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Leslie Iversen
Department of Pharmacology ~ University of Oxford
Há menos de trinta anos, acreditava-se que o princípio ativo da maconha (Cannabis sativa), Δ-
9-tetrahidrocanabionol (THC), agia sobre o sistema nervoso central de forma inespecífica, ou
seja, perturbava o cérebro como um todo. Posteriormente, foram descobertos receptores
específicos para o THC e outros alcalóides canabinóides. Além disso, canabinóides sintetizados
pelo próprio organismo (endógenos) também foram identificados. O presente artigo, escrito
por Leslie Iversen, é resultado uma revisão do autor sobre a neurobiologia do THC. O artigo
será comentado em quatro partes: a primeira abordará a anatomia do sistema canabinóide
endógeno; a segunda sua fisiologia básica; a terceira ação do sistema nas diferentes regiões do
cérebro e a quarta, a ação da maconha sobre o sistema.
Com a finalidade de aprofundar ainda mais o conteúdo deste artigo, foram incluídas também
informações do livro Cannabis and cognitive function, da pesquisadora da University of New
South Wales – Austrália, Nadia Solowij (Cambridge University Press; 1998). As descrições das
estruturas anatômicas do sistema nervoso foram obtidas no livro Neuroanatomia funcional, do
Prof. Dr. Ângelo Machado, da Universidade Federal de Minas Gerais (Atheneu; 1988).
O THC
O THC é lipossolúvel, ou seja, capaz de ser dissolvido em gorduras. A maneira mais eficaz para
disponibilizar a substância no organismo é fumando os brotos da planta, ou acrescentando-os
a comidas gordurosas.
A anandamida
Os canabinóides do cérebro são liberados em seu local de ação e inativados pela enzima FAAH.
A síntese e a liberação dos endocanabinóides são feitas por estruturas diferentes do cérebro,
sendo o 2-aracdonilglicerol muito mais abundante (50 a 1000 vezes) que a anandamida.
FIGURA 2: Localização dos receptores canabinóides tipo 1 (CB1).
Os receptores canabinóides
O sistema GABA é considerado o sistema inibitório do sistema nervoso, ou seja, diminui a ação
das outras estruturas do cérebro. Alguns medicamentos (calmantes) e substâncias (álcool)
ativam diretamente esse sistema, provocando níveis variados de sedação, que vão da redução
da ansiedade ao coma.
Ao contrário, o sistema glutamato é excitatório, isto é, sua ação estimula o sistema nervoso.
Ambos, inibitório e excitatório, trabalham em sintonia. Nos momentos de relaxamento,
despreocupação e sono, prevalece o sistema GABA, enquanto o sistema glutamato predomina
nas ações que requerem atenção e vigília.
FIGURA 4: Molécula de GABA e glutamato.
O sistema canabinóide
Para que o bloqueio exercido sobre GABA e glutamato tenha sucesso, a anandamida parece
agir impedindo a formação de energia (AMPc), necessária para que os neurotransmissores
sejam liberados na sinapse. A maneira precisa pela qual a anandamida e o THC bloqueiam
estes sistemas permanece incerta. Tal fenômeno parece estar relacionado a um sistema de
sinalização retrógrada rápida, que envolve os canais de íon cálcio (Ca+). O modelo proposto foi
denominado supressão do sistema inibitório induzido pela despolarização (DSI). Tal modelo
sugere que a membrana pós-sináptica ao ser ativada pelo neurotransmissor GABA (inibitório)
provoca um aumento do fluxo de íons cálcio (Ca+) para dentro da membrana. Esse influxo
libera anandamida para fora da sinapse. A anandamida se liga aos receptores CB1 na
membrana pré-sináptica. Tal ligação bloqueia o processo energético que possibilitava a
liberação de GABA na sinapse e o processo é interrompido.
FIGURA 5: Supressão do sistema inibitório induzido pela despolarização (DSI)
A DSI pode ser comparada ao modelo da bica, do pêndulo e do recipiente com um ladrão. Ao
ligar a água da bica (liberação GABA na sinapse) o recipiente começa a encher (atividade da
membrana da pós-sináptica). Quando a água alcança o ladrão (atividade máxima desejada),
forma-se o um fluxo (liberação de íons cálcio) que enche o balde fixado à bica (ligação da
anandamida ao receptor CB1, com inibição do processo energético), elevando-a e
interrompendo a entrada de água no recipiente (supressão do sistema inibitório).
O sistema GABA e glutamato estão espalhados por todo o cérebro. Já o sistema canabinóide,
apesar de difuso, está mais concentrado no córtex frontal, núcleos da base, cerebelo e sistema
límbico. Essas estruturas estão intrinsecamente relacionadas às funções psíquicas superiores, à
motricidade e ao comportamento emocional. As funções desempenhadas por estas estruturas
são diretamente influenciadas pelos sistemas GABA e glutamato e moduladas pelo sistema
canabinóide. A ação do sistema canabinóide sobre o cérebro será apresentada no próximo
capítulo.
FIGURA 6: Cada momento exige da musculatura um trabalho diferente, variando do relaxamento à tensão, com maior
ou menor exigência de coordenação e equilíbrio. Essas funções são realizadas por estruturas do cérebro (núcleos da
base) e pelo cerebelo. Nesses locais há uma abundância de receptores CB1, evidência que aponta o sistema
canabinóide como o principal modulador da atividade muscular.
Há evidências parciais de que a maconha alivia a tensão muscular e a contração exagerada que
dificulta o movimento (espasticidade), como acontece na esclerose múltipla. Estudos com
animais obtiveram melhora destes sintomas quanto medicamentos à base de maconha foram
administrados. Estudos clínicos controlados estão em andamento.
A memória para fatos recentes, especialmente quando depende da atenção, fica visivelmente
prejudicada durante o consumo de maconha. O local responsável pela ocorrência deste
fenômeno é provavelmente o hipocampo. O hipocampo é parte integrante do sistema límbico.
A presença do THC torna esta estrutura incapaz de segregar informações provenientes de
diversos locais e situações, devido a déficits no processamento das informações sensoriais.
A palavra córtex deriva do grego e significa casca. O córtex é uma fina camada entre dois e seis
centímetros que reveste e faz parte do cérebro. Ele é formado pelo agrupamento de
neurônios, que recebem e interpretam as informações do meio ambiente e por neurônios que
planejam e executam a melhor resposta para cada situação. Durante a evolução, o córtex
aumentou significativamente, chegando ao seu maior grau de desenvolvimento na espécie
humana. Isso explica o aparecimento das funções psíquicas e intelectuais no homem.
Estudos vêm demonstrando que o THC é benéfico na indução do apetite e no combate à perda
de peso em pacientes com AIDS. Seu consumo com estes propósitos é permitido na Holanda,
Canadá, Suíça e em alguns locais dos Estados Unidos.
No século XIX, a maconha foi largamente utilizada para o alívio da dor. Recentemente, esta
propriedade voltou a ser estudada, apesar dos achados até o momento não indicarem
vantagens iguais ou superiores aos medicamentos já existentes. Anandamidas e receptores
canabinóides existem em grande quantidade ao longo de todo o circuito da dor (da inervação
periférica, passando pela medula espinhal e chegando ao cérebro. Desse modo, estudos vêm
demonstrando que o sistema canabinóide é capaz de diminuir a sensibilidade à dor em
doenças inflamatórias e não-inflamatórias. O bloqueio do sistema não provoca aumento da
sensibilidade à dor, sugerindo que este não está envolvido na modulação da sua intensidade.
Há relação paralela, mas não distinta, entre o sistema canabinóide e o sistema opióide. Apesar
de atuarem em vias distintas, ambos atuam comumente em alguns locais do sistema nervoso e
parecem potencializar um ao outro.
Os efeitos que provoca, no entanto, são bastante diferentes. Há alguns motivos para isso: [1]
os canabinóides endógenos são secretados localmente, enquanto o THC atinge de uma vez só
todos os receptores CB1 do cérebro; [2] enquanto a ação
dos canabinóides dura alguns segundos, o THC permanece
horas no sistema nervoso central; [3] por fim, a
anandamida é cerca de 4 a 20 vezes menos potente que o
THC.
O córtex pré-frontal e o sistema límbico parecem ser os responsáveis por esses efeitos. No
sistema límbico, há duas regiões especialmente envolvidas: o hipotálamo e a área tegmental
ventral ou sistema de recompensa.
Tolerância e dependência
Estudos com animais e seres humanos demonstram a presença de tolerância após o consumo
repetido de maconha. Sintomas de abstinência da substância também já foram descritos. O
quadro é marcadamente psíquico e inclui fissura pela maconha, diminuição do apetite, insônia
e perda de peso. Alguns indivíduos também apresentam pesadelos, inquietação, ansiedade,
irritabilidade e agressividade. Neurobilogicamente, a síndrome de abstinência pode estar
relacionada à redução de dopamina no sistema de recompensa (como ocorre com outras
drogas) e ao aumento da liberação de corticóides pela ação da amigdala (sistema límbico).