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SAÚDE, ENSINO E

COMUNIDADE
UNESP – Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Medicina de Botucatu

Reitor: Júlio César Durigan


Vice-Reitora: Marilza Vieira Cunha Rudge

Diretora: Silvana Artioli Schellini


Vice-Diretor: José Carlos Peraçoli

Núcleo de Apoio Pedagógico – NAP


Coordenador: Paulo José Fortes Villas Boas
Vice-Coordenadora: Alice Yamashita Prearo

Conselho Editorial do NAP


Paulo José Fortes Villas Boas
Alice Yamashita Prearo
Janete Pessuto Simonetti
ANTONIO PITHON CYRINO
DANIELE GODOY
ELIANA GOLDFARB CYRINO
(Org.)

SAÚDE,
ENSINO E COMUNIDADE
REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS DE ENSINO
NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE
Copyright 2014, autores
Comissão Editorial: Núcleo de Apoio Pedagógico
Avenida Prof. Montenegro, s/n
Bairro: Distrito de Rubião Junior
CEP: 18618-970 – Botucatu, SP
Tel: +55(14)38801137

Ficha catalográfica elaborada pela


Seção Téc. Aquis. Tratamento da Inform.
Divisão de Biblioteca e Documentação – Campus de Botucatu – UNESP
Bibliotecária responsável: Rosemeire Aparecida Vicente

Saúde, ensino e comunidade : reflexões sobre práticas de ensino na


atenção primária à saúde / Organizadores Antonio Pithon Cyrino,
Daniele Godoy, Eliana Goldfarb Cyrino. – São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2014
252 p.

Inclui bibliografia e índice


ISBN: 978-85-7983-553-7

1. Cuidados primários de saúde. 2. Promoção da saúde.


3. Programa Saúde da Família (Brasil). 4. Estudantes de Medicina.
5. Humanização na saúde. 6. Pessoal da área médica.
7. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade
de Medicina de Botucatu. I. Título. II. Cyrino, Antonio Pithon.
III. Godoy, Daniele. IV. Cyrino, Eliana Goldfarb.

CDD 614.44

Este livro contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior (Capes), Programa Pró-Ensino na Saúde (n.024/2010).
À memória da professora Cecília Magaldi, por toda uma vida
de dedicação à saúde pública e à educação médica.
Aos professores Joel Spadaro e Marilza Vieira Cunha Rudge,
que fazem parte do começo desta história.
Ao professor José Carlos Peraçoli, pelo estímulo e apoio à
produção do projeto Pró-Ensino na Saúde desta instituição,
e à pedagoga Elisabete Bemfato Dezan, pelo envolvimento
crítico e construtivo no desenvolvimento deste projeto.
Aos militantes da saúde coletiva que acreditam nessa rica e
fundamental “mistura” da saúde com a educação,
combinação que assume um processo de ensino
e aprendizagem problematizador, crítico e permanente
como criação coletiva, aberto ao desafio constante de
arriscar e poder errar e corrigir, à alegria
e ao compromisso da transformação.
À Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP,
que nos acolheu prontamente para o
desenvolvimento deste programa de pesquisa.
Observar, pensar e imaginar coincidem e
constituem um só processo dialético. Quem não
usa a fantasia poderá ser um bom verificador de
dados, mas não um pesquisador.
José Bleger1

1. BLEGER, J. Temas de Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 7-41.


SUMÁRIO

Prefácio: Compromissos do ensino da saúde com os


desafios sociais  13

Apresentação  21

1. Ensino na atenção primária à saúde e as


Diretrizes Curriculares Nacionais:
o papel do projeto político-pedagógico  25
Victória Ângela Adami Bravo
Eliana Goldfarb Cyrino
Maria Antonia Ramos de Azevedo

Parte I – A disciplina IUSC  49

2. A construção de uma disciplina:


um olhar sobre o processo de implantação
do programa de ensino de graduação médica
na comunidade  51
Maria Regina Pires Uliana
Antonio Pithon Cyrino
10  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Parte II – Professores, profissionais de


saúde e alunos da IUSC  75

3. Inovação pedagógica no ensino médico e de


Enfermagem: desafios e perspectivas na
formação de professores  77
Cássia Marisa Manoel
Eliana Goldfarb Cyrino

4. Os profissionais de saúde no ensino na


atenção primária à saúde:
tensões e potencialidades nas
práticas pedagógico-assistenciais  93
Tiago Rocha Pinto
Eliana Goldfarb Cyrino

5. Alunos, os sujeitos do processo:


o que pensam sobre “ser médico” e
sua formação  133
Maria Regina Pires Uliana
Antonio Pithon Cyrino

Parte III – As estratégias pedagógicas da IUSC  145

6. A metodologia da problematização no
contexto da formação em saúde­  147
Marina Lemos Villardi
Eliana Goldfarb Cyrino
Neusi Aparecida Navas Berbel
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  11

7. Os vários naipes da visita domiciliar na


formação de estudantes de Medicina  191
Renata Maria Zanardo Romanholi
Eliana Goldfarb Cyrino
Paulo Marcondes Carvalho Júnior

8. O caderno de campo: um instrumento de


avaliação formativa na disciplina
IUSC III  231
Daniele Cristina Godoy
Antonio Pithon Cyrino
Vanessa dos Santos Silva

Sobre os autores  247


PREFÁCIO
COMPROMISSOS DO ENSINO DA SAÚDE
COM OS DESAFIOS SOCIAIS

Ricardo Burg Ceccim1

O livro Saúde, ensino e comunidade: reflexões sobre práticas de


ensino na atenção primária à saúde, escrito por professores da Fa-
culdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Pau-
lista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), traz para o conhecimento
e debate uma expressiva articulação entre educação universitária e
construção do fazer em saúde, segundo a motivação de desenvolver
uma formação profissional compromissada com a sociedade e os
interesses populares. Essa articulação foi vivida como interação da
universidade com os serviços de saúde e com a vida local, servindo-
-se dos referenciais de saúde da atenção integral, da ação preventiva
e social, da atuação em saúde comunitária e da prática de visitação
domiciliar, reensejados ao longo dos textos que o compõem. O
livro põe em cena uma experimentação que foi objeto de projetos
de fomento à graduação, projetos de pesquisa acadêmica no âm-
bito  da pós-graduação stricto sensu e de ação social, segundo o

1. Pós-doutor em Antropologia Médica pela Universitat Rovira i Virgili (URV –


Tarragona/Espanha), professor associado na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), pesquisador de produtividade pelo CNPq em Edu-
cação e Ensino da Saúde, coordenador do EducaSaúde – Núcleo de Educação,
Avaliação e Produção Pedagógica em Saúde, da UFRGS.
14  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

acolhi­mento de um desafio ético e uma proposta de formação que


desejava fatores de exposição à aprendizagem distintos da sala
de aula, do laboratório ou dos estágios de assistência clínica. Entre
esses fatores, estava a oportunidade de promover uma instância hí-
brida entre exten­são universitária, ensino de graduação e pesquisa
acadêmica.
Ao contemplar a participação de doze pesquisadores envol-
vidos com a docência, o assessoramento pedagógico, a pesquisa,
a colaboração interinstitucional e a intervenção social, o livro veio
contribuir com a reflexão relativa à pedagogia universitária, em
espec­ial no tocante à saúde, objeto de dedicação dos autores. Pro-
venientes da formação em Medicina, Enfermagem, Psicologia,
Fisio­terapia e Pedagogia, todos eles possuem experiência – pela
docên­cia, pela pesquisa e pela vida profissional – tanto em saúde
coletiva como em educação. Entre os assessores da ação (em sua
materialidade) estavam pesquisadores com formação em Medi-
cina, Enfermagem e Antropologia, mas o livro inclui o contato,
desdobrado pela história da instituição, com os projetos de inte-
gração ensino-serviço-comunidade do programa UNI, Uma Nova
Iniciativa – a Integração com a Comunidade, nos anos 1990, no
intui­to da mudança no ensino de graduação pela busca de cenários
externos ao hospital universitário e orientado para as camadas
popu­lares da sociedade, assim como o contato com os projetos de
integralidade e humanização que marcaram a política nacional
de  saúde na primeira década dos anos 2000 e com os estudantes
que  ingressaram e concluíram sua graduação na vigência da ino­
vadora interação universidade-serviço-comunidade desenvolvida
pela UNESP/Botucatu.
O livro foi organizado de modo a permitir que o leitor conheça
antecedentes referenciais na educação de profissionais de saúde;
perspectivas do trabalho universitário relacionadas aos docentes,
aos discentes e aos trabalhadores da rede de atenção à saúde; e uma
produção estratégica à iniciativa híbrida entre extensão, pesquisa
e ensino, que lhe concede materialidade pela ação na vida local,
como é o caso do trabalho de visitação domiciliar. A interação entre
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  15

univer­sidade, serviços de saúde e sociedade está na base do projeto


ético-político formulado, experimentado por dez anos e, então,
narrado analiticamente neste livro. Tal interação configura o desen­
volvi­mento profissional como prática direcionada às camadas
popu­lares, ao acompanhamento de comunidades/cidadanias e à
prestação de serviços de saúde com uma concepção crítico-social de
vida, de mundo, de usuário e de sociedade.
Se a trajetória dos movimentos de mudança na graduação dos
anos 1990 resultou numa avaliação que indicava a dissociação
entre extensão universitária, ocupada com projetos sociais exte-
riores ao hospital, e graduação universitária, ocupada com projetos
elitizados centrados no hospital, a inovação contemporânea estaria
em construir projetos sociais orgânicos à graduação, incorporados
ao rotei­ro central da formação profissional básica e componentes
do aprendizado. A atual política nacional de extensão universi-
tária sonha com essa construção, instaurando editais de fomento,
cujo julgamento deve priorizar iniciativas com potência de incor-
poração e expansão pelo ensino de graduação. Este livro nos dá,
além de uma pista, a exemplificação do viável e das condições de
possibilidade.
A prestação de serviços comunitários pela universidade tem
seu registro na emergência da extensão universitária, iniciada no
Brasil em meados dos anos 1920, tendo em vista o relacionamento
entre agentes da universidade e da comunidade.2 A ideia da extensão
universitária era estender suas atividades àqueles que estavam fora
da universidade (a comunidade), mas é a partir da reforma educa-
cional de 1968 que a universidade passaria a propiciar aos seus
alunos, por meio das atividades de extensão, oportunidades de par-
ticipação em programas de melhoria das condições de vida da
popu­ lação e no processo geral de desenvolvimento (políticas
de  com­pensação ou de equalização nas distâncias universidade­
‑comu­nidade). É do início da década de 1980 o conceito da indis­

2. RODRIGUES, Marilúcia de Menezes. Extensão universitária: um texto em


questão. Educação e Filosofia, v.11, n.21-22, p.89-126, 1997.
16  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

sociabilidade ensino-pesquisa-extensão, devendo a universidade


ocupar-se do desenvolvimento de ações no interesse da sociedade,
democratizando o acesso ao saber à sociedade do lado de fora.
Prestar serviços à comunidade e encontrar formas participativas de
a sociedade ter acesso aos conhecimentos superiores representava a
extensão em sentido mais amplo. No final dos anos 1980, além da
ligação universidade-comunidade, a extensão desenvolve a fórmula
de uma outra ligação: universidade-empresa. Ao passo que o ensino
e a pesquisa são os polos acadêmico e científico da universidade, a
exten­são é o polo ensino-sociedade, pesquisa-sociedade, ensino-
-pesquisa-sociedade, seja pelos componentes populares, seja pelos
componentes industriais/empresariais.
De todo modo, a extensão será sempre o principal corredor de
passagem do ensino e da pesquisa aos serviços, às entidades e aos
movimentos sociais. A experiência e todo o conteúdo de ensino de
graduação, pesquisa e desenvolvimento profissional no contexto da
saúde da família está na interação universidade-comunidade, me-
diada pelos serviços de saúde, realizando uma união da formação
acadêmica com a atenção profissional em saúde. É de se lembrar
que o cenário da união entre formação acadêmica e atenção profis-
sional em saúde que mais temos impregnado em nosso imaginário
vem da primeira formulação de uma educação e ensino profissiona-
lizados em saúde. Vem do início do século passado a formulação de
uma pedagogia para a educação da saúde: o modelo flexneriano.
Naquele momento, propunha-se a montagem do hospital univer­
sitário, depois, por diversos movimentos de mudança, foram
propos­tas a integração docente e assistencial, a integração ensino
e  serviços, a integração ensino, serviço e comunidade, a integração
educação, trabalho e saúde. Na experiência relatada, fala-se em
inte­ração, não em integração, fala-se em “ensino-comunidade, me-
diado pelo serviço”, não em docente-assistencial ou ensino-serviço.
Quando falamos em serviço, trata-se de prestar atenção (estar
atento) e prestar a atenção (atender às necessidades que se detectou
pelo estar atento). A interação ensino-comunidade, mediada pelo
serviço, recupera ou assevera a relevância dos fatores recíprocos de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  17

renovação da qualidade no ensino-aprendizagem-avaliação e na


ação profissional em cenários de prática do fazer em saúde.
Os fatores de exposição à aprendizagem que oferecemos na
universidade bem podem contribuir à formação de um erudito,
assim como configurar um cidadão ilustrado em técnicas e ciência,
mas podem, também, ativar um “campo de desejo”, no qual se
colo­quem o dominar conceitos, o dispor de uma agenda social e o
desenvolver-se em um ser da ética. Nos projetos de mudança no
ensino, as metodologias ativas mostram-se como um desafio para
essa última linha vetorial, mas podem não ser mais que uma prática
discursiva que impregna os cotidianos contemporâneos do ensino
na área da saúde sem que os fins do ensinar e do aprender tenham
sido interrogados: o que, por que, para que, para quem? A intro-
dução de metodologias ativas no ensino deve decorrer da luta por
fatores de exposição que componham profissionais capazes de
escu­ta, acolhimento e responsabilização para com os usuários das
ações e serviços de saúde e os qualifiquem para a resolubilidade de
suas práticas assistenciais, com a satisfação dos usuários e o desen-
volvimento de sua autonomia.
Nesse plano, percebe-se, muitas vezes, uma orientação à
atenção básica ou às necessidades sociais dos setores excluídos,
como se ela, por si só, cumprisse o devir ético de novos modos
de ser. A orientação à atenção primária é coerente com a mudança do
modelo assistencial hegemônico: de hospitalocêntrico e centrado em
práticas curativas para orientado pela atenção integral e centrado nas
necessidades sociais em saúde. Contudo, se, de um lado, levar os
alunos à atenção primária os faz ver uma realidade da qual em geral
estão distantes, de outro, isso pode instituir-se de maneira higie-
nista ou culturalista, isto é, educando-se o usuário por valores que
lhe são estranhos ou aceitando-se o outro como “identidade dife-
rente”, mas não nos tornando outro de nós mesmos por efeito do
contato com a alteridade. Retomo este livro em seu componente de
saúde da família. A saúde da família, como projeto do Estado bra-
sileiro para a proteção universal da saúde, comporta a atenção pri-
mária, mas, ter a saúde da família como equalização é diferente de
18  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

compensação, ter a saúde da família como integralidade e huma­


nização é diferente de higienismo e culturalismo. É aí que um
proje­to pedagógico orientado pela proteção à saúde e centrado nas
necessidades sociais finca suas finalidades ético-técnico-políticas
da atenção básica.
Na saúde da família – como campo e foco –, então, precisamos
desenvolver capacidades para a invenção permanente da integrali-
dade da atenção, sem a dicotomia entre atenção primária e atenção
hospitalar ou entre atenção básica e atenção de elevada sofisticação
tecnológica. O esforço de composição, entre os profissionais, de
um ser da ética na saúde, não está em instalar ou desbancar settings
para o trabalho, está no desenvolvimento das capacidades de ver e
ouvir, de dar guarida e companhia e de saber compartilhar com um
usuário o andamento de seu processo saúde-doença. Isto ao lado
da elevada competência em respostas qualitativas nos resultados da
terapêutica, seja em que âmbito da prestação de práticas se coloque
cada ocupação especializada ou generalista da saúde.
Saúde, ensino e comunidade: reflexões sobre práticas de ensino
na atenção primária à saúde lida com o projeto ético-técnico-polí-
tico de formar os profissionais para trabalhar no Sistema Único de
Saúde, com a atenção integral e em equipe, apresentando um posi-
cionamento quanto ao “como se faz”. O livro não apresenta reco-
mendações, tampouco prescrições sobre “como se faz”; apenas diz:
nós fizemos, pensamos sobre o que fizemos e contamos para os
outros sobre nossa “fazeção”.
A decisão de verter em livro – para a circulação, difusão e dis-
seminação – a experimentação da interação universidade-serviço-
-comunidade é motivo de comemoração e a instilação de um pouco
de alegria para quem precisa ter notícias sobre o “como se faz”,
“como fizeram”, “como estão fazendo”, “como nós poderíamos vir
a fazer”. O livro não responde a essas perguntas, mas se destina a
quem as tem. Quem não as tem, as terá ao ler o livro. Assim, é um
livro com público objetivo e objetiva o público. Eu, como seus au-
tores, milito aí nesse mesmo objeto e objetivo, contribuindo para
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  19

compor um território de fertilização da produção científica em


educação e ensino da saúde.
Precisamos das experiências, dos conceitos que lhes são emer-
gentes e da conversa com as pessoas que querem o diálogo com o
que fazemos. Foi assim que me pronunciei no prefácio do livro
organizado por Ângela Cristina Ferreira da Silva, Eunice Maria
Viccari e Terezinha Eduardes Klafke, Marcas do trabalho em equipe
na saúde: formação e atenção, publicado pela EdUnisc em 2011.
Em Saúde, ensino e comunidade: reflexões sobre práticas de ensino
na atenção primária à saúde, os autores colocam em debate uma ex-
periência e deixam claro que a publicação é um convite para alargar
essa discussão. Cumprem mais uma face da interação universi-
dade-serviço-comunidade: o compromisso social com a sistemati-
zação do feito pelo desafio de fazer, compromisso social com o
sistema de saúde do país e com o desenvolvimento profissional no
contexto de seu impacto e sua resolubilidade em problemas de
saúde.
Em Educação médica: gestão, cuidado e avaliação, organizado
por João José Neves Marins e Sérgio Rêgo, publicado também em
2011, pela Hucitec, destaquei, junto com Alcindo Antônio Ferla,
em “Abertura de um eixo reflexivo para a educação da saúde: o en-
sino e o trabalho” (p.258-77), que os avanços na formulação do
campo da educação em ciências da saúde requerem tanto da gestão
setorial da educação como da gestão setorial da saúde, outro e espe-
cial compromisso da formação com o desenvolvimento profis-
sional. Dizíamos, então, que, “embora o amadurecimento das lutas
por saúde no Brasil tenha levado ao Sistema Único de Saúde (uma
conquista), o princípio da universalização, a diretriz da integrali-
dade e o objetivo da equidade ainda representam bandeiras de luta
(desejo de conquista)”, para afirmar que “o lugar da educação não é
dizer isto, mas coproduzir esta conquista”. Este livro organizado
por Antonio Pithon Cyrino, Eliana Goldfarb Cyrino e Daniele
Godoy afirma esse desafio, exemplifica esse campo de possíveis
e alia-se a quem assim se posiciona. Em que pese tantos recursos
de saberes, de conceitos, de referências e de práticas no âmbito da
20  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

mudança na graduação na área da saúde no mesmo plano ético-


-políti­co dos autores, a longevidade da experiência da UNESP/
Botucatu nos fala de um registro sem improviso e nos oferta uma
provisão.
APRESENTAÇÃO

Precisamos ocupar esse espaço.


E utilizá-lo.
Quem não se arrisca não pode berrar.
Tem muito confete no ar, a ironia não tem limites
e as notícias podem correr pelo ar.
Torquato Neto

O trabalho de uma pesquisa participante que estuda relações e


necessidades sociais exige um alto grau de envolvimento com o
problema estudado e comprometimento com a validade e a utili-
zação dos resultados obtidos. Nos estudos que compõem esta obra,
reflexão e ação fizeram parte de um mesmo processo. “Não existe
pensamento que não esteja ligado à ação; o mundo teórico no seu
conjunto é uma tomada de consciência das condições da ação real
ou virtual. Ora, qualquer ação é uma síntese de dois polos, sujeito e
objeto, homens e universo.”1
Neste livro apresentam-se diferentes olhares sobre a interação
universidade, serviço e comunidade e os elementos do contexto na-
cional e internacional que as motivaram, com base em programa/
disciplina desenvolvido, desde 2003, em Botucatu (SP). Nesta in-
vestigação, até certo ponto, sistematização da experiência e inter-
pretação fizeram parte de um mesmo processo.
As pesquisas revelam o conhecimento sobre as tensões de
traba­lhar com práticas de ensino problematizadoras. É clara a

1. GOLDMANN, L. Epistemologia e Filosofia Política. Lisboa: Presença, 1984.


22  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

dificulda­de de desenvolvimento dessas práticas, mas visualiza-se a


presença de diálogos construtivos e questionadores entre todos os
sujeitos envol­vidos e a aposta em ações transformadoras.
Registramos aqui um processo pedagógico de formação profis-
sional na saúde que visa integrar a aquisição de novos conhecimentos
com os saberes e as vivências locais por meio da prática reflexiva
sobre o contexto das ações desenvolvidas, decompondo os descon-
fortos e conflitos resultantes desses pensamentos críticos e práticas
coletivas, para criar novas práxis e transformar realidades.
Esse processo acompanha um momento histórico de nosso
país, no qual as políticas de saúde vêm produzindo novas estraté-
gias que visam transformar a formação de profissionais, incenti-
vando a instituição de espaços criativos de produção e promoção da
saúde, enquanto possibilidades novas de reconhecer e lidar com a
imensa complexidade do processo saúde-doença-cuidado.
Foram essas inspirações que nos motivaram a aceitar o desafio
da produção coletiva de um programa de ação e pesquisa que, ao
longo dos últimos onze anos, envolveu um enorme grupo de profis-
sionais de saúde, pós-graduandos e docentes que participaram de
diferentes momentos deste trabalho, entendendo, como Antonio
Machado, que “ao andar se faz o caminho”.
Este programa integrou a linha de pesquisa “Desenvolvi-
mento e Análise de Tecnologias e Processos para Formação de
Profissionais de Saúde” do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva da Faculdade de Medicina de Botucatu, resultando em oito
mestrados acadêmicos e cinco doutorados, parte dos quais em
anda­mento.
Para tanto, foi essencial o apoio do programa Pró-Ensino na
Saúde da Capes (resultado de parceria com o Ministério da Saúde)
a nosso projeto – “Integração Universidade, Serviços de Saúde e
Comunidade (IUSC) na FMB/UNESP: construindo novas prá-
ticas de formação e pesquisa”– mediante bolsas de mestrado, dou-
torado, apoio à pesquisa e a produção desta obra.
Sistematizar e socializar os textos aqui presentes foi produtor
de conhecimento e apropriação desse saber/fazer, desse modo de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  23

refletir sobre o cotidiano do ensino na saúde e da educação pelo tra-


balho, dando origem a questionamentos, criando e potencializando
coletivos de construção entre professores, estudantes, trabalha-
dores, gestores e usuários
Diante da necessidade de renovação dos processos de trabalho
nos serviços de saúde e de ensino e aprendizagem na universidade
brasileira, pensamos que, quanto maior o trabalho e educação inter-
disciplinar produzido no entrelaçar de diferentes saberes profis-
sionais e educacionais, maior a chance de aproximação de processos
inovadores e do cuidado compartilhado.
Fazemos o convite à leitura, à crítica, à composição e decompo-
sição destas produções. Afinal,

Passarinho passou longe


O melhor é nem mexer
S’ele pinica esteja certo
Muito bom é de comer
Saiba homem é fruta boa
É até medicinal
Coisa rica, mel, macia
Gosto doce, divinal...
Gonzaguinha (Quintais, 2006)

Eliana Goldfarb Cyrino


Antonio Pithon Cyrino
Daniele Godoy
1
ENSINO NA ATENÇÃO
PRIMÁRIA À SAÚDE E AS DIRETRIZES
CURRICULARES NACIONAIS: O PAPEL
DO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO

Victória Ângela Adami Bravo


Eliana Goldfarb Cyrino
Maria Antonia Ramos de Azevedo

O movimento de reorganização dos currículos das graduações


na área da saúde balizados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCNs), instituídas a partir de 2001, e no caso da Medicina, em
recente reformulação, em 2014, tem potencializado o redimensio-
namento do papel que hoje o ensino na atenção primária à saúde
vem exercendo na dinâmica formativa dos cursos por meio da inte-
gração ensino-serviço, com a participação de professores, alunos,
residentes, gestores, trabalhadores da saúde, usuários dos serviços
e comunidade.
Trata-se, neste capítulo, do papel que os projetos político-
-pedagógicos (PPPs) podem ter para legitimar as Diretrizes Cur­
riculares Nacionais na área da saúde numa perspectiva de formação
interprofissional dos futuros trabalhadores da saúde no espaço do
Sistema Único de Saúde (SUS), mediatizadas pelo ensino na
atenção primária.
26  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Alguns apontamentos sobre a


educação médica, a implantação do SUS
e o ensino na atenção primária à saúde

Atualmente, é consenso a necessidade de reformular os currí-


culos da graduação em Medicina. Desde o relatório Flexner, a mais
importante reforma das escolas médicas de todos os tempos nos
Estados Unidos da América e que influenciou profundamente a
formação médica no mundo ocidental, poucas mudanças, no sen-
tido paradigmático, foram impressas nas graduações médicas. No
Brasil, com o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem por princí-
pios a universalidade, a integralidade e a equidade, torna-se neces-
sário que o médico a ser formado tenha um perfil diferente daquele
proposto pelo relatório Flexner no início do século XX (Stella; Ba-
tista, 2004).
No modelo flexneriano, a formação médica deveria estar inse-
rida ou ligada a uma universidade, assim como o hospital; os do-
centes se dedicariam integralmente à pesquisa e ao ensino; o curso
de graduação médica seria composto por um ciclo de dois anos, o
ciclo básico, com aulas em laboratórios para obter conhecimento
biológico. A teoria deveria anteceder a prática e preparar para ela.
No segundo ciclo, os alunos aprenderiam com a clínica; por fim, no
terceiro ciclo, no internato, o aluno teria treinamento sob super-
visão de docentes, com foco em doença-lesão orgânica (Paraguay,
2011).
Com isso, o relatório, e todo o movimento que o sucedeu, con-
tribuiu para a reorientação dos currículos das escolas médicas, com
centralidade na visão biologicista, deixando para segundo plano
aspectos sociais, culturais e psicológicos. Ao longo dos anos foi
possível perceber sua enorme contribuição para a organização cur-
ricular, mas, com o passar dos anos, apareceram críticas ao modelo
instituído.
Nunes afirma que análises recentes revelam que Flexner
defen­dia
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  27

rigor científico e estandardização da educação médica, ressaltava


que o treinamento, a qualidade e a quantidade da formação mé-
dica deveriam responder às necessidades da sociedade, os médicos
têm obrigações sociais com a prevenção da doença e a promoção
da saúde, devendo receber treinamento com amplitude necessária
para realizar tais obrigações, e a colaboração entre medicina aca-
dêmica e saúde pública das comunidades resulta em benefícios
para ambas as partes. (Nunes, 2010)

Thomas Maack (Cyrino; Cyrino, 2010), em entrevista re­


cente, reflete sobre os anos que decorreram do relatório até os dias
de hoje:

O que esses anos trouxeram foram essencialmente duas mudanças


fundamentais, na minha opinião e na opinião de muitos: uma é a
expansão vertiginosa do conhecimento de ciências biomédicas,
principalmente nos últimos cinquenta anos, o que estabeleceu de-
finitivamente as bases científicas da Medicina; a outra é a cons-
cientização de que o atendimento médico é um direito humano,
um direito do cidadão, com um enorme aumento da demanda por
essa assistência.

O relatório, portanto, contribuiu em seu tempo, mas, com o


passar dos anos, mostrou-se ineficaz para fazer frente às mudanças
da sociedade contemporânea. Essas mudanças trouxeram a neces-
sidade de reflexão sobre a educação médica. Com isso, os partici-
pantes do processo educacional nas escolas médicas foram se
mobilizando e trazendo à tona a necessidade de mudança desse
processo para acompanhar a transformação que foi se instalando no
mundo todo.
Em 1988 e 1993 aconteceram as Conferências Mundiais de
Educação Médica em Edimburgo, nas quais os educadores da área
médica começaram a estabelecer as orientações que hoje balizam
as reformas curriculares e a adequação da formação do médico às
novas demandas sociais. No Brasil, na década de 1990, a Comissão
28  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Ci-


naem) apontou a necessidade de reformulação do modelo de for-
mação. Isso ocorreu com base na avaliação do ensino médico no
Brasil (1991-1997) (Maranhão; Gomes; Ciqueira-Batista, 2012).
Novas e antigas necessidades decorrem desse contexto, que re-
percutem na proposta de formação do médico, defendida por di-
versos autores, que deveria ser voltada para a integralidade do
cuidado à saúde e não mais centrada na doença. A presença do con-
ceito de promoção à saúde, como estratégia de produção de saúde,
articulada às demais políticas e tecnologias desenvolvidas no sis-
tema de saúde brasileiro, deve contribuir para uma formação que
valorize a construção de ações que possibilitem responder às neces-
sidades sociais em saúde.
Para que o estudante de Medicina possa tornar-se um médico
reflexivo, agente de transformação social, é necessário que ele tenha
contato com a realidade em que irá atuar. As Diretrizes Curricu-
lares Nacionais vêm com o intuito de melhor preparar o profis-
sional para o trabalho, com visão atual do processo de formação do
médico.
Tomamos como marco referencial para discutir as DCNs e
atenção primária, o sistema de saúde vigente no país quando elas
foram elaboradas.
O Sistema Único de Saúde – criado pela Constituição Federal
de 1988 e regulamentado pelas leis n.8.080/90 e n.8.142/90, leis
orgânicas da saúde, com a finalidade de alterar a situação de desi-
gualdade na assistência à saúde – tornou o acesso gratuito à saúde
direito de todo cidadão; até então, as pessoas que tinham acesso à
saúde eram pessoas advindas de classes sociais favorecidas, pessoas
com carteira assinada, e quem não tinha nada disso dependia de
cari­dade, pois não possuía esse direito. Segundo Ferreira e Campos
(2012), nesse período, as escolas médicas eram insuficientes, com a
consequente limitação do número de estudantes, e o “currículo mí-
nimo”, vigente na segunda metade do século passado, enfatizava
o modelo biomédico, priorizando o uso da tecnologia, com enfra-
quecimento da relação médico-paciente. Nessa época, já havia
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  29

expe­riências de ensino na atenção primária, geralmente atreladas a


uma instituição, a um departamento ou a um professor. O Pro-
grama de Integração Docente Assistencial (Pida) e a implantação
de Centros de Saúde Escola, desenvolvidos a partir da segunda me-
tade do século XX, são exemplos de projetos exitosos que buscaram
impulsionar o desenvolvimento da medicina comunitária e a apro-
ximação do ensino médico com a atenção primária à saúde.
A 8a Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, con-
tribuiu para que esse cenário de integração universidade e atenção
primária se expandisse. Essa conferência foi a primeira em que
a população teve voz ativa e participou intensamente das discus-
sões, propondo a criação de uma ação institucional correspondente
ao conceito ampliado de saúde, que envolve proteção, promoção e
recupe­ração.
Os projetos de reforma curricular das escolas médicas, influen-
ciados pela implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais,
pelos diversos movimentos sociais no país, pelo movimento da re-
forma sanitária e, na sequência, pela implantação do SUS, apontam
a importância da integração ensino-serviço para a formação de um
médico voltado às necessidades de saúde da população e do sistema
de saúde vigente no país (Brasil, 2001). No entanto, constata-se,
ainda hoje, que a grande maioria das instituições de ensino superior
no Brasil responsáveis pela formação de profissionais na área da
saúde estão distantes de uma formação que privilegie a integra­
lidade do cuidado ou a prestação de serviços no SUS, fazendo com
que os profissionais formados não correspondam às necessidades
de saúde da população, em especial da rede de serviços de atenção
primária (Dias; Cyrino; Lastória, 2007).
Discutindo os rumos das escolas médicas no Brasil e as pro-
postas de mudanças curriculares, Briani (2001) mostra que estas
têm sido desenvolvidas em uma perspectiva tecnicista, privile-
giando a organização do currículo restrita à atividade técnica –
o  como fazer. Voltam-se à “promoção de metodologias de ensino
centradas no aluno, na resolução de problemas e no aprendizado
contínuo”, que, muitas vezes, são experiências reproduzidas, sem
30  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

maior reflexão crítica, de modelos de ensino de outras nações com


características estudantis, padrões culturais e estrutura univer­
sitária que diferem da experiência nacional, não conseguindo pro-
blematizar a organização do currículo no contexto da sociedade
brasileira contemporânea, nem discutir demandas econômicas,
políti­cas ou questões ideológicas envolvidas na formulação desses
currículos, principalmente tendo em vista a especificidade do sis-
tema público de saúde brasileiro.
Teixeira, Paim e Vilas Boas (1998) destacam que as práticas de
saúde devem ser entendidas como respostas sociais aos problemas
e  necessidades de saúde das pessoas, seja individualmente, nos
gru­pos populacionais ou até mesmo na totalidade das populações.
Do ponto de vista do individual, a perspectiva de análise é a clínica
e os chamados fatores de risco, que determinam não só a busca de
tratamento e cura das doenças, como a modificação de comporta-
mentos. Do ponto de vista do coletivo, a perspectiva predominante
é a promocional e preventiva, que busca identificar os determi-
nantes econômicos, sociais e culturais das condições de vida e saúde
dos diversos grupos da população como ponto de partida para a
realização de intervenções ambientais, socioeconômicas e culturais
que promovam a melhoria dos níveis de saúde e o controle de
doenças.
A partir da década de 1990, novas propostas e modelos de
ensi­no médico vêm sendo construídos em diversas escolas da Amé-
rica Latina, buscando-se uma reformulação desse ensino. Alguns
desses projetos propõem-se a realizar um ensino médico voltado
para o desenvolvimento de atividades que tomem como objeto
neces­sidades sociais de saúde, “a busca de novos cenários para o
ensino/aprendizado em saúde, como as unidades básicas de saúde
e a própria ideia de um ensino médico que articule os diferentes
níveis de atenção à integração dos serviços de saúde” (Cyrino; Ri-
zatto, 2004).
A atenção primária é entendida aqui como primordial na for-
mação do futuro profissional de saúde, pois, através do envolvi-
mento com ela, o aluno pode perceber a necessidade da promoção à
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  31

saúde, do acompanhamento de gestantes e crianças, da expressão


de problemas individuais na dimensão do coletivo, do seguimento
longitudinal dos pacientes portadores de doenças crônicas, do aten-
dimento em grupo, do trabalho em equipe, da necessidade de ações
intersetoriais, da percepção de um campo de complexidade que
envolve o sofrimento de difícil dimensionamento, da determinação
social do adoecer e demais aspectos que, em outros pontos das
redes de atenção, como o Hospital Escola, são pouco explorados,
dadas as próprias características do trabalho hospitalar e do ensino
centrado nas doenças.
A vivência do estudante de Medicina na atenção primária por
um período de tempo maior, contínuo e com regularidade, vai per-
mitir-lhe compreender que nesse nível de atenção se consegue
resol­ver mais de 80% dos problemas de saúde de uma população.
Torna-se evidente que exames complementares, equipamentos,
medicamentos e insumos são indispensáveis, mas que, com maior
veemência, é na relação entre profissional de saúde e paciente,
famí­lia e comunidade, com troca de saberes e a presença da subjeti-
vidade dos sujeitos, enquanto portadores de conhecimentos dis-
tintos, que se dará o desenvolvimento do cuidado qualificado.
Com a criação do Programa de Saúde da Família, em 1994, a
demanda de profissionais na atenção primária aumentou substan-
cialmente. De acordo com o Portal da Saúde, “a saúde da família é
entendida como uma estratégia de reorientação do modelo assis-
tencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes mul-
tiprofissionais em unidades básicas de saúde. Estas equipes são
responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de fa-
mílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes
atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação,
reabilitação de doenças e agravos mais frequentes, e na manutenção
da saúde desta comunidade”.
Em 2014, a Estratégia Saúde da Família (ESF) completa vinte
anos de existência, com mais de 34 mil equipes implantadas em
quase todos os municípios brasileiros. Em que pese todo o esforço
político do Estado na busca à reorientação do modelo assistencial e
32  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

na adoção de práticas que rompam com o modelo biomédico tradi-


cional, a conversão não pode se realizar plenamente sem a mudança
radical da formação do profissional de saúde.
Para Almeida (2008), “a articulação com os serviços de saúde e
com as organizações comunitárias da sociedade local é uma estra-
tégia decisiva para os processos de mudança na formação de mé­
di­cos. Só contando com as forças renovadoras existentes nesses
segmentos é que as forças renovadoras que atuam dentro da escola
médica conseguem sobrepujar o status quo mantido pelas forças
conservadoras. Essa articulação precisa alcançar progressivamente
patamares mais elevados em termos de identidade de propósitos,
intercâmbio de interesses e instrumentos ou mecanismos de ex-
pressão. Ou seja, as fases de aproximação, de coordenação e de
intera­ção devem ser estágios para o estabelecimento de verdadeiras
parcerias: alianças entre atores diferentes para a conquista de fins
comuns, constituindo uma modalidade de cogestão, a partir da
qual os vínculos entre os parceiros se dão em pé de igualdade e
de maneira mais profunda”.
Nesse contexto de mudança e na sequência das DCNs, foi pro-
posto, em 2002, o Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares
nas Escolas de Medicina (Promed), como iniciativa conjunta dos
ministérios da Saúde (MS) e da Educação (MEC), com o propósito
de estimular mudanças nos cursos médicos visando adequar a for-
mação profissional às necessidades do SUS. O Promed, que se pro-
punha a induzir, com apoio do MS e MEC “uma nova escola
médica para um novo sistema de saúde”, teve início em 2002, com
a participação efetiva de dezenove escolas (Brasil, 2002). O obje-
tivo desse programa de indução de mudanças era o estabelecimento
de um processo de cooperação entre gestores do SUS e escolas mé-
dicas de forma sistemática e autossustentável; a incorporação pelo
ensino médico da noção integralizadora do processo saúde-doença
e da promoção da saúde com ênfase na atenção básica; a ampliação
dos cenários da prática médica para a rede de serviços básicos de
saúde e, finalmente, a adoção de metodologias ativas no processo
ensino-aprendizagem da Medicina (Padilha, 2002).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  33

Estudo realizado por pesquisadores da UFMG, financiado


pelo MS, sobre o desenvolvimento do Promed, aponta:

A análise dos dados mostrou a diversidade e a complexidade dos


obstáculos enfrentados pelas escolas médicas para implementar
seus projetos de mudança curricular. Mostrou ainda como esses
fatores dificultadores se inter-relacionam e se potencializam. No
entanto, é preciso analisar o movimento de mudanças na formação
profissional em saúde no Brasil, especialmente a médica, como
um processo em construção e sob forte influência do momento
histórico das políticas de saúde. Significa dizer que, de um lado,
muitos dos entraves para o avanço dos processos formativos extra-
polam o campo da educação e expressam o pensamento, as expec-
tativas e os anseios da sociedade em que as escolas se inserem. Por
outro, é preciso que as instituições de ensino se comprometam
com a formação de profissionais que atuam na sociedade de modo
a transformá-la, quebrando os paradigmas que limitam a concre-
tização do enunciado “uma nova escola, para um novo sistema de
saúde”. (Alves, 2013)

Em 2003, foi criada, no Ministério da Saúde, a Secretaria de


Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde e, na sequência, o
Depar­tamento de Gestão da Educação na Saúde. O objetivo era
que o Ministério da Saúde assumisse seu papel de gestor federal do
Sistema Único de Saúde no que diz respeito à ordenação da for-
mação de pessoal para o setor e à educação permanente do pessoal
inserido no SUS.
Assim, diversas iniciativas – políticas, programas e projetos –
vêm sendo propostas, muitas vezes como ações conjuntas entre os
ministérios da Educação e da Saúde, com o objetivo de apoiar e
fomen­tar uma formação universitária que se aproxime do SUS,
seus princípios, necessidades e qualificação, propondo-se a con-
quistar relações orgânicas entre as instituições de ensino superior e
a gestão, a rede de atenção à saúde, os serviços de saúde e seus
traba­lhadores e os movimentos sociais. Podemos destacar alguns
34  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

programas e projetos, como o Projeto Vivências e Estágios na Rea-


lidade do SUS, VER-SUS/Brasil; o Pro-Saúde (Programa Nacional
de Reorientação dos Profissionais de Saúde); o PET-Saúde (Pro-
grama de Educação pelo Trabalho para a Saúde), a publicação da
Política Nacional de Educação Permanente para o SUS (Pneps); o
Pró-Internato (Programa Nacional de Apoio ao Internato Médico),
o Programa de Residência Multiprofissional de Saúde, o Projeto
Pro-Ensino na Saúde (Pro-Ensino). Esses programas, projetos
e  políticas apresentam como objetivo comum a reorientação da
forma­ção das profissões da saúde e a ampliação das práticas nos
serviços como espaço de ensino e aprendizagem, apresentando
espe­cificidades que se inter-relacionam e podendo ser compreen-
didos como complementares.

As DCNs e o projeto político-pedagógico

Para Almeida (2008), a aplicação das Diretrizes Curriculares


Nacionais por parte da escola médica só terá êxito se houver uma
formidável capacidade de formar e manter equipes de trabalho
docen­te, de trabalho universitário (professores e estudantes) e de
trabalho interinstitucional (com os serviços de saúde e com as
comu­nidades) dedicadas à construção, implementação e avaliação
permanente dos projetos político-pedagógicos. Isso porque a
inter­disciplinaridade, a formação multiprofissional, a diversifi-
cação de cenários de ensino-aprendizagem e a adoção de meto­
dologias ativas e suas interfaces com o âmbito avaliativo exigem
esforços compartilhados por parte dos sujeitos nos diferentes es-
paços formativos.
Recentemente, políticas indutoras vêm sendo propostas pelos
ministérios da Educação e da Saúde com o objetivo de mudar a for-
mação nas graduações na saúde. A criação do Programa de Apoio a
Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni), a recente Lei Mais Médicos para o Brasil, que traz mu-
danças na política de provimento médico para o SUS e a revisão,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  35

pelo Conselho Nacional de Educação, de novas Diretrizes Curri-


culares Nacionais (DCNs) para a graduação médica, ocorrida em
2014, têm ampliado a possibilidade de abertura de novos cursos de
graduação, de vagas em cursos existentes, de vagas de médicos resi-
dentes, afirmado a centralidade da formação na atenção primária e
a perspectiva de uma formação em redes de atenção à saúde no
SUS, o aprimoramento da integração ensino-serviço, tendo o SUS
como ordenador da formação em saúde, o que fortalece a perspec-
tiva da indissociabilidade entre formação e atenção em saúde.
Um exemplo dessa busca de ressignificação da formação na
área da saúde, tanto no âmbito da concepção de uma formação
foca­da no contexto real do SUS como na saúde, nas práticas peda-
gógicas dos professores e diferentes profissionais, é apontado no
livro O estetoscópio e o caderno, de Godoy e Cyrino (2013, p.28), da
Faculdade de Medicina da UNESP de Botucatu, que participaram
desses programas indutores “reformulando seus currículos, incor-
porando ou ampliando a presença de alunos em cenários da rede
local de saúde e/ou práticas mais junto à comunidade, também
em outros espaços”. Os autores acrescentam ainda a fundamental
ideia de que essas práticas indutoras de mudança no foco formativo
devam desencadear e potencializar a transformação do perfil do
futu­ro profissional da área da saúde por meio de uma prática refle-
xiva e contextual focada na humanização das relações profissionais
e pessoais.
É possível, assim, entendermos que as DCNs na área médica,
desde sua criação em 2001, têm potencializado inúmeras aprendi-
zagens acerca das propostas formativas, encaminhamentos edu­
cacionais e as correlações que podem ser desencadeadas entre a
universidade e seus respectivos cursos e a sociedade, enfraque-
cendo a ideia de uma universidade intramuros e descontextual.
Ao analisarmos as DCNs do ano de 2014 na área da Medicina,
é possível apontarmos avanços na busca pela qualidade formativa
dos futuros médicos no país. É fundamental esclarecer que as
DCNs têm papel educativo e formativo, pois apontam possibi­
lidades de organização; direcionamento e estruturação dos cursos
36  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

de Medicina no país, que deverão estar balizados e em consonância


com a realidade nacional brasileira.
No artigo 3o dessa resolução, é apresentada a função educativa
da formação médica, apontando como as propostas formativas
desses cursos devem se organizar para que possam dar conta da
construção identitária do futuro profissional da Medicina. No
perfil profissional apresentado destaca-se a intencionalidade de
como os futuros médicos deverão ser formados. Isso fica claro neste
artigo: “uma formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética,
com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção do pro-
cesso saúde-doença, com ações de promoção, prevenção, recupe-
ração e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo,
com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cida-
dania e da dignidade humana, objetivando-se como promotor da
saúde integral do ser humano” (Brasil, 2014, p.1).
Quando elaboramos proposta formativa na organização dos
projetos político-pedagógicos, é fundamental a estruturação da
dinâ­mica curricular. Nas DCNs, são apresentados três grandes
eixos integradores que devem permear todo o processo formativo
dos futuros médicos, exigindo, dos seus docentes e profissionais
externos à universidade, conhecimento, reconhecimento e desen-
volvimento desses eixos durante todo o curso. Destacamos aqui a
importância, por um lado, da clareza dos eixos norteadores que
devem ser balizados em todo o curso e, por outro, o papel forma-
tivo interdisciplinar e interprofissionalizante que os eixos poten-
cializam.
É pertinente entendermos que cada eixo norteador (I – Atenção
à Saúde; II – Gestão em Saúde; III – Educação na Saúde) apontado
nas novas DCNs foca a formação em processo, auxiliando enorme-
mente os diferentes cursos na organização das suas propostas, que
devem ser contempladas em seus componentes curriculares via
arti­culação das diferentes áreas de conhecimento. Para cada eixo
norteador é apresentada ampla definição daquilo que deve ser
aprendido (conhecimento), aquilo que deve ser apreendido no pro-
cesso de realização das atividades médicas (habilidades) e, por fim,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  37

aquilo que deve contribuir com a formação do ser humano médico,


para sua formação ética, cidadã e humanitária (atitudes). É apon-
tado nas DCNs como os eixos necessitam estabelecer vínculo com
a realidade do SUS e com outros setores da área da saúde para que a
formação não fique aligeirada, ineficiente e descontextualizada da
realidade local, municipal, estadual, regional e nacional.
Outro aspecto importante e formativo nas DCNs é o foco nos
conteúdos fundamentais do curso de graduação em Medicina, rela-
cionando-se o processo saúde-doença do cidadão, da família e
da comunidade com a realidade epidemiológica e profissional, pro-
porcionando, assim, a integralidade das ações do cuidar em saúde.
Essa clareza das DCNs acaba por nortear os próprios PPPs.
As DCNs são absolutamente claras quanto às orientações aos
cursos na construção, aplicação e avaliação permanente dos seus
PPPs, destacando o papel da formação centrada no aluno como su-
jeito da aprendizagem e apoiado no professor, que é o profissional
mediador do processo de formação integral e adequada do estu-
dante, articulando ensino, pesquisa e extensão. Nessa premissa, as
DCNs são fundamentais para apontar a necessidade emergente de
que esses cursos devem nascer já indissociáveis, interdisciplinares e
interprofissionalizantes.
Entretanto, as DCNs só poderão surtir o efeito pedagógico
neces­sário se os PPPs conseguirem traduzir com propriedade a
proposta formativa contida nas diretrizes.
Para explicar o que são projetos político-pedagógicos, nos ba-
seamos em Veiga (2012), que disseca os termos: “projeto”, que sig-
nifica etimologicamente a ação de lançar para a frente, tendo como
sinônimos plano, intenção, propósito, delineamento; “político”,
“explicita que é derivado do termo grego polis, que significa ci-
dade, pois envolve uma comunidade de indivíduos; pedagógico
aponta em sua etimologia o vínculo ao sentido de condução”. Esses
elementos conceituais, quando bem entendidos e apreendidos, têm
a ação formativa e educativa.
O projeto pedagógico é essencial para que a instituição de en-
sino possa caminhar sem perder o foco nas reais necessidades.
38  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Deve ser construído coletivamente, com todos os sujeitos partici-


pantes do processo (professores, alunos, graduados, residentes,
colabo­radores etc). Em sua construção, é importante que se façam
os seguintes questionamentos: Onde estamos? Aonde queremos
chegar? Como fazemos para chegar lá?
Essas questões definem os rumos do curso tendo por base múl-
tiplas necessidades sociais e culturais da população.

Desenvolver o educando, prepará-lo para o exercício da cidadania


e do trabalho significam a construção de um sujeito que domine
conhecimentos, dotado de atitudes necessárias para fazer parte de
um sistema político, para participar dos processos de produção da
sobrevivência e para desenvolver-se pessoal e socialmente. (Veiga,
2003)

Para desenvolver o educando como afirma Veiga, o sistema


educacional há de ser estruturado e reestruturado com o passar do
tempo, acompanhando sempre as mudanças sociais. Para isso, as
DCNs foram implantadas e por isso se fala tanto em reformas cur-
riculares das escolas médicas hoje.

O projeto político-pedagógico visa à eficácia que deve decorrer da


aplicação técnica do conhecimento. Ele tem o cunho empírico­
‑racional ou político-administrativo. Neste sentido, o projeto polí-
tico-pedagógico é visto como um documento programático que
reúne as principais ideias, fundamentos, orientações curriculares
e organizacionais de uma instituição educativa ou de um curso.
(Veiga, 2003)

A elaboração do projeto político-pedagógico da universidade é


o principal ponto de referência para a construção da identidade dos
profissionais que nela atuam, assim como é a base para a formação
de futuros cidadãos críticos, profissionais éticos e qualificados.
Dessa forma, o currículo deverá estar direcionado aos inte-
resses da universidade, considerando todo um contexto histórico,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  39

a realidade local e as reais necessidades vivenciadas no cotidiano


pelos envolvidos no processo educativo.
Um projeto político-pedagógico, ao ser elaborado ou con­duzido
à elaboração, tem a função de ajudar na conquista e consolidação da
autonomia da universidade; necessita, assim, ser organizado e con-
duzido por concepções de conhecimentos, promovendo o desenvol-
vimento integral dos indivíduos, atualizando-se e transformando-se
de acordo com os avanços e as mudanças da comunidade universi­
tária; deve ser balizado pelas DCNs para decidir que caminho seguir,
que identidade ter, que concepções desenvolver diante dos seres
hu­manos que pretende formar.
Para Libâneo (2001), a construção de um projeto político­
‑pedagógico requer continuidade, reestruturação, participação e
democratização, partindo da problemática abordada pela comu­
nidade universitária, sendo necessário primeiramente delinear os
princípios norteadores em termos de ação, definindo o rumo e
as concepções sobre a prática pedagógica.
Para que se possa realizar uma prática pedagógica comprome-
tida com a realidade, é indispensável que, além do conhecimento
dessa realidade, seja promovido um processo de problematização
crítica, sensibilizando a comunidade universitária para a elabo-
ração do projeto político-pedagógico buscando soluções práticas
para os problemas detectados, observando que esse projeto é um
processo em constante construção/reconstrução, estando sempre
aberto a novas análises, argumentações e questionamentos quanto
às necessidades no decorrer de sua organização.
A universidade deve buscar a qualidade no ensino, visando
espe­cialmente à interdisciplinaridade, à contextualização e à auto-
nomia, expressando a necessidade de uma educação mais justa e
solidária, mas sem esquecer que, antes de tudo, é necessário que o
professor tenha conhecimento, habilidades específicas e, sobre-
tudo, consiga desenvolver suas competências para, desse modo,
melhor compreender o sentido do saber, buscando a estruturação
da aprendizagem a partir da estrutura econômica, política e cul-
tural do ambiente ao qual a universidade e seus alunos pertencem.
40  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Nesse momento, é importante salientar também que, assim


como professores e alunos são considerados sujeitos centrais desse
processo, a participação de outros setores da comunidade universi-
tária se faz necessária na busca por uma melhor estruturação da
instituição para a construção e implementação do seu projeto polí-
tico-pedagógico.
Tomando como base o projeto político-pedagógico, pode-se
compreender todo o funcionamento, a estrutura, a metodologia e a
prática pedagógica, enfim, tudo o que pode e deve ser esclarecedor
para o bom entendimento da universidade por parte da comuni-
dade e sobretudo por parte dos professores.
A principal característica de um projeto político-pedagógico
consiste no envolvimento da comunidade educativa, visando a um
processo de reflexão-ação, que se consegue por meio da prática
refle­xiva, em que se estabelece com o grupo um ponto de referência
que passará a ser o gerador de questionamentos, dúvidas e mudanças.
A partir desse processo de reflexão-ação, a comunidade educa-
tiva terá referencial concreto para a elaboração de pareceres ava­
liativos sobre a realidade universitária, sendo possível analisar o
processo em toda sua extensão, seja nos valores agregados à insti-
tuição, metas a serem seguidas ou na recriação das regras para a
construção crítica e autônoma da nova ordem educativa.
Portanto, deve ficar explícito e evidenciado, ao se determinar
a  proposta teórico-metodológica da universidade, quais as con­
cepções de ser humano, sociedade e educação que a mesma assu­me,
qual teoria educacional irá guiar o processo ensino-aprendizagem
e como se manifestará a prática pedagógica cotidiana. Nesse con-
texto, o projeto político-pedagógico deve oferecer elementos para a
elaboração do curso, que será avaliado por meio dos planos de ação
anuais que surgem das necessidades da própria universidade.
O processo de construção do projeto político-pedagógico
busca a organização do trabalho pedagógico da universidade, colo-
cando em prática ações educativas que visem à globalização da
comu­nidade universitária.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  41

Mas, para que essa construção adquira dimensões expressivas


acerca do que a universidade pretende atingir, é necessário que esta
seja relativamente autônoma, sendo capaz de delinear sua própria
identidade, observando a importância de todos participarem da
elaboração do projeto, conscientizando-se de que a universidade é
espaço único, local de discussão, experiência e reflexão coletivas.
Atingir essa clareza conceitual e prática do poder formativo e
informativo que a universidade exerce na sociedade requer união
e especialmente organização das ideias propostas, pois só se houver
o compromisso de todos em assumi-la como um complexo teórico-
-prático é que a universidade estará alicerçada em uma teoria peda-
gógica crítica viável, com o componente curricular norteando os
passos do processo educativo.
Essa inter-relação exige que esse currículo seja prescrito, cons-
truído, estudado e refletido pelos professores num processo de
ação-reflexão-ação permanente, valorizando e respeitando aspectos
ligados à história, às ideologias, aos interesses de grupos profissio-
nais e grupos heterogêneos.
É necessário que os professores universitários realmente te-
nham conhecimentos/saberes sobre o contexto universitário em
que vão trabalhar: conhecimento do currículo; do PPP do curso
do  qual fazem parte; acerca das inúmeras modalidades didáticas;
das novas tecnologias educacionais; das pesquisas da área, assim
como do ensinar a fazer e a pensar sobre pesquisa; conhecimentos
teórico­‑metodológicos dos projetos interdisciplinares tanto na
construção, adoção e avaliação desses instrumentos de trabalho que
envolvem o ensino, a pesquisa e a extensão; e principalmente o
conhe­cimento de saber refletir criticamente sobre seus atos e acon-
tecimentos para provocar mudanças e desacomodações no ato de
ser e fazer educação universitária.
A formação docente é complexa e longa e está ligada a inú-
meros aspectos e fatores externos e internos que vão se entre­
cruzando, constituindo e moldando o profissional professor. A
formação de melhores profissionais para atuarem na realidade so-
cial, histórica, política e cultural em sua complexidade na contem-
42  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

poraneidade torna-se um desafio ainda maior no ensino superior,


no qual todos que lá atuam devem procurar o desenvolvimento
profissional permanente, preciso e transformador.
Para tanto, as universidades devem possibilitar um espaço de
discussão didático-pedagógica que instigue nos docentes a sua in-
serção na realidade que emerge das múltiplas relações dos projetos
pedagógicos dos cursos e das possibilidades inerentes aos novos
currículos, orientados pelas Diretrizes Curriculares de Educação
Nacional. Devem também posicioná-los no retorno à sua formação
em programas de competência para a docência universitária, orien-
tados pelas constantes alterações no cenário em que estão inse­ridos.
Em vista disso, os docentes que atuam no ensino superior
devem primar cada vez mais pela qualificação de seu trabalho, in-
vestindo na adoção de concepções, metodologias e avaliações ino-
vadoras, desafiadoras, inteligentes, criativas e estimuladoras que
promovam o processo de intervenção dos sujeitos e os qualifiquem
para o real exercício da sua profissão, assim como para a vida.
O ensino deve pautar-se, então, por momentos de assimilação,
acomodação, desacomodação e elaboração dos conhecimentos cien­
tíficos e sociais materializados nas matrizes curriculares dos cursos
a partir de uma construção em que sejam respeitadas as DCNs, a
realidade regional e as diretrizes político-pedagógicas da própria
instituição.
Os projetos político-pedagógicos têm a função institucional
de regulamentar o curso perante órgãos oficiais e a reitoria, sendo
docu­mentos públicos que devem, portanto, ser mantidos atualiza­dos
e em locais de fácil acesso aos interessados. Não devem ser elabo-
rados somente para cumprir a função burocrática/regulatória.
Esse aspecto é fundamental, pois, dependendo de como a pró-
pria instituição entende o papel e a função que hoje os PPPs e
as  DCNs ocupam na universidade, o PPP acaba sendo apenas
um docu­mento burocratizante, entendido como regulatório, ou se
constitui em um documento emancipatório que, ao mesmo tempo
que projeta novo entendimento da ação formativa da proposta na
área médica, pode desencadear a ação emancipatória dos sujeitos
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  43

que a elaboram e a vivenciam no dia a dia da universidade e nos


diferentes contextos socioculturais, com especial destaque ao SUS.
Veiga (2003) tem contribuído imensamente nessa discussão
com a clareza conceitual e prática do entendimento do papel que os
PPPs, balizados pelas DCNs, têm tido na realidade universitária.
Para ela, muitas vezes, a perspectiva regulatória do PPP perpetua
de forma acrítica um discurso instituído contido em documentos
como o Plano de Desenvolvimento Institucional.
A respeito dessa forma de orientação do PPP, a autora afirma:

A inovação regulatória ou técnica tem suas bases epistemológicas


assentadas no caráter regulador e normativo da ciência conserva-
dora, caracterizada, de um lado, pela observação descomprome-
tida, pela certeza ordenada e pela quantificação dos fenômenos
atrelados a um processo de mudança fragmentado, limitado e au-
toritário; e de outro, pelo não desenvolvimento de uma articulação
potencializadora de novas relações entre o ser, o saber e o agir.
(Veiga, 2003, p.269)

A respeito da possibilidade de modificação do statu quo, os


projetos regulatórios em pouco contribuem, uma vez que, ao serem
oficializados, provocam uma mudança das ações e orientação das
propostas em função de outros fatores, mas tal mudança, que em
muitos casos é parcial e temporária, não se traduz em uma nova
forma de organização ou na possibilidade de modificação de um
sistema vigente. As modificações de um projeto regulatório são
orientadas para reproduzir o mesmo sistema, apenas com uma alte-
ração no foco de interesse.
Em contraste com essa ideia tão enraizada na realidade dos
PPPs nos cursos universitários, há outra possibilidade no processo
de construção, implementação e avaliação de um PPP, balizada pela
ação emancipatória ou dialética. Nessa direção, Lucarelli (1994)
afirma que, ao pensarmos um PPP a partir de uma perspectiva
emancipadora, buscamos a ruptura do statu quo não apenas em
esca­la social a partir da modificação de nossas ações, mas a ruptura
44  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

de um statu quo institucional e pouco questionado na estrutura uni-


versitária e escolar brasileira.
Um projeto será emancipador na medida em que os atores en-
volvidos o incorporem em sua prática cotidiana, e que a existência
desse projeto extrapole os limites das funções institucionais e passe
a orientar as propostas de intervenção político-social dos envol-
vidos, através de propostas articuladas, ainda que estas não sejam
necessariamente orientadas pelas mesmas bases, mas tenham como
denominador comum os objetivos do curso pensados coletiva-
mente. Desse modo, através da elaboração de um PPP emancipador,
fica explicitado um entendimento da função social da educação
comprometida com a evolução do sujeito e quebra de para­digmas
sociais existentes.

A instituição educativa não é apenas uma instituição que reproduz


relações sociais e valores dominantes, mas é também uma insti-
tuição de confronto, de resistência e proposição de inovações. A
inovação educativa deve produzir rupturas e, sob essa ótica, ela
procura romper com a clássica cisão entre concepção e execução,
uma divisão própria da organização do trabalho fragmentado.
(Veiga, 2003, p.277)

A existência de todos esses elementos é fundamental para que


o PPP cumpra sua função institucional, ao garantir que as instân-
cias superiores da universidade tenham dados completos e atuali-
zados a respeito dos cursos existentes, e cumpra também sua função
social ao deixar sintetizado e explícito aos alunos, professores e
funcionários que se integrem ao coletivo de componentes do curso
quais são as propostas que orientam as ações e decisões internas,
e qual é o comprometimento desse curso com a manutenção ou mo-
dificação da sociedade em questão.
A busca pela efetivação das DCNs deve ser entendida como
elemento fundamental para a construção, implementação e ava-
liação das propostas pedagógicas dos cursos médicos em que a
atenção primária à saúde tenha papel determinante e cujo foco for-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  45

mativo seja o SUS, lugar onde o trabalho dos professores universi-


tários e dos diferentes profissionais possibilite promoção à saúde
concentrada na qualidade de vida e das relações construídas com os
sujeitos.

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Parte I
A DISCIPLINA IUSC
2
A CONSTRUÇÃO DE UMA DISCIPLINA:
UM OLHAR SOBRE O PROCESSO DE
IMPLANTAÇÃO DO PROGRAMA
DE ENSINO DE GRADUAÇÃO MÉDICA
NA COMUNIDADE

Maria Regina Pires Uliana


Antonio Pithon Cyrino

Neste capítulo, apresentamos o processo de formulação, im­


plantação e desenvolvimento inicial do programa de Interação
Universidade, Serviços e Comunidade (IUSC), conjunto de ati­
vidades pedagógicas do curso de graduação em Medicina da Facul­
dade de Medicina de Botucatu (FMB) – UNESP, realizadas no
âmbito da atenção primária à saúde.1
A FMB, desde o final dos anos 1960, tem sua história pon­
tuada por inúmeras iniciativas, desenvolvidas inicialmente pelo
Departamento de Saúde Pública, que podem ser caracterizadas
como pioneiras no campo do ensino médico na comunidade (Cyri­
no, 1996). A partir dos anos 1990, novas experiências, envolvendo
outros departamentos acadêmicos, são estabelecidas, mediante es­
tímulo do programa UNI. Já na última década, há outra amplifi­
cação dessas práticas a partir de novos desafios e proposições de

1. Este estudo foi realizado com base em pesquisa documental. Para um maior
detalhamento sobre a metodologia, ver Uliana (2010).
52  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

reorientação da educação médica, como as Diretrizes Curriculares


Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (DCNM), em
2001, e as iniciativas governamentais de incentivo à mudança do
ensino de graduação das profissões de saúde, dado o novo papel in­
dutor do Ministério da Saúde, com a Constituição de 1988 e a legis­
lação complementar que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS),
que lhe atribui o papel de ordenador da formação de recursos hu­
manos em saúde. Nesta última década, no contexto da FMB, tam­
bém foi relevante para tal processo de expansão do ensino na
comunidade, a implantação, em 2001, do Núcleo de Apoio Pedagó­
gico (NAP): um grupo de trabalho composto por discentes e
docente­s da instituição, que iniciou sua atuação em parceria com
o  Conselho de Curso da Medicina. O NAP, caracterizado como
impor­tante espaço dedicado à formulação e apoio de projetos peda­
gógicos, contribuiu para que a instituição fosse selecionada, pelo
Ministério da Saúde, para participar do Programa de Incentivo às
Mudanças Curriculares dos Cursos de Medicina (Promed), dado
que a formulação do projeto da FMB deu-se aí.
A influência das DCNM também se fez presente no curso de
Medicina da própria FMB, visto que em seus pressupostos res­
saltam a necessidade de se adequar a formação profissional “de
modo a contemplar um ensino em cenários da atenção primária à
saúde, permitindo aos alunos uma interação com os serviços”
(Brasil, 2001, p.1).
Dadas as condições anteriormente indicadas, a proposta de um
programa de ensino na comunidade na FMB foi elaborada a partir
do lançamento do edital do Promed e orientado por um de seus ve­
tores – diversificação de cenários de ensino-aprendizagem –, dentro
do eixo cenários de práticas (Brasil, 2002).

Elaboração do programa IUSC

A partir das anteriores experiências institucionais de modifi­


cação curricular, a FMB, para atender ao edital do Promed, passa a
construir, de maneira participativa, em 2002, um planejamento de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE   53

proposta de mudança curricular utilizando-se do planejamento


participativo, ou seja, com base em discussões internas e oficinas
de planejamento envolvendo estudantes de Medicina, docentes e
direção da FMB, docentes do Instituto de Biociências da UNESP
e representantes da Secretaria Municipal de Saúde e da comuni­
dade local (UNESP, 2002a).
Nessa ocasião, é relevante que se destaque a realização de semi­
nário, no município de Embu (SP), com os dirigentes das institui­
ções que se inscreveram no Promed. Após o evento, a diretora da
FMB, sensibilizada com as discussões de modelo de ensino na
comu­nidade, recomendou que a instituição priorizasse, no projeto,
o ensino em pequenos grupos, uma vez que “diversificar cenários de
aprendizagem significaria criar oportunidades de envolvimento
dos alunos em situações de práticas de saúde desde o início do curso
e ao longo dos seis anos” (idem, p.9).
A proposta inicial de desenvolvimento do IUSC baseou-se na
experiência que a FMB tinha de ensino na comunidade e na atenção
básica, nos seus últimos quarenta anos de existência e, principal­
mente, no processo que fora desenvolvido em Niterói pela Univer­
sidade Fede­ral Fluminense, a qual foi visitada por um grupo de
professores, médicos e profissionais da FMB para conhecimento
de tal processo (UNESP, 2005a).
Destaca-se que o momento era bastante propício, pois a dire­
toria da FMB acreditou na proposta como uma forma de inovar e
dar visibilidade interna e externamente ao currículo médico.
A proposta inicial estabeleceu que o ensino na comunidade
fosse desenvolvido com os alunos do 1o ao 6o ano médico, divididos
em nove grupos, que frequentariam regiões da área de abrangência
das unidades básicas de saúde (UBSs)/unidades de saúde da fa­
mília (USFs) de Botucatu, permanecendo na mesma região durante
toda a graduação. Tal proposta permitiria ao aluno melhor conhecer
a população da área e vice-versa.2

2. Marilza Vieira Cunha Rudge, em aula sobre a proposta do IUSC, dada na


FMB em 2003.
54  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

As atividades na comunidade, de acordo com o projeto, se da­


riam em parceria com a Prefeitura Municipal de Botucatu e a comu­
nidade, com o intuito de observar a situação de vida e de saúde da
população, e participar das estratégias de proteção e cuidados
desen­volvidas na rede de atenção básica à saúde do município.
Os espaços da própria comunidade, tais como domicílios, cre­
ches e escolas, além das unidades de saúde, corresponderiam aos
cenários de ensino do IUSC. De acordo com documento institu­
cional, nesses espaços deveriam prevalecer a resolubilidade, a assis­
tência integral, o trabalho em equipe e a participação dos usuários
(UNESP, 2002b).
A metodologia de ensino-aprendizagem proposta pela coorde­
nação do programa foi a de educação problematizadora, na qual o
processo de ensino começa com exposição dos estudantes a pro­
blemas reais: observação da realidade. Nesse processo, ao se re­
velar, para alunos e professores, os problemas de saúde e as suas
contradições, há a possibilidade de reflexão da realidade local sobre
a própria prática, o que marca o caráter fortemente analítico dessa
proposta pedagógica (Cyrino et al., 2005b).
Nesse trabalho, segundo uma das formuladoras do projeto, o
professor “deve refletir com o aluno, exigindo a disponibilidade
de pesquisar, de acompanhar e colaborar no aprendizado crítico do
estu­dante”, o que frequentemente coloca o professor diante de si­
tuações imprevistas, demandando que professores e alunos com­
partilhem de fato do processo de construção do conhecimento
(Cyrino et al., 2006, p.75). Assim, após o estudo de um problema,
outros desdobramentos podem surgir, exigindo-se o contato com
situações ou conteúdos não previstos pelo professor num primeiro
momento, mas que devem ser investigados por serem relevantes à
compreensão do problema.
A proposta final do programa IUSC foi então construída já
contemplando um cronograma de atividades para o ano de 2003.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  55

A operacionalização das propostas para


ensino na comunidade

A FMB foi selecionada para o Promed com outras dezenove


escolas no Brasil (para a execução do projeto), iniciando um pro­
cesso de reorganização do curso de Medicina com o objetivo, em
consonância com o referido edital, “de formar profissionais do­
tados de conhecimentos, proficiência técnica e valores que os habi­
litem a uma prática competente, ética e socialmente responsável”
(UNESP, 2002b, p.37).
A partir da aprovação do projeto, o grupo de trabalho do NAP
realiza várias visitas às unidades de saúde para reconhecimento dos
espaços de ensino que serviriam para a viabilização das atividades
propostas para os quatro anos seguintes.
Para tanto, contaram com o apoio da Secretaria Municipal de
Saúde de Botucatu na escolha dos territórios e equipamentos sociais
que serviriam como cenários de ensino. Assim, a partir de 2003, o
projeto de ensino na comunidade operacionaliza-se de acordo com
a proposta inicial apresentada ao Ministério da Saúde − Promed,
mas readequado às condições da rede de serviços de saúde local e à
qualificação do corpo docente.
O plano de ensino inicialmente estabelecido pelos formula­
dores do programa IUSC propunha “formar médicos com habi­
lidades […] a serem exercidas com responsabilidade, com
curiosidade científica e que lhes permita recuperar a dimensão es­
sencial do cuidado: a relação entre humanos” e orientando-se para
a integralidade e humanização do cuidado (Cyrino et al., 2005a,
p.21).
Ao contemplar um ensino voltado para esses dois eixos temá­
ticos – integralidade e humanização –, o IUSC se propõe a ampliar
a compreensão de que a clínica não é só um conjunto de ações indi­
viduais, mas um olhar ampliado para os problemas de cada um, e
que “o acolhimento às necessidades básicas de saúde pode e deve
acontecer num sistema de saúde organizado pela hierarquia de
complexidade do cuidado” (ibidem, p.24).
56  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Além disso, para os formuladores do IUSC, as atividades edu­


cacionais não deveriam se restringir à visão biológico-reducionista
do cuidado médico, mas voltar-se para a integralidade das ações
em saúde, que valoriza a educação em saúde e a promoção da qua­
lidade de vida (Cyrino et al., 2007).
A prática na comunidade também deveria contribuir para uma
formação humanizada mediante:

estratégia de ensino que valorize a enorme importância dos conhe­


cimentos clínicos, na assistência individual, mas também que
valo­rize a clínica como um espaço de desenvolvimento de diá­
logos, de narrativa, de fala e escuta, considerando o cliente sujeito
de seu tratamento e buscando melhorar sua qualidade de vida.
(Cyrino, 2005b, p.35)

A metodologia mais adequada para alcançar os objetivos pro­


postos, conforme documento, incluiria a problematização e o tra­
balho grupal, por possibilitar aos alunos reflexões baseadas nas
contradições da prática médica focada exclusivamente na doença e
propiciar-lhes uma visão ampliada sobre o processo saúde-doença
(UNESP, 2005a).
No entanto, tal proposta pedagógica apresentou um grande
desafio à equipe do IUSC: contar com número suficiente de profes­
sores tutores habilitados para trabalhar com essa metodologia
problematizadora.
Definiu-se, ainda, que os professores poderiam e deveriam ser
de diferentes formações e, assim, a coordenação do programa sele­
cionou e capacitou onze profissionais de saúde (médico, enfermeiro,
psicólogo, pedagogo, fonoaudiólogo, biólogo, terapeuta ocupa­
cional, nutricionista, odontólogo e profissionais de comunicação
e serviço social) para o acompanhamento dos noventa alunos do
1o ano de graduação médica, os quais foram divididos em pequenos
grupos de oito a nove para cada professor (UNESP, 2002c).
Embora inicialmente prevista a participação de docentes da
FMB como professores do IUSC, cabe apontar que isso não se con­
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  57

cretizou, conforme consta no documento de avaliação, de modo


que os onze profissionais (pertencentes ou não à rede de serviço
municipal) que compunham o quadro, passaram a ser denomi­
nados professores tutores (UNESP, 2005a).
Nesse aspecto, a proposta do IUSC procurou trazer “o rompi­
mento com o ensino disciplinar, buscando-se, assim, propiciar
expe­riências interdisciplinares, nas quais os alunos possam per­
ceber que a construção do conhecimento depende do saber de
distin­tas áreas” (Cyrino et al., 2007).
A expectativa dos formuladores do programa IUSC era de que
a inserção do estudante na região das unidades de saúde possibili­
tasse um olhar e uma escuta mais qualificada, além de ampliar o
conhecimento sobre a cidade, o bairro e o território. Ao mesmo
tempo, daria aos estudantes a oportunidade de intervir na realidade
com o desenvolvimento de ações educativas das mais diferentes
natu­rezas, mediante interação com as equipes locais de saúde e
comu­nidade (idem, 2007).
No Quadro 1 dispõem-se os objetivos gerais definidos para os
primeiros anos com o propósito de acompanhar as imagens iniciais
na formulação do IUSC.
Em relação ao cenário de prática, conforme consta em rela­
tório, o primeiro ano da graduação do IUSC desenvolveu-se com
atividades na comunidade que se destinavam a contemplar ações de
promoção da saúde em área territorial definida pela abrangência
da  UBS com as equipes dos serviços de saúde, buscando romper
com a dicotomia preventivo/curativo (UNESP, 2002c).
Dentre as estratégias estabelecidas para atuação dos estudantes
na comunidade encontravam-se ainda: a realização de visitas domi­
ciliares para observação e acompanhamento de crianças menores de
2 anos; o reconhecimento do território referenciado a uma unidade
de saúde visando à compreensão de aspectos do SUS; visitas e reco­
nhecimento do trabalho desenvolvido nas UBSs e nos equipamen­
tos sociais (creches, escolas, centros comunitários, entre outras
organizações de assistência), atentando para a interface saúde­
‑educa­ção e para a elaboração de práticas de prevenção à doença e
58  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Quadro 1 − Objetivos gerais propostos para o programa IUSC, em seus


três primeiros anos de implantação

IUSC Objetivos gerais


Reconhecer a real situação de vida e de saúde da comunidade (como vivem,
por que adoecem e morrem os cidadãos) e ainda participar das estratégias de
1o ano (2003)
proteção e cuidados à saúde, desenvolvidas através da rede de atenção básica
do município de Botucatu.
Desenvolver uma formação médica que propicie uma atuação humanizada
para a população; desenvolver ações de promoção, educação e prevenção à
2o ano (2004) doença entre a comunidade da área de abrangência da unidade básica de
saúde (UBS) e/ou unidade de saúde da família (USF), em parceria com a rede
de atenção básica do município de Botucatu.
Manter o desenvolvimento de ações de promoção, educação e prevenção à
doença entre a comunidade da área de abrangência da unidade básica de
3 ano (2005)
o
saúde (UBS) e/ou unidade de saúde da família (USF), em parceria com a rede
de atenção básica do município de Botucatu.

Fonte: UNESP, 2003, 2004a, 2005b.

promo­ção à saúde por meio de atividade de educação em saúde


orientadas para problemas específicos do bairro ou das escolas
(UNESP, 2002c; Cyrino et al., 2006).
Uma estratégia que merece destaque, na proposta elaborada
para o IUSC, é a visita domiciliar, que é compreendida como um
campo de conflito.
A visita domiciliar (VD) foi, dentre as estratégias propostas
pelos formuladores do IUSC, a que mais capitalizou a atenção dos
coordenadores e professores, especialmente sobre seus funda­
mentos e seu significado para a formação médica. Nas discussões
ocorridas sobre a visita domiciliar, o grupo dividiu-se entre o seu
uso como instrumento de coleta de informações sobre o território,
habitação, saneamento, condições ambientais e físicas em que vive
o indiví­duo, e estratégia pedagógica para a formação de vínculos
inter­pessoais, à medida que a inserção do aluno no território se
confi­gurasse como oportunidade para o diálogo e a interação dos
estudantes com as famílias.3

3. E. G. Cyrino (FMB), comunicação pessoal, 2009.


  59
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE

A opção que consta no documento do Promed refere-se à pri­


meira proposta, na qual cada aluno faria, em média, vinte ou trinta
visitas às famílias durante o ano, levantando aspectos relacionados
a determinantes sociais do processo saúde-doença, para posterior
estudo destinado à caracterização do território (UNESP, 2002c).
Na sequência, a proposta foi reformulada e se optou por dimi­
nuir o número de visitas, passando-se para doze a dezesseis por
ano, cabendo, a cada aluno, o acompanhamento de três famílias,
com as atividades distribuídas em quatro ou cinco encontros ao ano.
Assim, os recém-nascidos e suas famílias foram selecionados
pelo cadastro de nascidos vivos das duas maternidades de Botu­
catu. A partir dessa seleção, os alunos iniciariam as visitas domi­
ciliares com entrevistas às famílias usando roteiro semies­truturado
e, pela proposta estabelecida, deveriam acompanhar as mesmas
crianças até o 6o ano do curso médico.
Após alguns meses de prática na comunidade e considerando
as primeiras avaliações de alunos e professores a respeito das ativi­
dades ali desenvolvidas, o grupo de formuladores do programa faz
uma revisão da proposta especialmente em relação ao objetivo da
visita domiciliar. Com isto se adota a segunda proposta formulada,
qual seja, a da visita domiciliar como estratégia pedagógica. Há,
assim, uma reorganização dessas visitas para o segundo semestre
desse mesmo ano (UNESP, 2005a).
Com essa revisão e readequação dos objetivos, os alunos pas­
saram a acompanhar os bebês até o segundo ano de vida, durante o
ano todo, com um plano de visitas temáticas relacionadas à saúde
infantil: amamentação, vacinação e desenvolvimento infantil no
primeiro ano de vida.4
Assim, o que se pode perceber na pesquisa dos documentos é
que, durante a implantação do IUSC, ocorreu uma mescla entre
duas propostas de atividades para a visita domiciliar: os alunos ini­
ciaram visitas rotineiras às casas das famílias realizando entrevistas

4. R. M. Z. Romanholi (FMB), comunicação pessoal, 2009.


60  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

com um modelo de inquérito populacional epidemiológico e, a par­


tir do segundo semestre, enfocaram também temas da saúde in­fan­til
preestabelecidos, visando à formação de vínculos interpessoais.
De acordo com o material pesquisado, ainda é possível obser­var
que, no ano seguinte, em 2004, com a implantação do 2o ano do
IUSC, algumas estratégias foram reformuladas, especialmente a das
visitas domiciliares. Assim, as famílias a serem acompanhadas desde
o 1o ano passaram a ser indicadas pelos profissionais das unidades
de saúde; o contato com as mesmas passou a ser realizado previa­
mente pelos professores tutores ou agentes comunitários de saúde, e
os objetivos foram redefinidos de modo a se estabelecer uma conti­
nuidade do trabalho nos dois primeiros anos (UNESP, 2004).
Para auxiliar essa nova prática, os professores tutores deveriam
preparar seus respectivos grupos para que as visitas se realizassem
mediante conversa com os familiares orientada por temática pre­
viamente indicada pelas próprias famílias e pela coordenação geral
do IUSC. Caberia ainda aos tutores orientar os alunos quanto aos
referidos tópicos de forma a fundamentar e subsidiar suas ati­
vidades nos bairros. Dessa maneira, as atividades desenvolvidas
deveriam, a todo momento, ressaltar a importância de se reco­
nhecer o espaço comunitário como um lugar de relações a serem
estabelecidas com as famílias, e de produção de saúde a partir de
suas peculiaridades.5
A relevância da proposta também foi destacada no jornal da
cidade de Botucatu, com a manchete “Futuros médicos vão para
periferia”, ressaltando o trabalho desenvolvido pelos alunos nos
bairros do município e apontando como principais objetivos do
programa: “verificar a área de abrangência do bairro, promover o
acompanhamento de recém-nascidos e sua família, reconhecer
o cenário social do trabalho médico e profissional da saúde e, ainda,
participar ativamente em ações desenvolvidas pela comunidade para
a própria comunidade” (Futuros…, 2003).

5. E. G. Cyrino e R. M. Z. Romanholi (FMB), comunicação pessoal, 2009.


SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  61

Para acompanhar o desenvolvimento dessa nova estratégia


curricular da FMB, constituiu-se, em 2004, uma comissão gestora
local de acompanhamento do IUSC, com representantes da univer­
sidade, da Secretaria Municipal de Saúde de Botucatu, do Conselho
Municipal de Saúde e do corpo discente da faculdade, com o pro­
pósito de se identificarem as fragilidades e fortalezas que fossem
aparecendo na proposta de ensino na comunidade.
Além dessa comissão, já era prevista a realização, ao final de
cada semestre, de avaliações do curso, com estudantes e profes­
sores, por meio de instrumentos propostos pela coordenação,
visan­do obter dados qualitativos e quantitativos (Perosa; Roma­
nholi; Cyrino, 2005).
A operacionalização do programa IUSC se deu por um pro­
cesso gradativo de implantação e readequação, de acordo com a
realidade que se apresentava durante o processo de vivência, reve­
lando tanto situações conflituosas e imprevistas, como facilitadoras
para o desenvolvimento das estratégias.
Durante todo o processo de implantação do programa, houve
momentos de revisão dos objetivos, das estratégias e dos instru­
mentos de avaliação, de maneira que o desenho da proposta foi se
definindo ainda mais.
A participação dos alunos, dos professores tutores, dos profis­
sionais dos serviços de saúde e da própria comunidade, nesse pro­
cesso de revisão e reavaliação da proposta de ensino na comunidade,
foi importante para que muitos aspectos do programa fossem rea­
daptados. Tais mudanças são mostradas no Quadro 2 (UNESP,
2005b; Cyrino et al., 2007).
62  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Quadro 2 – Síntese dos principais aspectos do IUSC na sua idealização e


durante sua concretização

O programa IUSC operacionalizado


A proposta pedagógica do Promed (2002)
(2003 a 2005)
A concepção elaborada no projeto inicial A construção do programa na comunidade
Plano de ensino Plano de ensino
Pautado nos planos discursivos de Pautado nos planos discursivos de
integralidade e humanização, mas sem integralidade e humanização; construção
definição clara desses conceitos coletiva desses conceitos de maneira a
contemplar conteúdos de:
− comunicação, saúde pública, educação em
saúde, ciências sociais, humanismo
− saúde da criança e saúde mental

Professores e metodologia Professores e metodologia na implantação


− 9 professores de diferentes formações − 11 professores tutores (multiprofissionais)
profissionais, com vivências na saúde e
conhecimentos de SUS e APS/AB
Preparo para metodologia problematizadora Preparo para metodologia problematizadora
alunos do 1o ao 6o ano médico alunos do 1o ao 3o ano médico
 
9 áreas de abrangência de UBS/USF 11 grupos de 8 a 9 alunos
 
9 grupos de 10 a 12 alunos 11 áreas de abrangência de UBS
 
Cenários de prática e atividades propostas: Cenários de prática e atividades realizadas:
− observar a situação de vida e − reconhecimento de territórios
levantamento de dados de saúde da − realização de visitas domiciliares
população no território, por meio de visitas temáticas às casas de famílias com bebês
domiciliares às casas de famílias, com o menores de um ano (três bebês/aluno
acompanhamento de 288 crianças nascidas durante o 1o e 2o anos)
em 2003, e cada aluno ficando com três
− reconhecimento das UBSs e equipamentos
bebês e suas famílias, nos 6 anos de
sociais (creches, escolas, projetos sociais)
faculdade
− atividade de educação em saúde baseada
− integração curricular com Saúde Coletiva
em demandas específicas do bairro ou das
e Bioestatística
escolas/creches
− identificação de problemas e construção
− atendimento em clínica de adulto nas
da sala situacional e apresentação do
UBSs/USFs
trabalho à comunidade
− reconhecimento das UBSs e
equipamentos sociais

Fonte: UNESP, 2002b, 2002c, 2005a.


SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE   63

A consolidação do IUSC como disciplina

Em 2005, o Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério


da Educação, lança novo edital de incentivo à reforma curricular: o
Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em
Saúde, Pró-Saúde, com proposta muito semelhante àquela do
Promed, qual seja, a reorientação da formação profissional em
escolas superiores na área da saúde (sobretudo Medicina, Enfer­
magem e Odontologia) em direção à maior integração das insti­
tuições de ensino ao serviço público de saúde, na construção e
fortalecimento do SUS (Brasil, 2007).
Mais uma vez, a FMB − UNESP foi contemplada com os
recur­sos do Ministério da Saúde, visto que a Coordenação do Pro­
grama IUSC, bem como o NAP e sua Frente de Ensino na Comu­
nidade se empenharam em destacar a necessidade de se continuar
investindo nesse projeto, demonstrando as reestruturações já reali­
zadas, apontando dificuldades, buscando novas capacitações e,
sobretudo, apontando a necessidade de uma segurança institu­
cional para que esse ensino fosse incorporado ao currículo (UNESP,
2005b).
Destaque deve ser dado, dentro dessa perspectiva, ao apoio da
diretoria da FMB e de seu Conselho de Curso na busca da concre­
tização e continuidade da proposta do IUSC. Desse modo, o IUSC,
que se iniciou em 2003, na condição de um “programa”, pleiteou a
condição de disciplina curricular a partir de 2005.
Após diversas discussões e reuniões entre Conselho de Curso,
membros do NAP e alunos sobre a possibilidade de o programa
IUSC tornar-se disciplina (IUSC I, II e III), a proposta foi colocada
em pauta na reunião da Congregação da FMB − UNESP. Foi deba­
tida intensamente e aprovada em 2006, para que, a partir do ano
seguinte, fosse implantada gradativamente do 1o ao 3o ano na grade
do curso médico (UNESP, 2006).
Para visualização de todo esse processo de construção relatado
nos tópicos anteriores, o Quadro 2 apresenta, de maneira sintética, as
principais informações do processo de operacionalização do IUSC.
64  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Discussão

É possível reconhecer que o contexto em que se deu a formu­


lação do programa IUSC e, a seguir, da disciplina IUSC, foi forte­
mente influenciado por políticas governamentais de indução de
processos de reorientação do modelo político-pedagógico da edu­
cação médica no país.
Cabe também lembrar que a legislação infraconstitucional –
Lei n.8.080, de 19 de setembro de 1990, em seus artigos 13, 15 e 27
– deu a base jurídico-política para que o Ministério da Saúde (MS)
viesse a ordenar a formação de recursos humanos em saúde. Tal
processo, todavia, só teve início doze anos após a regulamentação do
SUS (Brasil, 1990), e avançou significativamente com a criação
no MS da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde
(SGTES), em 2003.
Essas políticas (Promed, Pró-Saúde, PET-Saúde) buscaram
dar suporte financeiro, apoio técnico e político às instituições sele­
cionadas, as quais deveriam conformar-se como exemplos de seu
alcance.
É notável que tais mudanças se fizessem em contexto de pós­
-reforma sanitária e em consonância com a implantação do Sistema
Único de Saúde, quando uma nova agenda de questões relativas à
formação de profissionais de saúde vinha sendo construída por
dife­rentes sujeitos nesse processo, e, sobretudo, quando havia o
reco­nhecimento do Estado da necessidade de executar os ajustes
neces­sários para a sintonia entre necessidades sociais, dimensiona­
mento da força de trabalho e aparelho formador (Campos et al.,
2001).
Parte desses ajustes foi realizado a partir dos referidos pro­
gramas de incentivo à reorientação curricular das graduações mé­
dicas, os quais tinham como dois de seus objetivos a ampliação dos
espaços de ensino para além da universidade e o fortalecimento da
atenção básica, em especial do Programa Saúde da Família (Oli­
veira, 2008).
A FMB conseguiu angariar apoio político institucional interno
para sua reformulação curricular, para o que foi fundamental ter
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE   65

sido uma das escolas médicas selecionadas para receber recursos do


Promed e do Pró-Saúde.
O programa IUSC, enquanto parte do processo de reforma
curricular, mostrou-se uma proposta “inovadora”, ao introduzir
elementos novos, por referência, às experiências anteriores de en­
sino na comunidade na FMB.
Reconhecer o caráter inovador desta e outras experiências, que
ocorrem nos limites de uma disciplina ou entre disciplinas de um
mesmo curso, pode favorecer rupturas com as formas tradicionais
do ensinar e do aprender (Cunha et al., 2001).
Ao tratar das possibilidades de reorientação da educação mé­
dica, Almeida (1999) assinala que tais iniciativas podem ocorrer
em diferentes planos de modificação: o da inovação, o da reforma e
o da transformação. No plano da inovação, estariam as mudanças,

geralmente pontuais, localizadas, particulares e parciais, [aquelas]


ino­vações que concentram-se nas atividades, nos meios e nas rela­
ções técni­cas entre os agentes do ensino e o processo de ensino.
(Almeida, 1999, p.10)

O processo de desenvolvimento do programa IUSC, coerente


com Cunha et al. (2001) e Almeida (1999), anteriormente citados,
pode ser considerado uma inovação pedagógica dadas algumas
peculiaridades que serão tratadas a seguir: a adoção de uma peda­
gogia problematizadora e a orientação da prática de atenção tendo
como pressupostos a integralidade e a humanização do cuidado.
Os idealizadores do Programa IUSC, segundo esse estudo
docu­mental, buscaram nas teorias de Paulo Freire subsídios para
efetivar um processo de ensino-aprendizagem mais reflexivo e
inte­rativo, tornando-o uma “aventura criadora” e não mais a mera
repetição de lições e conteúdos.
Nesse sentido, a problematização deveria trazer ao aluno o ato
constante da reflexão, que, segundo Freire (1999, 2007), se caracte­
rizaria como um construir e reconstruir conhe­cimentos, de maneira
a interferir e mudar, tornando o sujeito crítico de seu próprio pro­
cesso de aprendizagem.
66  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Para tanto, os problemas a serem estudados pelos alunos pre­


cisam valer-se de um cenário real para que, pela observação da
realidade, possam manifestar-se com todas as suas contradições
(Freire, 1992).
Ainda em relação à metodologia, Cyrino e Toralles-Pereira
(2004), ao estudarem duas estratégias pedagógicas – a proble­
matização e a aprendizagem baseada em problemas (ABP) –, as
carac­terizam como “educação problemati­zadora”. E que, assim
sendo, trabalham

a construção de conhecimentos a partir da vivência de experiên­


cias significativas e se apoiam nos processos de aprendizagem por
descoberta, em oposição aos de recepção (em que os conteúdos são
oferecidos ao aluno em sua forma final), os conteúdos de ensino
não são oferecidos aos alunos em sua forma acabada, mas na forma
de problemas. (Cyrino; Toralles-Pereira, 2004, p.781)

Nesse sentido, a experiência do IUSC traz oportunidade aos


estudantes de um aprendizado que se diferencia daquele adquirido
no interior do hospital escola, e daquele experimentado em outras
propostas de ensino na comunidade da FMB − UNESP, pois expe­
riências pedagógicas apoiadas na problematização (e/ou na ABP)
“podem representar um movimento inovador no contexto da edu­
cação na área da saúde, favorecendo rupturas e processos mais am­
plos de mudança” (ibidem, p.785).
Na análise documental realizada, é possível perceber, na expe­
riência de formulação e operacionalização do IUSC, que existia
uma preocupação de seus idealizadores com a recomposição dos
significados a respeito da integralidade e humanização do cuidado,
visto que os referidos temas poderiam adquirir diversos sentidos na
prática do profissional da saúde.
No entanto, apesar de os campos conceituais estarem “introje­
tados” nas concepções de seus formuladores, não existia uma des­
crição clara de tais conceitos na proposta, submetida ao Promed,
enviada ao Ministério da Saúde.
  67
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE

Os sentidos da integralidade expressos nos objetivos e estraté­


gias do programa IUSC articulam conceitos de diferentes autores.
Assim, reconhecem, segundo Almeida et al. (2007, p.157), que a
“integralidade propõe um equilíbrio entre a excelência técnica e
a relevância social, além de valorizar tecnologias pedagógicas desen­
volvidas na área da educação…”; e também, segundo Feuerwerker
e Cecílio (2007, p.967), que, ao reconhecerem a integralidade como
um conceito ampliado de saúde, apontam que

A diversificação dos cenários de aprendizagem é fundamental


porque há diferentes tipos de complexidade envolvidos nos pro­
blemas de saúde, que exigem a mobilização de diferentes áreas de
saber e de diferentes tecnologias e todos eles precisam ser ende­
reçados durante a formação […].

Foi possível verificar que a operacionalização dos conceitos na


prática do IUSC foi sendo construída gradativamente. Os eixos
temá­ticos de integralidade e humanização foram objeto frequente
de debate nas reuniões de coordenação. Após os primeiros anos de
implantação do IUSC vai se estabelecendo um maior consenso
entre professores e coordenadores, a partir da experiência viven­
ciada, quanto aos sentidos que podem assumir a integralidade e a
humanização no ensino na comunidade.6
Com isso, a integralidade no IUSC passa a representar, nas ati­
vidades práticas dos alunos,

um contato regular e permanente com a comunidade e a criação de


espaços curriculares de prática, discussão, capacitação e inter­
venção para que as mesmas sejam incorporadas a uma prática clí­
nica voltada à promoção, prevenção, tratamento e reabilitação.
(Cyrino et al., 2006, p.76)

6. E. G. Cyrino (FMB), comunicação pessoal, 2009.


68  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Nessa perspectiva, busca-se também influir na orga­nização


dos serviços e das práticas de saúde, uma vez que a vivência do es­
tudante em espaço comunitário de prática pode possibilitar uma
mudança no pensar a atenção à saúde das pessoas, da família e da
comunidade, levando-o a exercitar a integralidade no cuidado do
paciente (Mattos, 2001).
A humanização, enquanto um dos princípios que integram o
IUSC, é reconhecido por seus formuladores como essencial para
uma formação profissional que valorize:

a busca pelo conhecimento da história de cada paciente, prio­


rizando, desta forma, uma relação mais individualizada no aten­
dimento, na qual o médico e seu cliente se identifiquem,
apresentem-se, percebam-se e, assim, façam da consulta uma opor­
tunidade de compartilhar a situação, podendo criar um clima de
confiança. (Cyrino, 2005b, p.34)

Assim como a integralidade, a humanização também adquire


diferentes sentidos no esforço de sua operacionalização no cotidiano
dos alunos e professores do IUSC. Um deles é o da intenção humani­
zadora como produção de uma outra relação médico-paciente que
supere seu caráter ultratécnico e impessoal (Puccini; Cecílio, 2004).
Cabe destacar que a operacionalização dos princípios da inte­
gralidade e da humanização do cuidado integraram o Plano de Ati­
vidades do programa IUSC desde os primeiros anos de trabalho,
desafiando a equipe na produção cotidiana da prática pedagógica de
ensino na comunidade.
No primeiro ano, tais práticas desenvolveram-se por meio
do reconhecimento das condições de vida e saúde da população de
um território, fundamentadas na perspectiva da saúde como com­
preensão de vida proporcionada pelas visitas domiciliares às ges­
tantes e aos lactentes, bem como a avaliação e a discussão de seus
prontuários nas unidades de saúde.
Já no segundo ano, o foco da visita domiciliar foi ampliado para
a família e sua rede de relações, além de se iniciarem práticas de
planejamento, execução e avaliação de atividades de educação em
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE   69

saúde, buscando promover a saúde a partir dos problemas levan­


tados pela comunidade. E, no terceiro ano, os alunos começaram
a realizar uma prática de “clínica ampliada” supervisionada, prefe­
rencialmente na UBS ou USF onde atuaram, descobrindo-se como
sujeitos do cuidado médico, buscando alcançar uma prática inte­
gral e mais humanizada em seu cuidado.
Com a preocupação de revelar os referidos sentidos de inte­
gralidade e humanização aos alunos dentro das estratégias apre­
sentadas, o IUSC inova em permitir a vivência e a construção de
conhecimentos não explorados habitualmente dentro dos portões
da universidade.
É justamente nesse aspecto particular que a proposta do IUSC,
de ensino orientado à comunidade, não pode significar “uma medi­
cina diferenciada, de médico para populações pobres […] nem
substituir um imprescindível arsenal científico, teórico e metodo­
lógico, necessário para permitir que os estudantes conheçam as rea­
lidades sociossanitárias, pelo mero contato com a comunidade,
como se este, por si só, tivesse o poder de revelar a dinâmica social”
(Organização Pan-Americana da Saúde – Opas, 1992, p.49). Deve,
sim, significar a busca constante de se trabalhar a formação do mé­
dico de modo que as habilidades técnicas, raciocínio clínico e os
conhecimentos específicos se somem ao entendimento de emoções,
valores e, sobretudo, de uma reflexão da prática cotidiana, visando
ao benefício do indivíduo e da comunidade atendida (Epstein;
Hundert, 2002).
Vale ressaltar, ainda, que, apesar dos avanços conquistados
pela FMB e seu programa de Interação Universidade, Serviços e
Comuni­dade, novos e constantes desafios surgirão pela frente, pois
a recuperação da “dimensão cuidadora das práticas de saúde não
são conceitos ‘pacíficos’ e consensuais, e sua implementação im­
plica em mu­danças nas relações de poder entre as profissões e nas
relações de poder entre profissionais de saúde e usuários” (Feuer­
werker; Cecílio, 2007, p.969).
Num programa de ensino que tem parte da equipe das uni­
dades de saúde envolvidas no processo de ensino-aprendizagem de
seus graduandos é, ainda, necessário reconhecer como desafio
70  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

a necessidade de estender a capacitação em metodologias de en­


sino crítico-reflexivas aos profissionais que se interessam em par­
ticipar do processo de ensino aos estudantes, e também formular
propostas que estimulem esses mesmos médicos e enfermeiros
das equipes a se manter envolvidos neste processo […]. (Gil et al.,
2008, p.238)

Essa proposta de formação evidentemente deve incluir os do­


centes que integram a equipe desse programa de ensino na comu­
nidade, como tem sido a experiência do IUSC nesta década de
atividades, tendo como parte de seu projeto a formação crítica e
problematizadora de todo o corpo docente envolvido, seja ele do
quadro da universidade ou da rede de serviços, o qual tem sido um
campo de grande prática de análise e pesquisa.7
À guisa de conclusão, cabe reconhecer, no exame empreendido
neste capítulo, que a apresentação e breve análise do processo de
formulação, implantação e desenvolvimento inicial do programa
de Interação Universidade, Serviços e Comunidade (IUSC), nos
permitiu reconhecer a riqueza do processo de produção de uma
experiência inovadora que partiu de um pequeno grupo de do­
centes e, ao longo destes anos, sua potência pode ser reconhecida
não só no crescente número desses participantes, como também no
perfil inter­profissional e na contínua cocriação que marcou essa
prática de ensino, como veremos ao longo deste livro.

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7. Para um aprofundamento a este respeito, ver capítulo 3 deste livro.


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Parte II
PROFESSORES,
PROFISSIONAIS DE SAÚDE E
ALUNOS DA IUSC
3
INOVAÇÃO PEDAGÓGICA NO
ENSINO MÉDICO E DE ENFERMAGEM:
DESAFIOS E PERSPECTIVAS NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Cássia Marisa Manoel


Eliana Goldfarb Cyrino

Neste capítulo são apresentados os desafios e perspectivas na


formação de professores para o ensino médico e de Enfermagem
rumo à inovação pedagógica, tendo como proposta o trabalho
desen­volvido na disciplina Interação Universidade, Serviços e
Comu­nidade (IUSC). São apresentadas as características dos pro-
fessores e do seu processo de formação na disciplina, que tem sua
base metodológica na problematização de Paulo Freire e na ten-
dência pedagógica progressista “crítico-social dos conteúdos”. O
capítulo desenvolve análise crítica sobre a participação reflexiva e
cooperativa do grupo de professores tutores, com vistas à formação
de identidade grupal e profissionalização da atividade docente.
Não é possível, hoje, caminhar para a inovação, reforma ou
transformação do ensino médico e de Enfermagem sem tomar o
professor como elemento essencial desse processo, e então reco-
nhecer sua identidade, subjetividade, contradições e convicções
próprias sobre o que é valioso e importante do ponto de vista edu-
cacional. Nessa posição, o professor não está apartado também das
pressões externas e internas à instituição de ensino (Rasco, 2000).
Os profissionais de cada área introjetam os valores e as práticas ine-
78  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

rentes ao seu campo profissional. Dessa perspectiva, não há um


típi­co professor de escola médica ou de Enfermagem, mas dife-
rentes profissionais, em diferentes situações e contextos.
É dessa perspectiva que se percebe o trabalho do professor uni-
versitário de escola médica, reconhecendo uma certa especifici-
dade, na qual se exige desse profissional, para o ingresso na carreira,
conhecimentos aprofundados de sua área específica de atuação e
quase nada sobre educação e suas experiências prévias com o
ensi­no. Parte-se, portanto,

do princípio de que o professor que teve uma sólida formação na


especialidade em que deve atuar como docente encontra natural-
mente os meios para ensiná-la, no que se refere tanto ao corpo de
conhecimentos de sua área, quanto ao desenvolvimento de formas
de pensamento e habilidades técnicas essenciais à atuação profis-
sional do egresso de sua disciplina. (Batista; Silva,1998)

Ninguém duvida que ensinar o estudante de Medicina é uma


prioridade na vida profissional de um professor de escola médica
ou de Enfermagem. Mas, hoje, pode-se admitir que a dedicação ao
ensino pode ficar em segundo plano, diante da enorme pressão
sobre os professores dessas instituições, dos quais é esperado um
bom desempenho em tantas áreas de atividade, especialmente a
pesquisa.
Destacam-se, assim, como questões relevantes para que o
ensi­no alcance seus objetivos: o sentido e o valor que se atribui à
docência e ao próprio ensino no conjunto dos papéis das institui-
ções de ensino superior.
Batista e Silva (1998) apontam que, ao contrário de algumas
áreas, no caso do professor da escola médica no Brasil, não se exige
em sua contratação uma “formação sistematizada que instrumen­
talize a sua maneira de conceber e desenvolver o processo ensino-
-aprendizagem”, e talvez o mesmo ocorra nas escolas de Enfermagem.
Pois, como afirmam criticamente Rodrigues e Mendes Sobrinho
(2007), com relação a essas últimas, o processo de redirecionamento
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  79

na formação dos profissionais de Enfermagem deve estar voltado


para as transformações sociais.
Portanto, o profissional de ensino em saúde deve integrar suas
atividades à realidade dos alunos e incorporar aspectos inerentes
à sociedade globalizada deste século. Considerando que não po-
demos formar enfermeiros generalistas, críticos e reflexivos sem
que os enfermeiros professores tenham uma formação adequada,
a  formação do docente enfermeiro precisa ser redirecionada de
modo que esteja baseada na reflexão sobre a prática cotidiana,
con­siderando o professor como um pesquisador da própria práti­ca.
Nesse contexto, é de fundamental importância o estabeleci-
mento de programas de formação permanente voltados para a do-
cência que considerem a reflexão sobre a prática, a universidade
como o lócus de formação, a politização do trabalho, o coletivo e o
saber experiencial (Rodrigues; Mendes Sobrinho, 2007).
Hernandez (1998), ao indagar sobre a possibilidade efetiva de a
capacitação docente produzir, com segurança, uma mudança nas
práticas de ensino, aponta algumas causas da rejeição dos profes-
sores à capacitação: falta de tempo, desconforto de se propor a
aprender, dificuldade de perceber a necessidade de reflexão sobre
a prática, medo de perder a identidade, o modo e a experiência ad-
quiridos para ensinar e a impossibilidade de aplicar teoria à prática.
Entre aquele professor que se propõe a participar de uma capa-
citação e aquele que entende que já sabe como ensinar e não quer
realizar qualquer mudança, há uma confluência na manutenção de
uma prática tradicional. Muitas vezes, o professor frequenta um
curso de formação, mas, quando retorna ao seu cotidiano e en-
contra os seus colegas pouco entusiasmados com qualquer pro-
posta de mudança, pouco consegue transformar sua prática em sala
de aula a partir do que estudou em cursos (Hernandez, 1998).
Hoje, dar um sentido à docência

implica vermos nossas disciplinas a partir de uma ampla perspec-


tiva histórico-cultural. Questões que dizem respeito ao mundo
80  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

atual, projeções sobre o que nos legará o futuro, são fundamentais


para a formação do [professor] […]. (Balzan, 1999)

Deve-se por um lado, valorizar o conhecimento e as metodo­


logias de que o docente dispõe e atualizá-los e, por outro, fazê-lo
enfrentar o desafio de atribuir significado ao que está realizando
enquan­to professor, para poder transformar sua prática docente
(Balzan, 1999).
A transformação da prática docente pode se dar pela proble-
matização dos fatos que ocorrem na prática cotidiana, que em um
processo de construção coletiva podem produzir um aprendizado
mais efetivo e para tanto pode-se considerar a política de educação
permanente proposta pelo Ministério da Saúde, que afirma:

A educação permanente é aprendizagem no trabalho, onde o


aprender e o ensinar se incorporam ao cotidiano das organizações e
ao trabalho. A educação permanente se baseia na aprendizagem
significativa e na possibilidade de transformar as práticas profissio-
nais. A educação permanente pode ser entendida como aprendi-
zagem-trabalho, ou seja, ela acontece no cotidiano das pessoas e
das organizações. Ela é feita a partir dos problemas enfrentados na
realidade e leva em consideração os conhecimentos e as experiên-
cias que as pessoas já têm. Propõe que os processos de educação
dos trabalhadores da saúde se façam a partir da problematização do
processo de trabalho, e considera que as necessidades de formação
e desenvolvimento dos trabalhadores sejam pautadas pelas neces-
sidades de saúde das pessoas e populações. Os processos de edu-
cação permanente em saúde têm como objetivos a transformação
das práticas profissionais e da própria organização do trabalho.
(Brasil, 2009)
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  81

Trabalhando com a problematização de


Paulo Freire e com a tendência pedagógica
progressista crítico-social dos conteúdos

Ao propor a educação de adultos como prática de liberdade,


Paulo Freire (1987) diz que a educação “não pode fundar-se numa
compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo
encha de conteúdos; […] a educação não pode ser a do depósito
de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas re­
lações com o mundo”. Por isso, a educação problematizadora fun-
damenta-se na relação dialógica entre educador e educando, que
possibilita a ambos aprenderem nos processos desenvolvidos.
A educação problematizadora trabalha a aprendizagem como
um processo de construção de conhecimentos a partir de experiên-
cias significativas vivenciadas.

Na aprendizagem por recepção, o aluno recebe os conteúdos que


deve aprender em sua forma final, acabada; não necessita realizar
nenhuma descoberta, além da compreensão e da assimilação dos
mesmos, de modo que seja capaz de reproduzi-los, quando lhe for
solicitado. A aprendizagem pela descoberta implica uma tarefa
diferente para o aluno; neste caso, o conteúdo não se dá em sua
forma acabada, mas deve ser descoberto por ele. Esta descoberta
[…] deve ser realizada antes de poder assimilá-lo; o aluno reor-
dena o material, adaptando-o à sua estrutura cognitiva prévia,
até descobrir as relações, leis ou conceitos que posteriormente as-
simila. (Madruga, 1996)

A aprendizagem significativa caracteriza-se pela interação


cognitiva entre o novo conhecimento e o conhecimento prévio,
sendo este a variável que mais influencia a aprendizagem. Portanto,
só podemos aprender a partir daquilo que já conhecemos, segundo
nos aponta Moreira (2010), que também lembra que David Au-
subel já nos chamava a atenção para isso em 1963. Já nessa época
82  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

ele afirmava que, se quisermos promover a aprendizagem signifi-


cativa, é preciso averiguar qual é o conhecimento prévio e ensinar
de acordo com ele.
Em contraposição à aprendizagem significativa, está a apren-
dizagem mecânica, na qual novas informações são memorizadas de
maneira arbitrária, literal, não significativa. Esse tipo de aprendi-
zagem, bastante estimulado no ensino, serve para “passar” nas ava-
liações, mas oferece pouca possibilidade de retenção, não requer
compreensão e não dá conta de situações novas, pois o aprendiz não
constrói seu conhecimento, não produz seu conhecimento (Mo-
reira, 2010).
O ensino de novos conteúdos deve permitir que o aluno se
desa­f ie a aprender e a avançar nos seus conhecimentos. Para isso, é
necessário um trabalho de continuidade e ruptura em relação aos
conhecimentos que o aluno traz.
A tendência pedagógica progressista crítico-social dos conteú-
dos acentua a primazia dos conteúdos culturais universais, não bas-
tando que sejam ensinados, mesmo que bem ensinados; é preciso
que exista uma significação humana e social, o confronto com as
realidades sociais. Atribui à escola o papel de difundir os conteúdos
e preparar o aluno para o mundo e suas contradições, fornecendo-
-lhe um instrumental, por meio da aquisição de conteúdos e da
socia­lização, para uma participação organizada e ativa na democra-
tização da sociedade. À escola também é atribuído o papel de me-
diação entre o individual e o social, exercendo a articulação entre a
transmissão dos conteúdos e a assimilação ativa por parte do aluno
(Libâneo, 1982).
Os métodos de ensino utilizados na tendência pedagógica pro-
gressista crítico-social dos conteúdos trabalham a relação direta
com a experiência do aluno; portanto, o trabalho docente relaciona
a prática vivida pelos alunos com os conteúdos propostos pelo pro-
fessor. A relação professor-aluno se dá considerando que esse aluno
traz a experiência imediata num determinado contexto cultural,
participa da busca da verdade ao confrontá-la com os conteúdos e
modelos expressados pelo professor.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  83

Entendida nesse sentido, a educação é “uma atividade media-


dora no seio da prática social global”, ou seja, uma das mediações
pela qual o aluno, pela intervenção do professor e por sua própria
participação ativa, passa de uma experiência inicialmente confusa
e fragmentada (sincrética) a uma visão sintética, mais organizada e
unificada (Saviani, 1980).
Libâneo (1982) aponta que essa tendência pedagógica tem
como pressupostos de aprendizagem que o esforço próprio do alu-
no que se reconhece nos conteúdos e modelos sociais apresentados
pelo professor pode ampliar sua própria experiência, e também que
o grau de envolvimento na aprendizagem depende tanto da pron­
tidão e disposição do aluno quanto do professor e do contexto da
sala de aula. Segundo o autor, aprender é a capacidade de processar
informações e lidar com os estímulos do ambiente, organizando os
dados disponíveis da experiência.
O aprendizado é um processo complexo; não acontece de
forma linear, tranquila, por acréscimo, de modo a somar alguns
novos elementos ao que sabíamos antes. Por isso, não se pode des-
considerar a percepção de como o aluno entrará em contato com
novos conhecimentos inseridos em uma realidade concreta para
apropriar-se de novos conceitos e, ao apropriar-se destes, trans-
formar-se (Cyrino; Toralles-Pereira, 2004). O aprendizado não é
nem acumulação nem substituição de informação; estrutura-se
mediante redes de conexão que cada sujeito faz, “reelaborando
asso­ciações singulares que se ampliam e ganham novos sentidos à
medida que é capaz de desenvolver novas relações, envolver-se na
resolução de problemas que esclarecem novas questões abrindo-se
para aprendizagens mais complexas” (Ribeiro, 1998).

A IUSC e a formação de professores

Levando-se em conta o que foi apresentado anteriormente, o


trabalho de formação dos professores e de planejamento das ativi-
dades é feito de maneira contínua. Enfatizam-se na formação ques-
84  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

tões como a importância do trabalho reflexivo, do ato de planejar,


do trabalho em equipe, no qual a comunidade pode ter um papel
preponderante, da ética nas relações de trabalho do médico com os
outros profissionais de saúde, com a população atendida e com
as instituições envolvidas no cuidado. Valoriza-se também a cons-
trução coletiva do projeto, procurando-se trabalhar em parceria no
sentido de, “longe de ser a unanimidade, aproximar-se mais da
capa­cidade de trabalhar com o diferente para objetivos profissio-
nais comuns” (Cunha, 1996).
Os conhecimentos científicos integram percepções, emoções e
representações de pessoas envolvidas no problema, permitindo que
diferentes saberes sejam compartilhados na construção do conheci-
mento (Berbel, 1998). O desafio é formar um grupo no qual o saber
de cada um enriqueça o outro, com ênfase no trabalho coletivo
e interdisciplinar, processo grupal, planejamento participativo e
produção do conhecimento.
No decorrer desse processo tem-se buscado a formação de
identidade grupal e conscientização da atividade educativa, a
obser­vação e problematização das contradições entre prática de
saúde centrada no modelo tradicional focado nas doenças e pro-
cesso de trabalho comprometido com a solução dos problemas de
saúde, prevenção da doença e promoção da qualidade de vida,
além de incentivar a troca de experiências, o conhecimento mútuo
e a produção coletiva (Cyrino et al., 2006).
Participam e participaram, como professores tutores, profis-
sionais das áreas da Biologia, Comunicação Social, Enfermagem,
Fonoaudiologia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Pedagogia,
Psicologia, Serviço Social, Sociologia e Terapia Ocupacional, que
contribuem com diferentes olhares e significados ao trabalho em
equipe. São selecionados pelo interesse em atividade educacional
em construção, pela experiência em trabalho grupal e atuação na
comunidade. São docentes, pós-graduandos em Saúde Coletiva e
profissionais da Secretaria Municipal de Saúde ou da FMB.
A partir de 2009, com o início dos trabalhos do Programa de
Educação pelo Trabalho para Saúde do Ministério da Saúde deno-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  85

minado PET-Saúde da Família1 na FMB, ampliou-se a presença de


profissionais da Secretaria Municipal de Saúde de Botucatu
atuando como professores tutores na IUSC.
Uma das ações priorizadas no PET-Saúde da FMB é a reali-
zação de atividades de formação permanente dos professores e pre-
ceptores do programa e em que se pode perceber rico processo de
desenvolvimento profissional. Esse trabalho tem como objetivos:
a) ampliar a reflexão/ação para o processo de ensino-aprendizagem
na atenção primária à saúde; b) refletir sobre a integração de ações e
atividades do ensino-aprendizagem na atenção primária à saúde
com as demandas e necessidades da rede; c) instrumentalizar pro-
fessores para o trabalho de preceptoria na rede com a utilização de
recursos da metodologia da problematização nos trabalhos com os
grupos de alunos; e d) promover a reflexão e a qualificação do pro-
cesso de trabalho na ESF e na articulação da rede como um todo.
As reuniões têm periodicidade quinzenal para professores tu-
tores de 1o e 2o anos e mensal para os do 3o ano. Os temas que com-
põem o conteúdo programático da disciplina são trabalhados pelos
professores tutores, que muitas vezes elegem um componente do
grupo para preparar e sistematizar a discussão, ou um profissional
externo ao grupo é convidado, conforme afinidade e acúmulo com
relação ao tema. Alguns dos temas trabalhados nos últimos anos
são o trabalho grupal e a construção coletiva, problematização
como metodologia de ensino-aprendizagem, avaliação da aprendi-
zagem com ênfase na avaliação formativa, estudo de território, a in-
terface entre saúde e meio ambiente, a visita domiciliar como

1. Programa de Educação pelo Trabalho para Saúde do Ministério da Saúde


(PET-Saúde), Brasil, da FMB − UNESP, desenvolvido como programa da
universidade em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Botucatu.
Tem como objeto de pesquisa de intervenção proporcionar ao estudante de
graduação em Enfermagem e Medicina, aos professores da FMB e aos profis-
sionais da Saúde da Família vivências em ações e atividades de pesquisa e
ensi­no na Estratégia da Saúde da Família. Apresenta-se como inovação peda-
gógica ao integrar cursos de graduação da saúde de forma interdisciplinar e
interprofissional.
86  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

estratégia de ensino na atenção primária à saúde, integra­lidade do


cuidado à saúde, educação em saúde, narrativas em saúde e anam-
nese ampliada.
Algumas estratégias são utilizadas para apreensão do conteúdo
proposto e valorização da construção coletiva do trabalho, como
discussão de textos, filmes e vídeos, aulas expositivas dialogadas,
vivências e dinâmicas de integração e participação em eventos,
como cursos e congressos relacionados à temática da IUSC.
Além dos temas que compõem o conteúdo programático da
disciplina, são também discutidos nas reuniões os diferentes pro-
cedimentos e técnicas de ensino que podem ser adotados, conside-
rando-se os diferentes temas a serem trabalhados, características
do grupo de alunos e condições oferecidas pelo cenário de prática
onde as atividades são desenvolvidas. As dificuldades e avanços são
compartilhados, buscando-se conjuntamente as soluções para os
problemas encontrados.

Os professores da IUSC

A Tabela 1 mostra a distribuição dos professores tutores da


IUSC quanto ao ano de participação, série de graduação dos alunos,
professores tutores que permaneceram no programa/disciplina em
relação ao ano anterior, professores tutores novos a cada ano e total
de professores participantes da IUSC entre 2003 e 2010. Revela um
número elevado de profissionais atuantes na IUSC e sua grande
rota­tividade. Essa instabilidade no quadro de professores tutores é
vivenciada pela coordenação da disciplina como um grande de-
safio. Assim, por exemplo, em 2006, a IUSC pôde contar com um
grupo de professores que participaram da mesma em anos ante-
riores e, em outros anos, como 2004, 2005 e 2010, houve uma reno-
vação maior no quadro de professores tutores, impulsionando a
coordenação a desenvolver estratégias de capacitação diferenciadas.
Mas é interessante a observação de que em nenhum ano ocorreu
uma renovação completa; portanto, sempre existiu a possibilidade
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  87

de troca de experiências entre aqueles que vivenciaram a prática da


disciplina e os novos professores incorporados.
Também podemos observar a variação do número de profes-
sores tutores entre diferentes anos, como em 2008 com 7 e 2010
com 21 professores tutores no 3o ano, sendo que a maioria dos pro-
fissionais que atuaram em 2010 eram médicos da Secretaria Muni-
cipal de Saúde e bolsistas PET-Saúde. Esse fato reforça a ideia
de que os programas de incentivo desenvolvidos pelo Ministério da
Saúde podem beneficiar as iniciativas de melhoria do ensino, visto
que, em 2010, os alunos puderam ser divididos em grupos me-
nores, contando com a atenção mais individualizada de um pro-
fessor tutor e assim possibilitando um aprendizado mais efetivo.

Tabela 1 – Distribuição dos professores tutores da IUSC quanto ao ano de


participação, ano de graduação dos alunos, professores tutores que perma-
neceram, novos professores tutores a cada ano e total de professores parti-
cipantes da IUSC nos anos 2003 a 2010 – Botucatu, 2012

1o ano 2o ano 3o ano Total de


Ano/série de novos
graduação Perma- Novos Perma- Novos Perma- Novos professores
neceram neceram neceram tutores
2003 − 11 − − − − 11
5
2004 5 8 9 − − 17
(1o ano)
2005 6 4 11 1 − 12 17
2006 10 0 10 0 7 3 3
2007 6 3 5 4 8 4 11
2008 6 5 5 4 7 0 9
2009 7 5 13 1 9 5 11
2010 9 2 11 5 11 10 17
96
88  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Desafios e perspectivas

Faria et al. (2008) afirmam que o corpo docente é parte essen-


cial do processo de introdução, sustentação e consolidação de
mudan­ças curriculares, considerando que a formação profissional
permanente dos docentes é primordial quando se praticam ino­
vações pedagógicas, pois os professores são agentes centrais de
transformação da realidade educacional. Os autores propõem uma
participação reflexiva, cooperativa, coletiva e integradora do corpo
docente para que conflitos e dificuldades sejam superados.
A importância da formação continuada de professores é defen-
dida por Castanho (2002), que afirma a existência da valorização,
por parte dos professores, de espaços de aprendizado e reflexão
como alento aos desafios impostos pelo trabalho e também como
algo que clarifica o caminho profissional.
Sobre a formação dos professores, Nóvoa (1995) observa que
devemos valorizar e adotar um processo no qual os professores
aprendam a partir da análise e interpretação da sua própria ativi-
dade, ou seja, “a profissão de professor conduz a criação de um
conhecimento específico adquirido através da prática”. Tem sido
possível trabalhar a educação permanente dos preceptores envol-
vendo o exame constante das próprias experiências, o diálogo crí-
tico com teorias “e o reconhecimento de que a postura reflexiva
deve marcar o trabalho docente”. Esse processo tem favorecido a
construção da autonomia para identificar e superar as dificuldades
do cotidiano.
A rotina de preparação do professor para o desenvolvimento
das atividades de ensino o torna mais seguro e possibilita a amplia-
ção de seu repertório de recursos didáticos, devendo ser defendida
e aplicada, buscando assim o ensino mais qualificado, mesmo con-
siderando os desafios que se apresentam para essa prática.
Os professores avaliam que a troca de experiências, reflexão e
planejamento coletivo das atividades no processo de formação
poten­cializam o curso, transformando-se em referencial teórico-
-metodológico para as atividades com os alunos. O processo gru­pal
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  89

torna-se um apoio decisivo. A coordenação tem observado o de-


senvolvimento do pensamento crítico e reflexivo dos professores
que se manifesta na solicitação de momentos de aprofun­damento
com oficinas de imersão e participação de consultores externos
que possam enriquecer a discussão do processo.
Deve-se, no entanto, ter claro que para a sustentabilidade da
proposta da IUSC há necessidade de maior incorporação da pro-
posta por parte da universidade, inclusive com a perspectiva de
contratação de professores para o desempenho das atividades. Esse
tem sido um desafio da IUSC desde sua implantação.

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4
OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
NO ENSINO NA ATENÇÃO
PRIMÁRIA À SAÚDE:
TENSÕES E POTENCIALIDADES NAS
PRÁTICAS PEDADÓGICO-ASSISTENCIAIS

Tiago Rocha Pinto


Eliana Goldfarb Cyrino

Introdução

A constituição do Sistema Único de Saúde (SUS) trouxe con-


sigo uma série de aspectos envolvidos na organização do sistema e,
por consequência, no modo com que são ofertados os cuidados em
saúde. Da mesma forma, as instituições formadoras também foram
levadas a rever a maneira com que vinham formando seus alunos
na tentativa de se adequar a essas novas exigências, o que tem pas-
sado diretamente pela articulação das instituições formadoras com
os serviços de saúde e, em especial, com a rede de atenção primária
à saúde (APS).
É importante ressaltar que, cada vez mais, as reformas curricu-
lares nos cursos médicos, assim como as experiências de inserção
de alunos em formação no campo da APS, têm sido estimuladas em
todo o território nacional. Vários estudos e trabalhos desenvolvidos
na área apontam para essa necessidade e seus reflexos na capaci-
tação de alunos que desde os primeiros anos da graduação se
94  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

utili­zam da APS enquanto campo de aprendizagem, qualificando-


-os para uma futura atuação profissional mais condizente com os
princípios do SUS e de suas possibilidades de retorno para a socie-
dade brasileira (Feuerwerker, 2004; Tesser, 2008; Lampert et al.,
2009; Sisson, 2009; Marins, 2004; Vieira et al., 2007; Ferreira;
Silva; Aguera, 2007; Campos; Foster, 2008).
O interesse pela transformação e mudanças na educação mé­dica
vem aumentando nos últimos anos com o envolvimento de educa­
dores, pesquisadores, gestores, estudantes, profissionais e entidades
da área − como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Asso­
ciação Brasileira de Educação Médica (Abem) −, além do Ministério
da Saúde (MS) e do Ministério da Educação (MEC), à medida que
cresceu a percepção de que, sem profissionais formados com um
novo perfil, se tornava muito difícil a tarefa de reorganizar modelos
de atenção à saúde, conforme preconizado pelo SUS (Oliveira et al.,
2008; Brasil, 2001, 2002, 2005b).
Nesse ideário, a partir de 2001, os ministérios da Saúde e da
Educação têm formulado uma série de propostas destinadas a pro-
mover mudanças na formação e na distribuição geográfica dos
profis­sionais de saúde em consonância com as Diretrizes Curricu-
lares Nacionais dos Cursos da Área de Saúde, tais como: Programa
de Incentivo às Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina
(Promed), Programa Nacional de Reorientação da Formação Pro-
fissional em Saúde (Pró-Saúde), Programa de Educação pelo Tra-
balho para a Saúde (PET-Saúde), e, mais recentemente, o Programa
de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (Provab) e o
PET-Redes (Brasil, 2002, 2004, 2005a, 2005b, 2012, 2013).
Por atuar sob a lógica da responsabilização territorial, interse-
torialidade, descentralização, priorização de grupos populacionais
com maior risco de adoecimento e com uma concepção ampliada
do processo saúde-doença, a Estratégia Saúde da Família possi­
bilita características estratégicas para o SUS, tanto na otimização da
resolubilidade na APS, como no acompa­nhamento longitudinal
dos usuários adscritos em sua área de abrangência, colocando-se
dessa forma como lócus privilegiado de aprendizagem e formação
profissional (Brasil, 2001, 2006).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  95

Com isso, os currículos estão sendo reorganizados para que os


estudantes tenham um contato longitudinal com a APS, estagiando
em determinada unidade de saúde durante todo o curso. Isso tem
permitido aos alunos ter noções de territorialização, verificação das
condições de saúde da comunidade, conhecimentos da rotina de
um centro de saúde, desenvolver habilidades clínicas, desenvolver
ações de prevenção e promoção de saúde em conjunto com as
equipes, bem como numa abordagem integral e contextualizada
dos pacientes (Marins, 2004; Vieira et al., 2007; Ferreira; Silva;
Aguera, 2007; Campos; Foster, 2008).
É preciso compreender que não se trata mais de formar pessoal
competente tecnicamente, mas profissionais que tenham vivência
no acesso universal, na qualidade e humanização na atenção à saúde
e controle social, o que significa dizer integração efetiva e perma-
nente entre formação médica e serviços de saúde (Feuerwerker,
2004; Tesser, 2008; Lampert et al., 2009; Sisson, 2009).
Sperandio et al. (2010) apontam que a relação entre alunos e
trabalhadores da APS pode incentivar a formação de grupos e ações
de promoção de saúde e contribuir para que as equipes possam
continuar e ampliar o trabalho idealizado e desenvolvido pelos
alunos. Contudo, estudos como os de Feuerwerker (2004) e Albu-
querque et al. (2008) apontam que a relação entre universidade e
serviços também pode gerar sérias tensões decorrentes da dico-
tomia entre o ensino e a produção de cuidados em saúde, sendo
neces­sária a sensibilização e corresponsabilização de todos os atores
envolvidos, tendo em vista que essas necessidades e potenciali-
dades não são homogêneas, devendo ser reconhecidas para se pre-
parar e determinar os novos rumos.
Diante desse quadro, Trajman et al. (2009) apontaram em es-
tudo realizado que a maioria dos trabalhadores da APS consi-
deram que a preceptoria faz parte das atribuições do profissional e
gostariam de assumir essa tarefa. Apesar disso, várias dificuldades
foram apontadas, incluindo problemas estruturais e de recur­sos
humanos, responsabilizando as instituições de ensino superior e o
Estado pela pouca valorização e estímulo às ações de preceptoria.
Nesse sentido, autores como Rego (2011) e Marins (2011) ressaltam
96  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

a necessidade de preceptores com perfil e competência técnica


para trabalhar e problematizar a realidade da APS com os alunos, a
fim de que as possibilidades de ensino-aprendizagem na APS sejam
potencializadas e os entraves dessa interação sejam mini­mizados.
Reconhecemos que, diariamente, alunos em formação de dife-
rentes anos e especialidades transitam pelos corredores das uni­dades
de saúde e podem interferir em sua dinâmica de funcionamento e
atendimento à população, sendo necessária uma série de negociações
e ajustes para que tanto profissionais quanto alunos possam ser
bene­f iciados por essa experiência.
Buscando apresentar a percepção dos trabalhadores quanto a
esse processo, assim como das implicações dessa interação para as
unidades de saúde, o presente estudo busca apresentar alguns
apontamentos sobre a problemática e contribuir com novos ele-
mentos para esse processo ao analisar dados que auxiliem na for-
mulação de estratégias e avanços na articulação de alunos na APS.
Dessa forma, buscamos analisar as potencialidades e dificul-
dades na interação entre alunos em formação profissional e os
traba­lhadores dos serviços de APS. Entre outras questões, espe-
ramos poder compreender e ampliar o foco de análise sobre esse
fenômeno ao ouvir os profissionais que atuam diretamente no con-
tato com os alunos e apresentar elementos que possam auxiliar
insti­tuições formadoras, profissionais e gestores em pactos e arti-
culações na adequação do ensino na APS.

Marco teórico-conceitual

Como marco teórico-conceitual desse estudo levou-se em


conta o processo de significação segundo Vigotski (1995, 2001,
2003). Para esse autor, quando um homem desenvolve uma ativi-
dade, ele não se apropria automaticamente de seus conteúdos.
Existe um significado externo que, quando é internalizado, trans-
forma-se num instrumento subjetivo da relação do indivíduo con-
sigo mesmo. E, assim, o significado externo adquire um sentido
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  97

pessoal para o indivíduo. Em outras palavras: os conteúdos ex-


ternos presentes na realidade objetiva têm significados construídos
socialmente por outras gerações, outros homens; através da ativi-
dade e de outras relações sociais que estabelece com o meio, o indi-
víduo internaliza esses conteúdos e significados a partir de sua
própria experiência e história de apropriações, ou seja, sua subjeti-
vidade; o conteúdo que tinha um significado externo passa por
uma mediação psíquica e adquire um sentido pessoal, único para
cada pessoa.
Aqui ocorre o predomínio do sentido da palavra sobre o seu
significado. Assim, o sentido é sempre uma formação dinâmica,
fluida e complexa que tem várias zonas de esta­bilidade (Vigotski,
2001). O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a
palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma
zona mais estável, uniforme e exata. “O significado ao contrário é
um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as
mudanças de sentido da palavra em diferentes conceitos” (idem,
p.465).
Aguiar e Ozella (2006) afirmam que os significados referem-se
aos conteúdos instituídos, mais fixos, compartilhados, que são
apropriados e configurados pelos indivíduos a partir de suas pró-
prias subjetividades. O pensamento, portanto, é transformado para
ser expresso em palavras cuja transição passa pelo significado e
pelo sentido, podendo afirmar que a compreensão da relação pen-
samento/linguagem passa pela necessária compreensão das cate-
gorias significado e sentido.
Tendo como base estudos anteriores e a palavra com signi­
ficado como unidade de análise, se terá a base para a criação dos
“núcleos de significação do discurso”. Assim, buscamos temas e
questões centrais relatados pelos indivíduos, entendidos mais como
aqueles que geram motivação, emoção e envolvimento do que por
sua frequência no relato (Lane, 1996; Aguiar, 2001; Aguiar; Ozella,
2006, 2013; Dalla Vecchia, 2006; Pinto, 2007).
98  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Método

Trata-se de parte de um estudo exploratório de natureza quali-


tativa integrante de um projeto maior intitulado “Integração Uni-
versidade, Serviços de Saúde e Comu­ nidade na Faculdade de
Medicina de Botucatu (FMB) − UNESP: construindo novas prá-
ticas de formação e pesquisa”, que, entre outras frentes de análise,
está voltado para a formação de professores tutores para a APS e a
visita domiciliar na formação médica. O desenvolvimento das
ações deste estudo ocorre paralelamente à IUSC que, desde 2007,
está inserida na grade curricular da FMB como disciplina oficial
dos 1o, 2o e 3o anos de graduação de Medicina e Enfermagem, com a
colaboração de professores de diversas áreas da FMB e da Secre-
taria Municipal de Saúde (SMS) do município.
Para o seu desenvolvimento, nos reunimos com representantes
da SMS e dos centros de saúde escola (CSE), e obtivemos a autori-
zação para a realização da pesquisa a ser desenvolvida na APS do
município. Comparecemos a todos os serviços onde pudemos
expor o objetivo do trabalho e suas responsabilidades éticas, assim
como a necessidade da colaboração dos mesmos para o agenda-
mento das entrevistas. Com isso, o projeto foi encaminhado e apro-
vado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMB − UNESP,
adotando os procedimentos pertinentes previstos na Resolução
n.196/1996 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996).
Dessa forma, foram agendadas as entrevistas individuais nas
próprias unidades de saúde. A coleta dos dados ocorreu no perío­do
de agosto de 2010 a agosto de 2011, em diferentes dias e horários,
com o tempo médio de quarenta minutos cada entrevista. Foi enfa-
tizada a necessidade de sua gravação para posterior organização e
análise dos dados, como também foi estabelecido o compromisso
com os participantes do acesso ao trabalho final.
Para tanto, foram escolhidos, por conveniência, membros de
diferentes categorias profis­sionais, níveis de formação e de dife-
rentes serviços de APS do município, sendo desenvolvidas entre-
vistas semiestruturadas com profissionais de quatro unidades de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  99

saúde da família (USFs), de duas unidades básicas de saúde (UBSs)


e dos dois centros de saúde escola (CSEs) que recebem alunos em
formação profissional e, em particular, da IUSC.
Em cada um desses equipamentos privilegiou-se a escuta de
pelo menos dois profissionais de nível superior (médicos(as),
enfermeiros(as) e cirurgiões-dentistas) e de pelo menos um profis-
sional de nível médio (auxiliares e/ou técnicos de enfermagem e
agentes comunitários de saúde), que possuíam uma relação direta
ou indireta com a IUSC, perfazendo um total de 24 entrevistas.
Levamos em consideração para tal delimitação buscar captar
com maior propriedade as idiossincrasias existentes dentre as dife-
rentes categorias profissionais, bem como entre os diferentes mo-
delos de atenção à saúde. Da mesma forma, optamos em ouvir
tanto profissionais que atuam diretamente como tutores da IUSC,
como aqueles que não possuem um vínculo direto com a disciplina,
a fim de obter uma compreensão mais ampla do fenômeno em
estu­do por meio de diferentes perspectivas.
Destacando a análise através dos núcleos de significação,
Aguiar e Ozella realizam alguns apontamentos sobre os proce­
dimentos e instrumentos recomendados para uma investigação
dentro da abordagem histórico-cultural. De início, parte-se da lei-
tura flutuante e organização do material, o que permite organizar
os chamados pré-indicadores que irão compor um quadro amplo
de possibilidades para a construção dos núcleos. Uma segunda lei-
tura irá permitir um processo de aglutinação dos pré-indicadores,
seja pela similaridade, complementaridade ou pela contraposição.
Assim, se faz possível a construção e análise dos núcleos de signi­
ficação, que “devem expressar os pontos centrais e fundamentais
que trazem implicações para o sujeito, que o envolvam emocional-
mente, que revelem as suas determinações constitutivas” (Aguiar;
Ozella, 2006, p.8).
O passo seguinte à criação dos núcleos foi a sua análise pro-
priamente dita. Para isso, buscou-se a apreensão das determinações
que constituíram tais formas de significar, suas motivações e neces­
sidades para, desse modo, poder compreender a produção dos sen-
100  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

tidos presentes nesses discursos, buscando suas determinações,


contradições e relações (Aguiar, 2001; Aguiar; Ozella, 2006, 2013).
Com base na organização das informações, foram estruturados
três eixos de análise que apresentam os núcleos de significação no
discur­so dos profissionais pesquisados, bem como a exploração
dos diversos sentidos existentes na singularidade dos relatos. A
própria construção dos núcleos e o nome dado a cada núcleo já
constituíram um movimento de análise, uma vez que esses núcleos
agregam e expressam questões intimamente relacionadas e rele-
vantes para a compreensão dos aspectos pesquisados, sendo, por-
tanto, organizadores das falas expressas pelos sujeitos (Aguiar,
2001).

Caracterização dos sujeitos

Podemos constatar que a idade média dos entrevistados é de


37,7 anos, revelando tratar-se de profissionais experientes com
nove anos, em média, de formação. Quanto ao sexo, foram entre-
vistadas 21 mulheres e 3 homens, revelando a alta predominância
de mulheres atuando na APS, o que também reflete a condição na
área da saúde de modo geral.
Quanto ao local de formação dos profissionais, ficou eviden-
ciado, assim como no estudo de Romanholi (2010), que a maioria
dos profissionais foi graduada e realizou a sua formação comple-
mentar no próprio município. Com exceção dos cirurgiões-den-
tistas, que não contam com instituições formadoras na cidade, os
dados também apontam Botucatu, em particular a FMB – UNESP,
como grande centro formador dos profissionais que atuam na
atenção primária do município.
Outro dado que se mostrou significativo foi o alto grau de
espe­cialização dos profissionais. Todos os trabalhadores de nível
superior possuem algum tipo de pós-graduação, inclusive alguns
contando com duas ou três formações complementares. Além
disso, foi observado que mesmo os profissionais de nível médio não
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  101

ficaram restritos à formação técnica de auxiliar de enfermagem ou


ao curso de formação inicial para agentes comunitários de saúde
(ACSs). Em sua totalidade, continuaram a participar de pequenos
cursos complementares que são oferecidos institucionalmente,
assim como têm buscado uma maior e melhor qualificação profis-
sional cursando o nível superior.
Aproximadamente um terço dos entrevistados possui uma
atuação direta como tutores dos alunos do 1o, 2o e 3o anos da IUSC,
enquanto cerca de um quarto também participa como preceptores
do Pró/PET-Saúde em diferentes projetos desenvolvidos em suas
unidades e respectivos territórios.
Quanto à atuação profissional em outros locais ou equipa-
mentos de saúde, constatamos que todos os médicos entrevistados
possuem mais de um vínculo empregatício, seja na saúde pública
ou privada. Além destes, os auxiliares de enfermagem repre-
sentam outra classe de profissionais que também revelou atuar na
prestação de serviços em saúde em locais e períodos além do tra-
balho na unidade.

Apresentação e discussão dos resultados

Eixo 1 − As possibilidades e potencialidades da atenção


primária à saúde na formação e desenvolvimento
profissional de alunos e profissionais da saúde para o
trabalho no SUS

Neste eixo, estão reunidos os núcleos de significação que cor-


respondem aos aspectos positivos conferidos pelos profissionais da
APS diante de suas vivências e interação com alunos no cotidiano
de trabalho.
De modo geral, são apresentados relatos que enfatizam as con-
tribuições institucionais trazidas pelos diversos grupos de alunos
que auxiliam na assistência e qualificação das ações ofertadas para
102  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

a  população. Além disso, são ressaltados os benefícios possibili-


tados por essa experiência na formação dos futuros profissionais de
saúde, bem como no desenvolvimento profissional daqueles que
se relacionam direta e indiretamente com os alunos no cotidiano do
trabalho.

A construção do SUS ideal condicionado à necessária


vivência na atenção primária à saúde

A formulação deste núcleo de significação foi desenvolvida por


meio da constatação de que se deve pensar a formação dos profis-
sionais de saúde associada ao conhecimento e particularidades que
são inerentes ao cenário da APS.
De modo mais particular, a IUSC é colocada como mecanismo
fundamental para fomentar a estruturação e desenvolvimento
desse aprendizado e possibilitar a construção de um profissional
que desenvolva a capacidade de ler e intervir de forma crítica nas
diversas nuances que esse nível de atenção e o sistema público de
saúde requerem. Para tanto, iremos destacar os diversos sentidos
conferidos pelos profissionais a essa questão conforme a explici-
tação dos trechos a seguir.
Como podemos observar no relato de MED 3:

Eu penso que o aluno passa a ter uma visão mais geral da saúde.
Sai... como é que eu posso falar, daquele modelo medicocêntrico,
onde tudo é o médico. Aqui, eles passam a conhecer e a trabalhar
com outros profissionais e isso faz bastante diferença. Diminui um
pouco aquela prepotência do aluno e do médico e vem conhecer
uma realidade bem diferente da sua. Aprende a lidar e a conversar
com outro tipo de população a que eles não estão acostumados.

Ressalta-se que a experiência dos alunos na APS colabora para


que haja um maior diálogo e aprendizado com outras categorias,
assim como conhecimento de uma realidade diversa, à qual não
estão familiarizados. MED 3 destaca a importância de tirar do
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  103

profis­sional médico o papel de único protagonista da saúde e da


oportunidade de reconhecer e desenvolver a capacidade de trabalho
em equipe.
DENT 1 corrobora essa perspectiva e acrescenta:

Quando me formei eu acho que também faltou isso. Porque a


gente não sabe nem prescrever, por mais que aprenda... Daí isso
ajuda na insegurança também.... é bom ter o contato antes com o
paciente, ver como funciona, até também pra decidir o que vai se-
guir depois, que área vai querer.

É possível perceber que essa vivência favorece a segurança do


aluno no trato com pacientes e o auxilia a embasar melhor a sua
decisão futura em relação ao campo de trabalho, o que foi falho em
sua própria formação. Mais uma vez, DENT 1 enfatiza o papel
fundamental do aprendizado em serviço, o que contribui não
apenas para uma formação mais qualificada, como também para
uma escolha consciente de seu futuro campo de atuação.
A possibilidade de superação da formação tradicional também
é colocada nos relatos de ENF 3 e MED 2.

O importante deles é estar começando no 1o ano, é que eles já


têm contato com a população, com a comunidade, já tira aquela
visão: “só hospital”, de trabalhar em um hospital, porque muitos
mes­mo, acho que nem sabem qual é a função, o papel de cada
equipe na unidade, da comunidade. (ENF 3)

Eu acho que quebra um pouco aquele paradigma do HC que é


extremamente biologizante, tecnológico, do ponto de vista tecno-
logia de equipamento, de visão assim, do paciente... descontex-
tualizado do seu ambiente, eu acho que a partir do IUSC eles
consideram o paciente numa casa, no trabalho, num meio am-
biente, então eu acho que isso amplia a visão que eles têm, amplia
o entendimento que eles têm de saúde-doença que não é só uma
questão física, mas que passa pelo emocional, pelo social; apesar
104  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

de pouco tempo, eu acho que dá uma vivência pra eles do trabalho


em equipe, da questão do trabalho de enfermagem, e mesmo a
impor­tância desses profissionais na abordagem do paciente, e
também, eu acho, que quebra um pouco a questão do preconceito
que eles têm contra o trabalho na atenção básica, a gente vê com o
6o ano que vários têm a possibilidade de trabalhar com saúde da
família, trabalhar na atenção básica, e antes era pouco valorizado.
(MED 2)

Compreende-se que a desconstrução do modelo hospitalocên-


trico, medicocêntrico e biologicista também é vislumbrada através
do conhecimento e contato precoce dos alunos com o nível primário
de atenção. ENF 3 e MED 2 destacam a necessidade de ir além da
fragmentação e compartimentação dos pacientes em especifi­
cidades, que o reduzem a um mero desajuste de órgãos e sistemas,
descontextualizado do seu meio e da dimensão psíquica do pro-
cesso saúde-doença.
Do mesmo modo, também enfatizam a possibilidade de co-
nhecer e incorporar saberes oriundos de outros campos e categorias
profissionais, além de uma maior valorização da APS e, em parti-
cular, da saúde da família enquanto um campo em evidência e cada
vez mais valorizado na atuação dos futuros profissionais de saúde.
Repousa também no relato de ACS 1:

Porque assim, eles, principalmente uma população carente, às


vezes aquela velha informação, tão assim, já dita ou já castigada de
tanto falar que, passa a informação de fazer uma dieta, “Ah! A se-
nhora vai ter que comer uma carne uma vez por semana”, mas a
família não tem dinheiro pra comprar nem o arroz, né? É uma rea-
lidade que existe muito, sabe? Ou então, a mãe aparece aqui, de
repente, hum, sempre apresenta o mesmo sintoma, é... não tem
assim nada pra tá vestindo, ou a cueca toda suja, aí já tem gente,
“Ah! Maus-tratos com a criança”, ou não tem onde educar a
criança. Mas não é, aí você vai na casa, não tem cobertor, não tem
água pra tomar banho, então assim, claro que tem outras assistên-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  105

cias, mas assim, eu sabendo que isso existe, por mais perto que
esteja toda assistência pra atender essa família, mas eles sabendo
que essa realidade acontece, então, e é perto deles, então vão ter a
imaginação, “Poxa, eu sei que está perto de mim”, “eu sei que isso
é comum acontecer”. Então eles vão conhecer realidades na comu-
nidade que estão distantes, sabe, a gente imagina que está dis-
tante, mas não é. (ACS 1)

ACS 1 apresenta que é fundamental o conhecimento profundo


da realidade e das contradições sociais que se refletem na expressão
e constituição do processo saúde-doença. Isso aparece como de
suma importância para uma compreensão ampliada dos diversos
determinantes envolvidos nas questões de saúde e das possibi­
lidades de enfrentamento das mesmas. Tal aprendizado poderá
contribuir para que condutas e prescrições sejam mais bem bali-
zadas por um conhecimento concreto da realidade, diminuindo
preconceitos e ranços de classe no olhar e abordagem dos pacientes.
Nesse sentido, Ferreira, Silva e Aguera referem que:

este aprendizado no cenário da ABS, desde o início do curso, se


diferencia do aprendizado de outros estudantes pelos vínculos que
estabelecem, pela formação crítico-reflexiva e pela capacidade
que desenvolvem ao aprender a aprender com a realidade em que se
inserem. Portanto, é primordial a inserção em cenários de práticas,
como a ABS, no início do curso, para construir saberes condizentes
com as reais necessidades de saúde da população. (2007, p.59)

MED 1 também apresenta essa visão ao afirmar:

o papel do médico não é mais aquele de que “eu mando e você


obedece”. É o de esclarecer o paciente sobre o que ela está fazendo,
quais são as possibilidades dela de tratamento, você negociar e
discutir mesmo com o paciente. Então essa discussão foi muito
boa, porque na minha época a gente se formou achando que era
Deus... No IUSC, o aluno já tem esse contato com o paciente
106  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

desde cedo. Eles aprendem a lidar com diferentes situações, eles


ficam mais humanos. Eles aprendem a lidar com esse lado mais
humanitário do médico, e eles desenvolvem isso mais cedo.
Aprendem a desenvolver o exercício da escuta, porque médico
geral­mente não gosta muito de escutar, gosta mais de falar, né. Por
isso que eu tô aqui falando sem parar.

Ressaltam-se a vivência e o aprendizado precoces proporcio-


nados na APS como condições para o desenvolvimento de uma
postura mais humanizada e dialógica com a comunidade. MED 1
também referenda a necessidade de construção conjunta do trata-
mento necessário entre profissionais e pacientes, o que passa pelo
desenvolvimento da capacidade de escuta e de reconhecimento do
saber prévio trazido pelos pacientes.
Conforme o que foi apresentado, podemos refletir que a cons-
tituição do SUS trouxe consigo uma série de aspectos envolvidos na
organização do sistema e, por consequência, no modo com que são
ofertados os cuidados em saúde. Da mesma forma, as instituições
formadoras também foram levadas a rever a maneira com que vi-
nham formando seus alunos na tentativa de se adequar a essas
novas exigências, o que tem passado diretamente pela articulação
das instituições formadoras com os serviços de saúde e, em espe-
cial, com a rede de APS.

A análise dos resultados constata que a maioria das escolas está


num movimento de saída de seus muros para proporcionar aos es-
tudantes maior experiência nos diferentes níveis de atenção à
saúde. Fazem uso de parcerias com os serviços de saúde de prefei-
turas, unidades dos níveis de atenção primária, secundária e ter-
ciária no entendimento da construção da rede do sistema de saúde,
o que vai ao encontro do que é preconizado nas Diretrizes Curri-
culares Nacionais. (Stella et al., 2009, p.66)

De acordo com estudos anteriores de Cyrino et al. (2005,


2006); Romanholi (2010); Uliana (2010) e Manoel (2012), consta-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  107

tamos que a IUSC tem se colocado como possibilidade concreta


diante dessa necessidade, na medida em que consegue articular a
experiência e o contato dos alunos nos diferentes cenários presentes
no nível primário desde o primeiro ano da graduação.
Entre as possibilidades que lhes são favorecidas por essa expe-
riência, foi destacada a ampliação da capacidade comunicacional e
de escuta dos alunos em relação aos pacientes, maior atenção aos
aspectos psicossociais, bem como o aprendizado em se trabalhar
com outras categorias profissionais e realidades diversas das que
estão habituados. De acordo com Nogueira:

A instituição de novos cenários de prática na formação médica


possibilita uma reorientação do olhar sobre os aspectos subjetivos
do adoecimento, oferecendo maior visibilidade às questões so-
ciais, culturais e psicológicas do indivíduo doente, numa com-
preensão ampliada do processo saúde-doença. (2009, p.268)

Quanto ao aspecto metodológico do processo de ensino, Para-


guay (2011) afirma que a construção dos projetos terapêuticos
pelos alunos compreende um papel ativo dos mesmos na pro­
blematização e busca de informações e novas sínteses. Esse
proces­so pedagógico também é percebido pelos alunos como um
encontro pedagógico, em que existe espaço dialógico para apre-
sentarem as suas expectativas e participarem da construção dos
projetos terapêuticos.
Por meio das falas dos sujeitos, observa-se que a prática é um
elemento motivador para a construção do conhecimento, tendo
em vista que os estudantes passam a entender o seu lugar na confi-
guração de novos saberes.

Ao desenvolverem as ações de saúde na ABS e se confrontarem


com os problemas em tempo real, os estudantes reconhecem uma
nova concepção de aprendizagem, na qual utilizam capacidades
prévias e buscam novos conhecimentos (cognitivos, afetivos e
psico­motores) para enfrentar as situações que emergem do coti-
108  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

diano, construindo, assim, maior significado em sua aprendiza­gem


e possibilitando a construção de novos saberes. Contrapõem-se,
portanto, à perspectiva de que uma sólida base científica deve
ante­ceder a prática, ou seja, de que a teoria deva anteceder a prá-
tica. (Ferreira; Silva; Aguera, 2007, p.55)

Além disso, espera-se que essa interação proporcione uma


maior qualificação do aluno na compreensão do funcionamento e
particularidades da APS e de produção do processo saúde-doença
na própria comunidade. As palavras de Anjos et al. declaram essa
expectativa:

A integração da escola de Medicina com o espaço da atenção bá-


sica permite inserir o estudante de modo mais participativo, numa
realidade que possa formar um profissional mais preparado tecni-
camente, mais humanizado, ético e comprometido com a comu­
nidade. (2010, p.181)

Como podemos constatar, as instituições formadoras arti­


cula­das com equipamentos e serviços de saúde cumprem papel
essen­cial para que o SUS funcione em consonância com seus prin-
cípios doutrinários e organizativos. Para além das normas e legis-
lações que norteiam a organização e funcionamento da saúde, o
preparo técnico e o compromisso ético do estudante fomentado
desde os primeiros anos da graduação poderão contribuir para que
se materializem de fato ações condizentes com as demandas e
neces­sidades da população.

O contínuo aprendizado e crescimento profissional


proporcionado pela interação com os alunos

O segundo núcleo de significação estruturado se deu a partir


da análise de que não são apenas os alunos que podem aprender por
meio dessa experiência. Isso é clarificado ao constatarmos que os
profissionais de saúde referem que também são beneficiados pela
interação com os alunos no cotidiano das unidades.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  109

Embora existam alguns entraves e problemáticas nessa inte-


ração, de modo geral, os profissionais retratam a relação como uma
rica troca de conhecimentos e saberes em que tanto eles como os
estudantes saem ganhando. A seguir, estão destacadas algumas
zonas de sentido observadas na particularidade dos relatos.
ENF 4 e MED 3 apontam a valorização do conhecimento novo
adquirido no contato com os alunos que estão em processo de for-
mação e informados sobre o que há de mais atual.

Aprendo porque eles também trazem coisas de onde eles estão, de


coisas que eles ainda estão estudando, de novidades, coisas que
estão saindo no mercado. Então é uma troca mesmo, a gente não é
sabedor de tudo não... Eu gosto de cuidar dos alunos, mas acho
que as coisas precisam estar bem organizadas e a equipe estar
prepa­rada. (ENF 4)

E eles mesmos chegam e trazem novidade pra gente. Porque eles


estão dentro da universidade, então nós também aprendemos
muitas coisas com eles. “– Oh, professora! Fui numa palestra ou
tem fulano e fulano que falou isso...”. É claro que você não acha
isso num livro, nem no trabalho do dia a dia. (MED 4)

Nos relatos anteriores, observa-se a valorização do conheci-


mento novo adquirido no contato com os alunos. MED 4 afirma
que, embora seja reconhecida como professora no cenário da APS,
sente que sua prática é enriquecida num processo dialético de
ensino-aprendizagem, apropriando-se de conhecimentos oriundos
de espaços pertencentes ao universo dos alunos e que vão muito
além das possibilidades vislumbradas em seu trabalho cotidiano.
Já MED 7 e ENF 6 nos apontam outras potencialidades:

A gente tem que estar sempre estudando, né, tem que estar sempre
se atualizando... Às vezes tem coisas que a gente não sabe e tem
que estar indo atrás disso para atender as expectativas dos alunos.
(MED 7)
110  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Acho que os alunos te exigem mais, vão te questionar mais, vão


trazer novos conhecimentos, novos procedimentos. Eu acho que
os profissionais ficam mais envolvidos e estimulados pelo contato.
(ENF 6)

Aqui, observa-se que, embora a relação com os alunos lhes


exija uma necessidade maior de ir à busca de novos conhecimentos,
isso também se reflete num maior envolvimento e comprometi-
mento com o próprio trabalho cotidiano. Dessa forma, a presença
do novo proporcionada pelos alunos contribui para que os profis-
sionais saiam do comodismo, assim como agreguem em sua prática
as ideias e contribuições trazidas pelos alunos. Tal relação permite
que a comunidade atendida nesses equipamentos possa ser benefi-
ciada, haja vista a possibilidade de uma prática mais refletida e
compromissada com suas próprias atitudes e para com os outros.
A possibilidade de desenvolvimento profissional e de am-
pliação do olhar para outras dimensões e possibilidades do cuidado
em saúde também se faz presente na fala de DENT 2.

Acredito que foi ampliando muito mais a minha visão na questão


de saúde geral das pessoas, da integralidade do cuidado. Antes eu
ficava muito fechada só na minha área e não conseguia enxergar a
relação de outras coisas que estão interferindo... Como tutora do
IUSC tive que abrir muito a minha cabeça, aprender sobre várias
coisas que eu não tinha conhecimento e vejo que agregou e me-
lhorou a minha prática.

Observa-se que sua condição de tutora lhe exigiu ir além de


sua prática habitual, favorecendo a compreensão de outras deter-
minações do processo saúde-doença que se refletiu em sua própria
prática assistencial. Tendo que problematizar com seus alunos a
configuração de novas modalidades de cuidado em saúde, DENT 2
também se viu desenvolvendo uma prática diferenciada com fortes
chances de se manter, mesmo que não permaneça na posição de
tuto­ra no futuro.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  111

Trabalhos como Sakata et al. (2007) e Sisson (2009) ressaltam


que esses saberes têm sido muitas vezes incorporados às práticas
dos profissionais e auxiliam em sua qualificação e qualidade dos
serviços ofertados à população. Sperandio et al. (2010, p.620)
também ilustram essas possibilidades ao afirmar:

Com relação aos profissionais do Centro de Saúde, ficou evidente


que o projeto dos alunos do 1o ano de Medicina serviu como
incen­tivo necessário à formação de outros grupos de gestantes, o
que já era uma demanda da população local a ser trabalhada. A
equipe se mostrou bastante interessada e engajada em continuar
e ampliar o trabalho desenvolvido, para manter um grupo perma-
nente de acompanhamento de gestantes.

Tais constatações também foram evidenciadas no trabalho de


Cyrino et al. (2012, p.98-9):

A maior aproximação entre a universidade e a população, sendo os


alunos parceiros da equipe na promoção da saúde, foi considerada
como um apoio à ampliação do conhecimento de demandas das
áreas que necessitam de maior atenção, e que algumas vezes per-
manecem esquecidas, e uma possibilidade de trazer novas ideias
de estratégias para trabalhar com a população dessas áreas. Outro
impacto para as equipes da ESF se refere à possibilidade de,
median­te o trabalho realizado durante este ano, estabelecer proto-
colos para melhorar a qualidade no atendimento da população no
município e criar material didático específico padronizado.

Outra observação se mostra na exigência de uma maior re-


flexão sobre o processo de trabalho e de busca por informações
que atendam as demandas e questionamentos dos alunos, o que
também se reflete num maior comprometimento e motivação com
o próprio trabalho diário. Nesse sentido, Trajman et al. acres-
centam:
112  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

A reflexão crítica sobre os processos de trabalho – mesmo em con-


dições de alienação e de subordinação a uma lógica que dificulta o
exercício profissional como prática criadora e capaz de dotar os
sujeitos de satisfação – é uma condição necessária para ampliar as
dimensões realizadoras do trabalho na saúde... Por fim, os estu-
dantes também precisam ser ouvidos, pois têm sua própria visão,
receios e expectativas, que precisam ser conhecidos e pactuados à
luz das necessidades e expectativas dos profissionais de saúde.
(2009, p.31-2)

Nessa perspectiva, Ceccim e Feuerwerker (2004) enfatizam a


importância de instituições formadoras e municípios se recons­
tituir e se comprometer eticamente para fazer frente aos desafios da
formação para a área da saúde:

A educação em serviço reconhece os municípios como fonte de


vivên­cias, autorias e desafios, lugar de inscrição das populações,
das instituições formadoras, dos projetos político-pedagógicos,
dos estágios para estudantes e de mobilização das culturas. A edu-
cação permanente em saúde/educação em serviço contribui para
interfaces, interações e intercomplementaridades entre estados e
municípios na construção de um sistema único para a saúde,
incen­tivando todos os processos de gestão descentralizada e cole-
giada do SUS, no tocante à construção e à produção de conhe­
cimento no interesse do SUS. (Ceccim; Feuerwerker, 2004, p.56)

Eixo 2 − Tensões e entraves para consolidação e


operacionalização das atividades de ensino
na atenção primária à saúde

Neste eixo, encontram-se reunidos as dificuldades e empeci-


lhos vistos como entraves à consolidação e operacionalização das
atividades de ensino na APS. Os diferentes relatos apontam para
aspectos problemáticos e de insatisfação dos profissionais ligados
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  113

principalmente a fatores da reforma curricular, da mudança na


gestão municipal e da coordenação e tutoria da disciplina IUSC.
Mais uma vez, iremos destacar tais questões nos diferentes dis-
cursos, bem como explicitar a pluralidade de sentidos conferidos
pelos entrevistados.

O cenário de possibilidades de aprendizagem limitado pelo


espaço físico das unidades de saúde

Tal núcleo de significação foi estruturado a partir da visão que


os profissionais de saúde conferem à presença de alunos no coti-
diano das unidades e de como essa relação afeta a dinâmica de fun-
cionamento da instituição como um todo, principalmente no que
tange às possíveis interferências na organização do trabalho e das
adequações necessárias para realização dessa vivência.
Contudo, salientamos que, embora a questão da limitação es-
pacial das unidades tenha se configurado como um importante
difi­cultador à maioria dos entrevistados, os trechos de relatos a
seguir demonstram algumas zonas de sentido dadas a essa pro­
blemática.
Conforme podemos perceber no relato de ENF 1:

A gente tem que se organizar pra isso, porque é assim, embora


talvez pareça que aqui é um lugar amplo, tem momento que a
gente não tem onde atender todo mundo, mas tem uma contri-
buição, porque às vezes traz um outro olhar, pode contribuir com
a gente de uma outra maneira que às vezes na correria do dia a dia
a gente não tem determinado tempo pra tocar uma atividade de
promoção, que com a ajuda deles a gente acaba conseguindo...

Observa-se que, na sua posição de gerente de unidade de


saúde, ENF 1 reconhece as limitações estruturais desse equipa-
mento, contudo, atribui à presença de alunos um papel de “to-
cador” de serviço, sobretudo em ações de prevenção e promoção de
saúde aos quais a unidade deveria estar preparando-os para desen-
114  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

volver. Essa lógica é subvertida, na medida em que a unidade não


lhes apresenta um ideário de trabalho condizente com as particula-
ridades e necessidades da APS, mas sim que tais ações não são colo-
cadas em primeiro plano no cotidiano de trabalho, delegando-se
aos alunos tarefas secundárias e renegadas pela equipe de saúde.
Já no relato de MED 2:

Eu acho que é assim: você tem que ter toda a equipe preparada e
capacitada pra receber alunos, desde auxiliar de enfermagem, os
médicos, o pessoal da administração. Você precisa ter a questão do
espaço, então isso é uma coisa que às vezes é complicada. A partir
do momento, por exemplo, que o IUSC ficou como disciplina
obrigatória, a gente acabou tendo que atender aluno em dupla e
isso é ruim, não é mesma coisa que cada aluno com seu paciente
como era no início.

Nesse trecho, MED 2 aponta que a transformação da IUSC em


disciplina trouxe consigo outras problemáticas na interação entre
profissionais e alunos que se refletem diretamente na organização
do serviço. Ressalta que essas tensões podem ser minimizadas pela
preparação prévia e envolvimento da equipe de saúde como um
todo, e não apenas dos profissionais tutores ligados diretamente à
preceptoria desses alunos. Mais do que isso, MED 2 aponta que
essa tarefa não é reconhecida como algo intrínseco ao trabalho dos
profissionais e, portanto, deve ser engendrada cotidianamente na
forma de capacitação e educação continuada de seus trabalhadores.
Figura também na concepção de ACS 1:

Olha, já causou muito choque. Porque depende do espaço físico


da unidade e de como esses alunos foram recepcionados, né?
Porque eu tento me colocar no lugar, estar num local diferente, tá
com uma proposta de trabalho, então você já vai receoso de como
você vai ter uma recepção na unidade, então eu acho que isso cabe
a nós, de quem tá do lado de cá. Do profissional que tá do lado de
cá tentar recepcioná-los da melhor maneira possível, mas também,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  115

o mais importante é questão de quem está na preceptoria disso, e


chegar e apresentar, “Olha, esses são os alunos, de tal categoria.
Eles vão ficar tanto tempo na unidade, com essa proposta...”. Eu
acho que isso é fundamental.

Falando a partir de uma posição diferenciada dos profissionais


de nível superior, ACS 1 reconhece o seu papel e dos demais mem-
bros da equipe na tarefa de recepcionar adequadamente quem está
chegando às unidades. Por outro lado, destaca que a universidade,
na figura dos preceptores, também deve buscar uma maior inte-
gração com as equipes, explicitando e acordando adequadamente
as propostas que serão executadas. Tais medidas poderiam cola-
borar para que todos os profissionais se sentissem parte desse pro-
cesso, e não meramente usados em ações pontuais que lhes geram
mais transtornos e dificuldades do que contribuições em sua prá-
tica diária.
Apesar dessas problemáticas, também é ressaltado que se faz
necessária a compreensão da relevância dessa vivência para os
alunos e da articulação conjunta de todos os envolvidos no pro-
cesso. Essa observação se coaduna com a reflexão de Albuquerque
et al. (2007, p.361) de que é impensável a mudança dos profissio-
nais de saúde sem se considerar a articulação ensino-serviço um
espaço privilegiado para uma reflexão sobre a realidade da pro-
dução de cuidados e a necessidade de transformação do modelo
assis­tencial vigente.
Assim como pode ser analisado no estudo de Trajman et al.
(2009), salientamos que as unidades de saúde carecem de uma
maior atenção em relação à condição concreta de falta de espaço
para acolher uma demanda cada vez mais crescente por formação
profissional na APS. As equipes de saúde têm procurado se ade-
quar a essa configuração de trabalho por meio da improvisação
de salas, rodízio de alunos em dias alternados, assim como na reali-
zação de supervisão em grupo.
Salientamos que, para além das dificuldades na interação com
os alunos impostas pela limitação espacial nas unidades de saúde,
116  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

tal problemática revela que essas estruturas não têm sido cons-
truídas de maneira a atender as necessidades e particularidades do
cuidado em saúde na APS. Isso se verifica na incongruência desses
dispositivos, que, por não se verem em condições favoráveis,
acabam negligenciando uma série de ações que deveriam ser parte
importante do seu processo de trabalho, a exemplo das atividades
em grupo e de educação em saúde.
Em consonância com essas constatações, Leite et al. (2012,
p.116) ressaltam outros fatores atrelados a essa problemática:

Cabe ressaltar que, na Estratégia Saúde da Família, há dificul-


dades na execução do trabalho local, escassez de recursos na
comu­nidade e problemas advindos de infraestrutura física inade-
quada das unidades básicas de saúde (UBSs). Muitas delas fun-
cionam em casas alugadas, adaptadas para o funcionamento como
unidade de saúde, sem inspeção dos riscos e insalubridade para a
certificação em termos de qualidade. Outro obstáculo importante
reside nas relações trabalhistas expressas no vínculo dos profissio-
nais, sem garantia de estabilidade, sem progressão na carreira pro-
fissional, salários desiguais, demissões frequentes e substituições
dos profissionais capacitados, prejudicando a continuidade do
trabalho de forma sistematizada.

Embora não tenha sido destacado nos relatos dos profissionais,


compreendemos que a relação de ensino-aprendizagem nos cená-
rios da APS deve ir além dos muros das unidades de saúde. Além
de diminuir a sobrecarga dos serviços, a ampliação e diversificação
das atividades em outros espaços e equipamentos sociais do terri-
tório iria favorecer ainda mais a formação de alunos conhecedores
das reais condições de vida da população e capacitados para traba-
lhar em rede e de forma intersetorial.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  117

Os agentes comunitários de saúde e sua ambiguidade de


sentimentos na relação com os alunos

Aqui, estão contidas as informações que buscamos captar


sobre quais seriam as possíveis diferenças e/ou semelhanças entre
as diversas categorias profissionais quanto à presença de alunos em
formação profissional nesses espaços. Sendo os ACSs dentre todos
os entrevistados a categoria profissional que apresentou de modo
mais enfático os problemas e insatisfações na relação com alunos,
julgamos pertinente a estruturação e exposição de tais aponta-
mentos reunidos neste núcleo de significação.
Quanto aos aspectos que emergiram nos relatos dos ACSs,
é  notório que, desde a criação do Pacs em 1991, a figura desses
agentes tem sido destacada como fundamental para realizar a
liga­ção entre as demandas e necessidades de saúde da população
com a unidade de saúde. Desde então, sua atuação tem sido cada
vez mais valorizada, assim como muitos pesquisadores têm estu-
dado suas atribuições dentro da ESF e a relevância de seu papel
dentro dessa configuração de cuidado.
Entre as questões que foram observadas e podemos explicitar
neste estudo, encontra-se a ambivalência de sentimentos e de ati-
tudes dos ACSs diante da relação com alunos que frequentam o
cotidiano das unidades de saúde. Às vezes de forma mais enfática e
em outras de forma mais sutil e velada, mostramos, através dos re-
latos a seguir, a pluralidade de opiniões expressas em algumas
zonas de sentido.
Nos relatos dos ACSs 1 e 3 clarificam-se aspectos positivos
peran­te essa relação:

É sempre bem gostoso quando você tem essa oportunidade de


transmitir informação. Até mesmo porque muitos não conhecem
o agente de saúde, entendeu? Muitos não sabem nem do que se
trata, nem a sua função na equipe, e falar disso pra mim é bem
legal, bem gratificante. (ACS 1)
118  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Eu acho que por estar na rua você consegue mostrar para os alunos
uma outra visão do paciente... “− Ah! Você prestou atenção na-
quilo?” “− Ah, não tinha visto...” – Eu acho que a gente consegue
dar umas dicas, um toque bem legal pra eles... São coisas que eu
gosto de fazer e acho que isso é importante pra eles sair um pou-
quinho do pedestal. (ACS 3)

Como podemos constatar nos relatos, observa-se que, apesar


de não serem tutores dos alunos, os ACSs sentem-se gratificados
em explicitar a importância de seu papel dentro da equipe de saúde,
assim como em colaborar na construção de um novo olhar do estu-
dante. Reconhecem as disparidades de poder existentes entre
médi­cos e demais profissionais das equipes e não se omitem em
favo­recer o rompimento com padrões de comportamento cristali-
zados em nossa cultura.
Mesmo que por vezes sejam sobrecarregados pelo acúmulo de
funções e pela pouca valorização dentro da própria equipe, a opor-
tunidade de também exercer uma função pedagógica contribui
para o sentimento de pertencimento grupal e de protagonismo em
seu local de trabalho.
Para além dessas questões de ordem técnica, Lima e Cockell
(2008, p.485) nos levam a ampliar a compreensão sobre essa cate-
goria profissional e enfatizam que,

Diante da precariedade e flexibilidade das relações de trabalho,


entendemos que, mesmo num contexto de crescente formalização
dos contratos e aumento dos processos judiciais desses traba­
lhadores, reivindicando seus direitos trabalhistas, os ACSs encon-
tram-se num contexto de vulnerabilidade social, uma vez que a
maior parte não tem acesso a direitos vinculados ao contrato de
trabalho regular.

Em estudo realizado sobre o ensino e a pesquisa na Estratégia


de Saúde da Família, em particular sobre o desenvolvimento do
PET-Saúde na FMB − UNESP, Cyrino et al. (2012) apontam a
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  119

importância dos ACSs nos projetos em curso. Reconhecem suas


contribuições na ligação entre profissionais, os grupos PET e
a comunidade, e da peculiaridade de sua condição de elo cultural,
que possibilita maior desenvolvimento do trabalho educativo ao
juntar dois universos culturais: o do saber científico e o do saber
popular.
Já o relato de ACS 1 evidencia outros aspectos:

A primeira é a questão que eu procuro ajudá-los, porque eu


também me imagino proporcionando uma melhora pra popu-
lação. O que eu puder compartilhar do meu trabalho, compar­
tilhar a minha vivência aqui com eles... Penso que um dia eles vão
usar isso, sabe? Um dia eles vão poder falar: “− Poxa! Passamos
lá, tivemos essa conversa”. Essa parte eu vejo que é muito posi-
tivo, porque é uma experiência que tá sendo trocada. Mas para o
meu trabalho, não tem assim, uma devolutiva. Não acrescenta, ou
acrescenta só na questão de você conhecer mais pessoas... Não
tem mudança ou alteração.

ACS 1 nos apresenta uma postura aberta ao diálogo com os


alunos, atitude esta que espera trazer contribuições na qualidade
do atendimento ofertado à população. Apesar disso, ressalta a insa-
tisfação pela ausência de retorno que agregue reconhecimento e
conhe­cimento ao seu próprio trabalho. Tal argumento nos leva
a refletir sobre o sentimento de ser “usado” e “descartado” pelos
alunos quando suas contribuições não são mais necessárias. Ao
dispor de seu tempo e saber, espera também que essa experiência
qualifique o seu trabalho e que não seja apenas um momento para
conhecer mais pessoas.
Por sua vez, os ACSs 3 e 4, revelam pontos de tensão e insatis-
fação em relação à sua interação com alunos:

Tem aluno que é muito metido. Tem outros que chegam aqui de
narizinho empinado, o que compromete um pouco o relaciona-
mento, mas no geral é muito bom. Porque eu gosto muito de ser
120  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

acompanhada, eu acho muito bom quando vem aluno e vão sair


comigo, e eu vou falando um pouquinho do que é Saúde da Fa-
mília pra eles, eu gosto muito. (ACS 3)

Eu já cheguei a me sentir horrível e fui falar com a tutora deles:


“−  Eu não levo mais, porque eu acho que eles não estão apren-
dendo nada, simplesmente cumprindo a carga horária e acabou,
não vai acrescentar em nada”. Em compensação, outros não,
muito pelo contrário, são superativos: “− O que você acha que eu
falo? Como eu chego na casa dele?”. Parece que tem vontade no
que está fazendo. Então eu gosto dos alunos, mas pelo meu jeito às
vezes é meio complicado. Passo a bola pra outra, e não é todo
mundo que gosta, que aceita e vai auxiliar como deveria. (ACS 4)

Em determinados momentos, os ACSs revelam a gratificação


em apresentar seu papel dentro da equipe e o próprio território no
qual residem e cujas particularidades conhecem muito bem, e
também em poder contribuir com a formação dos estudantes na
ampliação do seu olhar para uma atuação em seu trabalho mais
huma­na e condizente com as necessidades da comunidade. Por
outro lado, evidenciam-se sentimentos negativos dos ACSs quando
se sentem “usados” diante da ausência de uma contrapartida da
universidade e dos alunos, como na insatisfação em serem vistos
como profissionais secundários na equipe e tratados com descaso e
desrespeito por alunos, tutores e chefias das unidades.
Embora tais conflitos tenham sido captados neste estudo,
Cyri­no et al. (2012) nos apontam que já foram realizadas atividades
voltadas para a classe dos ACSs na tentativa de acolher seus sofri-
mentos e diminuir as disparidades; justamente por entender que se
trata de um grupo de profissionais identificados com a comu­
nidade, os problemas de ordem pessoal muitas vezes se mesclaram
ou permearam o relato do trabalho profissional. Isso possibilitou a
abertura de um processo de reflexão sobre identidade pessoal e
profissional, apoiando e fortalecendo o compromisso com o tra-
balho desenvolvido nas USFs.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  121

Mesmo que muito se tenha avançado nas relações intra e interins-


titucionais na perspectiva da consolidação dos módulos PIN, é
preciso enfrentar outros desafios. Entre eles, estão o aprofunda-
mento das discussões sobre o papel dos profissionais da rede no
processo de formação na saúde e a importância de os serviços
assu­mirem esta função também para si, ou seja, se tornarem
corres­ponsáveis pela formação profissional, conforme disposto na
Constituição de 1988. (Gil et al., 2008, p.238)

Apesar de reconhecerem a importância da contribuição e espe-


cificidade de seu papel na formação de alunos, os ACSs gostariam
de obter maior conhecimento das diversas ações que são articuladas
na unidade e que interferem diretamente em seu processo de tra-
balho. Da mesma forma, avaliam que essa tarefa cabe aos diferentes
órgãos e profissionais envolvidos na pactuação dos trabalhos, na
qual gostariam de ser ouvidos e reconhecidos.

Eixo 3 − Avaliação das problemáticas e


desafios a serem enfrentados

A ampliação da integração, do tempo e do espaço como


necessidade para qualificar o ensino na APS

Neste último núcleo, são apresentadas as ideias, sugestões e


opiniões dos trabalhadores sobre o que deve acontecer para que as
problemáticas existentes na relação entre unidades de saúde e
alunos sejam minimizadas e que aspectos devem ser revistos e ade-
quados para potencializar esse cenário de aprendizagem.
No relato de MED 2:

Acho que às vezes falta um pouco mais de tempo pra gente se de-
dicar a isso, mas tem o serviço pra tocar também, né? A principal
função do serviço não é essa, mas às vezes falta tempo pra gente
dar mais atenção a eles... De repente, se a unidade tivesse menos
movimento e a gente tivesse mais tempo pra dedicar a eles. Às
122  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

vezes eu acho que falta um pouco mais de tempo pra ir a fundo


com eles em algumas coisas importantes, mas por outro lado eu
vejo que a função principal nossa também não é essa. Nós não
somos professores.

Na fala dessa médica está ilustrada a falta de tempo disponível


para supervisionar, discutir casos e problemas do cotidiano do tra-
balho com os alunos. Tal realidade é vista como dificultadora para a
unidade em se caracterizar como instituição pedagógica e conseguir
exercer essa função, embora afirme que a missão primordial do ser-
viço em que atua seja assistencial.
Aqui se revela o conflito que os profissionais de saúde vivem
ao tentar conciliar a demanda assistencial da unidade de saúde com
atributos relacionados à formação dos alunos. Além disso, MED 2
concede uma importância secundária a essa relação, não se reco-
nhecendo como professora, mas sim como profissional que foi con-
tratada para resolver problemas de saúde e não para proble­matizar
essas questões com os alunos em aprendizado.
Embora afirmem que estão em um equipamento cuja principal
função é a assistencial, revelam gostar de também poder colaborar
transmitindo o seu saber e experiência aos alunos. Apesar disso,
percebem que, por vezes, deixam a desejar em muitos aspectos da
formação por não conseguirem conciliar essa tarefa com a grande
demanda assistencial, que é de fato a sua principal atribuição para
quem os contrata.
Nesse sentido, Feuerwerker (2011) nos alerta ainda para o fato
de que a preceptoria é uma função que deve ser estabelecida e já
prevista como atribuição constitutiva a fim de que a tensão entre as
atividades assistencial e docente seja menor, pois os preceptores
respondem a muitos patrões e a lógicas e expectativas distintas das
instituições de ensino e dos serviços.
Já DENT 3 apresenta outra concepção:

Como eles vêm sempre naquele período e vão executar os seus tra-
balhos, acho que não tem muita interação. Acho que é até por isso
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  123

que os agentes falam que eles às vezes são um pouco metidos, que
não cumprimentam, que acham que não precisam deles... Eu
acredito que é porque eles ficam menos tempo e acabam não tendo
aquela integração com a equipe. Eu acho que a gente pode me-
lhorar isso tendo atividades com as agentes também e também
trabalhar como os outros membros da equipe, mas também não
sei como envolver mais as auxiliares, não podem parar toda hora
pra tá saindo.

A possibilidade de se flexibilizar os horários das atividades,


assim como em incorporar os outros profissionais da equipe como
ACSs e auxiliares nas diversas ações, também são vislumbradas
como aspectos cruciais a uma maior integração com a unidade.
Nesse ideário, Uchimura e Bosi (2012, p.157) também sustentam a
concepção de que

a necessidade de oportunizarmos, no processo de formação, expe-


riências integradoras e interdisciplinares, a fim de que saberes e
fazeres diferenciados estejam presentes no processo de vinculação
do estudante com uma determinada identidade profissional, de
maneira que esta não resulte associada a apenas uma categoria ou
corporação profissional, mas a um campo de conhecimento e prá-
ticas, voltado a atender necessidades e demandas sociais, em espe-
cial aquelas que se apresentam no âmbito da saúde.

Revela-se que determinadas atitudes e comportamentos que


são interpretados como arrogância dos alunos poderiam ser mini-
mizados a partir de um maior reconhecimento e integração com os
demais membros da equipe. Apesar disso, não se conseguem vis-
lumbrar possibilidades que concretizem essas ações em categorias
historicamente excluídas desse processo, como no caso dos auxi-
liares de enfermagem.
Atentando para outros aspectos, AUX ENF 5 pontua:
124  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Talvez alguma coisa mais articulada no nível da secretaria e da


universidade com os profissionais. Falar, instruir diretamente
o profissional que for receber. Às vezes eu sinto que tem alguns
problemas nas unidades em que passa apenas pela chefia. E a
chefia não sei até que ponto ela consegue passar isso. Precisa sen-
sibilizar mais pra essa relação.

Em seu relato, AUX ENF 5 destaca a necessidade de maior


arti­culação entre todos os envolvidos nesse processo, integração
esta que deve passar por todas as instituições e profissionais das
unidades e não apenas pela chefia imediata. Mais do que ser notifi-
cada sobre a presença dos alunos no serviço, seu discurso explicita
não só a ausência de diálogo entre os profissionais no cotidiano de
trabalho, como o desejo de ser verdadeiramente integrado ao pro-
cesso de trabalho do serviço.
MED 4, por sua vez, nos diz:

Eu acho que a questão é sempre estar trabalhando com os profis-


sionais. Primeiro estar recebendo profissionais que tenham essa
visão de que num serviço não acontece só assistência, mas também
ensino. Você sempre estar tendo essa discussão com os auxiliares
de enfermagem e outros profissionais. Que eles têm que receber
alunos, têm que trabalhar com os alunos e da importância disso.
Então é esse trabalho meio cotidiano mesmo. A questão do espaço
físico é lógico que se puder melhorar será bom, mas eu acho que
de forma geral a atenção básica é subutilizada, acho que outras
disciplinas, outros anos e cursos poderiam estar vindo pra cá
também.

Embora atue num serviço de APS qualificado para exercer


também a função pedagógica, como no caso do CSE, a fala destaca
que isso deve ser construído e discutido cotidianamente, o que
pode levar a unidade a ampliar suas possibilidades também para
outras disciplinas utilizarem esse lugar, apesar do problema da
falta de espaço físico. Sua argumentação aponta para a necessidade
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  125

de esclarecer toda a equipe de saúde de que, para além do seu papel


assistencial, a tarefa de formar os futuros profissionais de saúde é
um atributo inerente e fundamental em sua prática profissional.
Nesse sentido, há uma série de questões que devem ser levadas
em consideração no momento em que são realizados esses con-
tratos. Entre estas, é chamada a atenção para: criação de espaços
periódicos de apresentação e discussão das diversas propostas em
curso; maior conscientização dos profissionais sobre a necessidade
de ofertar espaços de formação para qualificar os futuros profissio-
nais de saúde; maior preparo dos professores e tutores encarregados
de supervisionar os alunos na condução das atividades nas uni-
dades de saúde, entre outras.
De modo geral, os profissionais se mostraram favoráveis a
manter e ampliar os cenários da APS enquanto campo necessário
e fundamental de aprendizagem aos futuros profissionais de saúde.
Contudo, não deixaram de afirmar que os órgãos gestores devem
atentar para a adequação física das unidades de saúde para que
consigam congregar melhor não apenas as atividades assistenciais e
de ensino, como também oferecer estruturas mais dignas de tra-
balho a outros profissionais que desenvolvem atividades de matri-
ciamento e apoio na APS.

Considerações finais

Diante do exposto, podemos apontar que os profissionais de


saúde concebem de forma positiva a interação e contato com alunos
na atenção primária à saúde, embora evidenciem que ainda existam
aspectos problemáticos a serem superados, como a limitação do
tempo e do espaço físico das unidades e uma melhor articulação
entre todos os envolvidos.
A partir do método de análise, observamos que, entre os di-
versos sentidos conferidos a esses significados, repousam enten­
dimentos diferentes quanto a essas relações. Entre esses, ressaltam-se
inúmeras possibilidades de ganho advindas com essa experiência
126  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

que superam os seus obstáculos, como a possibilidade de desen-


volver maiores ações de promoção e prevenção em saúde, como
grupos e visitas domiciliares, e no aumento da qualificação de pro-
fissionais e alunos diante da troca de saberes.
Também foi possível constatar que os cenários da atenção pri-
mária têm se transformado em campo fundamental e necessário de
aprendizagem aos futuros profissionais de saúde para uma for-
mação que leve em consideração e atenda os preceitos do SUS. De
modo mais particular, a IUSC tem se consolidado como estratégia
potente e eficaz no favorecimento da formação dos alunos sob essa
perspectiva, contribuindo para o desenvolvimento de habilidades
comunicacionais e de uma escuta mais qualificada, para o aprendi-
zado do trabalho em equipe e de uma concepção ampliada do pro-
cesso saúde-doença.
Embora saibamos das limitações do estudo, salientamos que
tal objeto de investigação aponta para a necessidade de uma série
de ajustes e pactuações entre os órgãos formadores, unidades de
saúde e gestores encarregados dessa articulação para que tanto os
alunos quanto os serviços de saúde possam ser beneficiados por
essa experiência.
No mais, se compreende que a adequação das problemáticas
apresentadas poderá favorecer ainda mais no fortalecimento e
conso­lidação da APS na formação dos alunos em consonância com
os preceitos do SUS e, acima de tudo, de profissionais qualificados
para o trabalho na APS e comprometidos com as necessidades de
saúde da população brasileira.

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ALUNOS, OS SUJEITOS DO PROCESSO:
O QUE PENSAM SOBRE “SER MÉDICO” E
SUA FORMAÇÃO

Maria Regina Pires Uliana


Antonio Pithon Cyrino

O presente capítulo é um recorte de estudo (Uliana, 2010) rea-


lizado com alunos de graduação médica, no qual se exploraram os
significados e percepções que os estudantes atribuem à experiência
vivenciada na disciplina IUSC. Neste recorte, trata-se da escolha
profissional, da construção de um (querer) “ser médico” realizada
pelo aluno antes de entrar na escola médica e ao final de seu curso.
Apresentaremos, assim, ao leitor um olhar que nos permitirá
apreender uma das facetas da “produção” de uma nova identidade
desses alunos, que iniciaram a graduação em 2003, primeira turma
da disciplina IUSC. Ao mesmo tempo, este capítulo fornecerá aos
leitores uma aproximação com os sujeitos principais dessa expe-
riência de ensino na comunidade: os alunos.
Num olhar panorâmico sobre o conjunto da turma, a partir de
dados da Vunesp,1 verifica-se no perfil socioeconômico dos alunos
ingressantes um predomínio de brancos (87,8%), do sexo feminino
(64,4%), que cursaram o ensino médio em escola privada (88,9%),
com pai (68,7%) e mãe (61,1%) com formação superior completa e
renda mensal maior que 15 salários-mínimos (57,8%). Já o con-

1. Informações colhidas na inscrição no exame vestibular e que dizem respeito


aos noventa alunos aprovados para o curso de Medicina (Vunesp, 2003).
134  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

junto dos alunos (24) que participaram dos grupos focais2 reali-
zados na produção dos dados deste estudo mostraram um perfil
com predomínio de mulheres brancas (67%), jovens (87%) com
idade na faixa de 23 a 26 anos, com semelhanças, portanto, ao do
conjunto da turma.
A análise dos dados produzidos permitiu identificar dois nú-
cleos de sentido quanto à escolha profissional e à construção de um
“ser médico” − ser médico: a escolha profissional e fazer-se mé-
dico: a vivência na graduação médica.

Ser médico: a escolha profissional

E o que contribuiu também [para minha escolha]


é que eu achava o médico uma profissão
maravilhosa: o maior, o que salva todas as vidas.
(GF1, aluno 8)

As motivações indicadas pelos alunos, já no final do curso


médi­co, para a escolha da profissão médica, apontam diversas
influências e/ou interesses que, muitas vezes, se misturam e se
condensam em alguns núcleos temáticos: a percepção do sofri-
mento humano e seu cuidado; o interesse pelas ciências (bioló-
gicas); a beleza da profissão; o status social potencialmente
alcançado pelo profissional; e a influência produzida pelo convívio
e identificação com médicos e outros profissionais da saúde, da
própria família ou próximos.
Destacou-se, entre esses diferentes temas, “a percepção do
sofri­mento humano e seu cuidado”, manifestado algumas vezes
pelo desejo “de exercer uma profissão que cura”, “que salva
vidas”, como é bem expresso na epígrafe, e que pode ser sinteti-
zada pela ideia do cuidar do outro. Essa dimensão é também

2. Foram realizados três grupos focais com a participação total de 24 estudantes.


SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  135

toma­da pela “vontade de ajudar...”, de “fazer o bem para os ou-


tros” ou proporcionar “um conforto ao ser humano”:

No meu caso, minha escolha nunca foi duvidosa. Eu achava o tra-


balho do médico bonito e era um bonito de conforto ao ser hu-
mano. Um contato próximo e bem íntimo com o outro, o ser
humano. (GF2, aluno 22)

Gosto de ajudar as pessoas, conhecer melhor o ser humano e


tentar ajudar de alguma forma. (GF1, aluno 10)

Queria escolher uma profissão que fizesse diferença: ajudar as


pessoas. (GF3, aluno 30)

Outros alunos enfatizaram, como dimensão motivadora da


esco­lha profissional, a percepção do sofrimento humano provo-
cada pela vivência pessoal com um ente querido que enfrentou
algu­ma enfermidade ou pela própria experiência pessoal de adoeci-
mento e de ter sido objeto de atenção médica.

E tive muitas experiências familiares relacionadas à saúde, como


depressão, doenças crônicas e acho que, à medida que fui amadu-
recendo, pensei em fazer Medicina. (GF1, aluno 10)

Vou ser bem sincera: eu tinha uma avó que estava doente e preci-
sava de uma pessoa que pudesse ajudá-la. E, eu fui. Achava im-
portante ajudar no sofrimento [...]. (GF1, aluno 4)

A curiosidade pelo interior do corpo humano foi indicada por


alguns alunos, como um interesse pelas ciências em geral, e pelas
ciências biológicas em particular. Desejo este que se compôs com o
interesse pelo cuidar e, assim, ser médico e desvendar os mistérios
da ciência, especialmente do corpo biológico:
136  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Eu resolvi fazer Medicina, porque eu sempre gostei de tratar os


curativos de casa. [...] E também sempre tive curiosidade para
saber como era o ser humano por dentro e achei que como médico
eu ia me satisfazer em todos os sentidos. (GF1, aluno 1)

Eu queria ser lixeiro... Já pensei até em bombeiro. Passou muita


coisa pela minha cabeça. Foi na sétima série que tive contato com
Biologia, me identifiquei bastante [...]. (GF1, aluno 2)

A última coisa que eu queria era ser médica! Eu não gostava, mas
na sétima (série), comecei a ver Biologia... o corpo humano. Co-
mecei a me interessar muito, gostava muito da matéria. Então,
resol­vi fazer Medicina para conhecer mais o ser humano. Gostava
de lidar com pessoas. (GF1, aluno 5)

A beleza da profissão, o reconhecimento e status social obtido


no exercício da Medicina também foram apontados como motiva-
ções para essa escolha profissional. Foi possível identificar que,
para alguns deles, a nobreza da profissão também se relaciona com
a possibilidade de dominar um campo do conhecimento valorizado
socialmente, ter assegurado um lugar bem remunerado no mercado
de trabalho.

Cheguei à conclusão... porque além de gostar da área, eu achava


que era uma super-respeitada; médico era uma pessoa de respeito
dentro de uma sociedade, que conseguia ajudar todo mundo
e [que] o valorizava por isso. Não era como a profissão do pro-
fessor, que eu acho maravilhosa, mas não é bem remunerada; os
alunos não tratam bem, todo aquele problema do professor, então
optei pela Medicina. (GF1, aluno 9)

Escolhi [ainda] bem pequena [...] por admirar alguns médicos que
estavam perto de mim, admirar os conhecimentos, a cultura, a
comu­nicação [deles]. [...] e, também pensei no mercado de tra-
balho [...]. O médico sempre vai ter emprego. (GF2, aluno 23)
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  137

O convívio, a influência, e especialmente a admiração por


fami­liares médicos ou profissionais da saúde levaram alguns alunos
a escolherem a Medicina, tendo tais profissionais, muitas vezes,
como “modelos” profissionais.

Não lembro direito porque escolhi, a minha mãe é enfermeira e


sempre tive contato com isso e também gostava da área de bioló-
gica. (GF3, aluno 31)

Desde criança sempre pensei nisso, meu pai é médico e me levava


com ele. Não me imagino fazendo outra coisa. (GF2, aluno 24)

As motivações apontadas pelos alunos do 6o ano em suas me-


mórias do momento da escolha profissional são muito próximas
àquelas identificadas por Ramos-Cerqueira e Lima (2002), como
pertencentes a um nível consciente de escolha: o desejo por do-
minar um campo do conhecimento que atribui status e “prestígio
social”, “o alívio prestado aos que sofrem, a atração pelo dinheiro
[... e] pela responsabilidade [...], o desejo de uma profissão liberal e
a necessidade de segurança” (Ramos-Cerqueira; Lima, p.109).
Schraiber (1993, 2008), em seus estudos sobre o trabalho de
duas gerações de médicos, uma formada sob a égide da Medicina
liberal (de 1940 a 1950) e outra já na contemporânea Medicina tec-
nológica (década de 1980), identificou diferentes razões para levar
à escolha da Medicina como profissão. A primeira delas diz res-
peito à escolha da Medicina como sacerdócio, que é o mais clássico
desses sentidos: o médico como “homem que serve aos outros”;
que deve esperar a clientela, estar disponível, atento e “acima de
tudo ser dedicado e responsável por seus doentes” (Schraiber, 2008,
p.143). A segunda é a do médico como “homem da ciência”. Tema
este que corresponde, em boa parte, às escolhas feitas pelos alunos
com interesse pela Biologia e pelo corpo humano, como vimos. E, a
terceira, a “nobreza da profissão” como dimensão do ser médico
(ibidem, p.145), pois, ainda que produtora de renúncia, sacrifícios
e uma vida de esforço, o exercício dessa profissão traz compen­
138  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

sações pela “reconhecida autoridade social e elitização na hierar-


quia do trabalho, com correspondentes vantagens materiais”.
Para os alunos, essa escolha profissional provoca muitas mu-
danças em suas vidas já no momento da “intensa competição do
vestibular”, quando aprendem “precocemente a renunciar a dese­jos,
prazeres, horas de lazer e à companhia de amigos e familiares...”
(Ramos-Cerqueira; Lima, 2002, p.108); como reconhece um dos
alunos que afirma aceitar estar menos tempo com a família ou
fazendo suas atividades preferidas, pois desde pequeno foi adver­
tido pela mãe de que teria que estudar e dedicar-se muito para ser
médico.
Para muitos alunos e médicos (Schraiber, 1993, 2008), a es-
colha profissional foi promovida pelo contato ou estímulo de fami-
liares e profissionais que atuam na Medicina ou em outros campos
da saúde. Tal “base familiar” na profissão médica é muito comum
ainda hoje.
Pode-se perceber, em muitos discursos dos alunos, um forte
componente ideológico expresso na generosidade ou caridade
mani­festa como um “ajudar as pessoas” que estavam presentes no
“sacerdócio”, enquanto modelo de prática presente na Medicina
artesanal ou liberal (Schraiber, 2008), como vimos. Pode-se afirmar
que muitos desses valores e modo de compreender o mundo ainda
presentes nos ideais dos atuais e futuros médicos provêm das
dimen­sões da pretérita Medicina liberal (Nogueira, 2007).
Até aqui pudemos conhecer nos discursos dos alunos, no ano
da formatura, suas lembranças sobre a escolha profissional. Ainda
que tais manifestações possam, de alguma forma, ter sido influen-
ciadas pela experiência do curso médico, como veremos a seguir, há
um enorme contraste com a percepção que apresentam de um
“fazer-se médico” ao longo desses seis anos de formação. Tal con-
traste é bem evidente já na epígrafe que abriu este tópico e a que se
apresenta no que segue: na primeira temos o médico como um “sal-
vador (de vidas)” e na última como um “homem normal” e falível.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  139

Fazer-se médico: a vivência na graduação

O médico era o super-herói e agora o


médico voltou a ser um homem normal,
que está sujeito a um monte de erros.
(GF1, aluno 9)

Como é possível apreender desta epígrafe, as motivações mais


idealizadas que levaram nossos alunos a buscar a profissão médica
foram gradativamente se transformando ao longo dos anos, dando
lugar a um olhar menos idealizado e mais crítico sobre a profissão e
a prática médica. No discurso do aluno, apresentado como epígrafe
que abriu o tópico anterior, o médico era um “salvador (de vidas)”;
nesta última, é agora um “homem normal” e falível.
Há também a passagem de um ideal anteriormente centrado
na “cura” para outro no qual se valoriza o cuidado do paciente,
expres­so num “confortar”, como também uma maior percepção
dos limites dessa Medicina no enfrentamento dos problemas que
afligem o indivíduo. Percebe-se nesse discurso uma maior sin-
tonia com a atual relevância das doenças crônicas no perfil de
adoecimento das comunidades que esses alunos assistem em suas
práticas clínicas durante a graduação:

Quando [...] entr[amos] na faculdade éramos muito centrados em


realizarmos a cura, a gente procura só o lado da cura: “Vamos
curar, vamos sarar você”, como a gente fala para as crianças. Mas
acho que eu mudei meu conceito nos seis anos [...] de faculdade.
Hoje eu acredito que mais importante que curar, é confortar o pa-
ciente; para mim é muito mais importante! Não é necessariamente
curando o paciente que eu vou resolver todos os problemas da
vida dele. (GF1, aluno 8)

Agora eu vejo que não sabia nada sobre Medicina. Não sabia
como era o funcionamento do curso, não sabia como ia ser minha
vida, futuro profissional. [...] Antes imaginávamos em dar tudo
140  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

ao paciente e hoje, o que é possível fazer ao paciente. (GF1,


aluno 7)

Como afirmam Ramos-Cerqueira e Lima (2002, p.108), essa


passagem da visão “ideali[zada] do papel do médico” para a expe-
riência concreta da “formação profissional não é tranquila”, como
vemos no discurso que segue:

Eu acho que me perdi demais no começo com bastante coisa. Se


hoje eu soubesse de tudo o que eu iria passar, de como seria chegar
até aqui, eu não teria feito Medicina. Hoje para mim é um grande
dilema... Se eu soubesse disso, que eu iria passar por tudo isso, eu
não teria entrado nesse curso. (GF1, aluno 5)

A despeito de a quase totalidade dos alunos participantes do


estudo terem se declarado satisfeitos com a escolha profissional,
destacaram com muita clareza as fragilidades do processo de for-
mação, dentre as quais destacamos: o excesso de conteúdo teórico
dos primeiros anos, a falta de integração entre as disciplinas do bá-
sico com o clínico e a desarticulação entre o conteúdo dos primeiros
anos com os conhecimentos necessários para o internato do 5o e 6o,
este último momento de vivência integral em ambientes de assis-
tência no hospital, ambulatórios e serviços básicos de saúde. Parte
deles também reconheceu o limitado espaço oferecido ao longo do
curso para o desenvolvimento de habilidades necessárias à relação
médico-paciente e de responsabilização com este último, e ainda
apresentam um olhar crítico quanto à formação recebida, dado seu
caráter “medicalizado” e centrado na doença e de sobrevalorização
do conhecimento em detrimento de valores:

A gente não aprende no curso [...] o lado da conversa, da relação


médico-paciente, você não tem muito isso. Às vezes, você não tem
o que fazer por ele [paciente], não tem mais remédio para dar... E
porque não tem remédio, você acha que não pode fazer mais nada.
E na faculdade você não aprende como lidar com isso. É muito
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  141

medicalizada a Medicina, é muito centrada na doença. Não é cen-


trada no paciente. (GF1, aluno 5)

Hoje eu vejo que mais importante que o conhecimento... o conhe-


cimento é fundamental, mas eu não tenho mais a ilusão que eu
tinha de alguns anos, de sair da faculdade com um conhecimento
completo da Medicina [...] o mais importante de tudo é o compro-
metimento com o paciente [...]. (GF1, aluno 10)

A despeito desses discursos mais críticos, cabe apontar que os


estudantes, ao longo do curso médico, valorizam preferencial-
mente as dimensões mais técnicas e orientadas pela Biomedicina
do que aquelas de caráter mais humanístico, que são percebidas
como acessórias. Essa questão vem sendo um enorme desafio para
pensar a formação médica em todo o mundo.1
Os estudantes consideraram a vivência no internato (5o e 6o
anos) o lócus mais relevante na formação profissional, pela opor­
tunidade de atuação mais intensa com outros médicos e de vivên­cia
com os pacientes, uma experiência que parece mais próxima do
que vão encontrar ao “tornar-se médico”. É, ainda, para alguns
desses alunos, um momento de enorme aprendizado, pois, como
diz um deles,

Durante os quatro primeiros anos você não se sente médico e sabe


o que sua vizinha sabe. No internato você dá um salto muito
grande, é a fase mais gostosa e boa, é tudo que você esperava.
(GF2, aluno 23)

O referido convívio com as equipes dos serviços de saúde


por onde estagiaram permitiu aos alunos atuar com profissionais
cuja postura consideraram modelos a seguir, enquanto outras vivên­
cias reforçaram um tipo de prática profissional que perceberam

1. A esse respeito, ver Good; Good, 1994.


142  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

reduzir-se à sua dimensão “técnica” e, portanto, não reconhecidas


como bons “exemplos a seguir”, como se vê expresso nos seguintes
discursos:

[...] Você tem uma certa decepção com alguns modelos de médicos
que vemos aqui na nossa formação, mas acho que temos que tirar
de positivo, é reconhecer que não se deve fazer isso! (GF2, aluno
24)

Eu acho assim, [...] que durante a faculdade, a gente tem uma


série de situações que levam você para o “lado negro da força” ou
para o “lado bom da força” e se você não optar por um caminho e
seguir certos exemplos de profissionais, de conduta e de atenção
ao próximo, você vai virar um belo técnico de condutas e diagnós-
ticos [...]. (GF1, aluno 1)

Na apreensão que fazem sobre o curso médico percebe-se


estrei­ta articulação com o modo como compreendem o próprio sis-
tema público de saúde e suas contradições, dado que o campo de
treinamento dá-se integralmente em diferentes serviços do SUS
(destacadamente, o hospital escola, espaço com maior carga horária
de estágios, e os serviços básicos de saúde).

não tinha ideia de como era um curso de graduação de Medicina e


logicamente tem coisas que nos frustram até hoje, dentro do sis-
tema de saúde, mas o saldo é bem positivo. (GF1, aluno 7)

Eu acho que a minha visão mudou um pouco [...] tem muitos pro-
blemas, muitas coisas que a gente vê que não dá pra fazer por falta
de infraestrutura que a gente vê e encontra tanto aqui na faculdade
como em qualquer outro lugar [...]. (GF1, aluno 26)

Chama a atenção que algumas dificuldades vividas pelos


alunos (como a “falta de infraestrutura” nos serviços de saúde, “o
comportamento de pacientes e médicos”) e relacionadas à profissão
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  143

médica sejam consideradas responsabilidades de outras esferas


(sobre­tudo a social e a econômica), e, desse modo, não percebidas
como inerentes à escolha que fizeram.
Mas os estudantes, ao reconhecerem dificuldades, percebe­ram
que tais experiências, ainda que menos prazerosas, também podia­m
caracterizar-se como momentos de aprendizagem, crescimento,
realização e oportunidade de fazer escolhas:

No final de seis anos a minha visão de Medicina não mudou, só


que hoje [ela é...] mais crítica sobre as dificuldades, as limitações.
Hoje temos oportunidade de reconhecer as necessidades da popu-
lação e temos bons modelos [...]. (GF2, aluno 23)

Em relação à escolha [profissional] a palavra é satisfação!! Não


tenho dúvida da minha escolha [...]. No início era uma admiração
idealizada, agora é mais concreto. (GF2, aluno 22)

Traçadas ao longo do processo de formação, tais escolhas, toda-


via, serão ainda submetidas ao heterogêneo mercado de trabalho de
uma “nova” ordem médica tecnológica (e neoliberal), na qual, a
despeito de uma diversidade de “identidades médicas” − médico-
-empresário, médico-cooperado, médico-assalariado etc. –, é ainda
forte um ideário liberal deslocado no tempo. O desenvolvimento do
complexo médico-industrial e o surgimento da Medicina tecnoló-
gica (ou Medicina neoliberal) reduziu a prática da Medicina liberal
a apenas um componente da nova forma de organização social. Po-
rém, mesmo permanecendo secundária e dominada, continuou a
ser fonte inspiradora de muitos posicionamentos ideológicos e dos
movimentos políticos da categoria médica (Nogueira, 2007), como
vimos mais recentemente no debate em torno do Programa Mais
Médicos aprovado pelo Congresso Nacional.
144  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Referências bibliográficas

FUNDAÇÃO PARA O VESTIBULAR DA UNIVERSIDADE


ESTADUAL PAULISTA (VUNESP). O perfil socioeconômico de
ingresso na graduação médica em 2003. Ago. 2003.
GOOD, B. J.; GOOD, M. J. “Learning Medicine”: the construction
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BAUM, S.; LOCK, M. Knowledge, power, and practice: the Anth-
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California Press, 1994. p.81-107.
NOGUEIRA, R. P. Do físico ao médico moderno: a formação social da
prática médica. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
RAMOS-CERQUEIRA, A. T. A.; LIMA, M. C. P. A formação da
identidade do médico: implicações para o ensino de graduação em
Medicina. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu,
v.6, n.11, ago. 2002.
SCHRAIBER, L. B. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São
Paulo: Hucitec, 1993.
_____. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança.
São Paulo: Hucitec, 2008.
Parte III
AS ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS DA
IUSC
6
A METODOLOGIA DA
PROBLEMATIZAÇÃO NO CONTEXTO DA
FORMAÇÃO EM SAÚDE

Marina Lemos Villardi


Eliana Goldfarb Cyrino
Neusi Aparecida Navas Berbel

Neste capítulo trataremos da problematização enquanto meto-


dologia de ensino aplicada nos cenários de práticas da disciplina
Interação Universidade, Serviço e Comunidade (IUSC) da Facul-
dade de Medicina de Botucatu. Como tal, é resultado da expe-
riência de trabalho e reflexão em torno das tensões vividas no uso
da problematização como metodologia.
O capítulo se propõe a explorar o diálogo sobre a metodologia
da problematização (MP) no ensino superior em saúde, expondo
inúmeras questões pedagógicas, conectando-as à qualificação pro-
fissional. Para tal, recorrem-se às explanações sobre o novo perfil
do profissional de saúde e às metodologias que contribuem para
uma postura ativa do aluno na busca do conhecimento. Posterior-
mente são enfatizados os fundamentos teóricos que sustentam a
metodologia da problematização para avançar no conceito de pro-
blematização, através do entendimento de diversos autores. A fim
de aproximar as práticas educativas problematizadoras da área da
saúde, elas serão brevemente contextualizadas, com ênfase no
ensi­no superior em saúde, para explorar as faces que dificultam
e  ou fortalecem sua utilização a fim de verificar a diversidade de
situações e cenários em que a metodologia da problematização
148  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

pode ser aplicada, por meio da descrição de experiências na área da


saúde.

Mudanças no ensino superior na área da saúde

O ensino superior nas profissões de saúde passou por transfor-


mações resultantes tanto das alterações do perfil demográfico e
epidemiológico da população quanto da complexa exigência em
rela­ção às práticas em saúde executadas. Dessa forma, busca-se
nesta seção retratar algumas questões que impulsionaram transfor-
mações no ensino superior, bem como apontar as metodologias que
se enquadram nesse novo panorama do ensino.
Dentre as modificações no mundo contemporâneo que pro-
vocam discussões sobre a formação para o trabalho em saúde e
exigem postura crítica do sujeito, estão: a velocidade da produção
de conhecimento; a necessária reflexão sobre a inserção do profis-
sional de saúde nesse novo contexto; a influência dos meios de comu­
nicação na construção do profissional que afastam a reflexão sobre
a vida, a inserção no mundo e a nova organização do espaço social
(Mitre et al., 2008).
Cyrino e Rizzato (2004) destacam que o ensino médico preo-
cupa-se com tecnologias de diagnóstico e tratamento de enfermi-
dades. Embora tenha aumentado a expectativa de vida, não são
valorizadas as habilidades que envolvem a relação médico-pa-
ciente. “Esse sucesso na manutenção da vida, no entanto, não tem
sido acompanhado do desenvolvimento da habilidade médica de
ouvir, de cuidar, de compreender a vulnerabilidade dos pacientes
diante do sofrimento e ao adoecer” (Cyrino; Rizzato, 2004, p.60
apud Puchalski, 2001).
Segundo Paim (1996), para formar profissionais de saúde mais
preparados para as novas exigências da sociedade, cuja prática per-
mita aderir às políticas de saúde, devem ser consideradas, nas for-
mulações pedagógicas das universidades: capacidade de análise do
contexto das práticas que realiza; compreensão do processo de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  149

traba­lho em saúde; exercício da comunicação no cuidado em saúde;


atenção a problemas e necessidades de saúde; senso crítico quanto
às intervenções realizadas e permanente questionamento sobre o
significado de seu trabalho.
Crivari e Berbel (2008) adicionam que a formação necessita
centralizar a promoção da saúde, trabalhando o conceito de saúde
como qualidade de vida, o processo de trabalho na interdiscipli­
naridade, o desenvolvimento de habilidades para a ação social e a
capa­citação para a educação em saúde, a fim de formar, ao mesmo
tempo, bons profissionais e bons cidadãos.
Uma formação em saúde que ultrapasse uma educação cen-
trada somente na informação do professor é defendida em dife-
rentes estudos, pois, segundo os seus autores, possibilita uma
educação problematizadora, na qual o aluno tem papel central na
busca dos conhecimentos, através do desenvolvimento da capaci-
dade de “aprender a aprender”, criando oportunidade para uma
educação permanente (Chirelli; Mishima, 2004; Campos; Boog,
2006; Crivari; Berbel, 2008; Espírito Santo et al., 2008; Mitre et al.,
2008; Rodrigues; Caldeira, 2008; Silva; Miguel; Teixeira, 2011).
Para Mitre et al. (2008, p.2.135), citando Fernandes et al.
(2003), aprender a aprender “deve compreender o aprender a co-
nhecer, o aprender a fazer, o aprender a conviver e o aprender a ser,
garantindo a integralidade da atenção à saúde com qualidade, efi-
ciência e resolutividade”. É necessário destacar que esses “aprender
a...” são frutos do relatório de Delors (1998, p.14), que discute os
novos objetivos da educação do século XXI a fim de ampliar con-
ceitos sobre seu papel e os meios que utiliza em busca de superação
dos desafios da atualidade. Segundo esse relatório, a educação deve
ser entendida como “situada no coração do desenvolvimento tanto
da pessoa humana como das comunidades”.
Sobre os ganhos em trabalhar com o aprender a aprender na
formação em saúde, Silva, Miguel e Teixeira (2011, p.79) apontam
que proporciona “uma visão ética, humanística e responsabilidade
social, importantes qualidades na prática no Sistema Único de
Saúde (SUS)”.
150  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Lima, Komatsu e Padilha (2003, p.177) adicionam a impor-


tância de superar o enfoque do ensino em saúde centrado em as-
pectos biomédicos que limitam a aprendizagem, pois, segundo
esses autores,

é imperioso que o profissional de saúde tenha uma atitude


contínua de aprender e habilidades para a busca e crítica das infor­
mações obtidas. A prática em saúde requer destrezas psicomotoras
que permitam a execução de procedimentos com segurança e téc-
nica acurada e atitudes que conformam a relação com o paciente e
o trabalho em equipe. Como condutores dessa prática, senti-
mentos de humanidade, respeito aos direitos das pessoas e com-
promisso social são fundamentais para o exercício profissional
ético.

Godoy (2002) sustenta valorizar nesse cenário a qualidade da


assistência e a eficiência do trabalho em saúde, a articulação entre
teoria/prática e também entre universidade, serviços de saúde e or-
ganizações comunitárias e estratégias que indiquem o aluno como
sujeito do processo ensino-aprendizagem.
Com a Constituição Brasileira de 1988, fica definido que o
setor da saúde, além de organizar-se por meio do SUS, deve refor-
mular os processos de formação dos profissionais tendo em vista
um perfil generalista e consoante com a realidade social e epide-
miológica (Rezende et al., 2006).
Isso significa que a transformação no modelo hegemônico é
impulsionada por políticas públicas relacionadas às necessidades
da população, como a implementação do SUS e sua estratégia mais
inovadora, a Estratégia da Saúde da Família (ESF) (Crivari; Berbel,
2008).
Essa preocupação com a qualificação do cuidado à saúde faz
parte das mudanças previstas para a educação médica, como o en-
sino centrado na prática em saúde e nos princípios da integralidade
e da intersetorialidade das ações, a diversificação dos cenários
de aprendizagem, como os da atenção primária (pois trabalha com
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  151

as reais necessidades de saúde da população, com o trabalho multi-


profissional e com intervenções de educação em saúde) e a valori-
zação das dimensões psicossociais do adoecer (Cyrino; Rizzato,
2004; Gianini et al., 2008; Rodrigues; Vieira; Torres, 2010; Silva;
Miguel; Teixeira, 2011; Berger, 2011).
Crivari e Berbel (2008) reforçam que as Diretrizes Curricu-
lares Nacionais, implantadas nos anos 2000 para os cursos de gra-
duação em saúde, têm por intuito buscar uma formação dos
profissionais de saúde orientada para o Sistema Único de Saúde.
As DCNs caminham para uma articulação entre os programas
do Ministério da Saúde e os projetos pedagógicos e buscam a for-
mação de um profissional que atue com qualidade na promoção da
saúde e na prevenção, de modo a atender as necessidades sociais
(Kruze; Bonetti, 2004; Rezende et al., 2006; Marin et al., 2010).
As DCNs propõem romper com o modelo arcaico e rígido de
ensino fornecendo elementos das bases filosóficas, conceituais,
polí­ticas e metodológicas que compõem as habilidades essenciais
aos profissionais de saúde. Produz-se o desafio de romper com a
tradição tecnicista do ensino, do aspecto curativo de atendimento,
em virtude do próprio modelo de atenção à saúde existente no
Brasil (Kruze; Bonetti, 2004).
Para tanto, utilizam-se “novos referenciais” para a educação na
área da saúde, como as metodologias que consideram o aluno pro-
tagonista do seu próprio processo de formação (Cyrino; Pereira,
2004; Damasceno; Said, 2008; Mitre et al., 2008; Silva; Delizoico,
2008; Marin et al., 2010; Cotta et al., 2012).
No processo de aprendizagem ativa, o estudante tem a oportu-
nidade de propor questionamentos para o contexto, além de solu-
cioná-los por meio de alternativas aprendidas em diferentes fontes,
considerando a necessidade de trazer respostas adequadas a serem
debatidas nos grupos de discussão (Marin et al., 2010).
Algumas metodologias são, para Cyrino e Rizzato (2004), Cy-
rino e Pereira (2004), Silva e Delizoico (2008), Cardoso et al.
(2011), e Freitas (2011), conhecidas como “aprendizagem baseada
em problemas (ABP)” e “problematização”, que, embora distintas,
152  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

apresentam semelhanças, pois pretendem romper com os métodos


tradicionais de ensino-aprendizagem pela construção de uma visão
que busca romper com a fragmentação do conhecimento, o que
pode representar um avanço na formação de profissionais de saúde
para o SUS. Apoiam-se na aprendizagem por descoberta, significa-
tiva e na solução de problemas (Berbel, 1998; Cyrino; Pereira,
2004; Marin et al., 2010).
A aprendizagem baseada em problemas (ABP) foi aplicada no
final da década de 1960 na Universidade de McMaster, Canadá, e,
pouco depois, na Universidade de Maastricht, Holanda (Cyrino;
Pereira, 2004; Silva; Delizoico, 2008).
A ABP, como estratégia de integração entre o ciclo básico e
o  clínico, permitindo a articulação de disciplinas e o desenvolvi-
mento do raciocínio clínico, ganhou a adesão de escolas espalhadas
em todo o mundo no decorrer das últimas décadas do século XX,
chegando a casos, como o da Austrália, no qual, das dez escolas
médicas existentes no país, nove utilizam a ABP (Lima; Komatsu;
Padilha, 2003).
A ABP representa um avanço em relação ao ensino transmis-
sivo predominante no meio universitário, caracterizado pela ati-
tude receptiva do aluno, surgindo em reação às escolas médicas sob
a influência do modelo flexneriano, que privilegiava o modelo bio-
médico e o ensino centrado no hospital. A ABP é considerada o
eixo principal do aprendizado teórico de um currículo médico, com
a finalidade de promover o aprendizado de conteúdos e a inte-
gração de disciplinas. Propõe-se a um trabalho criativo do pro-
fessor preocupado com o “porquê” e o “como” o estudante aprende.
A ABP é uma proposta que passa a guiar a organização curricular
de um curso, havendo necessidade de maior movimento do corpo
docente, administrativo e acadêmico da instituição para desen-
volvê-la. Sua utilização demanda alterações estruturais e trabalho
integrado dos diversos departamentos e disciplinas que compõem
o currículo dos cursos. Sua operacionalização requer estrutura ma-
terial complexa e em maior volume do que o habitual, bem como
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  153

uma proporção maior de professores em relação ao número de


alunos (Berbel, 1998; Cyrino; Pereira, 2004).
Para tanto, utiliza grupos tutoriais em que o professor apre-
senta o problema ao aluno, seguido de sete passos, como citado por
Berbel (1998, p.147), de acordo com um documento formulado na
Universidade de Londrina (UEL):

1. Leitura do problema, identificação e esclarecimento de termos


desconhecidos; 2. Identificação dos problemas propostos pelo
enunciado; 3. Formulação de hipóteses explicativas para os pro-
blemas identificados no passo anterior (os alunos se utilizam nesta
fase dos conhecimentos de que dispõem sobre o assunto); 4. Re-
sumo das hipóteses; 5. Formulação dos objetivos de aprendizado
(trata-se da identificação do que o aluno deverá estudar para apro-
fundar os conhecimentos incompletos formulados nas hipóteses
explicativas); 6. Estudo individual dos assuntos levantados nos
objetivos de aprendizado; 7. Retorno ao grupo tutorial para redis-
cussão do problema frente aos novos conhecimentos adquiridos
na fase de estudo anterior.

Internacionalmente, na área da saúde, metodologias proble-


matizadoras surgiram na década de 1980, pela necessidade de
buscar currículos orientados para o modo como os estudantes
aprendem. Uma proposta foi aplicada na Enfermagem, na Univer-
sidade do Havaí, com o “ensino baseado na investigação”, que in-
clui solução de problemas, pensamento crítico e responsabilidade
do aluno pela sua própria aprendizagem (Cyrino; Rizzato, 2004).
A metodologia da problematização, adotada nas mudanças
curriculares nos cursos de graduação no Brasil, é sustentada pelo
referencial teórico de Freire, marcada pela busca das transforma-
ções da sociedade pela prática conscientizadora, como se lê em Cy-
rino e Pereira, 2004; Miranda e Barroso, 2004; Backes et al., 2007;
Mitre et al., 2008; Rodrigues e Caldeira, 2008; Marin et al., 2010;
Corrêa et al., 2011; Borille et al., 2012.
154  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

A problematização tem sido muito utilizada como estratégia de


ensino e aprendizagem por apresentar uma abordagem pedagógica
que estimula a participação do educando, desenvolvendo a auto-
nomia e a compreensão da responsabilidade individual e coletiva
no processo de aprendizagem (Cotta et al., 2012).
Berbel (1998) sinaliza que, embora essa metodologia não exija
alterações estruturais em um curso, diferentemente da APB, é ade-
quado utilizá-la em situações em que sobressaiam o caráter polí-
tico, econômico e social, já que carrega o potencial de trabalhar com
temas relacionados com a vida em sociedade.
Isto porque a metodologia da problematização pretende formar
profissionais que se percebam como cidadãos participativos em
uma sociedade democrática e tenham compreensão crítica da reali-
dade, dispostos a transformá-la e a se transformar também, como
salientam os autores Berbel, 1998; Cyrino e Pereira, 2004; Silva e
Delizoico, 2008; Freitas, 2011.
Em síntese, é possível evidenciar que o novo perfil do profis-
sional de saúde requer habilidades que valorizem a produção de
saúde, ampliando o olhar para além da ausência de doenças, mas
sobretudo ao ser humano e sua relação com o contexto de vida, que
determina suas condições de saúde. É necessário oferecer aos estu-
dantes de cursos de graduação em saúde esses instrumentos ca-
pazes de qualificar sua futura prática profissional.
A ABP e a metodologia da problematização, com suas dife-
renças e semelhanças, permitem enxergar novos caminhos tri-
lhados no ensino superior em saúde nesse panorama de qualificação
profissional. Ambas estimulam postura ativa do aluno em busca do
conhecimento, podendo ser impulsionadas por um problema esta-
belecido ou por uma situação extraída da realidade.
Tendo como objeto de pesquisa as práticas de ensino-aprendi-
zagem nos cursos de Medicina e Enfermagem que se propõem a
utilizar uma educação problematizadora, esta é centralizada nas
expo­sições teóricas a seguir.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  155

Bases teóricas da problematização

A metodologia da problematização encontra pontos de aproxi-


mação com a educação e o trabalho pedagógico do professor, en-
tendidos como um processo historicamente construído, e encontra
fundamentos na filosofia da práxis, na pedagogia libertadora/pro-
blematizadora de Paulo Freire e na pedagogia crítico-social dos
conteúdos.
A pedagogia libertadora, para Freire (2005), se compromete
com a libertação e não compreende os homens como seres vazios,
passíveis de serem completados por conteúdos, mas como seres
conscientes do mundo, aptos a problematizar suas relações com o
mesmo. Segundo o autor,

se pretendemos a libertação dos homens não podemos começar


por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que
é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos
homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que
implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para trans-
formá-lo. (Freire, 2005, p.77)

A educação problematizadora se insere no contexto da edu-


cação libertadora e carrega a motivação da aprendizagem a partir da
identificação de uma situação-problema da qual se utiliza para ana-
lisá-la criticamente. Libâneo afirma ainda:

Aprender é um ato de conhecimento da realidade concreta, isto é,


da situação real vivida pelo educando, e só tem sentido se resulta
de uma aproximação crítica dessa realidade. O que é apreendido
não decorre de uma imposição ou memorização, mas do nível crí-
tico de conhecimento, ao qual se chega pelo processo de com-
preensão, reflexão e crítica. (Libâneo, 1984, p.35)

Freire (2005) complementa também que a educação problema-


tizadora está pautada pela busca dos homens pelo mundo, com o
156  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

mundo e com os outros, não se reduzindo ao ato de depositar ou de


transferir conhecimentos como faz a educação bancária, que apre-
senta uma postura de transferência do saber dos que se julgam sá-
bios aos que nada sabem.
O educador que problematiza deve facilitar aos educandos as
condições em que se dê a superação do conhecimento, provocando
o desvelamento da realidade resultante de sua inserção crítica na
mesma. É de Freire a afirmação:

Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no


mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão
mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio.
Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo.
Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema
em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não
como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se
crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada.
(Freire, 2005, p.80)

Com a reflexão sobre os homens em suas relações com o


mundo, a problematização propõe novas compreensões, surgem
novos desafios que dão espaço a outros em resposta aos primeiros
que vão se articulando em desafios maiores que compõem res-
postas mais complexas. Isto porque os educandos vão construindo
sua compreensão de mundo através de suas relações com ele, ou
seja, não mais como uma realidade imóvel, mas em processo, em
transformação (Freire, 2005).
A educação problematizadora carrega como princípio a trans-
formação da sociedade, por meio da transformação do homem que
nela se insere, para que aja consciente, informado, mais político
e criativo, ampliando sua consciência e seu papel na sociedade de
transformar-se e a seu meio pela atividade prática, intencional
e  consciente, pela práxis (Berbel, 2006; Schaurich; Cabral; Al-
meida, 2007).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  157

Para Freire (1996), a ação de problematizar enfatiza a práxis,


pois o sujeito busca soluções para a realidade, transformando-a
com sua própria ação, ao mesmo tempo em que se transforma e
passa a detectar novos problemas e buscas de transformação. O
conceito de práxis como uma atividade transformadora reflete a
passagem da teoria à prática, consciente entre pensamento e ação
intencionalmente realizada.
O conceito de práxis apresentado por Vázquez (1977 apud
Berbel, 2006, p.3), em Filosofia da práxis, significa “elevar nossa
consciência da práxis como atividade material do homem que
transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo hu-
mano”.
Berbel (2006, p.9) expõe que a práxis não é definida apenas
como interpretação do mundo, mas também como guia de sua
transformação. E a autora aprofunda:

A práxis é uma atividade consciente e intencionalmente transfor-


madora; para se atingir o nível da práxis é preciso ultrapassar o
senso comum; é preciso superar o ponto de vista espontâneo e ins-
tintivo da consciência comum; alcançar o nível da práxis significa
ascender a um ponto de vista objetivo e científico a respeito da
atividade humana; a práxis implica, pois, em relação consciente
entre pensamento e ação, entre teoria e prática; é pelo trabalho do
homem que ele se eleva a uma concepção da práxis humana total;
é pela práxis que o homem atinge o domínio sobre a natureza e
sobre ele mesmo; a práxis constitui um instrumental para se
abordar os problemas do conhecimento, da história, da sociedade
e do próprio ser; o nível da consciência da práxis equivale a um
nível de consciência filosófica, para além do senso comum; e, a
práxis constitui um instrumento de superação criadora e revolu-
cionária do já existente.

A educação problematizadora, segundo Freire (2005), permite


desenvolver a práxis, pois reconhece a historicidade dos sujeitos e o
158  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

caráter histórico da realidade, ou seja, os indivíduos são “seres além


de si mesmos”, que buscam melhor construir o futuro e melhor
conhe­cer o que estão vivendo, dentro de um movimento perma-
nente e histórico e com uma realidade que também é inacabada e
historicamente construída.
Também considerada progressista, a pedagogia crítico-social
dos conteúdos, conforme defende Libâneo (1984, p.39), considera
a educação na formação para a realidade e suas contradições, utili-
zando para isso a socialização dos conteúdos, visando à postura
ativa do educando na sociedade democrática.
Essa pedagogia privilegia a questão dos conteúdos. Libâneo
considera que os métodos de ensino são subordinados aos con-
teúdos, pois o objetivo é a obtenção do saber e os métodos precisam
beneficiar os interesses dos alunos com os conteúdos. “Os métodos
de ensino da pedagogia crítico-social dos conteúdos não partem,
então, de um saber artificial, depositado a partir de fora, nem do
saber espontâneo, mas de uma relação direta com a experiência
do aluno, confrontada com o saber trazido de fora” (Libâneo, 1984,
p.40).
O trabalho docente articula a experiência dos alunos com os
conteúdos sugeridos pelo professor, rompendo com a experiência
pouco significativa. Libâneo (1984, p.41) afirma que essa ruptura
é possível com a introdução dos elementos novos aplicados à prá-
tica do aluno e esclarece:

uma aula começa pela constatação da prática real, havendo em se-


guida a consciência dessa prática no sentido de referi-la aos termos
do conteúdo proposto, na forma de um confronto entre a expe-
riência e a explicação do professor. Vale dizer: vai-se da ação à
expli­cação e da compreensão à ação, até a síntese, o que não é outra
coisa senão a unidade entre a teoria e a prática.

Constata-se que os fundamentos teóricos que embasam a


meto­dologia da problematização são resultantes do entendimento
sobre educação como mais do que transmitir conhecimentos, como
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  159

fim em si mesmo. Isto porque essa metodologia compreende a


educa­ção como fenômeno social, ou seja, tem como objetivo formar
a consciência crítica do indivíduo para atuar intencionalmente em
sua realidade, utilizando a socialização dos conteúdos e buscando a
construção do saber, cabendo ao professor articular a vivência dos
alunos com o meio.
Muito mais do que estar inserida numa tendência pedagógica,
a metodologia da problematização assume um complexo olhar
sobre o indivíduo, suas experiências e sua relação com o meio.

Conceitos sobre problematização: apresentando o


entendimento de autores

Partindo do princípio de que este estudo focaliza as práticas no


ensino superior que se propõem a trabalhar com a problematização,
neste momento expõem-se os conceitos referentes à temática a fim
de aproximar ideias, confrontar opiniões e descrever o entendi-
mento de diversos autores.
Inicialmente, antes de nos debruçarmos sobre os conceitos de
problematização apresentados por diversos autores, é importante
que nos remetamos às ideias de John Dewey, considerado o maior
pedagogo do século XX, as quais são referências da base teórica
para aprender a aprender, para refletir e para resolver problemas.
Segundo Gadotti (1995), John Dewey foi o defensor da Escola
Ativa, que propunha a aprendizagem através da atividade pessoal
do aluno, criticava a obediência e a submissão cultivadas na edu-
cação, pois as considerava verdadeiros obstáculos à educação.
Além disso, o pedagogo liberal norte-americano defendia que
a iniciativa, a originalidade e a cooperação favoreciam o desenvol­
vimento das potencialidades dos indivíduos, as quais não eram
enxer­gadas em um contexto verticalizado e submisso, ao qual era
contrário, pois entendia que
160  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

A imposição de cima para baixo opõe-se à expressão e cultivo da


individualidade; à disciplina externa, opõe-se à atividade livre;
a aprender por livros e professores, aprender por experiências; à
aquisição por exercício e treino de habilidades e técnicas isoladas,
sua aquisição como meios para atingir fins que respondem a ape­los
diretos e vitais do aluno; à preparação para um futuro mais ou
menos remoto opõe-se aproveitar-se ao máximo das oportunidades
do presente; a fins e conhecimentos estáticos opõe-se a toma­da de
contato com um mundo de mudança. (Gadotti, 1995, p.150)

Dewey valorizava a relação estreita e necessária entre as expe-


riências vividas dos indivíduos e a educação, visto que os contatos
entre o “imaturo” e a “pessoa amadurecida” passam a ser mais fre-
quentes do que os estabelecidos na escola tradicional (Gadotti,
1995).
A educação é entendida por Dewey como ampliação das possi-
bilidades de vida pela aquisição da capacidade de pensar reflexiva-
mente os problemas. Em sua teoria educacional, Dewey focaliza o
aprendizado através da experiência reflexiva e por descoberta e cri-
tica o armazenamento de conhecimentos de experiências alheias.
Isso porque despejar conhecimentos é trabalho vazio, segundo o
autor, pois a ideia que é dita constitui um comunicado para quem
ouve e não algo vital, levando à perda de interesse e diminuição do
esforço para pensar (Dewey, 1979a).
Isso porque, na concepção deweyana, o pensar adota a lógica
do problema advindo da experiência de vida que gera a investi-
gação reflexiva, permitindo a reconstrução de opiniões, signifi-
cados e soluções da situação problemática, produzindo, assim, o
conhecimento. Nessa concepção, a relação com situações que en-
volvem um problema é decisiva no processo de conhecer.
Dewey considera que a aprendizagem deve partir da proble-
matização dos conhecimentos prévios do aluno. Nessa visão educa-
tiva, propõe que a aprendizagem seja estimulada por problemas ou
situações que gerem dúvidas ou perturbações intelectuais. Valoriza
experiências concretas e problematizadoras com forte motivação
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  161

prática e estímulo cognitivo para possibilitar escolhas e soluções


criativas. Nesse caso, leva o aluno a uma aprendizagem significa-
tiva, pois este utiliza diferentes processos mentais (capacidade de
levantar hipóteses, comparar, analisar, interpretar, avaliar) e desen­
volve a capacidade de assumir responsabilidade por sua formação
(Dewey, 1979a).
Para Cambi (1999), Dewey utiliza a ciência e a investigação
como suportes para a formação da inteligência e para a revisão crí-
tica da experiência, através de três ideias centrais: 1) pragmatismo,
pelo qual o fazer do educando é o momento central da aprendi-
zagem e os conteúdos ensinados devem servir como instrumentos
para a resolução de problemas reais; 2) ciências experimentais, em
que a educação deve recorrer a seus próprios problemas; e 3) edu-
cação como responsável por uma formação cidadã dotada de uma
mentalidade moderna, científica e aberta à colaboração.
Feito esse destaque sobre as ideias de John Dewey que contri-
buíram para a construção dos conceitos sobre problematização,
passamos à exposição de diversos autores que exprimem seus en-
tendimentos sobre a questão.
Os conceitos relacionados à problematização referem-se, em
sua maioria, a um método de ensino voltado para o estudo da reali-
dade dinâmica e complexa e a busca para solução de problemas es-
pecíficos da mesma, como encontramos em Cyrino e Rizzato,
2004; Rodrigues e Caldeira, 2008; Godoy, 2002; Mitre et al., 2008;
Cyrino e Pereira, 2004; Giannasi e Berbel, 1998; Berbel, 1999; Mi-
randa e Barroso, 2004; Téo et al., 2002; Borille et al., 2012; Silva
e Delizoico, 2008; Corrêa et al., 2011; Prado et al., 2012; Marin
et al., 2010; Freitas, 2011.
A expressão “metodologia da problematização” foi cunhada
por Berbel (1995, 1998, 1999, 2012) e se originou do livro Estra­
tégias de ensino aprendizagem, de Juan Diaz Bordenave e Adair
Martins Pereira, sobre um esquema de trabalho elaborado por
Charles Maguerez denominado método do arco, que posterior-
mente foi aperfeiçoado por Bordenave, centrado em uma pedagogia
problematizadora.
162  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

De acordo com outros autores, a metodologia da problemati-


zação fundamenta-se na abordagem pedagógico-crítica, que con-
cebe a educação como prática social voltada para a crítica e a
transformação social da realidade e do sujeito por meio da interação
entre as pessoas e a relação com o mundo que as cerca, envolvendo
diferentes dimensões: individuais, institucionais, políticas, cogni-
tivas, afetivas e relacionais (Damasceno; Said, 2008; Corrêa et al.,
2011).
Berbel (1998, 1999), Téo et al. (2002) e Cyrino e Rizzato (2004)
indicam que, ao desenvolver trabalhos com essa metodologia, se
promove a mobilização do potencial social, político e ético dos
alunos, pois são levados a observar a realidade atentamente e iden-
tificar aquilo que se mostra como preocupante e, através de um
processo criativo que envolve ação-reflexão, a trabalhar sobre
um aspecto da realidade observada e, como consequência, realizar
alguma transformação.
Berbel (2006) e Freitas (2011) assinalam que essa intervenção
dos alunos sobre o problema diagnosticado, mesmo em uma pe-
quena dimensão, é importante para torná-los participantes da
construção histórica da realidade, num exercício de práxis, pois, na
educação problematizadora, o importante, como considera Gian-
nasi (1999), é a construção do conhecimento e do aluno como res-
ponsável, crítico e agente de transformação. O que se prioriza é a
tomada de consciência e decisões para intervir nos problemas da
realidade na qual estão inseridos, como afirmam Torrezan; Guima-
rães; Furlanetti (2012).
Saviani (2001, p.71) define a problematização como:

identificação dos principais problemas postos pela prática social.


Trata-se de detectar que questões precisam ser resolvidas no âm-
bito da prática social e, em consequência, que conhecimento é
necessário dominar.

Além disso, o autor defende que “a capacidade de problema-


tizar depende da posse de alguns instrumentos” (ibid., p.75). Isso
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  163

porque o ensino não prossegue por alguma dificuldade surgida,


sendo preciso resolver esse problema através da busca de infor­
mações (coleta de diferentes tipos de dados: documentais, biblio-
gráficos, de campo) que permitam formular e testar hipóteses
explicativas para o problema.
Fundamentando-se nas ideias de Saviani e Gasparin (2002)
considera a problematização como desafio, significando levantar
situações-problema que estimulem o raciocínio para que o edu-
cando busque o conhecimento, ou seja, investigue soluções para as
questões do estudo. O autor afirma ser uma nova forma de consi-
derar o conhecimento, já que as questões de estudo assumem múl-
tiplas faces que podem ser exploradas.
Libâneo (1984) reconhece a problematização como um dos
passos para uma aprendizagem pautada na troca de experiências
em torno da compreensão profunda sobre a realidade, motivada a
partir de uma situação-problema identificada. Ainda, segundo o
autor, a problematização envolve o exercício da abstração, pela
qual se procura atingir, por meio de reflexões sobre a realidade con-
creta, a razão de ser dos fatos.
Rossi e Trevisan (1995) e Chirelli e Mishima (2004) comparti-
lham a ideia de que a problematização é questionamento, dis-
cussão, apresentação de dúvidas e troca de informações dentro do
contexto de uma realidade e permite construir na área da saúde
uma visão questionadora sobre o mundo, transformando os su-
jeitos na sua forma de ver e pensar o mundo.
Furlanetti (2009, p.28) adiciona, nesse sentido, que a proble-
matização começa quando há quebra do silêncio por meio de per-
guntas, pois no silêncio não existe a compreensão da realidade:
“Perguntas são dúvidas e elas existem a partir do momento em que
percebemos que não sabemos, mas que temos o espaço do diálogo,
o espaço da voz”.
Morin (2001) destaca o “espírito problematizador” para des-
pertar a curiosidade, orientando os alunos para os problemas fun-
damentais de nossa própria condição e época. Afirma o autor
(2001, p.22): “o desenvolvimento da inteligência geral requer que
164  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

seu exercício seja ligado à dúvida, fermento de toda atividade


críti­ca”.
Entretanto, para Zanotto (2002) e Mitre et al. (2008), proble-
matizar seria mais do que formular questões ou perguntas, pois
nem toda pergunta contém um problema. Significa responder ao
conflito que o problema traz e que o sustenta ou solucionar con-
flitos que delimitam o problema.
Giannasi e Berbel (1998), Berbel (1998), Colombo e Berbel
(2007) ressaltam que, ao problematizar a realidade, os alunos
adqui­rem um compromisso com o seu meio, já que do meio identi-
ficaram os problemas e para ele levarão uma resposta de seus es-
tudos, a fim de aplicar os conhecimentos na solução dos problemas,
através do retorno crítico a esse meio, estimulado pelo educador.
A metodologia pedagógica baseada na problematização tem o
potencial de formar estudantes críticos, reflexivos e criativos no
que se refere aos problemas vividos na forma individual e coletiva,
contribuindo para a construção do conhecimento de forma refle-
xiva, em parceria com os educadores, visando prepará-los para a
modificação da realidade, transformando as situações de saúde-
-doença e seus respectivos cuidados que fazem parte da realidade
vivida, conforme apontam autores como Rodrigues e Caldeira,
2008; Schaurich, Cabral e Almeida, 2007; Godoy, 2002; Dal Poz et
al., 1992; Giannasi e Berbel, 1998; Miranda e Barroso, 2004; Prado
et al., 2012.
Silva e Delizoico (2008) expõem que a metodologia problema-
tizadora pode ser entendida também em duas dimensões: como
busca de situações que envolvem a necessidade de liberdade do ser
humano, com contribuições aos conhecimentos da área de saúde; e
como procedimento mediador do diálogo entre o conhecimento
prévio do aluno e o conhecimento científico do professor em torno
das situações eleitas como problemas.
Berbel (1999, p.33) sintetiza, com Bordenave e Pereira:

Uma pessoa só pode conhecer bem algo quando o transforma e


transforma-se a si própria no processo de conhecimento; a solução
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  165

de problemas implica a participação ativa e o diálogo constante


entre alunos e professores. A aprendizagem é concebida como
uma resposta natural do aluno ao desafio de uma situação-pro-
blema; a aprendizagem é uma pesquisa em que o aluno passa de
uma visão sincrética ou global do problema a uma visão analítica
do mesmo, chegando a uma síntese provisória, que equivale à
compreensão. Esta síntese tem continuidade na práxis, isto é, na
atividade transformadora da realidade.

A metodologia da problematização carrega um rico potencial


de mobilizar o posicionamento social, político e ético dos alunos,
através de reflexões entre educador e educando sobre situações que
se mostram preocupantes.
Requer mudança na postura do professor, justificando aos
alunos os motivos de adotar tal metodologia em sua formação de
profissionais de saúde, ou seja, revelando os ganhos, os frutos ad-
quiridos, ou seja, as experiências que poderão ser colhidas.
As diversas explicações sobre a metodologia da problemati-
zação são permeadas por conceitos que se centralizam na identifi-
cação de um problema e na busca de soluções. A dúvida, a pergunta,
a reflexão são amplamente utilizadas ao problematizar; no entanto,
alerta-se para não se simplificar essa ação, pois a mesma requer ha-
bilidade dos professores e situações favoráveis de investigação para
a formulação do problema.

Práticas pedagógicas nos serviços de saúde:


a aproximação das práticas problematizadoras
com a área da saúde

O estudo das práticas de ensino superior em saúde que anun-


ciam utilizar a problematização estimula situar o processo histórico
das práticas educativas tradicionais e das baseadas nos conceitos do
educador Paulo Freire no contexto da área da saúde, não só no en-
sino, como já foi feito ao expor o novo perfil do profissional de
166  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

saúde, mas no contexto dos serviços de saúde, a educação popular


em saúde. A breve contextualização histórica resgata alguns dos
principais pontos que demarcam as presenças pedagógicas no con-
texto da saúde no país.
As preocupações com a transmissão de conhecimentos sobre
saúde à população se iniciam em torno de 1894, para tentar con-
trolar as epidemias que se alastravam no país: peste, tuberculose e
febre amarela. Em 1920, surge a expressão “educação sanitária”, a
qual tinha como foco realizar a propaganda de hábitos de higiene,
visto que o indivíduo era considerado como principal fator da
doença (Donato, 2000). A figura do educador sanitário ganha força
sobre a população, pois o mesmo difundia as normas e regras do
discurso higienista, afastando-se da cultura, costumes e crenças
da população em decorrência da imposição de atitudes conside-
radas adequadas a uma boa saúde. Conforme esclarece Silva et al.
(2010, p.2.542),

as ações de educação em saúde passaram a se desenvolver pelos


educadores sanitários e professoras, que eram treinados para exer-
cerem a função de educar a população. Porém, houve uma grande
falha na proposta da década de vinte, que foi o pequeno peso con-
ferido aos fatores ambientais e ainda a excessiva importância aos
agentes etiológicos. As ações não intervinham nas condições de
vida e de trabalho a que a classe popular estava submetida.

Durante os anos de 1930 a 1945, a educação sanitária assume


um caráter mais autoritário e o sentido de enfatizar a formação de
hábitos sadios e limpos entre a população persiste. A pedagogia
utilizada nesse contexto era baseada no combate à ignorância e na
difusão de conhecimentos e hábitos de higiene adequados. Os ma-
teriais utilizados para tal feito eram folhetos, cartazes, livretos e
filmes, cujas mensagens carregavam ilustrações aterrorizantes. Em
1950, surge um esforço por parte dos educadores sanitários em co-
nhecer os fatores socioeconômicos e culturais da população dita
“marginalizada” de modo a integrá-la à sociedade em geral e,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  167

assim, a partir de 1967, surgem novos programas educativos que


começam a fazer parte dos serviços de saúde. Nesse sentido, apa-
recem tentativas de melhorar as práticas dos programas educativos
em saúde baseando-se em práticas comprometidas com as classes
populares (Donato, 2000).
De maneira geral, entre os anos 1950 e 1960, a pedagogia em
saúde, para Silva et al. (2010), tinha por meta remover os obstá-
culos culturais e psicossociais às inovações tecnológicas de controle
às doenças, a fim de manter o domínio estrutural da sociedade.
Contudo, segundo Vasconcelos (2001), é a partir da década de
1970 que profissionais de saúde, motivados por uma atuação mais
significativa para as classes populares, buscam formas alternativas
de atuação, valorizando o diálogo para compreender o saber do
inter­locutor popular e as trocas interpessoais que acontecem tanto
nos contatos formais (consultas individuais, reuniões educativas e
visitas domiciliares) como também nos contatos informais.
Conforme nos indica Silva et al. (2010), a participação de pro-
fissionais de saúde nas experiências de educação popular a partir
dos anos 1970 trouxe para o setor de saúde uma cultura de relação
com as classes populares que representou uma ruptura com a tra-
dição autoritária e normatizadora da educação em saúde.
No setor da saúde, a educação popular passa a dinamizar e for-
talecer a relação com a população e seus movimentos, pois busca
trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no
processo de participação popular, fornecendo formas coletivas de
aprendizado e investigação de modo a promover o crescimento
da capacidade de análise crítica da realidade (Vasconcelos, 2001).
Assim, é nesse cenário que o método educacional sistemati-
zado por Paulo Freire constituiu-se como referência para a relação
entre profissionais de saúde e as classes populares, permitindo
espa­ço para novas experiências no campo da educação em saúde,
baseadas no método dialógico de Paulo Freire, configurando,
enfim, a educação popular em saúde, segundo estudos de Silva
et al. (2010).
168  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Vasconcelos (2001, p.124), no entanto, complementa que a


educação popular em saúde tem as seguintes características:

O elemento fundamental do seu método é o fato de tomar como


ponto de partida do processo pedagógico o saber anterior das
classes populares [...]. No trabalho, na vida social e na luta pela
sobrevivência e pela transformação da realidade, as pessoas vão
adquirindo um entendimento sobre a sua inserção na sociedade e
na natureza. Este conhecimento fragmentado e pouco elaborado
é a matéria-prima da educação popular. A valorização do saber
popu­lar permite que o educando se sinta “em casa” e mantenha a
sua iniciativa. Neste sentido, não se reproduz a passividade usual
dos processos pedagógicos tradicionais. Na educação popular não
basta que o conteúdo discutido seja revolucionário, se o processo
de discussão se mantém vertical.

Silva et al. (2010) fortalecem a ideia de que a educação popular


em saúde se afasta do autoritarismo da cultura sanitária e do modo
tradicional de definir normas na área de saúde, trabalhando pela
participação das pessoas comuns e pela interlocução entre saberes e
práticas. Parte da dinâmica própria que as classes populares têm
sobre as doenças e seus processos de cura, adquirida no seu coti-
diano, e esse saber deve ser respeitado e incorporado às práticas de
saúde. Dessa forma, ocorre uma relação horizontal entre profissio-
nais de saúde, considerados mediadores, e a comunidade, através
de um diálogo educativo não punitivo ou normativo para o fortale-
cimento comunitário.
Após a implantação do SUS, na década de 1980, ainda perma-
nece a educação tradicional, centrando o poder nas mãos do profis-
sional de saúde. No entanto, a educação popular ganha visibilidade
e incorpora outras práticas e espaços educativos, baseando-se no
encorajamento e apoio, para que as pessoas assumam maior con-
trole sobre sua saúde e suas vidas (Silva et al., 2010).
Desde 1991, experiências com educação popular e saúde vêm
se expandindo e consolidando a trajetória de atuação nos novos
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  169

servi­­ços de saúde a partir do instrumental da educação popular


(Vasconcelos, 2001).
A seguir são descritas algumas experiências que focalizam a
educação popular em saúde como proposta das práticas e ações
desen­volvidas.
Vasconcelos (1997), em seu livro A Medicina e o pobre, publi-
cado no ano de 1987, conta a sua experiência de utilização do rádio
como instrumento de educação popular e de dinamização das ações
técnicas de saúde que repercutiram no interior da Paraíba, justi­
ficando que o rádio é um meio de comunicação para atividades
educativas, campanhas, esclarecimentos, ou seja, serve para ajudar
os membros da comunidade a se fortalecer como cidadãos.
Torres et al. (2003) discutem, em seu trabalho, uma estratégia
educativa desenvolvida em ambulatório de especialidade para esti-
mular o indivíduo a refletir sobre seu estilo de vida cotidiano rela-
cionado à diabetes mellitus. Para tal, foram desenvolvidas atividades
de interação profissional de saúde/indivíduo com técnicas pedagó-
gicas, como curso de orientação em diabetes mellitus, consulta indi-
vidual, grupo operativo e uso de material educativo de comunicação
e aprendizagem.
Como se observou, as práticas educativas em saúde dividem-
-se entre posturas tradicionais, autoritárias e verticalizadas, e pos-
turas que valorizam o diálogo e o saber popular como ponto de
partida para as intervenções em saúde. Tais posturas demarcam a
evolução do conhecimento sobre o ser humano, sua relação com
a sociedade e suas condições de vida.

A metodologia da problematização no ensino em


saúde: suas etapas e possibilidades

Situadas as bases teóricas da MP, exposto o entendimento de


diversos autores e brevemente contextualizadas as práticas que uti-
lizam a educação problematizadora na esfera da saúde, parte-se
para a exposição teórica sobre a metodologia da problematização
170  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

com o arco de Maguerez, enfatizando o ensino superior em saúde e


as faces que dificultam e/ou fortalecem sua utilização.
Os responsáveis pela apresentação a público desse método
foram Juan Diaz Bordenave e Adair Martins Pereira, em seu livro
Estratégias de ensino aprendizagem, com primeira edição em 1977.
O arco de Maguerez foi um dos primeiros referenciais teóricos que
auxiliaram na fundamentação que Berbel (1995, 1998, 1999, 2012a,
2012b) passou a desenvolver e denominar de metodologia da pro-
blematização (MP).
A metodologia da problematização, cunhada por Berbel, é am-
plamente utilizada por profissionais da área da saúde na prática
profissional com envolvimento de usuários na educação em saúde,
com profissionais na capacitação e educação permanente, na for-
mação e na pesquisa, tal como se lê em Merhy, 2005; Backes et al.,
2007; Cyrino e Rizzato, 2004; Rodrigues e Caldeira, 2008; Costa,
1999; Rezende et al., 2006; Schaurich, Cabral e Almeida, 2007;
Godoy, 2002; Kruze e Bonetti, 2004; Cotta et al., 2012; Fernandes
et al., 2005; Cyrino e Pereira, 2004; Farah e Pierantoni, 2003; Pe-
reira, 2003; Miranda e Barroso, 2004; Torrezan, Guimarães e Fur-
lanetti, 2012; Marin et al., 2010; Stroschein e Zocche, 2011; Borille
et al., 2012; Prado et al,. 2012; Silva e Delizoico, 2008; Freitas,
2011; Iochida, 2004. Isso porque essa metodologia, segundo
Schaurich, Cabral e Almeida (2007, p.322), no ensino em saúde
auxilia

na transcendência do modelo biomédico dominante para um mo-


delo holístico, ou seja, por possibilitar a crítica e a reflexão, esta
proposta metodológica pode ajudar a transpor o modelo curati-
vista e medicalizante, que percebe o ser humano de forma frag-
mentada e se utiliza de um conhecimento altamente especializado,
para um outro paradigma que estimula o desenvolvimento da
cida­dania, possibilitando a compreensão do ser humano social-
mente inserido […] de forma holística e humanizada, além de
priorizar a prevenção de agravos e a promoção à saúde.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  171

Prado et al. (2012) e Rossi e Trevisan (1995) acrescentam que a


metodologia da problematização é, ainda, capaz de possibilitar a
ocorrência de transformações na prática em saúde e na realidade.
A seguir apresentam-se, detalhadamente, as etapas que com-
põem o caminho didático da metodologia da problematização, con-
forme descrição de Berbel (1998, 1999, 2012a, 2012b) e Colombo
e  Berbel (2007). São cinco etapas que se desenvolvem a partir da
reali­dade ou de um recorte da mesma e para ela retorna: a obser-
vação da realidade e a identificação do problema, os pontos-chave,
a teorização, as hipóteses de solução e a aplicação à realidade.

1. Observação da realidade concreta. Observação atenta do


aluno e registro sobre o que percebe de uma parcela da realidade,
podendo ser dirigidas questões gerais para focalizar os temas.
Devem identificar dificuldades, falhas, contradições, discrepân-
cias, conflitos etc., que possam configurar-se como problemas.
Quando se aproxima dessa realidade a ser observada, os partici-
pantes trazem consigo alguns saberes advindos de fontes diversas
que, ao serem confrontados com as informações da realidade, per-
mitem problematizar a realidade, isto é, fazem interagir saberes
prévios com aqueles construídos diante da realidade. É momento
172  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

de problematização: formular o problema (uma questão, afirmação


ou negação) a partir de fatos observados, por entendê-los como ins-
tigantes. Elege-se um problema com critérios (o que tem mais ur-
gência, necessidade de estudo e qual apresenta maior possibilidade
de que se atue sobre ele). Há, então, justificativas para a escolha do
problema, entre as quais, as possíveis contribuições para o estudo e
para o meio. Esta etapa possibilita ao aluno postura crítica, envolvi-
mento intelectual e político.
2. Determinação de pontos-chave. Momento de definição do
que vai ser pesquisado sobre o problema. Inicia-se com uma re-
flexão para compreendê-lo melhor através da interrogação sobre os
possíveis determinantes ligados ao problema numa dimensão con-
textual mais ampla que afetam a situação na qual este surge, produ-
zindo uma percepção de sua multideterminação e complexidade.
Os educandos refletirão sobre os possíveis fatores do problema em
estudo. Por que será que esse problema acontece? Depois da re-
flexão inicial dos possíveis fatores associados ao problema, de-
finem-se os possíveis determinantes maiores, contextuais, como os
aspectos políticos, econômicos e éticos. Assim, os educandos vão
elaborando os pontos essenciais a serem estudados para com-
preender mais profundamente o problema e encontrar formas de
interferir na realidade. São eleitos os pontos considerados prioritá-
rios ou mais relevantes, que indicarão caminhos para solucionar o
problema. Esse é o momento da análise reflexiva em que o pro-
fessor ajuda os alunos na produção de uma nova síntese e no con-
junto dos tópicos a serem investigados.
3. Teorização. Etapa do estudo, da investigação. É a etapa em
que os alunos buscam conhecimentos e informações acerca do pro-
blema em variadas fontes, com o uso de diferentes estratégias ou
formas de coleta de informações (pesquisa bibliográfica, entre-
vistas, consultas a especialistas etc.). O estudo deve servir de base
para a transformação da realidade. As informações colhidas são
analisadas e avaliadas quanto à sua contribuição para a resolução do
problema. Os alunos organizam e analisam o material obtido, além
de verificar sua validez e pertinência para a solução do problema,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  173

relacionando teoria e prática, através da discussão e análise. É o


momento em que os educandos adquirem uma consciência maior
daquele problema e de sua influência para o meio social.
4. Hipóteses de solução. Etapa em que o potencial criativo e o
reflexivo são mobilizados para pensar de modo inovador. Per-
guntas dessa etapa são: o que é necessário acontecer para que se
chegue à solução do problema? O que deve ser providenciado? O
que pode ser feito, de fato? Com base na teorização, os partici-
pantes projetam ideias que poderão se transformar em ações con-
cretas para solucionar ou desencadear caminhos para a solução. A
formulação das hipóteses de solução deve ser norteada pela per-
cepção do problema e pela compreensão teórica adquirida pelos
alunos. Todo o estudo deverá fornecer elementos para os alunos
elaborarem soluções.
5. Aplicação prática à realidade. Esta é a etapa da efetuação das
hipóteses de solução mais viáveis, sendo analisadas e escolhendo-se
as que poderão ser realizadas e atingirão o problema em algum
grau, contribuindo para a transformação da realidade estudada.
Promove transformação, mesmo que pequena. Momento de plane-
jamento e execução, desenvolvimento de um compromisso social,
profissional e político. Permite ampliar o conhecimento para o
meio estudado, com os participantes percebendo-se como sujeitos
ativos para a cidadania. O caráter prático faz com que os alunos
tomem decisões e as executem, demarcando um componente social
e político em sua formação que os ajuda a desenvolver o compro-
misso com a transformação da realidade observada. É importante e
necessário garantir alguma forma de aplicação concreta do estudo,
no mínimo a ação de socializar o conhecimento adquirido.

Dadas as aproximações entre teoria e prática permitidas pela


metodologia da problematização, o estudante torna-se mais bem
preparado para dar respostas complexas aos problemas de saúde,
considerando os determinantes sociais que influenciam as condi-
ções de vida e as intervenções em saúde como se lê em Cardoso
et al., 2011; Schaurich, Cabral e Almeida, 2007; Godoy, 2002; Mitre
174  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

et al., 2008; Dal Poz et al., 1992; Cyrino e Pereira, 2004; Rossi e
Trevisan, 1995; Moraes e Berbel, 2006; Téo et al., 2002; Siqueira
Júnior e Bueno, 2006; Borille et al., 2012; Silva e Delizoico, 2008;
Prado et al., 2012; Marin et al., 2010; Freitas, 2011.
Schaurich, Cabral e Almeida (2007) também concordam que a
metodologia da problematização prepara o estudante para identi-
ficar problemas e apontar propostas de superação dos mesmos, já
que aproxima o ensino dos serviços de saúde, favorecendo um olhar
refinado e uma prática contextualizada, tão necessária à área da
saúde.
Observa-se que não basta aplicar as etapas do arco, mas, sobre-
tudo, fundamentar-se em teorias, tanto científicas como pedagó-
gicas, que assegurem um bom aproveitamento desse modo de
trabalho com os alunos.
Os alunos dos cursos da área da saúde necessitam refletir sobre
a prática de cuidado de maneira comprometida com as necessi-
dades da população, através da problematização da realidade para
compreendê-la, explicá-la e transformá-la por meio da práxis.

Dificuldades e implicações do uso da


metodologia da problematização no
ensino superior em saúde

Para contribuir na composição de um panorama que envolva


as inúmeras possibilidades de trabalho com a MP e seus possíveis
ganhos, nesta seção são expostas também algumas questões rela-
cionadas às dificuldades ao se utilizar a MP tanto no que diz res-
peito ao posicionamento do professor e da instituição quanto ao
posicionamento e perfil de trabalho do aluno.
A dificuldade dos alunos em trabalhar em equipe e a capaci-
dade criadora reprimida limitam o aproveitamento do potencial da
MP para o pleno desenvolvimento de futuros profissionais de
saúde (Cotta et al., 2012).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  175

Chirelli e Mishima (2004) lembram que o espaço para o diá-


logo precisa ser aberto na busca da superação das contradições,
pois, quando não se trabalha o conflito entre os alunos, ignora-se a
diversidade de opiniões e modos diferentes de ver o mesmo objeto.
Borille et al. (2012) consideram que a execução de todas as
etapas do arco de Maguerez e a inclusão do sujeito como partici-
pante torna sua aplicação complexa e difícil. Isto ocorre pelo fato de
a maioria dos profissionais da saúde ter sua formação acadêmica no
modelo da pedagogia transmissora e essa metodologia demandar
flexibilidade para estabelecer diálogo com os sujeitos e posiciona-
mento do professor como facilitador da aprendizagem, conside-
rando os diferentes pontos de vista e conhecimento de cada aluno.
Nesse sentido, o professor necessita estar capacitado para a
aplicação do arco de Maguerez na metodologia da problematização,
para ter clareza dos limites e avanços necessários para trabalhar os
problemas e as etapas. Isto é, o uso do arco exige posturas diferentes
do modelo tradicional de ensino, bem como uma mudança na pos-
tura do aluno, que passa a fazer parte da construção de seus conhe-
cimentos, conforme indicam os autores Farah e Pierantoni, 2003;
Cyrino e Pereira, 2004; Rossi e Trevisan, 1995; Moraes e Berbel,
2006; Téo et al., 2002; Iochida, 2004.
Somado a esse fator, destaca-se a convergência dos professores
e alunos em elaborar os problemas; dificuldade em adquirir uma
postura problematizadora e confusão sobre o que é problematizar
(Alves; Berbel, 2012).
Há também que se reconhecer que essa proposta metodo­lógica,
quando aplicada no ensino na área da saúde precisa estar associada
a outras propostas pedagógicas que envolvam a interdisciplinari-
dade de conhecimentos. Além disso, exige um espaço temporal que
pode não estar disponível nas grades curriculares e/ou nas relações
de ensino-aprendizagem, principalmente nos espaços de prática,
contemplando as diversas dimensões do processo saúde-doença,
possibilitando aproximação entre as ações curativas e preventivas,
entre a educação e o mercado de trabalho, tanto em uma perspec-
176  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

tiva individual quanto coletiva (Schaurich; Cabral; Almeida,


2007).
Iochida (2004, p.166) sinaliza ainda a importância de uma
atenção aos nós críticos da metodologia da problematização, dentre
eles:

O risco de tomá-las como simples instrumentos técnicos, desvin-


culados de um projeto político-pedagógico; o viés de discutir
ape­nas a partir da centralidade no aluno, secundarizando as con-
dições concretas de prática e formação e o lugar do ensino como
ação intencional; o desafio de reconfigurar o papel do educador
em uma perspectiva dialógica.

Percebe-se que, dentro das questões expostas nesta seção, há


autores que explicam a utilização da MP com o arco de Maguerez
no ensino superior em saúde, outros que valorizam possíveis resul-
tados com o seu uso, há os que indicam o que seria necessário para
a utilização no ensino acadêmico e os que apontam as dificuldades
para adotar essa metodologia.
Esses posicionamentos podem estar ligados à operacionali-
zação da metodologia da problematização nos estudos acessados,
de maneira que o perfil da instituição de ensino, as tradições de
ensi­no e o sucesso ou não na primeira experiência com essa meto-
dologia podem interferir nos apontamentos sobre as facilidades e
dificuldades.
A metodologia da problematização é amplamente utilizada na
área da saúde, pois contribui para a construção de habilidades
neces­sárias no trabalho em saúde, como: identificação de pro-
blemas e indicação de soluções, prática contextualizada, criativi-
dade e o trabalho em equipe, capacidade de raciocinar, comunicar e
criar compromisso e responsabilidade.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  177

Experiências com metodologia


da problematização na área da saúde
e a problematização de cenários nas
práticas em saúde

Nesta seção são apresentadas as experiências com a Metodo-


logia da Problematização com o Arco de Marguerez a fim de veri-
ficar a diversidade de situações em que pode ser aplicada.
Com o levantamento bibliográfico realizado, foi possível veri-
ficar diversos contextos em que a metodologia da problematização
está presente na formação dos estudantes da área da Saúde, nas in-
tervenções de educação em saúde e na coleta de dados de pesquisas.
Schaurich, Cabral e Almeida (2007), seguindo orientações de
Berbel para a metodologia da problematização, aplicaram as etapas
do arco de Maguerez com alunos de Enfermagem no campo das
práticas hospitalares. O primeiro momento do arco − o contato
com a realidade − ocorreu com uma visita dos alunos às enferma-
rias e um diálogo com os pacientes e seus acompanhantes. Esse
contato com a realidade permitiu aos alunos conhecer a pessoa a ser
cuidada e o seu contexto. Assim, os educandos, com o educador,
identificaram como problema a ser resolvido a falta de um cuidado
em enfermagem que envolvesse efetivamente os cuidadores. Poste-
riormente, na fase de levantamento dos pontos-chave, passaram a
elencar as necessidades de cuidado de cada paciente, como: a reali-
zação de curativo, a alternância de decúbito, a administração de
medicamentos, os materiais necessários para se fazer um curativo,
a interação entre quem cuida e quem é cuidado, o respeito e os pre-
ceitos éticos. Definidas as questões básicas para o estudo, estas
foram teorizadas, ou seja, os educandos e o educador revisaram na
literatura os aspectos considerados importantes. Após a teorização,
seguiu-se o momento em que os educandos elaboraram ideias que se
tornariam soluções do problema, as hipóteses de solução, e foi de-
finida a proposição de um plano de cuidados em enfermagem,
descobrindo uma forma de envolver o acompanhante do paciente
no processo de cuidar. A aplicação à realidade ocorre quando os
178  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

educandos implementam os planos de cuidados em enfermagem a


fim de provocar melhorias no contexto de cuidado vivido pelo pa-
ciente e pelo seu acompanhante.
Damasceno e Said (2008) basearam-se também nas orientações
de Berbel sobre a metodologia da problematização e relataram que
o parto foi o estopim para enfermeiras realizarem também oficinas,
mas agora sobre educação em saúde, utilizando as etapas do arco de
Maguerez, para auxiliar as mulheres quanto às suas dúvidas e seus
medos diante desse evento. Na execução da primeira etapa, rea-
lizou-se uma dinâmica com discussões entre as grávidas de uma
unidade básica de saúde a fim de extrair percepções sobre o parto,
levantando suas inquietações e elegendo aquela mais importante
para todas, que foi o tratamento da gestante nas UBSs e hospitais,
do processo físico aos direitos das gestantes. Na segunda fase, a in-
tenção foi verificar quais conteúdos o grupo gostaria de discutir nas
oficinas seguintes. Os pontos-chave levantados foram: tipos de
parto, sinais do parto e tempo do trabalho de parto, humanização
no parto, dor e medo do parto e direitos das gestantes. Para a teori-
zação trocaram-se ideias, informações e preocupações, e houve
apoio de uma psicóloga e uma fisioterapeuta para discutir com o
grupo sobre o medo e a dor do parto. Como hipótese de solução, as
mulheres compartilharam a ideia de um documento escrito sobre o
que todas gostariam que mudasse em relação ao tratamento rece-
bido na unidade de saúde e no hospital, para ser entregue por elas
em dia agendado com os responsáveis tanto da unidade de saúde
quanto do hospital, e assim, na aplicação à realidade, foi elaborado
esse documento em conjunto com as gestantes e entregou-se o
mesmo às autoridades responsáveis.
Guiando-se nos caminhos propostos por Berbel em relação à
metodologia da problematização, o método do arco de Maguerez
foi aplicado na coleta de dados de uma pesquisa em Enfermagem,
na construção de um marco de referência para o cuidado em saúde
mental. A pesquisa de Borille et al. (2012) utilizou encontros com
equipes de saúde de um hospital psiquiátrico. Na etapa inicial do
método do arco, que consiste na observação da realidade, os parti-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  179

cipantes foram instigados a refletir a respeito do cuidado na insti-


tuição. Nesse momento, os participantes relataram que sentiam a
necessidade da discussão de conceitos que sustentassem o cuidado
em saúde mental e, assim, identificou-se a situação-problema: a
construção de um marco de referência para o cuidado ao paciente
psiquiátrico da instituição em que trabalhavam. Na etapa dos
pontos-chave, foram identificadas as questões a serem estudadas
que susten­tariam a resolução da situação-problema: enfermagem,
ser humano, saúde-doença, ambiente, equipe e relação interpes-
soal. Na terceira etapa, da teorização, ocorreu a discussão dos
pontos-chave eleitos pelos sujeitos, bem como o estudo de textos
sobre os aspectos levantados. Essa etapa se desenvolveu em mo-
mento individual e grupal, por meio de dinâmica com cartazes,
soli­citando que refletissem a respeito da realidade que vivenciavam
no seu trabalho em saúde mental, relacionando cada conceito com
o cuidado em saúde mental desenvolvido. Na etapa da hipótese de
solução foi elaborada uma proposta de construção de referência
para sustentar o cuidado em saúde mental da equipe. Para desen-
volver as ati­vidades da última etapa do método do arco, aplicação à
realidade, foi solicitado aos participantes que fizessem a leitura dos
conceitos expressos nos cartazes. Na sequência, foi apresentado o
conceito preelaborado pelo pesquisador, a partir das ideias centrais
de todos os cartazes e foi solicitado que os participantes lessem e
validassem a ideia. Foram sugeridas inclusões, substituições e ex-
clusões de termos, de modo que, ao final da etapa, obtiveram um
conceito que expressava a concepção daquele grupo, resultando
na construção de conceitos para o cuidado em saúde mental da ins-
tituição. Importante salientar que, nessa experiência, a situação-
-problema (a construção de um marco de referência para o cuidado
ao paciente psiquiátrico da instituição em que trabalhavam) não
apresentava um formato de situação-problema, pois já era a solução
para algo identificado como problema, o que revelava uma adap-
tação ou desvio do que era a elaboração do problema.
Cyrino e Rizzato (2004) usaram a problematização com alunos
do 3o ano de Medicina para trabalhar a formação médica no SUS e
180  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

na atenção primária, a fim de valorizar o ensino centrado no estu-


dante, sua capacidade de construir conhecimento com autonomia
e  imprimir maior politização na apreensão da realidade e dos
determi­nantes sociais no processo saúde-doença. Desenvolveu-se
através da elaboração de uma disciplina que facilitasse a com-
preensão do trabalho e das especificidades da saúde pública, da
integralidade do cuidado, enfatizando-se questões como a impor­
tância do trabalho reflexivo, do ato de planejar, do trabalho em
equipe, da ética nas relações de trabalho do futuro médico com os
outros profissionais de saúde, com a população atendida e com
as instituições envolvidas no atendimento. Assim, organizou-se a
disciplina em temáticas: Problemas de Saúde, Nutrição em Saúde
Pública e Planejamento. Participaram da execução professores que
orientaram grupos de alunos. Buscou-se problematizar a realidade,
propondo-se que os grupos de alunos estudassem, interpretassem e
apresentassem soluções às questões/vivências apresentadas.
Nesse cenário, a Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB),
no esforço de distanciar-se dos modelos tradicionais e assumir os
desafios contemporâneos à formação profissional em saúde, cria,
em 2007, a disciplina Interação Universidade, Serviço e Comu-
nidade (IUSC), oferecida aos 1o, 2o e 3o anos de gradua­ção em
Medicina e 1o e 2o anos de graduação em Enfermagem, buscando
trabalhar com práticas de ensino problematizadoras, como a
metodologia da problematização com o arco de Maguerez.
O trabalho com a metodologia da problematização nessa disci-
plina deve-se ao fato de se pretender contribuir na formação de
profissionais que se percebam como cidadãos participativos em
uma sociedade democrática, tenham compreensão crítica da reali-
dade e estejam dispostos a transformá-la e a se transformar
também, como salientam Berbel, 1998, e Cyrino e Pereira, 2004.
A IUSC, disciplina foco do estudo, trabalha a partir do reco-
nhecimento da necessidade de vivência de alunos e professores em
práticas voltadas à integralidade das ações em saúde com a comu­
nidade; centra seu foco nas famílias das comunidades inseridas no
universo das relações históricas, culturais, socioeconômicas e polí-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  181

ticas da sociedade, procurando romper com a concepção biomédica


no processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, trabalha com um
grupo de alunos, cerca de 11 a 13, de Medicina e Enfermagem, sob
a orientação de um professor tutor (profissional da saúde ou edu-
cação) com o objetivo de atuar em uma determinada área de abran-
gência de uma unidade básica de saúde (UBS) ou unidade de saúde
da família (USF) de Botucatu, através de atividades educativas
desen­volvidas com a comunidade desses locais.
Apesar de se perceber, nessas experiências descritas, ênfase em
situações que oferecem riscos à saúde, o uso da metodologia da pro-
blematização revela a diversidade de cenários em que pode ser
adotada e que as situações envolvidas trazem, na sua essência,
diver­sas dimensões – individuais, institucionais e políticas – que
permitem um mergulho na realidade, favorecendo a percepção crí-
tica da mesma aos graduandos, aos profissionais de saúde e aos
pesquisadores.

Sintetizando o tema

Como fruto das explanações apresentadas até o momento, é


possível destacar a necessidade, até mesmo a urgência, de estimular
o aluno dos cursos de saúde para um aprendizado crítico e refle-
xivo, atuando consciente e qualificadamente sobre as necessidades
da sociedade.
Foi possível perceber que lançar mão de práticas educativas
que, através do diálogo, utilizem o questionamento, a dúvida e a
problematização da realidade como ingredientes essenciais, per-
mite ao estudante ampliar sua visão de mundo ao encontrar cone-
xões com outros conhecimentos que conduzem à práxis, identificar
a teoria e a prática como faces da mesma moeda.
A MP insere-se nesse contexto com potencial valioso de
atuação consciente e criativa na realidade, alimentada pelo papel da
educação enquanto ato político, entendendo o homem em sua re-
lação com o mundo e sobre o mundo.
182  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Somado a isso, a MP visa contribuir para um novo olhar do


educando, do educador sobre a sociedade em geral, pois entende
o educar como um agir responsável, através da ação dialógica e do
trabalho com conteúdos reais que estimulem a reflexão sobre pro-
blemas e a busca de soluções dos mesmos.
Então, adotar a MP requer do educador despertar no educando
a satisfação de pensar e agir sobre o mundo, de aprender coletiva-
mente e de conviver com as diferenças de pontos de vista. Tais pos-
turas do educador precisam sustentar esse trabalho pedagógico
com o futuro profissional de saúde, revelando que o mesmo poderá
ampliar seu olhar para o ser humano e sua relação com o contexto
de vida, o qual determina suas condições de saúde, e que questio-
namentos e dúvidas são necessários ao perfil desse profissional, o
qual precisa desenvolver a capacidade de identificar problemas e
apontar soluções, a prática contextualizada, a criatividade, o tra-
balho em equipe, a capacidade de raciocinar e de comunicar-se,
além da responsabilidade. Isto é, a MP permite ao estudante reco-
nhecer o caráter social do conhecimento bem como a dimensão so-
cial de seu ato de conhecer e atuar em seu meio.
Com a descrição de vários autores das características da MP é
possível afirmar que a mesma focaliza a identificação de um pro-
blema e a busca de soluções. Aproximando a MP do âmbito da
saúde, através de uma sucinta contextualização das práticas educa-
tivas nessa área, percebe-se que as posturas problematizadoras
desen­volvem-se, progressivamente, dada a valorização dos desa-
fios que compõem as condições de vida do ser humano e do modo
como este lida com essas questões e possíveis soluções.
No entanto, utilizar a MP requer ainda mais do que situações
favoráveis de investigação para a formulação do problema, pela ne-
cessidade percebida de fundamentar-se em teorias. Ou seja, não
basta apenas aplicar as etapas do arco, é necessário buscar saberes
que qualifiquem seu uso e que não se perca de vista a essência de
sua contribuição.
A importância em se utilizar a MP no ensino superior em saúde
é difundida em diferentes estudos. Embora existam diversos posi-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  183

cionamentos que destacam os possíveis resultados com o seu uso,


há outros que indicam o que seria necessário para a utilização no
ensino acadêmico e também os que apontam as dificuldades para
adotar essa metodologia e, nesses casos, sugerem relacionar-se com
o perfil da instituição de ensino, com as tradições de ensino, que
contribuem ou não para o sucesso das experiências.
Sobre os diversos cenários de aplicação da MP, os estudos des-
critos revelam a diversidade de situações em que pode ser adotada e
que as situações envolvidas carregam aspectos sociais e políticos,
trabalhados tanto com os alunos quanto com profissionais de saúde
e de pesquisa. Entretanto, no contexto hospitalar, percebe-se ên-
fase nas experiências biologicistas e nas situações que oferecem
riscos eminentes à saúde.
Reúnem-se diferentes possibilidades ao adotar a MP no ensino
superior em saúde, tanto no que diz respeito a novas maneiras de
compreender a formação em saúde, como em despertar nos profes-
sores e alunos seus papéis de sujeitos da própria história e que, por-
tanto, necessitam ter consciência de sua ação sobre ela, oferecendo,
desse modo, novos significados ao trabalho do professor e à for-
mação do aluno.

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7
OS VÁRIOS NAIPES DA VISITA
DOMICILIAR NA FORMAÇÃO DE
ESTUDANTES DE MEDICINA

Renata Maria Zanardo Romanholi


Eliana Goldfarb Cyrino
Paulo Marcondes Carvalho Júnior

A visita domiciliar: histórico e perspectiva atual

Há relatos de médicos que percorriam as cidades na Grécia


(443 a.C) prestando assistência às famílias, de casa em casa, orien-
tando-as quanto ao controle e melhoria do ambiente físi­co, alívio
da incapacidade e do desamparo (Reinaldo; Rocha, 2007).
Segundo Rosen (1994), anterior ao surgimento das enfermeiras
visitadoras em Londres, nos anos de 1854 e 1856, a prática da visita
domiciliar (VD) era realizada por mulheres da comunidade sem
muita instrução, que tinham apoio financeiro do Estado para
educar as famílias caren­tes sobre os cuidados de saúde.
Mas é no século XX que as enfermeiras assumem o papel de
visitadoras responsáveis pela saúde pública. Esse movimento acon-
tece inicialmente nos Estados Unidos e se espalha por todo o
mundo, com o objetivo de trabalhar junto com as comunidades
para atender os seus problemas como um todo (Reinaldo; Rocha,
2007).
No Brasil, a partir de 1920, com a escola de Enfermagem da
Cruz Vermelha, é criado um curso de visitadoras sanitárias, como
parte do serviço de profilaxia da tuberculose. Tal iniciativa marca a
192  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

inclusão da VD como atividade de saúde pública (Lopes; Saupe;


Massaroli, 2008).
Em entrevista a Virginia Schall, a professora Hortênsia H. de
Hollanda fala sobre seu trabalho, de 1949 a 1955, como assistente
técnica da Divisão de Educação Sanitária do Serviço Especial de
Saúde Pública da Fundação Serviço Especial de Saúde Pública
(Sesp), do Ministério da Saúde, na qual a VD é destacada como
uma atividade frequente no trabalho realizado naquela época, com
conteúdo de educação em saúde. Para a professora,

as melhores formas de conhecer bem os problemas das pessoas


são: visita nas casas, reuniões do bairro, pesquisas, conversas des-
contraídas sem perguntas prontas, não deixar anotações atrapa-
lharem a conversa, procurar fazer trabalhos em grupo, devolver ao
bairro a resposta do levantamento do problema, depois tentar re-
solver juntos os problemas, escolher o que fazer em cada mo-
mento. Então é isso... (Schall, 1999, p.159)

Na década de 1970, no Brasil, diante das mudanças nas polí-


ticas de saúde, e com a priorização da alocação dos recursos finan-
ceiros para a assistência intra-hospitalar, há um esvaziamento
nas ações de enfermagem na saúde pública e, consequentemente, nas
visitas domiciliares. Com o período militar, o que se observou foi
uma gradativa transformação do modelo assistencial higienista/
preventivista para o modelo dual curativista/preventivista, acarre-
tando, assim, a descaracterização das práticas de prevenção, dentre
elas, a VD (Egry; Fonseca, 2000).
Lopes, Saupe e Massaroli (2008) apontam que, historicamente,
a VD teve uma preocupação centrada em evitar doenças e mini-
mizar a dor dos doentes, e não na promoção da saúde, na valori-
zação do contexto social e na qualidade de vida dos visitados.
Para Kerber, Kirchhof e Cezar-Vaz (2008), a VD, também
chamada de atenção domiciliária, pode agregar ao seu processo
tanto a ação de cuidar como a de educar.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  193

Segundo Carletti e Rejani (1997), a atenção domiciliária ou vi-


sita domiciliar é um serviço em que ações de saúde acontecem a
partir da realidade em que o visitado está inserido, e são destinadas
à manutenção, promoção ou restauração da saúde.
A VD é uma categoria da atenção domiciliar que prioriza o
diagnóstico do indivíduo no seu contexto e, assim, prevê ações
educa­tivas. É um instrumento que permite conhecer a realidade do
outro para poder propor ações de saúde para a família e para a
comu­nidade (Giacomozzi; Lacerda, 2006).
A VD tem reorientado o modelo de atenção à saúde recomen-
dado no SUS e, portanto, podemos afirmar que é um instrumento
que permite a transversalidade do sistema de saúde, além de ser um
espaço de construção de políticas públicas por meio da relação que
se estabelece entre os diferentes sujeitos, pois é nessa prática que se
pode entender a totalidade dos condicionantes que afetam a vida do
cidadão (Lopes; Saupe; Massaroli, 2008).
Kerber, Kirchhof e Cezar-Vaz (2008) apontam que, por inter-
médio da atenção domiciliária, é possível ser desenvolvida, pelos
trabalhadores em saúde, a assistência ao indivíduo e sua família de
forma mais integral, contextualizada, nos aspectos de promoção,
prevenção, recuperação e reabilitação − promovendo, assim, a in-
tegração dos trabalhadores que atuam no sistema de saúde de forma
que estes possam, portanto, oferecer o cuidado de saúde de acordo
com as possibilidades da tecnologia, como o encontro das pessoas,
que permite criar espaços de intersubjetividade, em que acontecem
falas, escutas e interpretações. Esses são momentos de cumplici-
dade nos quais pode haver a responsabilização em torno dos pro-
blemas que serão enfrentados. Essa tecnologia permite trabalhar
com três pontos, que são: a observação, o diálogo e o relato oral.
Para Pereira (2001), a VD permite aos trabalhadores fazer uma
reflexão sobre a concepção do processo saúde-doença e de ser hu-
mano. Enfim, permite ao profissional reconhecer seu paciente em
suas múltiplas relações, biopsicossocial e ambiental.
Outra vantagem de se realizar a visita ao domicílio é a possibi-
lidade de que os trabalhadores de ambos os espaços e serviços de
194  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

saúde se integrem e possam efetuar um trabalho em conjunto, não


somente em nível de referência e contrarreferência, mas no com-
partilhar de suas responsabilidades (Kerber; Kirchof; Cezar-Vaz,
2008).
Atualmente, no Brasil, a VD é considerada como uma estra-
tégia de reorganização do SUS. Essa prática substitui o modelo tra-
dicional de saúde, aproximando o serviço da população brasileira,
levando a saúde mais perto das famílias e melhorando a qualidade
de vida, rompendo com a passividade das unidades de saúde.
Segundo Takahashi e Oliveira (2001), a VD propicia maior
proximidade dos profissionais e serviços com as pessoas e seus
modos de vida, permitindo, dessa forma, uma aproximação com os
determinantes do processo saúde-doença no âmbito familiar − e é
considerada fonte de quase todas as informações necessárias à or-
ganização do serviço que se faz na Saúde da Família.
A visita domiciliar na ESF é uma importante ferramenta que
diferencia a ESF de outros programas, modelos de atenção ou de
gestão em saúde no Brasil, e é realizada prioritariamente pelos
agentes comunitários de saúde (ACSs). Nela, os membros da
equipe vão até a residência dos moradores de cada área de abran-
gência das unidades, deixando para trás modelos de atenção que
esperavam a vinda dos usuários até a unidade de saúde.
A VD da Saúde da Família é considerada estratégia de trabalho
prioritária e o primeiro passo para o acolhimento (Belluscci, 2006),
e caracteriza o modelo de atenção em saúde adotado. De acordo
com a Portaria GM n.648, de 29 de março de 2006, no seu anexo 1,
são atribuições comuns a todos os profissionais da equipe da Saúde
da Família “realizar o cuidado em saúde da população adscrita,
prioritariamente no âmbito da unidade de saúde, no domicílio e
nos demais espaços comunitários (escolas, associações, entre ou-
tros), quando necessário” (Brasil, 2009).
Também consta, como uma das atribuições específicas do
agente comunitário de saúde, “acompanhar, por meio de VD, todas
as famílias e indivíduos sob sua responsabilidade, de acordo com as
necessidades definidas pela equipe” (idem, 2009). Na Estratégia
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  195

Saúde da Família, não está definido o parâmetro para a frequência


de VDs para os profissionais da equipe, salvo para os agentes comu­
nitários de saúde, cujo parâmetro estabelece uma visita domiciliar/
família/mês (idem, 2009).
A VD é uma prática antiga na área da saúde e, hoje, pode ser
considerada um dos eixos transversais da ESF, pois perpassa pelos
princípios da integralidade, universalidade e equidade.
Na Estratégia de Saúde da Família, é o ACS que informa a
população sobre o modelo de atendimento na unidade, ajudando o
agendamento de consultas e serviços, melhorando o esquema de
funcionamento da unidade de saúde.
Amaro (2003) defende que é necessário afastar o mito de que a
VD é uma atividade empírica. Acredita que seu desenvolvimento
deve ser realizado sobre bases teóricas, humanas e profissionais.
Para isso é necessário que as visitas sejam realizadas com respeito
à subjetividade de cada ser, pois o quadro de valores é distinto e a
relação que se estabelece entre visitador e visitado é importante
para o sucesso do trabalho desenvolvido no decorrer da visita.
Segundo Nogueira (1997), a VD tem como vantagens para o
profissional da saúde: o conhecimento do meio ambiente do outro,
atentando para as condições de moradia, as relações afetivas e so-
ciais da família, além de facilitar a adaptação e planejamento das
ações conforme os recursos da família, propiciando, assim, melhor
relacionamento entre família e profissional de saúde, pois ela é
menos formal do que as atividades realizadas nos serviços de saúde.
Cohn, Nakamura e Gutierres (2009) trazem uma reflexão do
processo de implantação da ESF em seus diferentes contextos e
obstáculos, em que observamos uma preocupação na produção de
pesquisas que discutem a organização, a estruturação e o gerencia-
mento das equipes da ESF. Apontam as autoras que pouco se tem
pesquisado sobre o processo de emancipação da população aten-
dida pela estratégia. Hoje, uma particularidade da ESF é seu poten-
cial de penetração na comunidade por meio do ACS, que traz para
o privado (o domicílio) as questões do público (as políticas de saúde
– unidades).
196  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Nesse trabalho fica claro quão complexa é a atividade de VD,


conforme a proposta do Ministério da Saúde no sentido de monito-
ração da saúde das famílias. Nas áreas estudadas por essas pesqui-
sadoras, podem-se observar as mais variadas formas em que as
VDs se realizam e quanto são variados os “vínculos por ela estabe-
lecidos com a respectiva população atendida” (Cohn; Nakamura;
Gutierres, 2009).
As autoras explicitam que, por meio da arquitetura das casas,
já se coloca um ponto de diferenciação das VDs. Assim, em locais
onde as casas têm suas portas abertas diretamente para a rua, apa-
rece, para o ACS, a possibilidade de visualização da casa logo ao se
abrir a porta, ainda no espaço da rua (ibidem).
A mesma pesquisa aponta, por meio do ACS, que atua como in-
termediário entre o serviço de saúde e a população, se haverá uma
maior ou menor possibilidade de vínculo com a população atendida:

portanto, o bom relacionamento mantido pelos ACSs com a


comunidade facilita o trabalho da equipe, colaborando para que
algumas atividades, especialmente as reuniões de grupos, se
tornem mais eficazes pela participação da população nestas ações.
(Ibidem, p.150)

Nessa mesma pesquisa é afirmado que, em geral, o ACS não


entra nas casas, ficando no portão, na porta ou no corredor, de
acordo com o tipo de habitação. Aponta-se, assim, que o ACS entra
na casa apenas quando convidado, e essa situação é mais frequente-
mente relatada quando há alguém mais doente ou um recém-nas-
cido, ou, mesmo, quando há um vínculo de amizade com a pessoa.
Dessa forma, para as autoras, fica patente que, ao atuar como
media­dor entre o serviço de saúde e a comunidade, o ACS, ao en-
trar nas casas, possibilita à ESF um maior acompanhamento do es-
tado de saúde da população e, também, um maior “controle de
outras dimensões de seu cotidiano, revelando-se, assim, um duplo
potencial normatizador do programa”, no sentido de normatização
da saúde e da vida das famílias (idem).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  197

Atualmente, na ESF, a visão que se tinha de que o ACS era


apenas uma representação da comunidade, foi totalmente modi­
ficada, pois a presença do ACS na equipe é imprescindível. Ao
atuar na comunidade, o ACS se comunica com esta por meio de
uma linguagem simples e objetiva, levando informações sobre pre-
venção de doenças, promoção de saúde, condições de higiene e
saneamento.
Assim, a VD pode aproximar a equipe de saúde da comuni-
dade, proporcionando às famílias um acompanhamento mais parti-
cularizado, pois tal estratégia é entendida como única, pertencente
a um contexto social e cultural específico que condiciona diferentes
formas de viver e de adoecer.
Para Kawamoto, Santos e Matos (1995), “a visita domiciliar é
um conjunto de ações de saúde voltado para o atendimento, tanto
educativo como assistencial”.
Por intermédio da literatura encontrada, observamos que há
uma contradição no papel da VD, que, para alguns teóricos, é en-
tendida como ferramenta de assistência com a qual é possível con-
trolar o paciente no cuidado com sua saúde; mas ela pode ser,
também, uma tecnologia de promoção da saúde e prevenção de
doenças que considera a realidade e o contexto em que o paciente
está inserido, ou uma estratégia que propicia o aprendizado na for-
mação dos profissionais da saúde, as chamadas VDs pedagógicas.
Dessa perspectiva, da VD como ferramenta didática ou peda-
gógica, diversas instituições de ensino superior (IES) buscam, por
meio de diferentes cenários de ensino, trabalhar habilidades e ati-
tudes essenciais para o profissional de saúde que possam contribuir
para o desenvolvimento do SUS e a adequação do currículo às
DCNs.
Levantamento recente, realizado nos anais da Revista de Edu-
cação Médica, referente aos congressos de educação médica brasi-
leiros, permite observar a presença de vários trabalhos que ilustram
a mudança de postura em relação à valorização do ensino médico na
atenção básica e apontam a VD como estratégia no ensino médico,
com diversos objetivos.
198  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Peternelli et al. (2009) afirmam que, “através de visitas domi-


ciliares de caráter didático e não assistencial”, são visitadas “famí-
lias que se utilizam dos serviços de unidades básicas de saúde
(UBSs)”. Nesse estudo é apresentado que, “nos primeiros contatos,
muitas famílias e alunos mostraram-se apreensivos nesta fase in-
trodutória da atividade”, demonstrando certo constrangimento
inicial no primeiro contato e que,

no decorrer das visitas, tanto os alunos como as famílias demons-


traram maior facilidade em comunicar-se, iniciando aí a constru­ção
do vínculo citado, baseado no respeito e confiança entre as partes,
possibilitando a partir daí a inserção de intervenções de caráter
educativo, elaborados pelo próprio grupo de alunos sob orien-
tação dos tutores, juntamente com profissionais de saúde da UBS
em questão. (Ibidem, p.299)

Na Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora


(MG), o ensino na comunidade também privilegia a estratégia da
VD, definindo a mesma como “provisão de serviços de saúde por
prestadores formais e informais com objetivo de promover, res-
taurar e manter o conforto, função e saúde das pessoas num nível
máximo, incluindo cuidados para uma morte digna” (Peternelli et
al., 2009). Nesse estudo, a importância da VD aparece como estra-
tégia pedagógica e para melhoria do cuidado de pacientes crônicos
e acamados. Assim, acreditam que a

visita ao domicílio permite ao estudante perceber não apenas as


doenças, mas também o contexto do usuário e, sob uma visão crí-
tica e reflexiva, suas necessidades individuais e coletivas possibili-
tando realizar atenção continuada com prática de ações, para a
melhoria da qualidade de vida de seus integrantes. (Ibidem, p.300)

A VD também é ferramenta pedagógica na Universidade Ca-


tólica de Goiás (UCG) e tem como objetivo a interação entre aca-
demia e serviço, como apontam em estudo Elias et al. (2009):
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  199

a visita domiciliar é um instrumento de compreensão do viver


fami­liar que permite ao profissional de saúde e ao acadêmico
esta­rem mais próximos das famílias, possibilitando conhecer e in-
terpretar o modo de vida, cultura, crenças e padrões de comporta-
mento. Permite a avaliação dos fatores determinantes da saúde
daquela população. Assim, os acadêmicos em parceria com os
profissionais do serviço são capazes de programar ações para o
controle das doenças de forma mais efetiva e resolutiva. (Ibidem,
p.312)

Mesmo na instituição onde a presente pesquisa está se reali-


zando, há referências de resumos de trabalhos apresentados sobre
a VD.

As visitas domiciliares (VDs) são instrumentos de abordagem da


família, suas características bio-psico-sociais, culturais e ambien-
tais e auxiliam no vínculo entre a família e o profissional de saúde.
Para os acadêmicos de Enfermagem e Medicina que nos primeiros
anos de graduação pouco fazem pela população em geral devido
ao modelo de ensino que não prioriza esta prática, a visita domici-
liar é um instrumento de formação acadêmica que propicia o con-
tato precoce com a população, e gera conhecimentos que fogem
dos padrões teóricos da sala de aula. (Yakuwa, 2009, p.304)

Assim, podem-se observar diferentes concepções e proposi-


ções no trabalho de VD. Embora alguns autores superdimensionem
a importância das visitas domiciliares, outros as dividem em peda-
gógicas, assistenciais ou didáticas. A presente pesquisa assume que
nem toda ida ao domicílio do usuário deve ser considerada uma
VD. Para ser uma VD, a atividade deve compreender um conjunto
de ações que combinem o trabalho pedagógico com o assistencial e
faça parte do cuidado que não se limite ao ato da VD, mas sim a todo
um processo que ocorre antes, durante e após a visita ao domicílio.
Também se assume que, para a realização da VD, o aluno ou o
profissional de saúde deve ser preparado com uma capacitação
200  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

espe­cífica no sentido de que a VD não seja uma ação invasiva e res-


peite a condição de espaço privado do domicílio.
Entende-se que a relação entre o profissional de saúde, o estu-
dante e o morador visitado deve ser pautada pelos “princípios da
participação, da responsabilidade compartilhada, do respeito
mútuo e da construção conjunta no processo saúde-doença” (Taka-
hashi; Oliveira, 2001). Deve-se, ainda, destacar que as diferenças
sociais, econômicas, culturais e educacionais existentes entre mora­
dores, estudantes e profissionais de saúde precisam ser conside-
radas no planejamento, na execução e na avaliação da VD.
Destaca-se ainda que, seja pelo caráter assistencial, seja pelo
caráter pedagógico, a VD pode propiciar um processo de aproxi-
mação e vínculo único entre moradores, estudantes e profissionais
de saúde.

Breve contextualização: o ensino na comunidade


e a visita domiciliar na disciplina Interação
Universidade, Serviço e Comunidade

A Faculdade de Medicina de Botucatu − UNESP tem uma


longa história no ensino de graduação realizado na comunidade,
privilegiando a prática em saúde pública no ensino, na pesquisa e
extensão e na prática clínica realizada na atenção primária.
Nos últimos anos, a formação médica centrada no hospital
esco­la tem sido muito criticada pela percepção de esgotamento
e inadequação do profissional que está entrando no mercado de tra­
balho. Para atender as necessidades de saúde da população e se ade-
quar ao mercado de trabalho, a FMB − UNESP tem desenvolvido,
atualmente, um oitavo de seu curso médico na atenção básica.
A FMB − UNESP diversifica seu cenário de ensino em vários
momentos do curso, dos quais podemos citar: as disciplinas de
Saúde Coletiva, Pediatria, Clínica Médica, Obstetrícia. A própria
existência do Centro de Saúde Escola da FMB, responsável por sig-
nificativa cobertura da atenção básica em Botucatu, tem contri-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  201

buído para o funcionamento de um sistema de atenção básica


resolutivo e de qualidade (Cyrino et al., 2007).
O presente texto objetiva relatar a proposta de realização da
VD na formação de médicos na disciplina Interação Universidade,
Serviço e Comunidade (IUSC). Realizou-se revisão da literatura e
pesquisa documental, com leitura de documentos e relatórios pro-
duzidos por alunos e professores que participaram da IUSC.

A visita domiciliar na disciplina IUSC1

A concepção que fundamenta a proposta pedagógica da IUSC


baseia-se em princípios dialeticamente articulados: “indivisibi­
lidade método-conteúdo, coerência do método com a natureza do
objeto em construção e apropriação da estrutura do conhecimento
pelo ator da aprendizagem” (Cyrino, 2005, p.35). Dentro dessa
concepção, ressalta-se a estratégia de VD realizada na disciplina
IUSC.
Para Cyrino (2005, p.35), a atividade de visitas domiciliares

permite que o estudante partindo de sua experiência de vida, de


sua identidade cultural e da interação com os outros, possa tomar
consciência do ambiente, da sociedade e do sistema produtivo,
percebendo-se como cidadão coadjuvante do processo de trans-
formação da realidade e como profissional comprometido com a
saúde e a qualidade de vida de pessoas e comunidades.

A atividade de VD sempre foi destacada como um “nó crítico”


na disciplina, tanto para os alunos como para os professores; e, para
se entender esse fato, faz-se necessário situar historicamente essa
estratégia desde a implantação do então programa IUSC.

1. Parte desta seção foi publicada no artigo “A visita domiciliar na formação de


médicos: da concepção ao desafio do fazer”, Interface, julho de 2012.
202  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Em 2003, no ano de implantação do programa, a VD tinha um


caráter de inquérito populacional,2 no qual os alunos, a partir da
seleção do cadastro de nascidos vivos de Botucatu, da Maternidade
do HC − UNESP e da Maternidade do Hospital Sorocabano, ti-
nham como objetivo “acompanhar” os recém-nascidos até o 6o ano
do curso médico, e, por meio de questionários pré-elaborados e
semi­estruturados, realizavam entrevistas com as famílias dos que
moravam nas áreas de abrangência de unidades de saúde ou de ter-
ritórios que seriam sede de futuras USFs.
Para alguns professores do grupo de formuladores da proposta,
a VD deveria se realizar dentro de um modelo de estudos popula-
cionais, com uma perspectiva epidemiológica. Assim, cada aluno
faria, em média, vinte ou trinta visitas às famílias durante o ano,
levantando aspectos dos determinantes sociais do processo saúde-
-doença, e caberia a cada grupo de estudantes compilar o material
das entrevistas nas VDs para caracterizar cada estudo de território
(UNESP, 2002a).
No próprio texto do projeto do Promed, primeiro material de
referência para a realização das VDs, já aparecem “dúvidas sobre o
número de famílias adscritas por aluno” (UNESP, 2002b).
Antes de se iniciarem os trabalhos de campo, em 2003, a pro-
posta foi reformulada e se optou por diminuir o número de visitas,
passando-se para doze a dezesseis visitas por ano, cabendo, a cada
aluno, o acompanhamento de três famílias (UNESP, 2002c).
Na realidade, em meio a inúmeras dificuldades e com a carga
horária fornecida ao IUSC, pelo então Conselho de Curso de Medi-
cina, entre preparo de campo, estudo teórico, aulas dialogadas e
dificuldades inerentes à própria prática da VD − como mudança de

2. No sentido proposto por Viacava (2010, p.1.864), que apresenta o conceito de


inquéritos populacionais “para gerar informação sobre as múltiplas dimensões
do estado de saúde, os estilos de vida associados à ocorrência de doenças […]
avaliação das desigualdades sociais na prevalência das doenças […] e no acesso
e uso de serviços de saúde” para levantamento de “informações de base popu-
lacional para gestores e pesquisadores de saúde pública” que contribuem para
a disseminação do conhecimento e a formação de profissionais na saúde.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  203

famílias, endereços errados e recusas, e outras situações adver­sas −,


cada aluno conseguiu realizar, no máximo, cinco visitas por casa,
em 2003.3
O modelo de entrevista usado nesse ano foi muito criticado
pelos alunos, que relatavam se sentir “coletores de dados” (Cyrino
et al., 2005), e não conseguiam entender objetivos e tampouco como
essa atividade auxiliaria na formação do profissional médico.
Ao que tudo indica, por meio da leitura dos relatórios dos estu-
dantes e, mesmo, da leitura de atas de reuniões dos professores,
pode-se notar um certo descontentamento com o modelo de VD uti-
lizado em 2003, que privilegiou o inquérito epidemiológico, com o
uso de questionários fechados sobre a criança e a família.4
Com certa crise de identidade, resistências e dúvidas sobre os
seus objetivos, ocorreram inúmeras discussões, pois o que se obser-
vava no início era uma clara divergência sobre os objetivos das VDs
entre os membros da coordenação e um grupo de professores que
viam a VD como uma estratégia de vínculo com a comunidade,
num caminho de um trabalho mais qualitativo.5

A visita domiciliar (VD) foi, dentre as estratégias propostas pelos


formuladores do IUSC, a que mais capitalizou a atenção dos coor-
denadores e professores, especialmente sobre seus fundamentos e
seu significado para a formação médica. Nas discussões ocorridas
sobre a visita domiciliar, o grupo dividiu-se entre o uso da mesma
como: instrumento de coleta de informações sobre a habitação, sa-
neamento, condições ambientais e físicas em que vive o indivíduo,
e estratégia pedagógica para a formação de vínculos interpessoais
à medida que a inserção do aluno no universo se configurasse como
oportunidade para o diálogo e a interação dos estudantes com as
famílias.6

3. E. G. Cyrino (FMB), comunicação pessoal, 2010.


4. A. Y. Prearo (FMB), comunicação pessoal, 2010.
5. E. G. Cyrino (FMB), comunicação pessoal, 2010.
6. Idem, 2009; prestada a M. R. G. Uliana, 2010.
204  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

No decorrer desse primeiro ano de implantação, 2003, notou-


-se a falta de homogeneidade entre os grupos de trabalho na reali-
zação da VD. Existiam professores que, contrariando as orientações
da coordenação, trabalhavam as visitas como estratégia pedagógica
para a formação de vínculos, sem desvalorizar os aspectos epide-
miológicos.7 Esse grupo de professores acreditava que a VD deveria
privilegiar a formação de vínculo e, assim, cada aluno teria como
meta visitar uma, duas ou três famílias repetidamente, de tal forma
que, a cada novo encontro, se trabalharia um diálogo sobre dife-
rentes temáticas, construídas a partir do trabalho relacional entre
estudantes e famílias.8
Em 2004, segundo atas de reuniões de coordenação e de pro-
fessores, com a entrada e saída de alguns membros da coordenação,
redefiniu-se o objetivo da VD como oportunidade de trabalhar vín-
culo e troca, conhecimento do outro, possibilidades de qualificar a
relação da família com as UBSs e as USFs, no desenvolvimento de
narrativas orais e escritas capazes de explorar compreensões e sen-
timentos antes não percebidos.
Segundo Cyrino et al. (2006, p.76), as visitas deveriam for-
necer subsídios para que os estudantes “incorporem as dimensões
sociais e psíquicas do ser humano, para que as mesmas sejam incor-
poradas a uma prática clínica voltada à promoção, prevenção, tra-
tamento e reabilitação”.
Desse modo, a estratégia tem uma mudança radical, deixando
de ter, como sua base fundamental, o modelo de inquérito popula-
cional. A partir de 2004,

• as famílias a serem visitadas passam a ser indicadas pelas


unidades de saúde, a partir do olhar e necessidade das
mesmas;

7. E. B. Dezan (FMB), comunicação pessoal, 2010.


8. E. G. Cyrino (FMB), comunicação pessoal, 2010.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  205

• o contato com as famílias é realizado previamente pelo


professor e pela equipe das unidades para acordar o que
será feito;
• a atividade se dá na forma de conversa sobre alguns temas
que são indicados pelas famílias;
• inicialmente, o foco está na criança, com temas discutidos
em cada grupo a partir da construção de um trabalho mais
coletivo;
• os alunos passaram a realizar a VD em duplas de estu-
dantes;
• para o 1o ano ainda permanece um roteiro de entrevista
preestabelecido, ao menos na fase de primeiros encontros;
• no 2o ano, se investiu numa construção de roteiro de acordo
com o trabalho realizado em cada grupo.

Essa mudança de perspectiva trouxe, para a equipe de profes-


sores e a coordenação, momentos de enorme tensão, pois, para al-
guns grupos de professores e alunos, a VD representava uma
ativi­dade de constrangimento. Ao retornar à mesma casa, muitas
vezes, os estudantes e professores eram surpreendidos com ques-
tões pouco trabalhadas no ensino médico. Os professores se sen-
tiam inseguros na orientação das VDs, que, por vezes, se tor­navam
esvaziadas de conteúdo e de sentido.9
Esse foi um período de muitas tensões e discussões tanto no
grupo de professores como no de alunos. O que se observava, por
meio das avaliações dos alunos e dos relatos dos professores tutores
nas reuniões, era que, nos grupos em que os professores eram resis-
tentes e não acreditavam na VD como estratégia de ensino, o apren-
dizado realizado pelos alunos ficava prejudicado e muito diverso
dos demais grupos no que dizia respeito à compreensão dos obje-
tivos do programa. Nos grupos que optaram por trabalhar a VD
como estratégia pedagógica e, de certa forma, assistencial, para a

9. E. G. Cyrino (FMB), comunicação pessoal, 2010.


206  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

formação de vínculos, os alunos sentiam-se mais seguros e menos


resistentes à realização das VDs.
É ainda no 2o ano, em 2004, com ênfase na educação em saúde,
que o IUSC faz integração com outras disciplinas, como Parasito-
logia, e, também, é convidado a participar da semana de integração
curricular que acontece no segundo semestre.
Nessa segunda semana de integração básico-aplicada, propõe-
-se um tema a ser estudado que seja relevante na formação médica,
e a metodologia usada é a da aprendizagem baseada em problemas.
Nos dois primeiros anos de funcionamento do IUSC, essa ativi-
dade de educação e saúde era pontual, sem grande relação com o
trabalho das VDs. A partir de 2006, houve uma maior integração
entre essa atividade e o IUSC, que passou a priorizar ações de edu-
cação em saúde, enfatizando uma maior escuta e posterior narrativa
direcionadas às necessidades dos pacientes visitados. O diálogo
entre pacientes visitados e estudantes foi considerado um espaço
para aprendizagem, pelo contato com pacientes que apresentavam
o que havia sido estudado, em maior ou menor grau, e, também,
pela aplicação das orientações aprendidas e dadas aos pacientes de
uma forma acessível ao contexto destes.10
Também, desde o início do programa, no 2o ano (em 2004), a
partir de demandas levantadas nas VDs e com a comunidade, vem
ocorrendo a atividade de integração com a Parasitologia. Desde
então, os alunos elaboram um plano de ação para a atividade educa-
tiva que deve ser trabalhado em parceria com a unidade de saúde da
área de abrangência estudada e a população. Tais atividades sempre
aconteceram em parceria com os profissionais do serviço municipal
de saúde.
Nesse período, de 2004 a 2006, conforme consta nas atas de
reuniões e memórias de eventos de formação de professores, ainda
por várias vezes a coordenação precisava defender a ideia da reali-
zação das VDs, pois um grupo de professores contrários chegava a

10. Programa do IUSC, 2o ano do curso médico, 2004.


SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  207

“boicotar” a estratégia colocando atividades diferentes nos dias


propostos para a realização das visitas. Deve-se destacar que os pro­
fissionais da rede municipal eram os maiores parceiros da coorde-
nação no sentido de reafirmar a importância da VD para se ampliar
a formação médica, sobretudo no que dizia respeito à qualificação
de vínculo e ao conhecimento das famílias na sua moradia. Des-
taque-se que, entre 2003 e 2005, o município estava implantando
as USFs. Essas informações estão relatadas em atas de reuniões da
comissão de acompanhamento do Promed e nas memórias de reu-
niões de assessoria externa.
Em 2005, iniciam-se os trabalhos do 3o ano do IUSC, como um
programa opcional oferecido aos estudantes, com cerca de quarenta
a sessenta vagas e com a participação de professores voluntários. O
foco é o atendimento médico a adultos nas UBSs e USFs, e as VDs
complementam esse trabalho como apoio assistencial.
Na tentativa de obter maior base teórica e qualificar o signifi-
cado da VD, a coordenação do programa contou com assessoria ex-
terna em diversos momentos para discutir e aprimorar a VD.11
No início de 2007, esteve com o grupo de professores uma as-
sessora que destacou a necessidade de maior clareza em relação às
finalidades da VD na formação dos estudantes. Privilegiou, nessa
discussão, a necessidade de uma VD que trouxesse a ideia de co-
nhecer a família para trabalhar os temas de educação em saúde e a
questão de devolver para a comunidade o que se levantava na visita.
Discutiu-se, também, sobre um descompasso entre o que que-
ríamos e o que podíamos fazer com a VD e quais eram as expecta-
tivas e o que acontecia no real.
Reforçou-se, nesse momento, quão difícil é realizar uma VD
que tenha impacto na formação do médico. E ainda outras questões
foram apresentadas, como: seria possível construir um vínculo
mais efetivo? Como fazer a discussão do relato da visita? Do ponto
de vista teórico, qual é a nossa competência?

11. Atuaram como assessoras: Ana Cecília Sucupira (médica), Eunice Nakamura
(antropóloga) e Mara Regina Lemos de Sordi (enfermeira).
208  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Desse momento de discussão, algumas importantes mudanças


foram propostas na realização das VDs:

• preparar o aluno antes da realização da primeira VD no


1o ano, no sentido de que o mesmo possa falar sobre seus
receios;
• fazer uma boa elaboração da atividade, diante da dúvida
do que seria uma VD invasiva ou não invasiva à família
visitada;
• problematizar cada VD realizada;
• narrar oralmente e depois por escrito o que havia sido a
VD para cada aluno;
• ampliar o olhar e a escuta do estudante para além da queixa
do sujeito;
• reforçar a importância do protagonismo do estudante na
realização das VDs, com um papel a ser desenvolvido que
tivesse sentido para ele e para a família;
• ampliar a parceria com os agentes comunitários de saúde
no trabalho e no acompanhamento das famílias visita­das;
• atuar com diferentes técnicas para melhor se trabalhar a
habilidade de comunicação com o paciente e a família;
• ter claro que o objetivo da VD no 1o ano não poderia ser
igual ao do 2o, ficando no 1o ano o foco na criança e, no
2o, na família.

Nesse momento, final de 2006 e início de 2007, organizaram-


-se, também, as bases teóricas para a realização das VDs, tanto na
formação dos professores como para embasar os estudantes. Nesse
sentido, os seguintes autores foram propostos como base de tra-
balho com as VDs: Cunha (1997); Amaro (2003); Grossman e
Cardo­so (2006); Leite, Sá e Bessa (2007); Leite, Caprara e Coelho
Filho (2007).
É, então, diante das angústias despertadas nos alunos com as
VDs, que o grupo de coordenação do IUSC faz, em 2006 − para
início em 2007 −, um convite aos professores das disciplinas de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  209

Psicologia e Psiquiatria para colaborar na preparação dos alunos


do 1o ano para a realização das VDs, com o objetivo de se discutir
expectativas, preocupações e sentimentos em relação a essa nova
atividade (Cerqueira et al., 2009). Na vivência sociodramática pro-
posta, os estudantes foram convidados a falar sobre seus senti-
mentos, e

destacaram principalmente a impotência e a frustração que expe-


rimentaram ao se imaginarem diante dessas famílias. Impotência
por não saberem “ainda” o que fazer com o bebê febril ou com
diarreia: “Ah, se estivéssemos no 6o ano...”. Impotência porque
não têm como resolver problemas estruturais do país, como a po-
breza extrema que acreditam que irão encontrar em todas as casas.
Impotência porque não há como mudar a cultura, ou a “falta de
cultura/ignorância” da mãe que deixa os filhos brincarem no cór-
rego sujo, que leva o filho para benzer e lhe dá chá de romã. Impo-
tência e ansiedade diante da situação crônica de abuso e violência
em que vivem algumas famílias. (Cerqueira et al., 2009, p.279)

É importante salientar que o ano de 2007 foi aquele no qual o


IUSC, para o bem e para o mal, torna-se uma disciplina regular e
obrigatória do curso médico.
Assim, em 2006, preparando-se a disciplina para 2007, na qual
havia necessidade de nota e aprovação escolar dos estudantes,
estru­turou-se um modelo de relatório sobre as VDs, com base teó-
rica nas proposições da narrativa, defendida, conforme Cunha
(1997), como um instrumento educacional que provoca “mudanças
na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros
e, por este motivo, são, também importantes estratégias forma-
doras de consciência numa perspectiva emancipadora” (Cunha,
1997, [s.p.]).
Importante notar que a professora Maria Isabel da Cunha
havia estado em Botucatu nos assessorando no trabalho pedagógico
com o aluno no IUSC, e seu texto foi nossa primeira base para o uso
das narrativas. Como afirmou a professora, trabalhamos, nesse
210  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

momento, na perspectiva de que as narrativas não constituíam uma


fidedigna descrição dos fatos, e sim a representação do sujeito da
realidade, e, como tal, as narrativas “estão prenhes de significados
e reinterpretações” (idem, [s.p.]).
Na sequência, foi possível trazer as ideias de Grossman e Car-
doso (2006), e entrar em contato com os trabalhos sobre as contri-
buições das narrativas na formação de médicos, que nos serviram
de subsídio para embasar nosso trabalho de valorização das narra-
tivas das VDs.
É importante salientar que o grupo de professores da IUSC do
2 ano de 2007 iniciou uma produção escrita refletindo sobre o tra-
o

balho e o significado da VD para a IUSC. Esse material não chegou


a ser finalizado ou divulgado. No entanto, constou de rico material
construído como uma produção conjunta desse grupo.12 No pre-
sente estudo foi realizada a leitura e análise do referido material.
Ressalta-se que, nessa produção, ficava claro para os professores
que cada VD, por mais orientada que estivesse, poderia levar a uma
série de imprevistos que não seria possível controlar ou antever
intei­ramente no seu planejamento, o que tornava necessária a per-
manente sensibilização e capacitação dos professores e dos estu-
dantes para lidar com o inusitado.

No decorrer das ações, experiências significativas são debatidas


mais profundamente e, somadas às observações do tutor no acom-
panhamento dos alunos em algumas oportunidades, novas refle-
xões são colocadas em manifesto e, com elas, problematizações em
torno das condições de vida, das características do processo saúde-

12. Grupo de professores do 2o ano de 2007: Coordenação: Sueli Terezinha Fer-


reira Martins, Luzia Tiemi Oikawa, Helen Isabel de Freitas e Renata Maria
Zanardo Romanholi. Professores tutores: Cátia Regina Fonseca, Danilo Lima
Tebaldi, Helen Isabel de Freitas, Karina Rubia, Renata Maria Zanardo Roma-
nholi, Sandra Fogaça Rosa Ribeiro, Tiago Rocha Pinto, Vera Lucia Garcia,
Michele Chanchetti.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  211

-doença, na utilização dos recursos comunitários e de saúde e das


necessidades e demandas daquela população.13

É importante perceber, nessa produção, a riqueza do material e


a presença clara de estudo do grupo sob orientação da então equipe
de coordenação, que buscava, em autores como Martins (2003),
por meio de contribuições de Martin-Baró, analisar a visita domici-
liar, compreendida como um “fazer” que contribui, internamente,
para a identidade do grupo e, externamente, para a sociedade,
quando leva para fora do grupo a atividade, no contato com di-
versos grupos da sociedade; no caso da VD, com cada família. Cabe
aos professores mediar o processo de aprendizagem, manejar e arti-
cular as questões trazidas pelos alunos, considerando seu conheci-
mento prévio, a identificação das problemáticas observadas e os
objetivos da IUSC.

O momento atual da VD no
desenvolvimento da IUSC

Levando-se em conta a angústia expressada pelos estudantes


nesse processo de preparo e realização das VDs, houve um período
de adequação das mesmas. Hoje, as visitas domiciliares são reali-
zadas como estratégias de ensino-aprendizagem desenvolvidas pela
IUSC, nos três primeiros anos da graduação em Medicina, que
permitem alcançar objetivos diferenciados para cada um dos anos.
Atualmente, a VD, no primeiro ano da IUSC, é realizada em
duplas de alunos a uma ou duas famílias, e destina-se a apoiar o
reconhecimento do território da unidade de saúde à qual os alunos
foram designados para os três primeiros anos do curso; dessa forma,
há uma tentativa de aproximar os alunos da realidade das famílias
por meio do acompanhamento de recém-nascidos escolhidos pela

13. Citação de texto produzido pelo grupo de professores da IUSC, 2007.


212  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

unidade de saúde, onde são observados e discutidos temas como: a


chegada do bebê à família, aleitamento materno, desenvolvimento
nos primeiros anos de vida, o brincar, vacinação, entre outros. Os
retornos a essas famílias são agendados regularmente e, após essas
VDs, são escritos relatórios individuais, na forma de narrativa, que
asseguram aos professores a possibilidade de compreensão da
aprendizagem e a necessidade de se aprofundarem os temas. É
nessa fase que se inicia a formação de habilidades comunicacionais
para o estudante − competência comunicacional como um campo
ligado às humanidades na formação médica.

Tivemos a primeira visita com o intuito de reconhecimento da


família. Ela é composta pela mãe de 28 anos, que no momento
da visita encontrava-se de licença maternidade da indústria de
ração, onde trabalha; seu marido e quatro filhos, e finalmente a
bebê que nasceu no Hospital Sorocabano. Eles residem em uma
casa bem simples de tijolo um pouco pequena para comportar
todos os membros da família, com um quintal grande gramado
em uma rua não asfaltada com rede de esgoto e eletricidade. Eles
mantêm um bom relacionamento com os vizinhos e utilizam o
posto de saúde quando sentem necessidade, o que vem ocorrendo
com maior frequência com a chegada da criança; é que a mesma
tem uma cardiopatia congênita, sendo acompanhada no HC da
UNESP. Ela toma remédio a cada doze horas e a mãe se esforça
em fazer com que ela ganhe peso, necessário para que quando
complete 1 ano de idade seja operada. (Aluno, 1o ano)

A visita domiciliar, nesse período inicial, pode ser considerada


um momento singular do exercício da comunicação estudante-
comu­nidade, com diversas implicações no modo como os estu-
dantes, com o apoio de seus professores, desenvolvem o processo
de comunicação com as famílias. Cabe ao professor fazer o papel de
mediador para que ocorra um diálogo rico no qual se permita
“aflorar a subjetividade dos participantes, que passam a ser ambos
sujeitos do cuidado” (Sucupira, 2007).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  213

Nesse momento, pode-se perceber certo constrangimento na


realização das primeiras visitas domiciliares, tanto por parte dos
alunos como das próprias famílias. O trabalho realizado pela disci-
plina de Psicologia Médica tem como objetivo preparar o aluno
para esse primeiro encontro.
Ressalta-se ainda que muitos alunos apresentam enorme ansie-
dade por terem de assumir esse chegar à casa de um estranho; nem
sempre o aluno está pronto para “mobilizar sua capacidade de em-
patia, o que equivale neste contexto a ter capacidade de entender e
acolher a angústia por que passa” cada uma das famílias visitadas
(Leite et al., 2007).
Também é desse momento e do ano seguinte a entrada do estu-
dante em conflito com a realidade de famílias muito diversas da sua
própria experiência.
No segundo ano da IUSC, as VDs estão diretamente relacio-
nadas à vivência dos alunos do 1o ano, com as famílias e com a uni-
dade de saúde. Ocorre a continuidade do acompanhamento já
estabelecido com as respectivas famílias pelas duplas de alunos.

Na primeira visita do ano encontramos a mãe em casa, a qual


nova­mente mostrou-se muito receptiva. Tivemos uma conversa
agradável e a oportunidade de adquirir subsídios para acompa-
nhar o desenvolvimento da criança. A mãe também pôde escla-
recer algumas dúvidas e levantou questões a serem trabalhadas no
próximo encontro. A criança está com 1 ano e 3 meses de idade…
Nessa hora a mãe citou que sente prazer em ainda amamentar a
filha. Mas, o pai, os amigos e familiares a pressionam para que ela
pare, pois acreditam que se isso persistir será pior para a criança,
que quando vir outra mãe amamentando um bebê, terá vontade e
ficará com lombriga. Fomos questionados quanto a essa questão,
e dissemos que a amamentação só traz benefícios a ela e ao bebê e
que quanto maior for o tempo que ela conseguir amamentar, me-
lhor será para ambas; e que a questão da lombriga trata-se de um
mito, que ela não é contraída dessa forma que eles acreditam. Ela
pediu que disséssemos isso ao seu marido e assim o fizemos para
214  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

que ele mudasse de opinião e deixasse de questioná-la. (Aluna,


2o ano)

O foco da VD amplia-se para toda a família e objetiva discutir


questões sobre condições de vida e saúde, promoção da saúde e
prevenção da doença, além de continuar acompanhando a criança.
Nesse ano, os alunos continuam a construir narrativas que serão a
base dos relatórios e trabalham com as demandas levantadas pela
família com o apoio da unidade de saúde, onde estão já há dois anos.
No 2o ano, objetiva-se uma VD bastante dialógica, com a
inten­ção de uma horizontalização na relação estudante-família.
Esse é considerado um momento de muitas trocas, no qual todos os
envolvidos aprendem com o processo da VD. Como há uma conti-
nuidade na realização das visitas às mesmas famílias do ano ante-
rior, pode-se observar que é nessa vivência que se amplia o vínculo
estu­­dante-família-comunidade.

Contou-nos bastante sobre a relação com o marido e nos informou


que este agora trabalha no período da manhã chegando ao final do
dia em casa, podendo assim passar mais tempo com as crianças e
com os animais de criação (obs.: oito das trinta cabras que pos-
suem estão prenhas, sendo os partos realizados por ele e a esposa
nas baias do quintal). Embora o marido passe mais tempo em
casa, queixou-se do fato deste não ajudá-la muito nas tarefas
domés­ticas. Contou-nos que está pensando em como irá prevenir-
-se de uma futura gravidez, após encerrar a amamentação do me-
nino e parar de tomar a injeção contraceptiva, revelando a
preferência pelo DIU, porém preocupada com falhas neste
méto­do e o fato do marido não querer usar o preservativo...
(Aluna, 2o ano)

Um dos objetivos dessa ação refere-se ao trabalho de responsa-


bilização, de acolhimento às demandas da família e de sensibili-
zação em relação às necessidades trazidas pelas mesmas. Também
há o foco no respeito a culturas e crenças diferentes e na possibili-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  215

dade de percepção de que a família tem mais conhecimento do que


o estudante sobre diversos temas.
Trabalha-se, assim, para que, em toda VD, a família seja enco-
rajada a falar sobre temas de seu interesse e, a partir deste, o aluno
desenvolve o diálogo. O aluno aprende a ouvir, mais do que a falar,
a narrar, mais do que a interpretar. A partir das narrativas trazidas
da VD de cada aluno de cada pequeno grupo, o professor realiza a
mediação,14 procurando fazer com que os estudantes interpretem e
reinterpretem a fala trazida das famílias.
Nesse sentido, a VD tem uma perspectiva pedagógica e assis-
tencial, pois, ao mesmo tempo em que o aluno está aprendendo a se
comunicar com um outro diferente dele, traz, para essa família,
temas e questões que a mesma vai lhe apresentando sobre seu modo
de lidar com os problemas de saúde. É desse diálogo na casa que
surge uma abertura para tratar do sofrimento e da relação com os
serviços.
O objetivo da VD no 3o ano da IUSC é voltado ao trabalho de
complementação ao modelo de atendimento da clínica ampliada,
no qual os alunos acompanham e auxiliam médicos na assistência
aos pacientes. Nesse momento, a visita tem sentido, muito mais, de
assistência médica domiciliar, na qual o estudante acompanha mé-
dicos e/ou enfermeiros para a realização de algum procedimento,
ou para o cuidado com pacientes impossibilitados de comparecer à
unidade de saúde. Este é também um espaço no qual os alunos con-
seguem relacionar o que foi aprendido, nos anos iniciais, para a
assis­tência integral do indivíduo. Assim, ocorre uma VD para
um  paciente idoso impossibilitado de comparecer à unidade de
saúde, e também para um paciente que está em acompanhamento
supervisionado.

14. O papel mediador do professor é aqui entendido, por Paulo Freire, como pro-
posição de uma educação, como um ato dialógico, e da linguagem como
princi­pal elemento mediador no processo educacional, por Vigotski, trazendo,
como ponto comum, a centralidade do diálogo na ação pedagógica (Marques;
Oliveira, 2005).
216  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

No dia de hoje fomos numa visita domiciliar na casa da dona


Maria. Foi uma experiência muito valiosa, já que pudemos ob-
servar o quanto os nossos julgamentos pós-consultas podem ser
falhos. A paciente estava muito receptiva e alegre, como nunca
havíamos visto antes. Também havia uma filha sua na casa, a
Catarina, a qual nos ajudou a entender melhor a dinâmica familiar.
Pareceu-nos que a paciente não está sabendo lidar bem com as
perdas de capacidade funcional e autonomia, decorrentes da
idade e da sua condição de saúde, e que, por isso, alega que os fi-
lhos não cuidam bem dela. A impressão que ficou é que na ver-
dade eles não “cuidam” da maneira que ela quer. A filha relatou
que ela sai sozinha para resolver problemas bancários e ir a con-
sultas médicas e que se nega a receber ajuda dos filhos… No
geral, fiquei com uma boa impressão da dinâmica familiar, sendo
que muito dos problemas alegados pela paciente talvez possam
ser resolvidos se a questão da perda da autonomia for melhor tra-
balhada. Trouxemos os seus aparelhos auditivos ao posto para
reajuste, embora tenhamos ficado com a impressão de que há ou-
tros motivos envolvidos no não uso deles (questões estéticas?).
(Aluno, 3o ano)

O esquema da página seguinte permite observar o processo de


organização e operacionalização da visita domiciliar na disciplina
IUSC, respeitando os objetivos previstos para cada um dos três
anos de sua realização.
Na IUSC, a VD é uma estratégia de ensino-aprendizagem que
auxilia no desenvolvimento de habilidades − como a comunicação,
a escuta e a observação − e aproxima o aluno da realidade das pes-
soas que ele futuramente irá atender no serviço público de saúde.
Tem sido uma prioridade, no trabalho de formação dos profes-
sores, discutir e propor que os mesmos acompanhem seu grupo de
estudantes para realizar as VDs e, a partir daí, revisitar os diálogos
entre estudantes e professores. Mobilizar o professor no sentido de
que ele também participe da VD pode permitir uma melhor com-
preensão real do processo vivenciado pelo estudante e, mesmo,
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  217

apoiar o estudante no enfrentamento das dificuldades de comuni-


cação, no sentido apresentado por Pinto (1987): “O caminho que o
professor escolheu para aprender foi ensinar. No ato do ensino ele
se defronta com as verdadeiras dificuldades, obstáculos reais, con-
cretos, que precisa superar. Nessa situação, ele aprende”.
No 6o ano, quando o aluno realiza estágio curricular do inter-
nato, por seis semanas na USF, muitas vezes, ele retoma o signifi-
cado da visita domiciliar na sua formação, agora realizando-a como
interno da equipe de saúde local.

Hoje, 2009, acadêmico do 6o ano a pouco para me formar, com


uma visão bem menos idealista do 1o ano, tive o privilégio (pois
assim o considero) de retornar à USF Jd. Iolanda no meu estágio
da Saúde Pública, desta vez pertencendo à grade curricular do
inter­nato. […] As visitas domiciliares, desta vez como “médico”
da equipe, fizeram-me lembrar dos velhos tempos em que com
cabeça ainda raspada ia visitar aquelas três famílias. […] Como
observei uma dissociação entre a prática clínica de um hospital
218  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

terciário (como a UNESP) e a complexidade de execução prática!!!


Como o treinamento feito pela inserção “precoce” na comunidade
conseguiu me agregar uma sensibilidade mais acentuada na abor-
dagem do paciente, embora me sinta longe do meu ideal!15

Para Túlio, Stefanelli e Centa (2000), a VD permite avaliar


desde as condições ambientais e físicas em que vive o indivíduo e
sua família, até assistir o grupo familiar, acompanhar seu trabalho,
levantar dados sobre as condições de habitação e saneamento.
A VD também pode ser considerada no contexto de educação
em saúde por contribuir para a mudança de padrões de compor­
tamento e, consequentemente, promover a qualidade de vida. É a
partir da VD realizada na IUSC, da narrativa do outro, que os
alunos vão construindo, dentro das atividades, o significado do que
é o processo de saúde-doença, o que é a autonomia do indivíduo, e
como pensar em estratégias de saúde que considerem a realidade do
outro e que, assim, possam construir ações para as mudanças de
comportamento e para a melhoria da qualidade de vida.
Para Takahashi e Oliveira (2001), a VD constitui uma ativi-
dade utilizada com o intuito de subsidiar a intervenção no processo
de saúde-doença de indivíduos ou no planejamento de ações desti-
nadas à promoção da saúde da coletividade.
A VD é caracterizada, fundamentalmente, pela interação entre
indivíduos, e, nesse sentido, a comunicação assume uma impor-
tância decisiva. A VD permite ainda uma maior proximidade dos
profissionais e serviços com as pessoas e seus modos de vida.

15. F. Gondo (Secretaria Municipal de Saúde de Botucatu). Aula do 11o Con-


gresso Paulista de Saúde Pública, São José dos Campos/SP, 2009.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  219

O relato das visitas realizadas por estudantes:


a ênfase nas narrativas

Escrever é procurar entender, é procurar


reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último
fim o sentimento que permaneceria apenas vago e
sufocador. Escrever é também abençoar uma vida
que não foi abençoada.
Clarice Lispector

Para Grosman e Cardoso (2006, p.12),

Narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde a sua


origem. As narrativas estão estruturadas sobre cinco elementos,
quais sejam: os fatos, as personagens, o tempo, o espaço e o nar-
rador. Este último configura-se como o elemento organizador de
todos os outros componentes, o intermediário entre o narrado e o
autor, entre o narrado e o leitor.

Na IUSC, a narrativa tem sido usada desde o início da disci-


plina. No 1o ano ainda possui um formato mais fechado, pois as
VDs realizadas são tematizadas, e isto propicia que os conteúdos
trazidos pelos alunos sejam mais “padronizados”. Mas, ainda
assim, é possível constatar, nos relatos dos alunos, como as famílias
“lidam” com as questões da saúde − por exemplo, o aleitamento
materno − e como o aluno se coloca diante do que foi observado,
trazendo suas concepções de mundo e os seus conceitos de saúde,
que, muitas vezes, são contrários ao que ele constatou.

Outra visita domiciliar foi realizada, com ênfase no aleitamento


materno. Observamos que o bebê, por ter então 8 meses de vida,
já havia sido desmamado pela mãe, que crê na eficácia da ama-
mentação apenas até o sexto mês. No entanto, a mãe oferecia
alimen­tos saudáveis de forma segura ao bebê, com suplementos ali­
mentares, seguindo as orientações da pediatra que a acom­panhava.
220  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

A mãe preferia não levar o filho ao posto de saúde, alegan­do des-


confiança do serviço prestado. Essa desconfiança provinha de um
mau atendimento anterior segundo a própria mãe. No geral, o
bebê estava saudável e bem alimentado. (Aluno, 1o ano)

Já no 2o ano, aperfeiçoa-se o trabalho das narrativas a partir das


VDs e, nessa fase, o que se observa é que as questões são mais
“ricas”. Isso se dá por meio da própria estratégia do 2o ano, pois
aqui os temas discutidos e abordados são os indicados a partir de
demandas e interesses da família. Os alunos entendem que há
neces­sidade de relatar fatos que não são “corriqueiros”, mas que
fazem parte da história de vida daquela pessoa. Esses fatos, muitas
vezes, auxiliam os alunos a entender a realidade de cada família e o
que seria a integralidade do cuidado, eixo norteador da disciplina.

Hoje foi realizada a visita com ênfase no tema da obesidade, o


obje­tivo era conhecer a percepção do paciente sobre seu quadro
clínico de sobrepeso. Fernanda, 37 anos, diarista com ensino
funda­mental incompleto e com denominação evangélica… con-
cordou em participar da entrevista, nos apresentamos e pergun-
tamos a ela como se deu início o seu quadro de ganho de peso e ela
nos disse:
− Comecei a engordar depois de uma depressão, mas aí eu me
tratei e melhorei mas não sei por que engordei tanto nestes últimos
tempos… Eu como pouco, fico de jejum e ainda engordo…
Questionamos o porquê do jejum e ela disse:
− É que eu sou evangélica e a gente tem que jejuar pra receber
bênção, né, não é obrigada, mas como a gente quer ser abençoada
e daí a gente faz. Ontem mesmo eu comi uma pratada de sopa era
9 horas da manhã.
− Mas a que horas você levanta?
− Umas 8 horas.
− E você não toma café da manhã?
− Não, eu fico de jejum até a hora que eu consigo e daí eu al-
moço. Eu sou muito ansiosa, eu como muito quando eu fico an-
siosa, nervosa e ultimamente eu tô ficando muito ansiosa.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  221

− Qual a sua principal queixa?


− Eu sinto muita dor no peito, pra fazer uma caminhada, ser-
viço de casa, até mesmo para se abaixar para pegar alguma coisa
no chão.
− Mas o que você come?
− Comida mesmo e eu como mais quando estou nervosa ou
ansiosa e ultimamente eu tenho andado muito ansiosa.
Pudemos notar que a paciente estava querendo desabafar e
deixamos ela falar, sem interromper, mas questionando no mo-
mento necessário.
− Eu já tô gorda e agora que eu resolvi entrar no grupo do
posto, eu não tenho um par de tênis para caminhar. Eu pedi para o
meu filho para ele comprar na conta dele no Jô Calçados porque
eu andei emprestando o meu nome para umas pessoas, mas elas
não pagaram e o meu nome ficou sujo, aí agora eu não posso com-
prar… Pedi para o meu filho e ele me negou porque disse que ele
emprestou o cartão da loja para alguns amigos e agora não tem
crédito. A gente agrada, leva comida pra eles no computador mas
a gente não ganha nada em troca, a gente não ganha nenhum ca-
rinho. Eu até pensei em sair de casa porque ninguém valoriza a
gente, meu marido chega em casa e só pensa em dormir, não dá
um carinho, uma atenção, não quer levar a gente pra passear, só
pensa em ficar em casa, aí a gente cansa, né… Você sabe que mu-
lher sempre gosta de uma atenção especial, um carinho a mais,
gosta de passear bastante, gosta de sexo e nem sempre a gente
rece­be isso… Eu comecei namorar com 12 anos e esse meu pri-
meiro namorado e ele era bem carinhoso, me dava atenção sabe,
era mais atencioso, a gente ficou junto uns três anos e eu aprendi a
ser assim como ele, aí a gente se desentendeu e terminamos e de-
pois eu conheci o meu marido, a gente casou tudo, já fazem uns
vinte anos, mas mesmo assim eu não esqueço o jeito que o meu ex
me tratava, eu gostava, eu aprendi a ser como ele e eu sinto falta
desse carinho. A gente fica carente, né, mas graças a Deus eu vou
na igreja e lá o pessoal faz oração pra gente e aí eu fico melhor.
(Aluno, 2o ano)
222  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

É no diário de campo que é relatada toda a narrativa ao final do


atendimento clínico do 3o ano. Neste, os alunos colocam não só a
história do paciente, mas também como se sentiram ao realizar
aquele atendimento. E é a partir dessas narrativas que os profes-
sores problematizam com seus alunos as questões da clínica
ampliada.

Dia quente, estava desconfortável para atender, o consultório


muito quente, mal dava vontade de falar. Atendemos uma pa-
ciente POLIQUEIXOSA e com queixa de depressão, descon-
tentamento com si mesma, e que além de tudo ficava montando e
desmontando a parede [sic]. Sei lá, não senti “verdade” nas
queixas psiquiátricas dela, senti como se ela não tivesse ativi-
dades para ocupar a cabeça. É tabagista, estava com cheiro forte
de cigarro, e que, naquele calor, tava me dando dor de cabeça.
Preciso trabalhar melhor isso!!! No retorno espero dar o melhor
de mim pra paciente. Apesar de tudo, ela disse que foi a melhor
equipe que já atendeu ela, que ela só quer ser atendida por mim
e pela outra aluna. Deu peso na consciência… acontece! (Aluna,
3o ano)

Na IUSC acredita-se que a narrativa

provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a


si pró­prias e aos outros. Tomando-se distância do momento de sua
produção, é possível, ao “ouvir” a si mesmo ou ao “ler” seu es-
crito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de ir teo­
rizando a própria experiência. Este pode ser um processo
profundamente emancipatório em que o sujeito aprende a pro-
duzir sua própria formação, autodeterminando a sua trajetória. É
claro que esta possibilidade requer algumas condições. É preciso
que o sujeito esteja disposto a analisar criticamente a si próprio, a
separar olhares enviesadamente afetivos presentes na caminhada,
a pôr em dúvida crenças e preconceitos, enfim, a desconstruir seu
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  223

processo histórico para melhor poder compreendê-lo. (Cunha,


1997, [s.p.])

Na disciplina IUSC, a narrativa a partir da VD tem sido traba-


lhada de duas formas distintas, mas não excludentes: a narrativa
oral, que relata o que foi ouvido, e a narrativa escrita, que tem o
objetivo de dar sentido e ajudar a interpretar o que cada pessoa traz
consigo de sua experiência de vida.
Segundo Carrió et al. (2008), há hoje um movimento, em dife-
rentes escolas médicas, trabalhando com uma proposta que se ini-
ciou nos Estados Unidos e que se tem denominado Medicina
Narrativa.

Nos programas de Medicina Narrativa trabalha-se com relatos


nos quais os protagonistas são os médicos e os enfermos, em
determinado contexto. Os participantes desde o início praticam
reescrever ou contar essas histórias em uma linguagem cotidiana
(não na linguagem técnica das histórias clínicas) e confrontar suas
percepções e vivências, buscando gerar habilidades imaginativas
que ajudem a transpor a distância entre saber sobre a doença do
paciente e compreender sua experiência. (Carrió et al. 2008,
p.138)

Charon (2006) fala sobre a narrativa como uma singularidade,


e o que distingue a narrativa do conhecimento universal ou cientí-
fico é a sua capacidade de captar a singularidade, o não replicável
ou incomensurável.
Usar as narrativas como recurso para valorizar as VDs e fazê-
-las significativas para o estudante, como recurso para sua for-
mação, com o objetivo de ampliar sua percepção sobre os pacientes,
as famílias, tem sido uma estratégia pedagógica da IUSC.
224  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Considerações finais

Um olhar interessado à visita domiciliar


na formação de médicos

Na revisão bibliográfica sobre a visita domiciliar como estra-


tégia pedagógica no Brasil, observaram-se distintas e ricas propo­
sições que enfatizavam as questões aqui trabalhadas. Embora
o  diálogo com a literatura precise ser ampliado, constataram-se
pou­cas referências sobre o tema. Verifica-se que parece haver uma
direção a ser explorada e que diversas escolas médicas vêm parti-
lhando esse caminho de forma semelhante, ou seja, os cursos de
Medicina, apoiados por políticas públicas nacionais, vêm buscando
se adequar às DCNs propostas para os cursos da área da saúde e ao
compromisso social com o SUS e, como parte dessa proposta, têm
investido na realização de visitas domiciliares.
Disciplinas ou currículos inovadores que utilizam a VD como
ampliação dos cenários de práticas e, também, como forma de apro-
ximação com a população, contribuem para a compreensão do
proces­so saúde-doença e o contexto de vida das pessoas. A contri-
buição para o desenvolvimento dessas ações busca “desvelar o
cami­nho para se assumir o princípio da integralidade, especial-
mente na dimensão da boa prática profissional, como um orien-
tador das práticas em saúde e da formação profissional” (Marin
et al., 2010, [s.p.]).
Sistematizar, a partir do relato, da reflexão, da percepção e dis-
cussão sobre a VD, e socializar essa experiência de trabalho pode
significar algo muito “produtor de conhecimento e de apropriação
desse saber/fazer, desse modo de refletir sobre o cotidiano de tra-
balho” (Lauer, 2010), no desenvolvimento da pesquisa que, ao
mesmo tempo que aqui foi sendo sistematizada, permitiu levantar
inúmeras questões para o desenvolvimento da própria prática
peda­gógica na IUSC.
Pôr em prática os princípios de uma VD dialógica e que expõe
a necessária habilidade comunicacional, conflitos e contradições
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  225

entre o visitador estudante e a família visitada é lançar-se em um


“universo dinâmico, composto por uma complexa diversidade
de saberes e modos de existir, é transitar entre os poderes insti-
tuídos, produzindo questionamentos onde caberiam apenas cer-
tezas” (Lauer, 2010). É poder, a cada novo problema identificado,
recriar cotidianamente novos modos de fazer saúde.
A visita domiciliar é uma estratégia pedagógica que permite
aos alunos refletir sobre a necessidade de mudança do modelo de
atenção à saúde, pois podem se considerar características impor-
tantes que “transcendem a lógica do atendimento voltado para a
doença e centrado na queixa principal de ordem biológica. Eviden-
ciam-se, também, predicativos de ações inerentes ao princípio da
humanização e do cuidado centrado no usuário e sua família”
(Marin et al., 2010, [s.p.]).
A VD na IUSC é, assim, considerada uma atividade pedagó-
gica e assistencial, uma vez que permite interferir na relação entre
usuários, estudantes e profissionais, professores e serviços, seja no
caráter educativo, com o próprio diálogo que se vai construindo,
seja constatando ausências e necessidades não acolhidas pelas uni-
dades e que são reveladas pelos estudantes para que se transformem
em ação.
O que se busca na formação do profissional da área da saúde,
atualmente, é um processo formativo mais contextualizado, que
considere a relação da teoria e da prática, ou vice-versa, instrumen-
talizando os futuros médicos para enfrentarem os problemas do
processo saúde-doença da população.
Criar e potencializar espaços de discussão sobre o fazer e como
fazer uma VD significativa na formação médica pode possibilitar
que conflitos existentes em relação a seu valor, na graduação, sejam
expostos e, assim, possam ser ressignificados e reconstruídos.
226  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

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8
O CADERNO DE CAMPO:
UM INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO
FORMATIVA NA DISCIPLINA IUSC III

Daniele Cristina Godoy


Antonio Pithon Cyrino
Vanessa dos Santos Silva

A IUSC III direcionada ao 3o ano de graduação médica possui


um caráter eminentemente prático e tem como atividade principal
a consulta médica supervisionada, orientada pelos princípios da
inte­gralidade e da humanização do cuidado, de usuários adultos
de UBSs/USFs do município de Botucatu. A vivência proporcio-
nada aos alunos pela IUSC III permite a prática da consulta médica
orientada para além do diagnóstico e da conduta, ou seja, busca
sensibilizar o aluno para “cuidar do sujeito doente e não somente
da doença do sujeito” (UNESP, 2010), tendo o ensino da “Clínica
Ampliada” como proposta pedagógica da disciplina.
São objetivos específicos da disciplina IUSC III: a formação
médica orientada para uma prática clínica que respeite as especifi-
cidades e necessidades de cada usuário; a ampliação da prática de
registro em prontuários, tornando-o mais completo, com informa-
ções que contemplem a história psicossocial dos usuários; a inte-
gração dos conhecimentos de semiologia e raciocínio clínico por
meio da consulta médica supervisionada (UNESP, 2012).
Os alunos são divididos em grupos pequenos de quatro a seis
alunos, cada qual sob a supervisão de um professor tutor. O con-
junto de professores tutores do 3o ano da IUSC é formado por
232  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

médi­cos do Hospital das Clínicas ou da Facul­dade de Medicina


e  mé­dicos da Secretaria de Saúde do município que atuam na
atenção primária no Programa de Saúde da Família ou nas unidades
básicas de saúde.
Os diferentes professores tutores e os coordenadores do pro-
grama, desde o início de sua idealização, já buscavam uma meto­
dologia de avaliação formativa capaz de auxiliar o aluno no seu
próprio aprendizado, trazendo um aspecto mais reflexivo à sua prá-
tica; que pudesse ser um instrumento para os tutores acompa-
nharem o aprendizado do aluno, tornando-os capazes de iden­tificar
as dificuldades do estudante a tempo de serem superadas, e mos-
trasse o desenvolvimento de cada indivíduo ao longo da disciplina.
Por ser uma disciplina inserida num currículo tradicional, a cons-
trução de um portfólio não foi, inicialmente, considerada possível,
mas já se entendia que seria necessária a mescla de diversos instru-
mentos para atingir os objetivos avaliativos imaginados.
Dentre os instrumentos analisados, pensou-se em uma ficha
de avaliação que pudesse ser aplicada pelo tutor, a cada aluno, logo
após a atividade do dia. Esse instrumento foi baseado principal-
mente nos objetivos da disciplina e na capacidade de o aluno, indi-
vidualmente, se aproximar do objetivo proposto, sendo possível
classificar sua atividade em insatisfatória, satisfatória ou plena-
mente satisfatória.
Para auxiliar no caráter reflexivo do aluno ante a atividade que
acabara de desenvolver, assim como sua capacidade de autoava-
liação, optou-se por estimular o uso de um diário de campo.
Analisando inicialmente a avaliação na educação superior, em
seguida revisando a avaliação na graduação em Medicina, este capí­
tulo se propõe a discutir o diário de campo – caderno do aluno –
como um instrumento de avaliação formativa utilizado na disci­plina
IUSC III, como uma de suas estratégias pedagógicas. Traz infor-
mações a respeito do seu uso na disciplina e ressalta a potenciali-
dade desse instrumento para o processo de ensino-aprendizagem.
O presente capítulo apresenta dados obtidos da dissertação de
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  233

mestrado em Saúde Coletiva pelo Departamento de Saúde Públi­ca


da FMB − UNESP que, através da análise temática de conteúdo das
narrativas do caderno do aluno, buscou identificar, descrever e
analisar os principais temas tratados pelos alunos em seus cadernos
e, por fim, analisar o diário como potencial instrumento de ava-
liação formativa do aluno.

A avaliação na educação superior

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de


1996, definiu que a avaliação educacional no país seja: contínua e
cumulativa, que os aspectos qualitativos da avaliação se sobrepo-
nham aos quantitativos, destacando a importância que deve ser
dada ao desempenho do aluno ao longo do ano e não somente em
uma prova ao final do curso ou da disciplina. Esse modelo de ava-
liação é conhecido por avaliação formativa. O que se espera é que
esse modelo proposto desestimule a avaliação tradicional (somativa
ou classificatória) no meio educacional.
No entanto, a avaliação somativa ainda é a mais empregada no
ensino superior, tendo como características a centralização no pro-
fessor e na verificação do desempenho dos alunos – por meio de
provas e contabilização de resultados (Romanowski, 2006); prio-
rizar os acertos obtidos e desvalorizar os erros (enquanto indica-
tivos das dificuldades a serem superadas); limitar-se a verificar os
resultados obtidos pelos alunos, o que estimula o aluno a estudar
para tirar nota e não para aprender (Mendes, 2005).
A avaliação formativa, também considerada um processo de re-
gulação permanente por aquele que aprende (Bonniol; Vial, 2001),
é aquela realizada regular e periodicamente, ao longo do processo
educacional, acompanhando o desenvolvimento do aluno nesse pro-
cesso de ensino-aprendizagem, sem desconsiderar os erros e difi­
culdades do aluno, os quais devem ser alvo de correções efetivas.
Caracteriza-se por ser democrática, holística, emancipatória, cons-
234  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

tantemente diagnóstica, centrada na confiança mútua entre


profes­sor e aluno e, em vez de causar medo, despertar confiança
(Moura, 2007).
O emprego da avaliação formativa no ensino superior é objeto
de muita resistência por parte de professores e alunos, e, embora a
teoria avaliativa tenha tido grandes avanços, a prática avaliativa
pouco evoluiu, conservando muitas características da avaliação so-
mativa (Perrenoud, 1999).

A avaliação do estudante de Medicina

Falar em mudanças no ensino médico implica não só reco-


nhecer a necessidade de novas estratégias de ensino-aprendizagem,
como também assegurar a coerência dos projetos de reforma com
os pressupostos ético-políticos e técnicos da saúde no país. Não é
mais possível promover a formação do médico fora do contexto do
SUS, utilizando estruturas tradicionais de ensino, de currículos
fragmentados, com disciplinas não integradas e sem considerar as
experiências do aluno como parte integrante do eixo da aprendi-
zagem (Gomes et al., 2010).
Nesse contexto, ressaltam-se questões relativas à avaliação do
processo de ensino-aprendizagem, com vistas à formulação de
novos métodos capazes de superar a orientação somativa ou classi-
ficatória prevalente, ainda hoje, na avaliação educacional.
A avaliação do estudante de Medicina cumpre um papel
funda­mental na sua formação, embora os métodos usualmente uti-
lizados, quase sempre somativos, de caráter punitivo ou de pre-
miação, tenham causado uma imagem negativa das práticas de
avaliação e provocado distorções no processo de ensino-aprendi-
zagem. Isso porque o processo de avaliação deve abranger não só o
conhecimento adquirido, como também as habilidades específicas
e elementos de ordem afetiva, como atitudes diante dos inúmeros
aspec­tos da prática profissional (Trocon, 1996).
Feuerwerker (2002) levanta problemas comuns na avaliação da
aprendizagem nas escolas médicas, como: a avaliação de caráter
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  235

cognitivo ao final das disciplinas (valorizando a memorização


dos conteúdos teóricos), a valorização da prova como método ava-
liativo e o estímulo à competitição entre os estudantes.
Gomes et al. (2010), ao discutir as necessidades de mudança
no ensino médico, destacam o papel da avaliação como elemento de
ação transformadora e como grande colaboradora para o sucesso
das metodologias ativas, dentre as quais se destacam, na área da
saúde, a problematização e a aprendizagem baseada em problemas.
O que se pretende nesse contexto é que a avaliação deixe ser um
mero espaço para o exercício de poder, passando a ser utilizada
como um espaço dialógico entre o avaliador e o avaliando, que con-
sidere as particularidades dos sujeitos envolvidos e, dessa forma,
ocupe um lugar como método promotor da aprendizagem.
Autores propõem para a avaliação do estudante de Medicina o
uso do método formativo e apontam como uma de suas caracterís-
ticas fundamentais o retorno imediato que deve ser fornecido ao
estudante, considerado um aspecto fundamental da aprendizagem e
que, no contexto da clínica, ao se referir ao desempenho dos alunos
em determinadas situações ou atividades, contribui para uma auto-
percepção do aluno, bem como a possibilidade de se auto­avaliar
(Trocon, 1996; Zeferino, 2007).
Para Dolores Araújo (2006), um dos caminhos para se pro-
mover mudanças na educação médica é investir em transformações
no campo da avaliação, a qual representa um elemento de fun­
damental importância para o aprimoramento do processo de
ensino-aprendizagem.

O caderno de campo como instrumento de


avaliação formativa

Quando se fala de instrumentos de avaliação formativa, reco-


mendam-se aqueles que a tornem um processo contínuo, dialógico,
diagnóstico e participativo, contribuindo para a responsabilização
do estudante com a sua educação e permitindo às instituições ter
melhor acompanhamento dos mesmos (Silva, 2006).
236  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Com relação aos instrumentos mais indicados para um pro-


cesso de avaliação nos moldes formativos, há um consenso entre os
pesquisadores sobre o assunto de que não há um método perfeito e
nenhum deles deve ser usado isoladamente (Moura, 2007; Domin-
gues et al., 2010). A disciplina IUSC III busca uma metodologia de
avaliação formativa e utiliza como um de seus instrumentos o diário
de campo – caderno do aluno.
O caderno do aluno foi inspirado no diário de campo da pes-
quisa etnográfica, e como tal é um valioso instrumento de coleta na
pesquisa qualitativa, dada a possibilidade de registro de impressões e
opiniões no cotidiano de uma determinada vivência, podendo poten­
cializar o exercício da escrita e da reflexão e se constituindo numa
fonte infinita de produção de sentidos (Pinho; Molon, 2011).
Outra forma de ser utilizado, como aconteceu na pesquisa referen-
ciada no início do capítulo, é para o “registro das observações,
comen­tários e pensamentos reflexivos, podendo ser usado de ma-
neira individual pelo profissional, pesquisador e aluno” (Falkem-
back apud Pinho, 2011, p.2).
O caderno do aluno é também considerado um instrumento
muito apropriado como parte de um processo técnico e pedagógico
que leva à reflexão e análise da realidade vivenciada no cotidiano
profissional (Lima et al., 2007).
O seu uso na área de ensino-aprendizagem no processo de for-
mação de profissionais da saúde o torna um instrumento muito va-
lioso, não só pelo seu papel como instrumento avaliativo do referido
processo, mas pelo seu comprometimento com a aprendizagem re-
flexiva e com o desenvolvimento da competência narrativa do
aluno (Araújo et al., 2006; Freitas et al., 2006).
Na disciplina IUSC III se estabeleceu o uso do diário de campo
para o registro diário das reflexões do aluno sobre as atividades rea-
lizadas como uma das estratégias pedagógicas da disciplina, sendo
o mesmo um instrumento de avaliação formativa para alunos e pro-
fessores da disciplina.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  237

A avaliação formativa e o diário de campo na


disciplina IUSC III

A avaliação do desempenho dos alunos na disciplina IUSC III


é processual e diversificada no que diz respeito aos instrumentos
avaliativos. O diário de campo vem sendo utilizado para o registro
das vivências do aluno, tendo se mostrado um rico instrumento de
avaliação formativa e autoavaliação do aluno, o qual é incentivado a
responder, ao final da atividade proposta, as seguintes questões
norteadoras: 1) O que aprendeu na consulta médica (ou na ativi-
dade) de hoje? 2) Quais as dificuldades que encontrou nesta prá-
tica? 3) O que achou motivador na prática de hoje? O aluno pode
inserir, a partir dessas questões, outras temáticas reflexivas. Nesse
diário, os alunos relatam suas experiências vivenciadas na atenção à
saúde prestada na disciplina. Como tal, o diário “permite acompa-
nhar as atividades do aluno e a atuação didática dos professores,
fornecer subsídios para a avaliação do desempenho dos estudantes,
apoiar processos de reformulação da prática pedagógica a partir do
feedback dos discentes e funciona para o aluno como um instru-
mento de autoavaliação” (Araújo et al., 2006).
O caderno do aluno, na disciplina IUSC III, deve ser utilizado,
obrigatoriamente, desde o primeiro dia de atividade nas unidades
de saúde. Esse caderno, no decorrer da disciplina, fica com o aluno
ou o tutor do grupo e, ao final da disciplina, é encaminha­do para
arquivamento no Núcleo de Apoio Pedagógico (NAP) da FMB.
Com o intuito de analisar o conteúdo dessas anotações, foi ela-
borado um projeto de pesquisa, aprovado no comitê de ética, e seus
resultados serão apresentados a seguir. Foi utilizada a metodologia
de avaliação qualitativa, com leitura, classificação e seleção pelo
pesquisador. A classificação se deu considerando a qualidade dos
registros, quanto à densidade de expressão das vivências do coti-
diano das atividades da disciplina relativas ao próprio aluno, ao pa-
ciente e ao tutor. Assim, foram incluídos no estudo os cadernos que
apresentavam uma maior densidade de expressão das vivências, e
foram excluídos aqueles preenchidos de maneira inadequada,
238  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

muito mecânica, como se fosse uma transcrição do prontuário no


caderno, sem anotações das suas percepções referentes àquela
atividade.
Numa apreensão qualitativa do conjunto de cadernos estu-
dados, verificou-se que os mesmos tinham cerca de trinta páginas
de registros, que se referiam às percepções dos alunos relativas às
atividades vivenciadas, o envolvimento do tutor e muitas vezes co-
mentários relativos ao seu próprio desempenho. As narrativas
compunham-se de registros contemplando as perguntas nortea-
doras já citadas, sendo geralmente mais curtas no início do caderno
e tornando-se mais detalhadas, longas e mais ricas em impressões,
percepções e sentimentos a partir do início das consultas médicas
supervisionadas.
Os registros estavam homogêneos quanto à cronologia de seu
conteúdo, coerentes com o cronograma de atividades da disciplina,
qual seja: reconhecimento da unidade de saúde, sua equipe e área
de abrangência; acompanhamento da consulta clínica realizada
pelo tutor; realização da consulta clínica com os colegas e posterior-
mente sozinhos; participação em visitas e atendimentos domici-
liares com a equipe da unidade e em atividades de discussão de caso.
Dentre muitos aspectos destacados das narrativas no caderno
do aluno, aqui ressaltaremos aqueles que o caracterizam como um
instrumento avaliativo na disciplina, que são as descrições sobre
as habilidades adquiridas, as facilidades e dificuldades do aluno nas
atividades propostas, além da avaliação da disciplina. Esses são
aspectos que estão inseridos dentro do eixo temático identificado
na análise dos cadernos como Percepções sobre a Aprendizagem.

Análise do caderno do aluno na


disciplina IUSC III como um instrumento
de avaliação formativa

O eixo temático Percepções sobre a Aprendizagem é composto


por narrativas referentes às vivências e reflexões cotidianas sobre o
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  239

aprendizado experimentado na disciplina IUSC III, bem como


sobre as estratégias utilizadas pela disciplina para o desenvolvi-
mento do processo de ensino-aprendizagem. Destacando-se que
tais registros foram provocados por algumas das questões pro-
postas aos alunos no preenchimento do diário: o que aprendi na
consulta médica ou na atividade de hoje? Quais as dificuldades que
encontrei na consulta médica ou na atividade de hoje?
Na leitura dos cadernos é possível perceber o quanto o aluno
trata do seu aprendizado, direta ou indiretamente, em suas narra-
tivas. O aluno traz importantes informações do seu aprendizado,
expondo as facilidades e dificuldades nesse processo, o que de-
monstra a potencialidade do caderno de campo como parte de um
processo de autoavaliação.
O aprendizado, as habilidades adquiridas e desenvolvidas são
questões muito presentes nas narrativas:

Aprendi a diferenciar causas pulmonares e cardíacas de dispneia


(ou pensar sobre as diferenças entre tais causas). Aprendi a fazer
uma anamnese com queixas psiquiátricas. A direcionar o exame
físico especificamente para a queixa de uma consulta extra; a in-
vestigar uma massa abdominal e sua relação com Ca de cólon; a
remover um cisto e a operar uma unha encravada; a colher papani-
colau; a fazer uma consulta de puericultura; a elaborar uma hipó-
tese diagnóstica e a antecipar achados do exame físico. (57F10)

Demos continuidade à rotina de atendimentos, o que nos permitiu


continuar a desenvolver as habilidades comunicacionais e a adquirir
cada vez habilidade para o atendimento, o relacionamento com o
paciente, o raciocínio clínico, o desenvolvimento de hipóteses diag-
nósticas e condutas. (68M1)

As narrativas que trazem questões referentes ao aprendizado


na disciplina contemplam o progresso do aluno na abordagem clí-
nica, seja com descrições mais genéricas ou singulares dessa vi-
vência, como se observa nos exemplos a seguir:
240  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Também aprendi um pouco sobre muitas coisas que ainda não ti-
vemos no currículo da faculdade. No começo o atendimento na
IUSC parece muito precoce por sabermos somente o básico da se-
miologia, patologias e também Farmacologia. Mas, ao longo do
ano, vamos aprendendo um pouco sobre várias coisas e os casos
passam a fazer mais sentido para que possamos pensar em hipóteses
diagnósticas e condutas. (68M10)

Aprendi como é importante fazer as orientações corretas para o pa-


ciente. (56M10)

As narrativas também contemplam as dificuldades na ativi-


dade do dia, constituindo-se em uma oportunidade para o aluno se
autoavaliar, reconhecendo o que está difícil e precisa ser melho-
rado, e ao tutor, a possibilidade de agir sobre as limitações do aluno:

Algumas dificuldades encontradas envolvem a inexperiência em re-


lação à anamnese, então às vezes confundo a ordem dos questiona-
mentos e perco o fator organização. Acredito que o tempo e a
prática ajudarão a solucionar este problema. (41M10)

Ressalto como dificuldade da experiência de hoje, a questão de dar


uma boa orientação ao paciente sobre como administrar a medicação,
pois pode haver dificuldade na comunicação entre profissional de
saúde e paciente. (55M10)

É explícito nas narrativas o sentimento de insegurança pre-


sente nas primeiras consultas, que progressivamente vão se trans-
formando em declarações mais seguras, dando ao tutor uma visão
do desenvolvimento do aluno durante a disciplina no que se refere
ao seu desempenho na atividade:

Como dificuldade de hoje, eu cito apenas lembrar-se de todos os


passos da anamnese e do exame físico (ainda usei bastante o guia),
pois a insegurança de não ter o professor do lado está sendo substi-
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  241

tuída por uma sensação de estar mais à vontade, mais acostumado,


quando fazendo uma consulta. (65M09)

Acredito que a atividade de hoje foi muito proveitosa, pois fizemos


uma anamnese ampliada, e fomos capazes de perceber diversos as-
pectos da vida da paciente (principalmente psicológicos e emocio-
nais) que podem estar envolvidos no aparecimento e evolução dos
sintomas. (32F10)

Fiquei perdida na primeira consulta [...] Na segunda fiquei um pouco


mais à vontade [...] Mas, ainda assim, me sinto muito insegura para
atender pacientes, tenho a impressão de que não sei nada e que
posso passar alguma informação importante tanto na anamnese
quanto no exame físico. (20F10)

Foi possível observar na análise dos cadernos que, ao narrar


suas experiências diárias, o aluno o faz de forma bastante reflexiva
e crítica, descrevendo suas vivências com riqueza de detalhes. Na
maioria dos cadernos, suas inseguranças, facilidades, dificuldades,
potencialidades e limitações estão expressas de maneira bastante
clara. O fato de relatar esses sentimentos e sensações ao longo do
desenvolvimento da disciplina, e poder recuperá-los pela leitura
do caderno, propicia ao aluno perceber seu crescimento, reconhecer
o processo e adquirir segurança nas atividades exercidas.
Ressalte-se que essas são informações de extrema importância
para o acompanhamento do processo de ensino-aprendizagem,
que, se não fosse assim, dificilmente apareceriam em um processo
avaliativo de caráter somativo.
Além das questões relativas ao seu aprendizado técnico e cog-
nitivo, em suas narrativas o aluno também expõe situações de difi-
culdade de relacionamento com os colegas e pacientes, o que talvez
não expusessem em uma discussão aberta, e que estão diretamente
relacionadas ao seu desempenho na disciplina.
242  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Consultamos um paciente bastante idoso que tinha dificuldades


para falar devido aos esquecimentos. Foi bastante difícil para mim
por falta de paciência. Quando descobri que ele tinha mentido
sobre outra família que ele tinha em São Manuel, me senti muito
incomodado. (62M09)

Fiquei triste com os problemas de hoje. Senti que não consegui passar
confiança necessária à paciente. Talvez minha estratégia tenha sido
errônea. Espero corrigir estes erros em atendimentos futuros.
(93F10)

Tive muita dificuldade para trabalhar em dupla, já fiz dois atendi-


mentos em dupla, talvez seja melhor fazer o próximo sozinha,
para ver como me saio. (45F09)

Relatos como esses dão uma real impressão dos sentimentos


que permeiam a atividade clínica, especialmente no seu início, e
têm um potencial grandioso para discussão com o grupo de alunos.
Certamente, esse potencial será mais bem utilizado de acordo com
a capacitação e o olhar de cada tutor.
Ao utilizar o caderno do aluno na disciplina, o estudante faz,
também, comentários sobre a disciplina e suas contribuições para o
seu crescimento profissional.

As aulas do IUSC foram bem proveitosas, pois pudemos pôr em


prática nossos aprendizados sobre anamnese e exame físico, além
de conviver um pouco mais com os casos de pacientes. A maior
qualidade do IUSC nessa prática é a proximidade que temos com o
médico da unidade para tirar nossas dúvidas e discutir os casos.
Acredito que isso é determinado pela disponibilidade do médico
no momento da aula e pelos grupos serem pequenos. (11F10)

Logo foi uma oportunidade ímpar de ter um contato mais próximo


com o dia a dia da prática médica, especialmente com a rotina dos
atendimentos, que até então não tínhamos experienciado. (35F09)
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  243

Embora menos frequente, em suas narrativas, o aluno também


traz algumas críticas e sugestões à disciplina, que podem ser inter-
pretadas de maneira positiva e contribuir para o desenvolvimento
da mesma.

Fomos apresentados aos objetivos da disciplina. [...] Conhecemos


também o material de apoio. [...] Sugestão: acredito que aproximar
as aulas de apresentação (estas quatro aulas do primeiro semestre)
das aulas do segundo semestre seria mais proveitoso. (24F09)

A dificuldade hoje foi o fato de terem sido agendados dois pacientes


para o mesmo horário. Também o número de salas da unidade foi
muito reduzido. (68M10)

O diário de campo ou caderno do aluno na disciplina IUSC III


tem um valor muito grande no que se refere ao seu uso como um
instrumento de avaliação formativa. As narrativas do aluno em seu
caderno permitem-nos acompanhar o seu desenvolvimento no co-
tidiano da clínica.
Segundo Mourão et al. (2009), a avaliação formativa é aquela
realizada durante todo o processo de ensino-aprendizagem, permi-
tindo o acompanhamento longitudinal e individual dos estudantes
(Gomes et al., 2010). Essa é uma das características fundamentais
do diário de campo, que, através das narrativas que são feitas dia-
riamente, nos permite essa visualização linear e horizontal do
desem­penho do aluno.
Diferentes autores também defendem a auto­avaliação como
parte da avaliação formativa (Domingues et al., 2007; De Sordi,
2000; Moura, 2007), considerando o seu papel na valorização da
perspectiva daquele que aprende (Mendes et al., 2005). O que fica
muito evidente no caderno do aluno quando, em muitos momentos,
o mesmo descreve o seu desempenho, identifica os seus erros e
acertos e imediatamente propõe estratégias: “Preciso estudar mais”.
244  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Considerações

Pode-se concluir, com o presente estudo, que o diário de campo


– caderno do aluno − na disciplina IUSC III tem um grande poten-
cial nesse cenário de ensino-aprendizagem para os diversos atores
envolvidos: alunos, tutores e equipe de coordenação, represen-
tando para cada um deles um papel significativo e singular.
Para o aluno, o diário de campo tem um significado ímpar no
processo de ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo que lhe pro-
porciona o desenvolvimento da escrita e lhe permite que, ao des-
crever seu aprendizado e seu crescimento, também faça reflexões
sobre o referido processo ao longo da disciplina, bem como sobre as
dificuldades e enfrentamentos. Tal método abre espaço ao aluno
para a prática da autoavaliação.
Ao tutor, o caderno dá a oportunidade de acompanhar o de-
sempenho diário do aluno nas atividades propostas. Mas, quando se
verifica a grande diferença na qualidade dos registros apresentados
pelos diferentes diários, é possível inferir que a capacitação do
tutor, sua apreensão do potencial reflexivo, de avaliação formativa
e autoavaliação dos diários interferirá diretamente na construção de
suas potencialidades ao longo do desenvolvimento da disciplina.
Este estudo, juntamente com a avaliação da disciplina na visão do
aluno, sugere que a construção desse conceito de diário de campo
como estratégia pedagógica ainda está em desenvolvimento, neces-
sitando de aprimoramentos e reflexões por parte dos tutores e
coordenação.
O conteúdo temático dos cadernos, por sua riqueza, pode se
constituir num importante recurso para que a equipe de coorde-
nação da disciplina trabalhe o processo de supervisão e formação de
docentes no desenvolvimento e aperfeiçoamento das estratégias
pedagógicas da disciplina.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  245

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SOBRE OS AUTORES

Antonio Pithon Cyrino é médico sanitarista, com mestrado e dou­


torado em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da Uni­­ver­
sidade de São Paulo e pós-doutorado em Antropologia Social pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB. Professor
assistente doutor do Departamento de Saúde Pública e do Programa de
Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Univer­
sidade Estadual Paulista. Editor da revista Interface − Comunicação,
Saúde, Educação desde 1997. Foi diretor do Centro de Saúde Escola da
Faculdade de Medicina de Botucatu.

Eliana Goldfarb Cyrino é formada em Medicina pela Faculdade de


Medicina de Jundiaí, em 1982. Fez residência médica em Medicina Pre­
ventiva e Social na FMB − UNESP. Mestre em Medicina (Medicina
Preven­tiva e Social) pela FMUSP (1994). Mestre em Educação para Pro­
fissionais de Saúde, University of Illinois, EUA (2000). Doutora em Pe­
diatria pela FMB − UNESP (2002). Tem especialização em Formação de
Ativadores de Processos de Mudança na Educação Superior de Profissio­
nais de Saúde, pela Escola Nacional de Saúde Pública, Ministério da
Saúde (2006). É professora do Departamento de Saúde Pública da FMB
− UNESP. Participa da equipe de coordenação da implementação do
ensi­no na atenção básica e na comunidade da FMB. É membro do Núcleo
de Apoio Pedagógico da FMB. Coordena o programa PET-Saúde da
248  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

FMB. Participa do Programa Faimer Brasil. Participa do Projeto Grupo


de Mulhe­res do Jardim Peabirú, que articula saúde à educação popular. É
editora associada da revista: Interface − Comunicação, Saúde e Educação.
Diretora do Programa da Secretaria do Trabalho e da Educação na Saúde
(SEGTES) do Ministério da Saúde.

Cássia Marisa Manoel é enfermeira graduada na Escola de Enfermagem


de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). É mestre e dou­
tora em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina de Botucatu –
UNESP, onde atua no Centro de Saúde Escola e Departamento de
Enfermagem. Participa da coordenação das disciplinas IUSC e é docente
da mesma desde 2004 até a presente data.

Maria Regina Pires Uliana possui graduação em Medicina pela Facul­


dade de Medicina de Sorocaba PUC-SP (1992). Residência médica em
Pediatria Geral e Social pela UNESP/Botucatu. Mestrado em Saúde Pú­
blica na área de Educação Médica também pela UNESP/Botucatu. Atua
na área de Pediatria, com atendimento clínico de crianças e adolescentes
em consultório, ambulatórios, enfermaria e maternidade e na gestão e de­
senvolvimento de projetos para UBSs, creches e escolas. Nos últimos
anos, vem trabalhando como professora de graduação médica e de resi­
dentes de Pediatria. Atualmente, é gestora hospitalar nas áreas de planeja­
mento ambulatorial e gestão da informação do Hospital Estadual Bauru.

Renata Maria Zanardo Romanholi possui graduação em Pedagogia


pela Unifac − Associação de Ensino de Botucatu (1999). Aprimoramento
em Saúde Escolar – FMB − UNESP. Mestre em Saúde Coletiva pela
FMB − UNESP. Atualmente, é doutoranda do Programa de Pós-Gra­
duação em Saúde Coletiva da FMB − UNESP. É pedagoga do Núcleo de
Apoio Pedagógico da FMB − UNESP. Tem experiência na área de edu­
cação, com ênfase em saúde, atuando principalmente nos seguintes temas:
educação médica, comunidade, universidade, interação e ensino médico.

Tiago Rocha Pinto graduou-se em Psicologia (2003) pela Faculdade de


Ciências da UNESP/Bauru. Especialização em Violência Doméstica
contra Crianças e Adolescentes pela USP (2003). Aprimoramento profis­
sional em Saúde Pública (2004). Mestrado em Saúde Coletiva (2007).
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  249

Residência multiprofissional em Saúde da Família (2010). Doutorado em


Saúde Coletiva pela FMB − UNESP. É professor no Instituto Municipal
de Ensino Superior de São Manuel (Imes), professor substituto no Depar­
tamento de Saúde Pública da FMB − UNESP e orientador de aprendi­
zagem no curso de Especialização em Docência na Saúde pela UFRGS.

Marina Lemos Villardi concluiu o curso de Pedagogia na UNESP/


Bauru em 2007. Realizou aprimoramento em Saúde Escolar pela FMB −
UNESP em 2008, onde trabalhou com crianças com dificuldades esco­
lares, desenvolvendo atividades lúdicas no contexto escolar, assessorando
professores e profissionais da saúde que atendiam crianças com baixo ren­
dimento escolar. Concluiu o mestrado em Saúde Coletiva na UNESP/
Botucatu em 2011, onde estudou as ações desenvolvidas pela Estratégia
da Saúde da Família voltadas à saúde da criança em idade escolar. Em
2014, concluiu o doutorado em Saúde Coletiva pela FMB − UNESP, pes­
quisando práticas de ensino que utilizam metodologias problematiza­
doras. Atualmente, trabalha como coordenadora pedagógica no curso de
Pedagogia da Faculdade Sudoeste Paulista (FSP) – Avaré –, atuando como
docente nos cursos de Pedagogia, de Biomedicina e Farmácia, onde tra­
balha com interação comunitária.

Neusi Aparecida Navas Berbel é graduada em Pedagogia pela Univer­


sidade Estadual de Londrina (1971), mestra em Educação pela Universi­
dade Federal Fluminense (1982) e doutora em Educação pela Universidade
de São Paulo (1992). É professora associada da Universidade Estadual de
Londrina. Tem experiência na área de educação, com ênfase em ensino
superior, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino superior,
metodologia da problematização com o arco de Maguerez, avaliação da
aprendizagem, saberes pedagógicos e formação de professores.

Daniele Cristina Godoy possui graduação em Fisioterapia pela Univer­


sidade Estadual de Londrina (1999). Especialização em Fisioterapia Neu­
rológica pelo Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium (Cucsa),
2005. Mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pela FMB − UNESP. Fi­
sioterapeuta do Centro de Saúde Escola – Unidade Auxiliar da FMB –
UNESP desde 1999. Atuou de 2008 a 2013 como preceptora da Residência
Multiprofissional em Saúde da Família da Faculdade de Medicina de
250  ANTONIO P. CYRINO  •  DANIELE GODOY  •  ELIANA G. CYRINO

Botu­catu e atualmente é preceptora da residência multiprofissional em


saúde do adulto e do idoso – FMB − UNESP, tutora da disciplina IUSC.

Vanessa dos Santos Silva possui graduação em Medicina pela FMB –


UNESP, residência médica em Clínica Médica e Nefrologia pela mesma
universidade. Doutorado em Fisiopatologia em Clínica Médica (Departa­
mento de Clínica Médica) pela UNESP em 2008. Médica contratada do
Hospital das Clínicas da FMB – UNESP desde 2003, com atuação em
Nefrologia Clínica. Tem especialização em Formação de Ativadores de
Processos de Mudança na Educação Superior de Profissionais de Saúde,
pela Escola Nacional de Saúde Pública, Ministério da Saúde, em 2006.
Atua na capacitação de profissionais de saúde da região em cursos e pro­
jetos de extensão, e como tutora do programa Integração Universidade
Ensino Comunidade no seu terceiro ano da graduação em Medicina desde
a criação da proposta.

Victória Ângela Adami Bravo é formada em Pedagogia (2009) e Edu­


cação Especial (2010) pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara
− UNESP. Possui aprimoramento em Saúde Escolar (2011) pela FMB −
UNESP e atualmente é mestranda em Saúde Coletiva na mesma insti­
tuição.

Maria Antonia Ramos de Azevedo possui graduação em Pedagogia pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1989). Mestrado em Edu­
cação pela Universidade Federal de Santa Maria (1997). Doutorado em
Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em Pedagogia
Universitária na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2011). Atual­
mente, é professora assistente II na área de Didática no Departamento de
Educação da UNESP/Rio Claro. Tem experiência em docência em todos
os níveis da educação básica e no ensino superior (inclusive na Purdue
University), em cargos de gestão (assessoria na Pró-Reitoria de Graduação)
e em coordenação pedagógica e orien­tação pedagógica. É credenciada no
Programa de Pós-Graduação em Educação na UNESP/Rio Claro na linha
de pesquisa Formação de Professores e o Trabalho Docente. É líder no
Grupo de Estudos e Pesquisa em Pedagogia Universitária (Geppu) no
CNPq.
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  251

Paulo Marcondes Carvalho Junior é médico, concluiu o mestrado e o


doutorado em Engenharia Biomédica pela Faculdade de Engenharia Elé­
trica e Computação da Universidade Estadual de Campinas, o mestrado
pelo Departamento de Educação Médica da Faculdade de Medicina da
Universidade de Illinois em Chicago. Atualmente é professor da Facul­
dade de Medicina de Marília (Fame­ma), na disciplina de Informática em
Saúde e docente permanente do Programa de Mestrado Acadêmico Saúde
e Envelhecimento. É tutor de um subprojeto PET-Saúde 3 na temática
Urgência e Emergência em Idosos. É supervisor do Programa de Resi­
dência Médica em Medicina de Família e Comunidade da Famema. Atua
na área de saúde, com ênfase em Informática em Saúde e Educação para
Profissionais de Saúde. É professor do Programa Faimer Brasil para For­
mação Docente na Área de Saúde da Universidade Federal do Ceará. 
SOBRE O LIVRO
Formato: 14 x 21 cm
Tipologia: Horley Old Style MT Std 10,5/14
Papel: Pólen 80 g/m2 (miolo)
Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)
1a edição: 2014

EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Capa
Andrea Yanaguita
Edição de texto
Tulio Kawata (Preparação)
Fábio Storino e Sílvia Kawata (Revisão)
Editoração eletrônica
Nobuca Rachi
SAÚDE, ENSINO E COMUNIDADE  253

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