, justificados em práticas religiosas voltadas para obtenção de bênçãos e milagres.

Instigados por essa problematização, mas sem o intuito de conceber qualquer gênese ou
tipologia que encerre o movimento neopentecostal, tampouco de forjar uma análise estruturalista
dele, indicamos apontamentos referentes à interpretação e usos da Bíblia realizados por
neopentecostais da Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), tomando-a por evidência empírica.
Propomos uma análise de estratos de mensagens de seu líder religioso, o apóstolo Valdemiro

1
Uma versão desse trabalho foi apresentada na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04
de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil, sob o título Os usos da Bíblia entre católicos e evangélicos: apontamentos
iniciais.

Doutora em Ciências da Religião (UMESP) e em Ciências Sociais (UNICAMP). Professora do Departamento de
Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.
2
O trabalho de tradução da Bíblia, a questão da mediação cultural e da atuação de missionários em território brasileiro,
principalmente entre povos indígenas, foi desenvolvida por Paula Montero (2006) no livro que organizou, intitulado
Deus na aldeia, assim como Cristina Pompa (2002), em sua premiada tese doutoral Religião como tradução.
1
Santiago, que em 1998 fundou essa igreja na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo. Atualmente,
com sua maior construção na cidade de Guarulhos, a Cidade Mundial com 240 mil metros2 e
capacidade para aproximadamente 150 mil pessoas, a IMPD tem igrejas espalhadas por todo o
território nacional e em países da Ásia, África, Europa e nos EUA.3 Considerado grupo com maior
índice de crescimento4, a IMPD notabiliza-se no campo religioso não apenas pela adesão de um
grande volume de fieis, mas também por retomar a prática de cura divina, tão enfatizada nos anos
1950-1960 pelas igrejas pentecostais, hoje, consideradas históricas.5

À guisa de introdução, cabe situar brevemente o movimento neopentecostal assim


designado em função de sua relação com o pentecostalismo e, sua caracterização fundamental
baseada na: glossolalia, possessão de espíritos, cura e teologia da prosperidade, todos traços
atribuídos aos grupos pentecostalizados.6 Como se sabe, a sociologia da religião tem proposto
classificações para as igrejas de origem protestante e pentecostal sem, no entanto, ter obtido
consenso. As tipologias mais conhecidas foram propostas por Brandão (1986), Mendonça (1989),
CEDI (1991), Freston (1993) e Mariano (1995). Em geral, elas tomam por base a chegada de
missionários ou o ano de fundação da igreja. No caso do pentecostalismo, o enquadramento dos
grupos é dificultado em decorrência da diversidade dos grupos que atendem a certos critérios de
classificação e não se encaixam em outros ou, por vezes, apresentam traços não contemplados por
nenhuma tipologia. Mendonça e CEDI dividem os pentecostais em dois grupos, pentecostalismo
clássico (no qual se enquadrariam basicamente Congregação Cristã do Brasil e Assembléia de Deus)
e pentecostalismo de cura divina (Evangelho Quadrangular e O Brasil para Cristo) e ou autônomo
para o CEDI (no qual, em termos gerais, enquadrariam-se Igreja Vida Nova, Universal do Reino de
Deus, Internacional da Graça, Renascer em Cristo dentre outras). Bittencourt (CEDI) compreende o
pentecostalismo autônomo como movimento cuja base funda-se no exorcismo, na cura e na
prosperidade (deixando de lado a glossolalia). Com Freston e Mariano, a divisão é realizada com
base na idéia de ondas, que pressupõe períodos da história e toma por base características gerais,

3
Segundo o site oficial da igreja, o número de igrejas aproxima-se de 1.400. Disponível em http://www.impd.com.br.
4
Na Revista ISTO É de 02 de fevereiro de 2011, em reportagem intitulada O homem que multiplica fiéis, a IMPD foi
apresentada como igreja neopentecostal com maior índice de crescimento no Brasil.
5
A cura divina foi um dos princípios fundantes da Cruzada Nacional de Evangelização (1953) promovida e
institucionalizada pela Igreja do Evangelho Quadrangular (1951). Foi motivo também da campanha “O Brasil para
Cristo”, transformada em igreja em 1956 pelo seu fundador Manuel de Mello, ex-evangelista da Assembléia de Deus e
ex-pastor da IEC. Merece destaque ainda a Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), fundada por David Miranda, ex-
congregado mariano, convertido ao pentecostalismo já na juventude após o falecimento do pai e a conversão de todos os
familiares.
6
Para uma definição desses eixos que caracterizam o movimento pentecostal, ver o livro Neopentecostais. Sociologia do
novo pentecostalismo no Brasil (1999), de autoria de Ricardo Mariano.
2
descritoras de cada movimento.7 Assim, o pentecostalismo poderia ser dividido em três ondas, sendo
elas: Primeira onda – Congregação Cristã do Brasil (1910) e Assembléia de Deus (1911); Segunda
onda (1950-1960) – Evangelho Quadrangular (1953), O Brasil para Cristo (1955), Deus é Amor
(1962), dentre outras; Terceira onda (1970-1980) – Comunidade Sara Nossa Terra (1976), Igreja
Universal do Reino de Deus (1977), Internacional da Graça (1980), Renascer em Cristo (1980) e
outras. Um dos problemas que as tipologias apresentam é a rigidez de seus termos que não
contempla a fluidez das fronteiras entre os coletivos religiosos. Nesse sentido, o termo
neopentecostal emerge como categoria própria daqueles que corresponderiam a certa consciência
pentecostal e que no seio desse movimento aderiram a uma renovação espiritual. Como
neopentecostais atenderiam positivamente ao exorcismo, a cura, aos dons espirituais (como a
glossolalia) e, em parte, ao discurso teológico da prosperidade (Campos, 1997). Nossa pesquisa não
pretende revisar o debate teórico-metodológico da sociologia, aqui apresentado resumidamente.
Conquanto, nos valeremos dos termos pentecostalismo e neopentecostalismo sob certa perspectiva
plástica, que permita tanto aos agentes quanto a nós mesmos uma aproximação atenta à fluidez de
suas fronteiras e limites identitários.

Dessa forma, consideramos que compreender os usos da Bíblia pelos neopentecostais requer
relacioná-lo a dois outros temas 1) a construção do campo religioso brasileiro e 2) trânsito religioso
e pertenças identitárias, isso em função das combinações de habitus que resultaram em limites
negociáveis entre sacerdotes e leigos, dominadores e dominados, público e privado, magia e religião,
tradição e princípios liberais. Categorias úteis para pensar sociedade e religião, mas que se hoje não
empregadas sob cautelosa reflexão, podem soar enrijecidas demais para a compreensão do fenômeno
religioso.8

A fim de não cometermos o equívoco de considerá-las ultrapassadas, procuramos na


observação do campo religioso brasileiro e, em especial, entre as modalidades pentecostais, aplicá-
las sob a luz da noção de porosidade, empregada principalmente por Sanchis (1995). A esse respeito
Sanchis propõe que identidades porosas ad-vem do sincretismo ou tramas sincréticas, termo que o
próprio autor definiu como alvo de objeções e críticas da literatura acadêmica; por isso, seria mais

7
Para uma crítica a categoria descritiva onda, ver o artigo de MENDONÇA (2004, p.168-169), intitulado Religião e
sociologia do conhecimento.
8
Referências importantes que subsidiam a compreensão do campo religioso brasileiro são Carvalho (1992); Freston
(1993; 1996); Amaral (1994); Machado & Mariz (1994); Mariz (2001); Pierucci (1997, 2001); Sanchis (1995, 1998);
Burity (1998; 2001; 2006); Maués (1999; 2001; 2002); Camurça (2003; 2007), Velho (1987; 1995; 2003), dentre outros.
3
producente se utilizado complementarmente a categoria bricolagem que, no mesmo artigo, foi
definida como

possibilidade de recriar pessoalmente [um] universo religioso (...) por uma operação
(...) através da qual são ecleticamente reaproximados, sobrepostos e/ou refundidos
elementos oriundos das várias tradições, nativas e importadas, que a mobilidade
geográfica das pessoas e dos produtos culturais põe hoje a sua disposição.

Nesses termos, como modalidade religiosa que alcançou notoriedade pública não apenas
pelo crescimento numérico, mas também pelo uso ostensivo dos meios de comunicação, mídias e
redes sociais, a IMPD apresenta-se como expressão neopentecostal ideal para a elaboração de um
exercício de antropologia, que objetiva verificar se essas combinações, isto é, reaproximações,
sobreposições e/ou fusões de elementos oriundos de várias tradições, constituem condição de
possibilidade para compreender as últimas quatro décadas de diversificação das alternativas
religiosas no quadro nacional.

Os processos de institucionalização da religião

No Brasil, os modos de religião necessitaram se submeter à institucionalização a fim de que


tivessem presença legalmente reconhecida. Tendo como referência a Igreja Católica, religião
autorizada desde a colonização, as outras religiões buscaram o status de legalidade mediante o
exercício de aproximação dessa referência. Para espíritas, a chave de aproximação foi a caridade,
meio pelo qual demonstraram às autoridades que contribuíam para a manutenção e bom
funcionamento da ordem social. Dessa forma, não poderiam ser enquadrados nas designações
criminais atribuídas aos grupos que praticavam feitiçaria, sortilégios e charlatanismo (GIUMBELLI,
2008, p.84). Com a finalidade de escaparem à criminalização, grupos de tradição religiosa associada
à matriz africana buscaram a chave da manifestação cultural ao reivindicar para si o caráter histórico
da origem africana e da contribuição cultural que tais práticas religiosas legaram à formação de uma
identidade nacional.9

9
Uma estratégia ambígua visto que redundou no escamoteamento das desigualdades sociais e discriminações por meio
do esvaziamento histórico dos símbolos étnicos africanos. Para Fry, “a adoção de tais símbolos era politicamente
conveniente, um instrumento para assegurar a dominação mascarando-a sob outro nome (...) a conversão de símbolos
4
Caridade e manifestação histórico-cultural embora possam em alguma medida justificar a
presença evangélica no espaço público (visto que muitos pentecostais destacam-se pela agência
social em comunidades carentes, em casas de recuperação de dependentes químicos, em hospitais e
lares para idosos e crianças), não correspondem às chaves evocadas para legitimação dos
neopentecostais junto à sociedade. Os evangélicos oriundos do pentecostalismo são responsáveis por
certa presença na esfera pública brasileira que se nota pelo caráter de performatividade, pelas
inversões que promoveram no que tange à re-significação dos termos oferta de dinheiro e
exorcismo10 e pelo crescimento e representatividade política.11 Os primeiros dois aspectos da
presença neopentecostal no espaço público, performance e culto, são evidenciados pelo emprego de
meios de comunicação e tecnologias midiáticas que tornaram públicas, no sentido de conhecidas, as
suas crenças e práticas. É esse elemento que acaba por assegurar a relevância dessa modalidade no
seio da sociedade, pois é o meio pelo qual, certos atores sociais encontram resposta para suas
demandas.

Assim, principalmente em função das tecnologias midiáticas, formas de pensar e de


conduzir o comportamento foram transmitidas à sociedade civil e, portanto, lançadas ao debate
social.12 Ao se tornarem conhecidas as crenças e práticas religiosas neopentecostais foram
constituídas matérias de dissenso e/ou consenso social e, nesse sentido, instauraram controvérsias –
aqui entendidas como dispositivo discursivo de produção de integração, complementaridade,
interculturalidade, contato e troca entre crentes e não-crentes –, que exigiram certa organização de
uma representação política legal, que tanto pudesse responder às questões da sociedade, quanto
representar legitimamente essa modalidade religiosa junto às entidades da federação.

étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial mas torna muito mais difícil a
tarefa de denunciá-la” (1982, p.52-53).
10
A respeito tema, o artigo de Paula Montero Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil é bastante elucidativo.
11
A participação evangélica no cenário político brasileiro tem alcançado frações de representação mais significativas a
cada eleição nos âmbitos municipais, estaduais e junto à União. A entrada de políticos evangélicos como representação
dessa modalidade religiosa, que primam pelos interesses desse coletivo social no Congresso Nacional, deu-se
principalmente a partir do final dos anos 1980, com a emergência da Bancada Constituinte dos Evangélicos. Nesse
processo de representação junto as instituições e órgãos do Estado, a primeira igreja a exercer ação política foi
pentecostal Assembléia de Deus (AD), seguida ao final dos anos 1990 pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).
Entretanto, diferente da postura da AD, inicialmente, a IURD adotou uma estratégia que privilegiava alianças com
parlamentares de diferentes diretrizes e filiações partidárias (Freston, 1993; Giumbelli, 2004). Nas eleições de 2010, a
bancada evangélica cresceu 65%. De 41 deputados e 2 senadores, a partir de 2011, a bancada passou ao número de 68
deputados (33 reeleitos) e 3 senadores. Os eleitos provem principalmente das igrejas AD e IURD, mas também há a
participação de políticos da Igreja Batista, Igreja Presbiteriana do Brasil, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja
Internacional da Graça de Deus, Igreja Maranata, Igreja Metodista e Igreja Mundial do Poder de Deus.
12
O social – cujo conteúdo diz respeito às instituições civis da vida pública, da associação, da sociedade civil, em que se
elaboram e se seguem regras a fim de tornar o convívio social entre estranhos possível. No campo dos conceitos
sociológicos, essa dimensão diz respeito ao que se concebe a partir da oposição público e privado, sentido associado a
privacidade/intimidade.
5
Os “evangélicos” não somente crescem em número mas crescem em visibilidade pelo
modo como exercem a sua fé. Estão assim visíveis e performaticamente presentes na
política, nas manifestações musicais, nos espetáculos religiosos e, por isto tudo, se
encontram também na televisão e nos jornais laicos e religiosos do país. Ocupam, com
seus eventos e seus atores públicos, lugares de grande poder comunicativo na
sociedade. Emergem assim personagens e espetáculos políticos-religiosos marcados
por uma íntima conexão com a mídia (BIRMAN, 2003, p.236).

Numa modalidade religiosa cuja adesão dá-se principalmente pelo carisma de um líder13, a
comunidade que se forma voluntariamente requer de cada membro certo compromisso que é pessoal.
Nesses termos, é o testemunho que tem como argumento principal a experiência do indivíduo que
serve à função de estabelecer laços e vínculos entre o fiel e o coletivo religioso. Para Herviè-Legèr
(1997, p.33), tal laço de adesão se fortalece afetivamente, caso haja como elemento centralizador a
figura de uma personalidade carismática. Na IMPD, tal figura se reconhece no apóstolo Valdemiro
Santiago que principalmente por meio das imagens exibidas cotidianamente via televisão obteve o
estabelecimento e/ou conservação de sua liderança eclesiástica. Imagens que, conforme Fonseca
(2000), fornecem legitimidade sócio-política e representam instrumento fundamental, tanto
econômico como cultural, para a manutenção da estrutura da própria igreja que produz e veicula
essas imagens.

O discurso anti-institucional caracterizado pela desconfiança em relação aos esquemas


teológicos e conjuntos doutrinários, somado a adesão que se constitui com base no primado da
experiência e testemunho pessoal do apóstolo apontam outro marcador dessa modalidade: um tipo de
religiosidade que em certa medida contraria a finalidade da comunidade, no sentido de uma unidade
ideal. Diferente disso se exprime a singularidade dos percursos e trajetórias pessoais e a porosidade
das fronteiras e pertenças identitárias. Razões pelas quais esse como alguns outros grupos
evangélicos associados ao neopentecostalismo podem, ainda, ser abrigados sob a designação Novos
Movimentos Religiosos (NMRs)14. Tal categoria descritora serve-nos para pensar dois movimentos
que ocorrem dentro do neopentecostalismo e que consistem: na adaptação a cultura moderna e na
rejeição de certos aspectos dela, como os processos de institucionalização das igrejas,
desmagificação de seus rituais e desmistificação das crenças.

13
Carisma no sentido empregado por Weber, no capítulo V de Sociologia da Religião (tipos de relações comunitárias
religiosas) em Economia e Sociedade (2004, p.279-418).
14
Acepção cunhada por ROBINS, Thomas e BROMLEY, David (1993, p.91). Desenvolvi uma apresentação mais ampla
a respeito dessa classificação no artigo “A emergência dos novos movimentos religiosos e suas repercussões no campo
religioso brasileiro”, publicado pela Numen: revista de estudos e pesquisa da religião (2009).

6
A partir dos anos 1970 uma nova consciência religiosa teria surgido com comunidades
emocionais contrárias à atomização e abstração das relações sociais que caracterizam a sociedade
tecno-industrial. Essa consciência, ainda, rejeitaria “a indiferença afetiva de uma modernidade
inteiramente submetida às prioridades da eficácia mensurável e da funcionalização burocrática das
relações humanas” (HERVIÈ-LEGÈR, 1997, p.44). Tal religiosidade antimoderna constituiria-se,
portanto, como meio antitético de adaptação de alguns modos religiosos ao mundo moderno. Isso
pode-se notar no caso da IMPD, que mesmo avessa à ideia de uma religião institucionalizada,
conforme palavras do apóstolo, não prescinde do uso de certo aparato tecnológico e midiático que
lhe permite a difusão das imagens dos cultos promovidos pela IMPD. O viés antitético está no fato
de que mesmo presente em diversos horários e em diferentes canais de TV, ainda que participante
das redes sociais e usuária de um aparato tecnológico moderno considerável, essa modalidade não
prescindiu de certas leituras e usos místicos da Bíblia que, resguardadas as especificidades, remonta
a certo tipo de catolicismo popular, de tipos santorial e de benzeção.15 Traços que se admitidos
conduz-nos pelos rastros de um elemento tradicional que permeia o campo religioso brasileiro e que,
em termos, delineia um tipo de religiosidade que é pessoal porque rejeita a modelagem burocrática e
formal dos cultos de liturgia racional.

Assim, pode-se dizer que (1) A lógica de mercado, de produção e de consumo de bens
simbólicos difundida por meio da teologia da prosperidade, música gospel, moda evangélica, filmes,
casas de espetáculo, shows evangélicos etc., (2) a performatividade e estilística dos cultos, das
mensagens, das músicas e da difusão de seus conteúdos por intermédio dos meios de comunicação e
(3) a apropriação e ressignificação de referências de outras modalidades religiosas (não apenas
pentecostais, mas católicas e afro-brasileiras) em exorcismos, curas, milagres e leituras da Bíblia
constituem movimentos e estratégias de adaptação à cultura moderna não completamente despidos

15
O catolicismo santorial remonta aos tempos da colonização, mas consiste num tipo de prática religiosa que se define
pela relação íntima, pessoal e, às vezes, desrespeitosa com o santo, quando, por exemplo, é colocado de cabeça para
baixo e castigado quando não atende ao pedido do devoto. Trata-se de uma relação entre o leigo, “seja nas confrarias e
irmandades, seja nos oratórios, capelas de beira de estrada e santuários” e o santo. “Os santos sempre ocuparam um
lugar de destaque na vida do povo, manifestando a presença de um ‘poder’ especial e sobre-humano, que penetra nos
diversos espaços de vida e favorece, numa estreita aproximação e familiaridade com seus devotos, a proteção diante das
incertezas da vida” (TEIXEIRA, 2005, p.17).
Benzeção é a prática não apenas de católicos, segundo a qual, uma bênção, entendida como ato de súplica, imploração,
pedido insistente é requerida. Trata-se de uma súplica a divindade a fim de que se torne presente na vida do fiel/devoto.
Nas palavras de Oliveira, “bênção é um veículo que possibilita ao seu executor estabelecer relações de solidariedade e
de aliança com os santos, de um lado, com os homens, de outro, e entre ambos simultaneamente. A bênção é então um
instrumento pelo qual homens produzem serviços e símbolos de solidariedade para si e para sujeitos da classe social da
qual fazem parte. E, na maioria das vezes, eles produzem bênçãos através da religião a que pertencem” (OLIVEIRA,
1985, p.9).
7
de um elemento conservador e tradicional que desliza entre autoridade e cordialidade, entre a
tradição e o moderno.

Em síntese, surgida no final dos anos 1990, a IMPD, de um lado, lança mão de recursos
contemporâneos para divulgação de suas crenças e práticas religiosas e, do outro lado, nega a
qualidade de religião institucionalizada assumindo contornos de uma espiritualidade frouxa, pouco
afeita à normatização teológica, construída numa relação de negociação com outras neopentecostais
que como verificaremos a seguir é impregnada de refinamentos de uma ligação entre fiel e divindade
que é autônoma da mediação do sacerdote especialista e baseada numa relação de troca de favores,
que não pode ser reduzida a uma relação apenas de consumo religioso. No limite, essa caracterização
não foge ao que é constitutivo de outras modalidades religiosas que baseiam sua fé, por exemplo, na
ideia de sacrifício: a entrega de algo em troca de um bem maior (o cordeiro, pelo perdão; Cristo, pela
salvação; um ebó, por alguma benesse). No neopentecostalismo contemporâneo essa lógica se
reproduz na medida em que dinheiro é entregue em troca da cura. Aqui, tanto quanto em outras
modalidades religiosas, estamos falando em reciprocidade.

Igreja Mundial do Poder de Deus e (des)regulação institucional

“(....) A gaiola é representada pela seita, religião, a filosofia de vida que o homem
cria.(...) Mas aqueles que percebem a porta aberta e tomam atitude: esses são livres.
Os seguidores de Jesus Cristo são livres. (...) Hoje as pessoas gostam mais da
religião do que Deus. Da filosofia de vida, de um espírito, mal aparece um espírito
maligno adivinhando a vida das pessoas, elas vão atrás. É. Você sabe por quê?
Porque as pessoas pensam que liberdade é ter uma religião e viver no vício do
cigarro, da bebida, das drogas. Liberdade é ter uma religião, um Deus e viver nas
baladas. (...) Sai da gaiola, é! Aceita Jesus, esquece esse negócio de religião. Entrega
sua vida a Jesus só ele tem um reino, só ele! (...) Você ainda quer esse negócio: ‘Não,
mas a minha religião permite’? Não é que religião permite, é que não vale nada esse
negócio de religião. Religião nenhuma presta, não. Só Jesus Cristo salva! (...)”

Apóstolo Valdemiro Santiago, mensagem “Seja livre”.

Num espaço de aproximadamente 43 mil m², no bairro antigamente operário e de forte


imigração italiana – o Brás –, no Estado de São Paulo, localiza-se a primeira sede da igreja Mundial
conhecida como Grande Templo dos Milagres. Nesse local que antes era um galpão de fábrica, ao

8
centro, o líder religioso apóstolo Valdemiro Santiago dirige cultos nos quais prega mensagens
espirituais e promove milagres. Os cultos ocorrem de segunda a domingo, divididos em três reuniões
e distribuídos em diferentes horários ao longo do dia. Durante a realização dos cultos além do
período de louvor caracterizado por músicas e cantos, há orações e mensagens que podem ser sobre
variados temas, mas sempre com referências a algum texto bíblico do Antigo e ou Novo Testamento.
Além dos cultos existem as chamadas Grandes concentrações de fé, que podem ocorrer na sede ou
em outros lugares do Brasil como estádios esportivos e áreas públicas ao ar livre, onde o apóstolo
acompanhado de sua equipe de fé recebem pessoas de toda sorte. Também nessas ocasiões a Bíblia é
usada por meio de pregações.

Como mencionado, o que mobiliza a IMPD e evidencia sua presença no espaço público é o
acento sobre o tema cura e em consequência, as possíveis perseguições à missão da igreja. Nos
cultos realizados na IMPD, a cura é uma manifestação do Espírito Santo recorrente. A fim de obtê-la
para os casos relacionados à saúde e ao corpo humano (como paralisia, cegueira, surdez, mudez,
AIDS, câncer, lepra e “toda doença que a ciência não pode alcançar” para usar uma expressão
corrente entre seus líderes e membros), casos psico-emocionais (como tristeza e depressão) e
questões materiais (como desemprego, falência, desempenho de comércio etc.), os apóstolos, os
bispos, os pastores, os obreiros levantados, isto é, designados após um processo de preparo, e
voluntários, em determinados períodos do culto oram com mãos colocadas sobre os participantes –
prática denominada oração com imposição de mãos – ordenando que os espíritos malignos
causadores de doenças e de problemas de ordens diversas sejam expulsos do corpo e da vida dos
participantes.

Em princípio, essas orações não se assemelham aos rituais de descarrego ou exorcismos


praticados por religiões neopentecostais como na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A
finalidade é libertar o indivíduo do espírito maligno, expulsá-lo e promover a cura. Nesse percurso se
houver manifestação espiritual, medidas de exorcismos podem ser tomadas. Diferente do que foi
indicado por Almeida (2009, p.66-67) em seu estudo etnográfico a respeito da IURD16, na IMPD não
é o diabo e os demônios que protagonizam as cenas cúlticas.

O apóstolo Santiago, ex-pastor da IURD destaca em suas pregações que “a mão de Deus
está aqui”, indicando que ele possui e em sua igreja existem as condições para operação de milagres
16
Nessa igreja, três tipos de culto são destacados: um dedicado aos empresários e destinado a prosperidade financeira
(segundas-feiras), um dirigido à cura (terças-feiras) e, o terceiro tipo é dedicado ao exorcismo quando se realizada uma
corrente de libertação para extinguir a ação do diabo na vida dos fieis (sextas-feiras).
9
e curas. É, portanto, o poder sobrenatural de Deus o elemento central do culto. Ele ressalta que para
ter a cura, o indivíduo não necessita determiná-la – efetuando uma menção indireta à pregação do
missionário R. R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD). Tampouco seria
necessário carregar consigo sal grosso, referindo-se a uma das práticas realizadas pela IURD. Para
obter um milagre bastaria que o indivíduo se dirigisse a igreja do apóstolo, nas palavras dele, “pela
minha fé”.

Conforme anuncia o site oficial da Mundial, no link missão, o foco da igreja é obedecer a
Bíblia, bem como expandir o evangelho por meio de sua divulgação. É notório que para alcançar
esse objetivo, o evangelho – termo grego para boa nova ou boa notícia, que nomeia o conjunto de
quatro narrativas sobre a vida, os ensinos, a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré – seja usado
como categoria classificatória que distingue a IMPD de uma religião. 17 Essa distinção aparece ainda
em falas isoladas durante o culto e nas pregações, ocasião em que o repúdio à religião
institucionalizada aparece claramente. Esse é o caso da mensagem intitulada “Seja Livre” proferida
pelo apóstolo (posteriormente disponibilizada no site da igreja).

Nessa mensagem baseada na Carta de Paulo aos Romanos, capítulo 8, versos 31-33 (e 35-
37), o apóstolo usa figuras de linguagem para descrever o que seria uma vida de escravidão, de
sofrimento e de miséria. Segundo ele, a religião seria semelhante a uma gaiola e os pássaros seriam
as pessoas que se deixam escravizar por ela. Ele ressalta que “seitas, religiões, filosofias” são
invenções criadas a fim de justificar a entrega humana a “imundícia, caprichos e glamour”. A
vaidade, hipocrisia e os “prazeres da carne”, expressão frequentemente usada em textos de autoria
paulina (Novo Testamento, NT), também são apontados como comportamentos que tornam os
indivíduos prisioneiros de Satanás. Jesus seria aquele que propôs a abertura da porta da gaiola e a
libertação dos pássaros, os quais teriam livre-arbítrio para decidir ficar ou não na gaiola. O apóstolo
aponta que apesar da oferta generosa, há aqueles que não tomam atitude, que se deixam influenciar
pela opinião dos amigos ou parentes temendo represália quanto à decisão de frequentar uma igreja ou
mudar da religião. A essas censuras, o apóstolo responde: “Não interessa, o que interessa é que a
porta está aberta” e, em seguida, efetua a leitura de texto bíblico: “E aqui em Romanos, no capítulo

17
“A IMPD tem como foco principal obedecer todos os mandamentos e preceitos deixados por Deus encontrados na
bíblia, expandir o evangelho divulgando a manifestação de Deus no ministério através de curas e testemunhos. Este foco
tem sido aplicado de uma maneira exata que trabalha o processo com ajuda de bispos, pastores, obreiros e membros
voluntários, onde procuram evangelizar qualquer tipo de pessoa seja ela de qualquer classe social, de diferentes
entidades religiosas, mantendo o respeito e evitando o rompimento de suas respectivas culturas, por exemplo: ciganos,
índios, africanos e outras demais culturas, diferenciando o evangelho de religião (...)”. Disponível em
http://www.impd.com.br/missao.asp. Acesso em 30 jun 2010.
10
8, versículo 31, diz assim a Palavra: ‘Que diremos, pois, a vista dessas coisas? Se Deus é por nós,
quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou,
por ventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?’ Após ler a Bíblia, ele segue com
a pregação interpretando o texto. Segundo ele, Deus

“pagou um preço muito alto pelo meu resgate, pelo seu resgate. Não tem desperdício
maior do que uma pessoa viver na imundícia, ou viver sofrendo, gemendo,
escravizado numa religião que não tem nada a ver com a Palavra de Deus, uma
filosofia de vida. Não tem desperdício maior do que o homem seguir seus próprios
pensamentos, suas próprias idéias”.

Ele prossegue a mensagem relacionando e, de certo modo, colocando a religião no mesmo


nível que drogas, bebidas, farras, baladas e outras práticas do mundo, isto é, da ordem secular e,
portanto, profanas e impuras. Ao se deixar envolver por tais práticas e comportamentos, o indivíduo
estaria deixando Satanás fazer morada em sua vida e em seu corpo. Ainda outros dois aspectos
destacados na mensagem é que existiriam líderes religiosos com medo de ensinarem a Bíblia como
ele ensina, pois perderiam prestígio, membros e dinheiro. Medo que ele não tem, visto que pouco se
importa com “cultura, dinheiro, influência, política e poder político” que alguém na audiência possa
ter.18

Leituras da Bíblia. Continuidades e rupturas de discurso

(...) a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou a
dominar a moralidade intramundada e assim contribuiu [com sua parte] para edificar
esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos
e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão
avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa
engrenagem (...) Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço
{na célebre tradução de Parsons: iron Cage = jaula de ferro}. No que a ascese se pôs a
transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste
mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como
nunca antes na história. (WEBER, 2004, p.165)
18
“Se você se humilhar no pó e na cinza, não interessa dinheiro, não interessa o poder aquisitivo seu, não interessa o
grau de instrução. Ah, eu sou, você sabe tá falando pra quem? Eu tenho tantas faculdades. É? Que bom! Hah! Que bom!
Sabe porque que é bom? De repente eu to falando pra gente que tem muita cultura, dinheiro, influência, política, poder
político... E aí o sujeito fala não to entendendo, por que eu to ouvindo esse homem se eu tenho isso, tenho aquilo, aquilo
outro? Porque você chegou à conclusão, tá lá dentro de você, que o que você tem, o que você sabe não vale
absolutamente nada sem isso que eu to oferecendo pra você. Nada. Você chegou à conclusão de que não adianta poder
político, não adianta diploma, canudinho debaixo do braço, não adianta conta bancária cheia, se Jesus Cristo não
estiver na sua vida. Não adianta! Isso só é bom, se você tiver Jesus, se não, não vale nada! Aprende isso. É.” – Apóstolo
Valdemiro Santiago.
11
Parece um gracejo da sorte que a difundida tradução de Parsons para ein stahlhartes
Gehäuse, conhecida no Brasil como jaula ou gaiola de ferro seja tão apropriada para lançar luz sobre
a figura de linguagem gaiola que o apóstolo Santiago empregou em sua mensagem. Na Ética
protestante e o espírito do capitalismo, Weber referia-se ao fato de que a ascese e a conduta de vida
racional moderna contribuíam para a idéia de profissão como vocação. O que antes conduzia a vida
nos mosteiros, agora, fora dos portões e das celas monásticas, determinava uma rija e irresistível
pressão sobre o estilo de vida das pessoas que os impelia à produção, ao lucro e ao acúmulo, sinais
materiais da graça de Deus sobre seus escolhidos.

Por outra via, o apóstolo usou gaiola para descrever um lugar de miséria e de sofrimento, a
que se destinariam as pessoas que se deixam enredar por religiões, filosofias, vontades e idéias
próprias. Nos termos do apóstolo, aqueles que procedem segundo essas filosofias não possuiriam a
liberdade e estariam escravizados por Satanás. Nessa perspectiva, bens materiais poderiam ser sinais
de condenação. Se o puritano do século 16 entendia a especialização e o acúmulo como bênção que
se reverteria em salvação, para o neopentecostal do século 21, sinal de bênção seria o gozo dos bens
materiais como forma de expressão de sua libertação. A condenação, em sentido contrário, seria o
individualismo (entendido como autoconfiança), o acúmulo e o apego as coisas materiais.

Apesar de intramundana, essa é uma ética que visa ao consumo dos bens materiais e
considera o acúmulo desperdício de liberdade, que seria a condição daquele que vive sem submeter-
se ao domínio de Satanás e dos prazeres que ele oferece. Aparentemente ter coisas seria
consequência de uma vida consagrada a Deus. Mas deter-se em mantê-las não faria sentido: “Quem
quiser sair, sai. Quem não quiser, ele não obriga. Livre-arbítrio. Quer confiar no seu dinheiro,
confie; nos seus diplomas, confie; na sua religião, confie. Quer confiar em Jesus Cristo, então, você
terá a vida. Quem tem o filho, tem a vida; quem não tem o filho, não tem a vida.”

A despeito de ser essa uma mensagem proferida no âmbito de uma modalidade religiosa que
proclama-se não institucional, o seu conteúdo não difere tanto das pregações de outros grupos com
acento em certa renovação carismática. A título de comparação, em agosto de 2009 num
Acampamento de cura e libertação, os participantes ouviram a pregação intitulada Quem acusará os
eleitos de Deus?, baseada no texto bíblico Romanos 8,31. Considerando especialmente a segunda
parte do verso (“Se Deus está conosco, quem estará contra nós?”), o oficiante dirigiu-se ao grupo e

12
salientou que nenhum indivíduo tem o direito de se autocondenar ou autoacusar. Na ocasião,
associou sintomas físicos e emocionas – nervoso, doença, dores nas costas, colesterol alto –, com
uma condição de condenação ocasionada pela autoacusação de pecado e pelo comprometimento do
fiel com uma rígida rotina que resultaria em doenças e enfraquecimento da espiritualidade. O oposto,
a libertação, seria resultado da consciência de perdão divino. Na fala implicitamente havia uma
referência ao binômio lei e evangelho representado liturgicamente entre católicos e protestantes
históricos pela divisão de leituras da Bíblia em Antigo e Novo Testamento durante missas e cultos. A
leitura do AT lembraria o tempo da lei e da condenação ao desobediente povo judeu, enquanto o NT
ressaltaria o tempo da graça e do perdão obtidos pelo sacrifício de Jesus. Essa forma antitética tem
permeado o cristianismo por meio de polaridades muito diversificadas – tais como letra e Espírito, lei
e evangelho, fé e obras, reino de Cristo e reino do mundo, pessoa cristã e pessoa civil, liberdade e
condenação, Deus oculto e Deus revelado – e permanece como horizonte estruturante para as
religiões do eixo judaico-cristão. Nessa ocasião, a mensagem apresentada pelo padre José Augusto
da comunidade carismática Canção Nova foi recebida entusiasticamente pela audiência.

No nível hermenêutico, enquanto o apóstolo dedica maior ênfase à explicação da condição


de condenação, o acento que recai sobre o desperdício da libertação divina representado por uma
vida de escravidão, o padre que representa uma expressão da renovação carismática católica, destaca
o evangelho, isto é, o gracioso perdão: “Se Deus é fiel e justo, quem vai nos separar do amor de
Cristo?” [menção a Romanos 8,35: “Quem nos separará do amor de Cristo?”]. Nesse caso, a leitura
bíblica neopentecostal assegura que a liberdade prometida nos versos lidos diz respeito ao livramento
de todo e qualquer vínculo institucional. Tal fala é direcionada principalmente às religiões
comprometidas com doutrinas e sistemas teológicos, ao invés de pregarem o evangelho. Os termos
do apóstolo destacam que toda forma de religião conduz ao aprisionamento e lança fora o grande
empreendimento que teria sido a entrega de Jesus para a morte, em troca da salvação da
humanidade.19

Interessante notar que ambos os pregadores propõem que é necessário um posicionamento


do fiel. O padre declara que é necessário assumir a condição de liberto, enquanto o apóstolo destaca
que ser livre da gaiola requer atitude. Portanto, ambos enfatizam a decisão individual, possibilidade
amparada pela concessão dos direitos e das liberdades individuais de consciência religiosa típicas da

19
“É que a ressurreição na escala de valores de importância, ela é muito mais importante que a morte. Foi importante
ele ter morrido, mas foi muito mais importante ele ter ressuscitado. Ele está vivo” – Apóstolo Santiago, Mensagem “Seja
Livre”.
13
modernidade. Entretanto, paradoxalmente, o apóstolo recusa a caracterização de religião autorizada e
recorre à imagem de igreja perseguida, na contra-mão do Estado e da opinião pública. Do mesmo
modo, rejeita possíveis referências de outras igrejas, como elementos remanescentes do
pentecostalismo que enfatizariam a cura assim como na IMPD. Se de um lado, os benefícios
disponíveis pela modernidade no espaço público foram apropriados e incorporados ao modo de
operação da IMPD, do outro lado, o apóstolo revela-se antimoderno ao recusar a oferta de sentidos e
de discursos característica do espaço público. Em razão dessa recusa, retoma um tipo de leitura da
Bíblia que é fundamentalista e literalista: novamente, adaptação e rejeição. Dessa vez, ao contrário
do que propôs a Reforma – a promoção da eticização hermenêutica e a racionalização dos símbolos e
sacramentos religiosos e, em consequência, a individualização do crer, humanização do divino e
divinização do humano –, a leitura bíblica elaborada pelo apóstolo declara que seus conteúdos
expressam verdades e autênticos episódios de milagres e curas.

No campo religioso brasileiro, a religião existe enquanto uma escolha e não como uma
identidade assumida no berço ou transmitida num ambiente social. Traço que constitui um
importante marcador do neopentecostalismo em relação a tradições mais rígidas como o catolicismo
romano e o protestantismo histórico, exemplificado pelo luteranismo. Isto aponta que “a não-filiação
não significa necessariamente ausência de religiosidade” (ALMEIDA; MONTERO, 2001, p.96),
mas a possibilidade dada na modernidade de construção de um quadro de religiões e de
religiosidades que expressam a recomposição desses modos diante o espaço público e as demandas
sociais. Para usarmos uma categoria analítica de Hervieu-Léger, é com a secularização que o
indivíduo passa a construir sua linhagem de crença particular, constituída a partir de sua trajetória
individual.20 Em grande parte, a fundação da IMPD bem como os seus arranjos específicos de
crenças e práticas rituais estão relacionadas à trajetória do apóstolo Santiago. Em especial, à seleção
de trechos de sua experiência religiosa que o autorizam tanto a criticar outras religiões, quanto
desenvolver certos usos da Bíblia.

Usos da Bíblia e outros objetos

20
Importante ressaltar que não se trata de entender trajetória no sentido de ciclo linear de vida, mas como narrativa que
seleciona temporalmente acontecimentos, informações, experiências etc. Por essa razão, narrativa e trajetória são
conceitos indissociáveis (KOFES, 2001, p.15, 123, 126).
14
Inicialmente, indicaremos usos da Bíblia em dois níveis, o semântico e o simbólico. No
primeiro nível, a Bíblia é tomada como arcabouço de verdades por meio das quais os indivíduos
devem se guiar. Há um quadro de sentidos estruturados a partir de polaridades e que remontam ao
eixo judaico-cristão e que constitui os fundamentos da interpretação bíblica feita pelos pregadores da
IMPD.

Embora o apóstolo diga a seu respeito que é iletrado, fazendo referência a si mesmo como
simples comedor de angu e outros epítetos que remontam a sua origem mineira, ele busca autoridade
na Bíblia e na pregação do evangelho, aqui entendido como uma categoria nativa de classificação
que diferencia aqueles que são crentes e, portanto, seguem-na literalmente, daqueles que não-são-
crentes e dão pouco valor a suas orientações. Em oposição ao evangelho ficariam seitas, religiões e
outras filosofias, cujos ensinos conduziriam à condenação. Segundo ele, não haveria nada para além
do evangelho e da Bíblia que ele prega exemplarmente, ao contrário de outros pastores que teriam
medo de ensinar a Palavra. Esse uso da Bíblia tanto quanto a leitura dela feita não distancia-se da
maneira como geralmente pastores evangélicos usam-na; isto é, sob o pressuposto que se torna
reivindicação de que a forma como interpretam-na é a verdadeira e corresponde à visão de Deus para
todas as pessoas. Caso uma leitura simbólica ou revisionista seja proposta, pode ser apontada como
desviante e ameaçadora, do ponto de vista da preservação da tradição.

O uso da Bíblia como fonte de orientação moral e social na IMPD, entretanto, não pode ser
equiparado ao rigorismo classificatório desenvolvido, por exemplo, na Igreja Pentecostal Deus é
Amor, em que desde a sua fundação (1962) prevalece um código de conduta constituído de regras,
que abrange e define como deve ser o comportamento individual de cada crente em todas as
situações, cotidianamente. Na Mundial, diferente disso, a conduta pessoal é assunto de
responsabilidade de cada um, a quem foi dado livre-arbítrio. Em sua Doutrina e embasamento diz-se:
“A Bíblia (sem os livros apócrifos) é a Escritura infalível e insofismável Palavra de Deus”, o que
aponta certa característica de hermenêutica literal e fundamentalista em que se considera que o
conteúdo é resultado de fatos históricos. Segundo essa leitura, a literatura bíblica não corresponderia
a uma biblioteca constituída de narrativas míticas e linguagem metafórica, distribuídas segundo
gêneros e formas literárias. Nos pontuais momentos em que são realizadas leituras bíblicas durante
cultos e concentrações de fé, os textos indicados pelo apóstolo, lidos ou mencionados de memória,
em geral, visam dar suporte ao tema cura (ou outro assunto relacionado à igreja, de ordem política,
econômica etc.). Não poucas vezes, os textos apontados fazem (ou procura-se fazer) relação com os
testemunhos e depoimentos colhidos durante o início do culto. Ao momento dos testemunhos é
15
dedicada a maior parte da celebração, pois com base neles é que se comprova a veracidade do bordão
da igreja: “a mão de Deus esta aqui!”.

Isto posto, o nível semântico revela-se ambivalente, no sentido que permite a coexistência
de duas hermenêuticas, às vezes, opostas, visto que há certo fundamentalismo bíblico, sobre o qual
repousa a autoridade do apóstolo da sua equipe de fé e, concomitante, uma leitura da Bíblia frouxa
no sentido que lega ao indivíduo a responsabilidade de interpretar-lhe e seguir-lhe segundo critérios
próprios.

O nível simbólico corresponde a outra forma de apropriação da Bíblia, em que torna-se


objeto mágico e condensador de expectativas relacionadas à representação do Sagrado. Nesses
termos, representa (1) um importante elemento de articulação da experiência religiosa e (2) objeto
que contém a condição de libertação mística dos males e infortúnios que a realidade impõe a cada
fiel. Se por um lado, a Bíblia torna-se objeto normatizador com base na interpretação literal de
alguns de seus trechos, do outro, trata-se de um instrumento que materialmente possui espécie de
energia vital (unção, bênção, axé, HAU) que assegura proteção a quem lhe carregar, lembrando a
função de um amuleto.

A Bíblia ou trechos dela, impressos em diferentes representações de objetos como toalhas,


travesseiros, martelos etc., torna-se coisa sagrada não pelo conteúdo relevado, mas pelo poder
mágico e sobrenatural que detém como parte de sua natureza. Carregá-la ou carregar uma inscrição
dela significa para cada um ter em seu poder, o próprio sagrado: o objeto santo em alguma medida
confere a quem lhe guarda uma fagulha do sagrado. Como resultado disso, o objeto deve ser
resguardado de usos inapropriados, lembrado e armazenado em ocasiões e lugares especiais da casa,
mas também levado na bolsa, pasta ou carteira para condução da bênção/unção junto de quem o
detiver. Essa relação com a Bíblia ou texto bíblico como objeto não parece distante da prática de
alguns cristãos, católicos e protestantes, que sequer deixavam-na cair no chão temendo pecar contra
Deus, dada a natureza sacra da Bíblia. E por conta dessa natureza, em algumas casas cristãs, a Bíblia
poderia ser notada em lugar de destaque, tipicamente aberta no Salmo 23 ou 91, logo à entrada.

Assim, é possível entender que as iniciais dicotomias entre magia e religião forjadas nas
abordagens de Frazer e Durkheim, quando aplicadas ao fenômeno religioso contemporâneo podem
ter rendimentos, mesmo que em vista das transformações do campo. Nesse caso, a associação de
idéias por contigüidade no tempo e no espaço exprime um tipo de magia contaminante ou

16
contagiosa, segundo a qual as coisas/objetos que uma vez estiveram em contato com o Sagrado, uma
unção ou bênção, atuam uma em relação à outra reciprocamente, mesmo à distância. Razão pela qual
conduzir objetos pessoais as proximidades do altar, assim como empunhá-los durante orações para
que sejam ungidos/abençoados, o ato de tocar o suor do apóstolo ou rogar-lhe a toalha com que
enxuga a transpiração podem ser compreendidos na mesma chave que o ato de tocar imagens de
santos a fim de receber bênçãos e das peregrinações a lugares sagrados. Torna-se necessário
reconhecer que magia e religião não se excluem mutuamente, pois a magia está presente na religião
na forma de orações e manipulações de objetos sagrados/mágicos, constituindo-se como meio de
alcançar o numinoso, nos termos de Otto. Nesse sentido, a Bíblia é objeto mágico que pode ser
entendida como dispositivo que aciona o sobrenatural e coloca em contato o agente religioso com
sua divindade. Esse elemento mágico é parte do ritual antecedido somente pelo mito, isto é, pela
crença que encontra sua força no consenso do grupo (MONTERO, 1986).

Nesse sentido, no caso da IMPD, a Bíblia também apresenta sentido concreto, isto é, para
além do conteúdo que expressa, as palavras que carrega possuem poderes mágicos de proteção, de
cura e outras qualidades que mediam a relação entre fiel e Sagrado, no nível cognitivo e no nível
concreto.

Assim, por exemplo, pode-se compreender a relação literal entre o texto bíblico e certas
representações que dele se fazem. O objeto nesse caso é a própria ilustração do conteúdo do verso
bíblico e, carregado na forma de uma miniatura, lembra a todo momento a orientação expressa.
Miniaturas de travesseiros como essa foram distribuídas durante campanha realizada numa das
igrejas da IMPD21. Os dizeres bíblicos impressos no travesseiro,“Irai-vos e não pequeis; consultai no
travesseiro o coração e sossegai” (Salmo 4,4) tinham basicamente a finalidade de transmitir ao fiel a

21
Juiz de Fora, Minas Gerais, ano 2009.
17
ideia de que era necessário crer e esperar pelo milagre. O travesseiro foi entregue durante 12
domingos. Durante um dos cultos em que estivemos presente, observamos que tendo em uma das
mãos o travesseiro, a outra os participantes colocavam em contato com alguma parte do corpo
adoecida e/ou seguravam outros objetos como carteiras de trabalho, fotos, receitas, exames médicos
e objetos sobre os quais desejavam receber a ação sobrenatural, o milagre. Após as orações de
expulsão dos espíritos malignos responsáveis pelo mal instaurado no corpo/vida dos presentes ou nos
objetos mencionados, os fiéis foram motivados a descansarem confiantes na libertação e na ação de
Deus em prol de seus pedidos. Na mesma esteira, objetos simbólicos como pequenas toalhas, rosas e
pães podem ser entregues nos cultos.

Emblematicamente, numa das igrejas da IMPD em Juiz de Fora, Minas Gerais, pequenos
pães embrulhados em papel alumínio foram distribuídos durante todo o mês de junho de 2009. Ao
entrar na igreja, o participante do culto recebia do obreiro postado à porta um pãozinho e a unção
com óleo (na região da cabeça). Durante o culto foi explicado que o pão representaria a força e a
providência de Deus em relação a todas as necessidades humanas, das espirituais até as materiais. O
indivíduo que o recebesse deveria deixá-lo em lugar aparente para que não se esquecesse dessa
providência e para que sua fé fosse nutrida.

No mesmo período de junho, tradicionalmente no dia 13, comemora-se o dia de Santo


Antônio (padroeiro de Juiz de Fora). Nas igrejas, catedrais e conventos católicos em que esse santo é
padroeiro distribuí-se o “pãozinho do Santo Antônio”. Conforme a tradição, quando colocado dentro
de latas de mantimentos nas cozinhas familiares, a bênção do santo conduzida pelo pão permite que
aquele recipiente nunca se esvazie e prossiga em fartura para o lar. Anualmente, os devotos do santo
retornam a essas igrejas e conventos para renovarem a fé, seus votos e o recebimento do pão. A
cerimônia de entrega de pães pode ser ainda realizada em ocasiões como a Festa do Divino Espírito
Santo.

Algumas considerações

O campo religioso brasileiro: fusões e re-significações

A institucionalização das religiões no Brasil ocorreu nas décadas iniciais do século 20, mas
conheceu um processo inverso na segunda metade do mesmo século. As últimas quatro décadas
testemunharam a movimentação das modalidades religiosas pentecostais por meio da multiplicação
de alternativas religiosas e o chamado trânsito religioso, caracterizado pela circulação de pessoas, de
18
práticas e de idéias entre as religiões. Desse fenômeno derivou a desinstitucionalização dos grupos
religiosos e o enfraquecimento das pertenças identitárias. O movimento permitiu que arranjos e
trocas simbólicas ocorressem no campo religioso atenuando os marcadores de cada grupo, definidos
por diferentes modelos litúrgicos, códigos de conduta e tradições teológicas, o que propiciou a
aproximação dos modos religiosos. O que percebe-se à luz do novo pentecostalismo aqui
exemplificado pela IMPD é que a noção de tradição foi tomada não no sentido de
organização/instituição. Conquanto, mesmo que com atitude de repulsão aos antigos marcadores e ao
dogmatismo intelectual das confissões religiosas mais tradicionais, novas expressões evangélicas –
como é o caso da IMPD –, não prescindem de referências de outros modos religiosos identificadas
no uso da Bíblia, na reposição do esquema antitético de cosmovisão e na eleição e elaboração de
símbolos e rituais cujo acento recai sobre crenças e práticas mágicas.

Nesse sentido, as controvérsias e disputas entre IMPD, outras neopentecostais e órgãos


públicos baseadas na acusação de perseguição, do lado da Mundial e, de perturbação da ordem, do
lado das autoridades públicas, acabam por tornar-se um meio de visualização que projeta imagens da
igreja na cena social e suscinta o debate quanto à legitimidade das suas crenças e principalmente
práticas. Ao desautorizar outras neopentecostais como a IURD e IIGD sob a acusação de não
pregarem o evangelho verdadeiro, o apóstolo as desqualifica e assume para si e sua igreja o status de
uma verdadeira autoridade, que se comprova pelos milagres que realiza e que a sua igreja promove.
Embora não reconheça vínculos doutrinários e rituais com outras igrejas, neopentecostais ou católica,
o que se observa em seus cultos e concentrações de fé corresponde a certo tipo de experiência
religiosa que repõe aspectos de uma religiosidade católica caracterizada pela relação entre fiel e
sagrado, devoto e santo, que é íntima e pessoal. Assim, quando chamado de homem santo que
movimenta multidões em busca de bênção e milagres, destaca-se o fato de que as imagem de santos
e milagreiros ocupam permeiam de forma central a vida do povo. A eles recorrem pessoas de todas
as faixas etárias e grupos sociais, principalmente, quando entre seus pares não encontram a solução
e/ou resposta para seus problemas. A ideia de que esse homem santo carrega algum poder
sobrehumano com abrangência sobre todos os aspectos da vida dos fieis, somada ao aspecto familiar
de um homem advindo do campo e de origens simples promove uma relação de intimidade e
confiança que extrapola os limites impostos pelas definições denominacionais.

Assim, a possibilidade dada na modernidade (período histórico) de escolher sua crença e seu
coletivo religioso etc., propiciou certa transformação no comportamento dos agentes religiosos e
permitiu a circulação de pessoas e a migração de idéias religiosas. De certo modo, essa
19
transformação é que autoriza o menosprezo do apóstolo as outras religiões, pois acima do
comprometimento com uma instituição e para além da filiação institucional, o sujeito religioso tem a
possibilidade de optar pela denominação, pela doutrina, pela explicação cosmológica, pelos símbolos
e pelas práticas religiosas que melhor lhe atender. Em alguma medida esse processo favoreceu a
fundação da IMPD, visto que proporcionou a possibilidade de selecionar e relacionar conteúdos
simbólicos das diversas alternativas religiosas, conforme demandas particulares (ALMEIDA;
MONTERO, 2001, p.93). Portanto, a interpenetração das religiões ocorre no nível das trajetórias dos
agentes religiosos e, conseqüentemente, no nível das representações institucionais, mesmo que os
agentes religiosos profissionais – padres ou apóstolos – recusem essa deformação.

É de se considerar que líderes da renovação carismática recusem a proximidade com grupos


pentecostais e que igrejas como a do apóstolo Santiago recusem semelhanças com outros modos de
religião ou igrejas institucionalizadas. Entretanto, a recusa em admitir o enfraquecimento das
pertenças identitárias expressa-se no nível do discurso oficial, que reforça os símbolos religiosos e os
posicionamentos oficiais da igreja. Ou, como no caso do apóstolo Santiago, por meio da reposição da
idéia de perseguição e na crítica às religiões criadas pelo homem. Embora o apóstolo e bispos da
Mundial não reconheçam a expressão de religiosidades diversificadas no interior da IMPD,
estimuladas pelo próprio carismatismo de seus líderes, durante seus cultos e especialmente ao
encerrá-los, o apóstolo segue para uma das portas laterais do galpão-igreja e é cercado pela multidão
de pessoas, as quais abraça e acarinha. Nessas ocasiões, não raro o apóstolo é tocado e objetos de
toda sorte são resvalados em seu corpo. Relatos de alguns desses fiéis afirmam terem alcançado
curas, milagres e bênçãos com essa atitude. Prática em certa medida estimulada pelo desafio que
constantemente o apóstolo lança, caso alguém não julgue ter suficiente fé: “venha pela minha fé”.

Esse carismatismo fundado em noções de amor, de fraternidade, de cura e de caridade,


gera um plausível quadro de referências para os agentes religiosos selecionarem, incorporarem,
relacionarem e combinarem conforme arranjos específicos que formulam e sintetizam num repertório
próprio. Assim, a despeito das pregações e mensagens em nível oficial, importa a eficácia simbólica,
dos ritos e das práticas religiosas disponíveis (não importa o modo religioso) a fim de se obter uma
sensação de reordenamento e atribuição de sentidos à vida.

Como sustentou Bastide, as trocas ocorrem entre pessoas e, nesse nível, os estudos sobre
trânsito religioso nos ajudam a compreender o processo de retroalimentação de idéias e dos sujeitos
que desencadeia a transformação de ritos, de crenças e de práticas religiosas permitindo o surgimento
20
de novas alternativas religiosas e a re-invenção dos modos já existentes. Nesse sentido, os usos da
Bíblia entre evangélicos não se desviaram de certas noções herdadas da cosmovisão judaica e cristã,
especialmente, dos parâmetros pentecostais. No tocante a performance, as novas ferramentas
tecnológicas e de mídia, a exacerbação da imagem, difusão rápida e de alcance generalizado
proporciona a intensificação das trocas simbólicas e a visualização da Igreja pela sociedade. Embora
as tradições e famílias confessionais sejam a todo momento problematizadas, as referências herdadas
de outras modalidades estão representadas tanto pelos fieis que compõem o grupo religioso, quanto
nas memórias que o apóstolo a todo momento evoca e que apontam para um novo pentecostalismo,
muito menos avesso ao catolicismo do que em relação aos grupos protestantes e pentecostais.

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