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BANDEIRAS DE BATALHA!

A Progressão, Extensão e Oficialização das


Bandeiras de Batalha Paulistas como Forças de
Segurança Nacional.

A CONQUISTA DO NORDESTE 40 Anos de Chumbo!


Como registra nossa História por diversos excelentes pesquisadores
do passado, a Bandeira foi uma instituição militar medieval de origem
espanhola, no combate aos mouros muçulmanos invasores da
Península Ibérica desde os Séculos IX e X e nas incursões das
Cruzadas à Terra Santa no Século XII. Ela se configura no Brasil
como força militar de descobrimento, exploração e defesa das
extensões continentais conquistadas, no princípio do Século XVII,
período do Governo Geral da Repartição do Sul de D. Francisco de
Souza em seu segundo mandato de 1601, em plena era do reinado
luso-hispânico que se iniciara em 1580, com os reis Felipes. Ela
imprimiu uma acentuada evolução às incipientes e empíricas
Entradas sertanistas lusas então existentes desde o descobrimento, ao
mesmo tempo em que se adaptou às condições telúricas da imensa
selva tropical e pluri-sociais das atividades sertanistas. Tinha um
Comandante, Mestre de Campo ou Tte. General e se dividia em terços
comandados pelos capitães auxiliares, estes também tendo seus
segundos, com o fito de expandir áreas de ocupação territorial para
criação e agricultura, além da obtenção de riquezas minerais e mão-
de-obra indígena para suas lavras. Ela representou a maior força de
ocupação territorial e expansão da Civilização Ocidental Cristã no
Novo Mundo, jamais igualada!

A GUERRA DOS BÁRBAROS - 1


No último terço do século XVII, entretanto, com as crescentes
invasões de inimigos estrangeiros, piratas, renegados invejosos,
traficantes e incursões de nativos canibais ferozes, principalmente no
Nordeste do Brasil, foram substituindo as empíricas Entradas
Sertanistas em Bandeiras de Batalha perfeitamente militarizadas,
hierarquizadas, na configuração original espanhola, com concessões
de altas patentes distribuídas pelos Governadores Gerais do Brasil,
confirmadas pela Majestade luso-hispânica. As operações militares
tomaram então formidável vulto, tanto para o Oeste, quanto para o
Sul e principalmente para o Norte. De São Paulo saiu a Bandeira de
Batalha de Estêvão Ribeiro Bayão Parente, Brás Rodrigues de
Arzão e João Amaro Maciel Parente, esmagando os genéricos
“tapuias” anaiós (canibais do interior da Bahia), vingando a então
recentemente dizimada Bandeira de Batalha Paulista do velho
Domingos Barbosa Calheiros, em socorro daquela Capitania e a
de Domingos Jorge Velho que por sua vez, se implantara no
interior do Piauí. Havia ainda uma outra grande extensão de terras
indomadas, habitada por numerosas aglomerações trogloditas
canibais: o Nordeste brasileiro! Furiosamente resistiam à conquista
civilizadora, promovendo grandes carnificinas entre os pacatos
colonos assentados em áreas de criação e cultivo no seu interior ainda
indomado e inseguro. Aos paulistas envolvia, em todo o Brasil e em
tôda a monarquia, a reputação de iniigualáveis como mateiros,
desbravadores de terras e dominadores do gentio nativo. De suas
caminhadas, já em 1643, dizia o jesúita espanhol Montoya a Filipe IV:
"Andan a pie y descalzos* como por las calles de Madrid. Y
caminan por tierras y valles sin ningun estorbo, trescientas y
quatrocientas leguas con regalo".

Na conquista do Nordeste haveria os grandes cabos de tropa de São


Paulo, de assumir o mais notável destaque. Igual relêvo conquistaria
o grande sertanista e latifundiário baiano, o segundo (capitão
auxiliar) Francisco Dias de Ávila, homem de ferro estimulado por
estes companheiros do Sul, bravo como qualquer dos vultos da era
merovíngia, tão bem evocados nas páginas célebres de Agostinho
Thierry e integrados na fase cruel da devassa do sertão. Da região a
leste do São Francisco os “tapuias” já haviam sido varridos pelo Gov.
da Guerra Estevão Ribeiro Bayão Parente, Brás Rodrigues
de Arzam e Capitão João Amaro Maciel Parente. Mais tarde
acabara destroçando-os o valente e capaz Domingos Rodrigues de
Carvalho, o bravo sargento-mor do têrço baiano (2º sub-comando
de terço) comandado por Ávila (1º sub-comando de terço). O interior
das terras nordestinas ocupavam-no muitas tribos designadas sob a
denominação genérica de “cariris”, conceito similar ao dos “tapuias”
do Sul (manadas nômades errantes, inferiores às tribos indígenas
consolidadas em mínimos princípios civilizadores como aldeias
organizadas, tradição oral, habitações diferenciadas, criação de
animais, festividades, como eram os Tupi-Guaianás piratininguaras,
mais amistosos). Dominavam larga área distribuída pelos territórios
atuais da Bahia, Pernambuco, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e
Paraíba.

*Descalços - aqui os pseudos-historiadores ideológicos criam


uma falsa e propositada confusão demeritória da reputação
bandeirante paulista, repetindo velhas falácias ressentidas de
capitanias inferiorizadas e invasores estrangeiros, dizendo que
eram “analfabetos”, “incultos”, “falando só a Língua Geral” e
que “andavam descalços”. Em Jundiaí SP, durante uma
prefeitura petista, chegaram a remover do Museu de Memória
local, a figura esculpida de um bandeirante, “porque estava
calçando botas”! Ora, tantos estes quanto aqueles agentes
difamadores do passado, desconhecedores da Genealogia e
História Social Paulista, ignoravam que havia uma segunda
linha de bandeirantes mamelucos, mestiços criados juntos de
suas mães nativas em suas aldeias e que adotavam o seu mesmo
costume de andar descalços pelo mato. Seus pais bandeirantes
europeus de primeira linha, andavam muito bem calçados e a
prova é, que na maioria dos inventários do sertão publicados,
sempre constam pares de botas deixados pelos defuntos e
arrematados pelos sobreviventes!

Iam do Paraguaçu, na Bahia, ao ltapicuru, no Maranhão, na opinião


do autor Capistrano de Abreu. De todos estes trogloditas tapuias
distribuídos em numerosas tribos, os mais célebres parecem ter sido
os janduins, que os cronistas apontam como terríveis e ferozes
canibais adversários dos conquistadores europeus. Já em 1662
expedira a rainha D. Luísa, regente em nome de D. Afonso VI, uma
carta régia sobre a guerra que se deveria fazer aos "bárbaros
janduins" do sertão da capitania de Paraíba, à vista das informações
recebidas do Capitão-Mor (governador) paraibano Matias de
Albuquerque Maranhão. Dos genéricos “tapuias” (cariris)
nordestinos dizia esta autoridade, “lutadores que eram, facílimo
seria que se convertessem em novos araucanos como os das índias
de Castela”. Convinha recordar quanto andavam exasperados pela
lembrança das extraordinárias violências sobre eles praticadas por
João Fernandes Vieira durante o seu govêrno na Paraíba (1655-1657).
Ninguém ignora o quanto custou aos primeiros portugueses do Brasil
a conquista da Paraíba em fins do século XVI! Oitenta anos após a
fundação da cidade de Nossa Senhora das Neves começaram, no dizer
de Irineu Joffily, os primeiros contatos com os Cariris interioranos,
localizados a 50 léguas a Oeste da capital paraibana. Na posse da
hinterlândia (interior) da Paraíba destacaram-se diversos cabos de
tropa da família Oliveira Ledo, dos quais o mais notável parece ter
sido Teodósio de Oliveira Ledo. Pensamos como Basílio de
Magalhães, que a conquista do Nordeste não se deveu à ânsia do ouro
ou da preia dos índios e sim, ao alargamento da zona de criação de
gado. Realizou-se em geral da hinterlândia para a costa, sendo suas
figuras primordiais Francisco Dias d'Ávila, (baiano) Domingos
Afonso Mafra “Sertão” (português) e Domingos Jorge Velho
(de Camargo) (paulista de Santana de Parnaíba).

No rol destes conquistadores devem figurar mais alguns nomes de


muito considerável relevo como os de Matias Cardoso de Almeida
e Manuel Álvares de Morais Navarro. De Domingos Jorge Velho
disse Studart:**
"na vida animadíssima, cheia de lances trágicos do
bandeirante, ao sertanista dominam a cupidez, a tenacidade, o
estoicismo, a sagacidade, o descaso da morte e estas
qualidades caracterizam Domingos Jorge". Acrescenta ainda o
eminente historiador cearense: "Na história da conquista mais
merecem os que correram mil perigos e às aventuras se
entregaram, do que os possuidores de 250 léguas de testada na
margem pernambucana do (Rio) São Francisco".

Em 1677 a Junta Trina sucessora do Visconde de Barbacena


reclamava novos socorros paulistas ante a investida dos
recorrentes Anaiós, terríveis bárbaros (trogloditas canibais), que
aliás, já haviam destroçado bandeiras de São Paulo a cujos
componentes tinham exterminado (Bandeira de Batalha do Cap.
Domingos Barbosa Calheiros, nosso avô colateral). Pôs-se em
campanha novamente o bravo Domingos Rodrigues de Carvalho
e os paulistas que acudiram ao apêlo do Govêrno-Geral. Surgiram
Domingos e Bernardo de Freitas Azevedo, bandeirantes
obscuros, talvez pai e filho ou irmãos. E com êles Antônio
Coutinho, ainda mais obscuro. Domingos que recebera a patente de
Capitão-Mor foi completamente batido pelas nações bárbaras com as
quais pelejara e refugiou-se no litoral, onde veio a morrer. Também
nada se sabe do que haja feito certo Francisco de Chaves Leme
que surgiu na Bahia com uma tropa de brancos e índios de São Paulo.
**Dicionário Studart, do Ceará, em nossa biblioteca digital.

No dizer de Borges de Barros em “Bandeirantes e Sertanistas


Baianos”, a chamada “Confederação dos Cariris”, tapuias genéricos
premidos pela expansão portuguêsa, entre os quais existiam também
muitos negros quilombolas, compreendia tribos localizadas sobretudo
no Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. Menos em Pernambuco,
Alagoas e Bahia. Perto de vinte anos durariam as campanhas de
repressão - a longa, porfiada e crudelíssima “Guerra dos Bárbaros”,
(antropófagos) - cujas principais ações parecem ter ocorrido nos
vales do Açu e do Jaguaribe, a guerra selvagem mais séria talvez
ocorrida no Brasil! Dentre 1682 e 1684, denuncia a documentação,
houve graves movimentos entre os “tapuias” genéricos do Rio Grande
do Norte e do Ceará. Em 1683, tal ofensiva bárbara tomou alarmantes
proporções. Quatro anos mais tarde obrigaria a uma campanha em
regra na qual o Governo Geral empenharia grandes fôrças. Da Bahia,
a 17 de junho de 1687 recomendava Matias da Cunha, Governador-
Geral do Brasil, ao Capitão-General (governador) de Pernambuco que
socorresse o Rio Grande do Norte com todo o poderio bélico de que
dispusesse. Os índios revoltados já haviam assassinado numerosos
colonos, morto dezenas de milhares de bois e coberto o território de
ruínas, ameaçando a até própria capital litorânea!

Tão assustados estavam os colonos, que a Câmara de Natal


despachara à Bahia uma missão especial de seus oficiais pedindo a
urgente remessa de socorros. Já numerosas famílias do interior
abandonavam as suas fazendas, ante a extensão da guerra. O
principal foco da sublevação era o vale do (Rio) Piranhas. Preparava-
se uma coluna de setecentos homens para repelir os silvícolas, mas as
dificuldades monetárias, a penúria dos arsenais régios e os entraves
de uma administração burocrática, reduziram muito a eficiência desta
expedição comandada pelo capitão-mor Manuel de Abreu Soares.
Devia operar em conjunção com a tropa do Coronel Antônio de
Albuquerque Câmara. Este oficial, depois de encontrar vultosas
ruínas decorrentes da invasão, derrotou os rebeldes e recolheu-se à
casa forte que construíra no Açu. Mas não tardaria que a sua situação
ali se tornasse insustentável. Fôra seu arraial sitiado pelos tapuias,
sofrendo diversos assaltos repelidos a muito custo. À vista do
ocorrido, resolveu o governador Matias da Cunha apelar para dois
sertanistas de São Paulo, cobertos do maior prestígio: Tte. General
Matias Cardoso de Almeida e Capitão Domingos Jorge
Velho. O então recente êxito das campanhas dos confrades
bandeirantes paulistas Estevão Ribeiro Bayão Parente e Bráz
Rodrigues de Arzão (na Bahia) davam-lhe esperanças de que estes
dois bandeirantes vencessem os tapuias. Neste sentido comunicou-se
Matias da Cunha com a Câmara de São Paulo e declarou-lhe que ao
seu ver...

"só o grande valor e experiência dos paulistas poderiam ali


conseguir o mesmo fim que com tanta glória haviam
alcançado dos canibais que tiranizavam a Bahia".

Assim pedia-lhe com a maior instância que fizesse esse serviço a Sua
Majestade, esforçando-se em favor da recruta do tão desejado
socorro. Enquanto isto, reforçava o solícito governador as guarnições
de Natal e Fortaleza, pois no Ceará também se receava o levante dos
indígenas e os costumeiros ataques de piratas no litoral. Ao Coronel
Albuquerque Câmara não tardaria Matias da Cunha em dar a notícia
alvissareira de que brevemente receberia a cooperação de um paulista
governador das armas à testa de uma bandeira de trezentos homens
(João Amaro). Assim também ordenou que Domingos Jorge
Velho e seu loco-tenente André Pinto deixassem a guerra dos
quilombos dos Palmares, e rumasse ao Açu com seiscentos homens
dispostos em duas colunas. Em princípios de junho de 1688, jubiloso
anunciava Matias que os paulistas haviam chegado ao Rio das
Piranhas. Sabia-se da grande vitória de Domingos Jorge e de um
revés das armas reais, havendo certo capitão luso Antônio Pinto
sido desbaratado pelos silvícolas. Pouco depois, de outro fracasso do
próprio Antônio de Albuquerque, ia Abreu Soares, aliás octogenário,
entrar de novo em campanha com duzentos infantes brancos e
quinhentos índios. Devia socorrer Domingos Jorge cuja situação era
arriscada. Assim o "merecia tanto o seu valor como se devia ao seu
perigo". Sofreu Abreu Soares revés assaz considerável, o que lhe valeu
por parte do Governador-Geral reparos pouco generosos para com o
velho e bravo cabo de guerra; "Mais esperava do antigo valor dos
pernambucanos".

Acreditavam que o estímulo dos paulistas os faria daí por diante mais
vitoriosos do que êles. Outras e más notícias vinham chegando.
Também fôra o nordestino Albuquerque Câmara batido e o revés de
Abreu Soares, idem, anunciava-se terrível. Seus seiscentos soldados
brancos estavam reduzidos a duzentos! Prevenia Domingos Jorge
Velho que os tapuias dispunham de muitas armas de fogo. Sabia-se
que piratas estrangeiros entravam pelo rio Açu a dentro e com êles
comerciavam. Eram os seus fornecedores de espingardas e munições
(com qual propósito?!). A vista do ocorrido, resolveu Matias da Cunha
passar a Domingos Jorge a patente de...
"Governador da gente da conquista dos Bárbaros do Ryo
Grande" em consideração "a seu grande valor, experiência do
gentio, prudência militar e mais qualidades nêle concorrentes
além da modéstia com que, sem falar de sua pessoa, procurava
a honra dos seus oficiais".

Fôra a sua vitória estrondosa, queimara as principais aldeias


janduins, aniquilara tôda a canibália nelas existente e durante quatro
dias e quatro noites pelejara sempre em fogo vivo, pois os contrários
traziam muitas armas de fogo, além dos muitíssimos arcos e flechas.
Se não conseguira triunfo maior devera-se isto ao fato de que se
esgotara a sua munição. Inesperadamente abateu-se sôbre o Brasil o
terrível flagelo da “bicha” (surto de febre amarela) que causou
verdadeira hecatombe sobretudo entre a população branca. Aos 24 de
outubro de 1688 sucumbia Matias da Cunha (governador) vítima
daquela epidemia.

Assumiu o Govêrno-Geral do Brasil o enérgico arcebispo da Bahia, D.


Frei Manuel da Ressurreição, que in totum seguiu a política do
antecessor. Recorreu à Câmara de São Paulo, pedindo-lhe que
fizesse seguir pelo Sertão do Rio São Francisco outro socorro.
Também se esperava uma coluna cearense, comandada por um
sargento-mor de muito valor com quatrocentos tapuias fiéis e bravos.
Estava Domingos Jorge Velho imobilizado no Açu por falta de
munições. Ao regional Abreu Soares também exprobrou o Prelado sua
derrota, devido à indisciplina, vaidade, inépcia e desídia! A sua
soldadesca indisciplinada causava enorme dano aos colonos, cujas
reses matava por mera e inútil crueldade. Tratasse de introduzir a
ordem em sua tropa e averiguar como é que os bárbaros dispunham
de tanta pólvora já que não a fabricavam (estrangeiros inimigos da
colonização portuguesa)! Depositava o Prelado a “maior confiança no
êxito das operações dos paulistas”. À Câmara de São Paulo escrevia a
16 de junho de 1690 que as gentes pernambucanas enviadas a
combater os bárbaros, tinham perdido naquela campanha o anterior
renome guerreiro, conquistado em sua luta contra os holandeses. Aos
paulistas coubera anteriormente a glória de terminar a luta de
quarenta anos contra os trogloditas canibais da Bahia!
Tudo prenunciava que novos louros lhes estavam reservados no
Nordeste. Esta nova empresa, além de tudo, merecera a sanção régia.
Não precisariam os paulistas mais uma vez, desobedecer às leis de
Sua Majestade "para procurar e obter o seu remédio do sertão"
(mão-de-obra indígena) como costumeiramente faziam. E depois de
obterem o triunfo sôbre os tapuias selvagens, que mina opulentíssima
lhes estava reservada com a expugnação dos assassinos negros dos
Palmares, trucidadores de colonos indefesos! Talvez umas três
dezenas de milhares de negros da Guiné a serem reconduzidos ao
trabalho! Assim pedia a indicação de um grande sertanista para se
pôr à frente da campanha a quem se concederia a patente de Mestre
de Campo (General) Governador, com absoluta autonomia de
comando. A Câmara, o Vigário Albernaz, o Capitão-Mor da Capitania
de São Vicente, unânimes indicaram Matias Cardoso de Almeida
a quem o Arcebispo escreveu imediatamente fazendo-lhe o convite
neste sentido. Já estabelecido à margem do São Francisco, no Norte
Mineiro atual, outrora chamado Currais da Bahia, fôra Matias a São
Paulo buscar elementos para a sua povoação recente. Em carta fêz-
Ihe o Arcebispo os maiores elogios, pedindo-lhe que se pusesse em
marcha imediatamente. Mandara reforçar os efetivos de Domingos
Jorge Velho e de Antônio de Albuquerque mas era tão superior o
poderio dos Bárbaros que sem o concurso paulista, não poderia ser
vencido. Havia nesta ocasião movimentos hostis de aimorés na
Capitania de Ilhéus e o paulista André Furtado ofereceu-se ao
Arcebispo para combater esses agressores, mediante pagamento de
cinco mil cruzados.

Foi recusada a proposta, declarando D. Frei Manuel que os Ilhéus


vendidos não corresponderiam a tão excessiva quantia. Aos dois
chefes do Rio Grande do Norte escreveu o Prelado recomendando-
lhes que lhes impedissem os seus soldados de oprimir os moradores,
mantendo a mais rigorosa disciplina. Com o maior cuidado
apurassem os responsáveis pelo contrabando de armas de fogo e
munições aos selvagens. Seriam as tropas reais brevemente
reforçadas por contingentes das margens do São Francisco, de índios
fiéis, a quem comandaria Francisco Dias de Ávila, da Bahia. Partiu
Matias Cardoso de São Paulo com vultosa tropa "em marcha por
mais de 500 léguas de Sertão". Mas como julgasse seu terço ainda
insuficiente, encarregou o Capitão João Amaro Maciel Parente
(paulistano, filho do Gov. Interventor Estevão Ribeiro Bayão Parente,
nosso avô colateral) de organizar segunda leva destinada a lhe seguir
os passos no menor prazo possível. Sertanistas notáveis o
acompanhavam, como o santista Antônio Gonçalves Figueira,
que mais tarde tanto se destacaria, seu irmão Manuel Cardoso e
João Pires de Brito. Em fevereiro de 1689 escrevia o Arcebispo ao
capitão-mor de Penedo, Pedro Aranha Pacheco, que envidasse todos
os esforços no sentido de angariar em seu distrito mantimentos para
as fôrças em campanha. O socorro organizado pelo Coronel André
Pinto Correia não se movia! A esperança era de que os paulistas
chegassem logo. Do Rio de Janeiro preveniam que já uma coluna se
pusera em marcha.

E como certos indivíduos regionais prometessem também tomar


armas contra os tapuias, mediante a concessão de patentes como as
outorgadas aos paulistas, àsperamente os desenganou D. Frei Manuel
a dizer
"Se as concedi aos paulistas foi por aquêle incomparável
serviço que fizeram à Sua Majestade, em vir à sua custa tantas
centenas de léguas por êsses sertões, em muitas partes
estéreis, sem água e sem nenhum gênero de caça, sustentando-
se de raízes para a emprêsa dos Palmares, tão invencíveis aos
pernambucanos".

Ao menor aceno de uma ordem do Govêrno-Geral haviam deixado a


sua conveniência e
"voltaram as armas à guerra do Rio Grande contra cujos
bárbaros pelejaram tantas vêzes, fazendo vitoriosas às armas
de Sua Majestade havia tempos tão oprimidas que estavam
das hostilidades inimigas. E bastara o seu valor e fama para
os Bárbaros perderem a insolência e tomar a guerra outro
semblante".

Acaso esses “candidatos às patentes” de Sua Majestade, "aquêles


sujeitos"... "tão mimosos".., pretenderiam confronto com os
sertanistas do Sul? Que dizer por exemplo do contrato de um regional
André Pinto Correia, aliás coronel comandante de um
contingente, tão incapaz daquele posto e a quem caberia castigar
como merecia sê-lo? Muito mal iam as coisas no Rio Grande do Norte
onde a Câmara de Natal movia forte oposição ao capitão-mor
Agostinho César de Andrade e a Domingos Jorge Velho. “Li”!,
verberou o Arcebispo ao procedimento dos camaristas cujo fito único,
em tão áspera conjuntura, era apossarem-se de índios entregues à
guarda de religiosos pelo cabo de tropa paulista. Assim os intimou a
repor nas aldeias o quanto antes, as “peças” indevidamente
subtraídas. E isto sob pena de grave castigo. Ao capitão-mor regional
ironizava o Prelado, a propósito de suas anunciadas “vantagens
militares”, a seu ver - insignificantes!

Pouco depois à Bahia chegava a mais auspiciosa notícia, a da grande


vitória de Domingos Jorge Velho! Aniquilara centenas de trogloditas
tapuias, motivo pelo qual o Arcebispo lhe apresentou parabéns. Muito
se queixava o bandeirante do atraso da Fazenda Real em pagar os
soldos da sua gente. Explicou-lhe o Prelado, quão extrema era a
penúria dos cofres reais! Tivesse paciência, pois que tudo precisa e
lisamente se liquidaria. Chegara o paulistano Matias Cardoso de
Almeida e D. Frei Manuel retirou os comandos a todos os
chefes em campanha do nordeste para lhe atribuir esta função
maior (Tenente-General). Exceção apenas se fêz ao paulista
Domingos Jorge Velho, que permaneceu. Tôda a tropa de linha,
miliciana e a dos pretos (Henriques) teve ordem de se recolher aos
respectivos presídios, onde pretavam serviços. Numa espécie de
manifesto ou "alvará de reforma", explicou o Arcebispo os motivos de
tal resolução. Declarou que por completo fracassara o primitivo plano
de campanha regional. Não bastava manter guarnições em pontos
fortificados. Tornara-se indispensável interiorizar e aprofundar a
guerra, investindo contra os bárbaros tapuias em sua própria casa.
Da defesa passariam ao ataque, que seria ali “a melhor defesa!”
Deveriam ser suas bases arrasadas e queimadas. Só assim se
conseguiria a submissão deles. Havia portanto um único caminho a
seguir: entregar aos paulistas as operações!

Ao Câmara Coutinho, governador de Pernambuco, escrevia D. Frei


Manuel:
"Para êste gênero de guerra nem a infantaria paga (tropa de
linha) nem a de ordenança se achou nunca capaz" (só a técnica
“eurobugre” de guerrilha das matas paulistas!).

Já provara-o cabalmente a luta contra os selvagens baianos. O único


recurso viável era o apelo aos paulistas,
"gente acostumada a penetrar sertões e tolerar as fomes,
sêdes e inclemências dos climas e dos tempos, de que não
têm uso algum os infantes, nem os milicianos a quem
faltam aquelas disciplina e constância".

A 8 de outubro de 1690 era D. Frei Manuel da Ressurreição


substituído no Governo-geral do Brasil por Antônio Luís Gonçalves
da Câmara Coutinho. O novo governador, homem sobremaneira
inteligente, tratou de promover a maior harmonia entre os dois
grandes chefes paulistas. Procurou deslocar a área das operações de
Matias Cardoso para o Ceará no vale do Jaguaribe, o que conseguiu.
Do Jaguaribe reportou-lhe Matias Cardoso, a 13 de julho de 1692 que
a sua tropa se encontrava em penosa situação. Precisava do reforço de
soldados índios e pretos, além de munição e pano, pois sua gente
vivia seminua!

Continuava a Fazenda Real a praticar a impontualidade absoluta a


que se acostumara. Nada lhe fornecia. Reinava a discórdia no seu
acampamento. Revoltado contra tal estado de coisas resolvera João
Amaro abandonar a coluna. Acompanhavam-no muitos bandeirantes.
E no entanto, calculava o Tenente-General em dois anos o prazo
mínimo para a conclusão da campanha militar. Arrastando-se as
operações que se prolongavam, nem num decênio estariam
concluídas. Imenso trabalho lhe dava para impedir que os seus
soldados saíssem da forma. Sentia a sua capacidade persuasiva
esgotada e ante tal situação muito se inclinava a abandonar a luta
recolhendo-se às suas fazendas dos Currais da Bahia. Assustado,
exortou-o Câmara Coutinho a que tal não fizesse. Não deixasse de
considerar que todo o Brasil atravessava tremenda crise financeira
pela carência do meio circulante e a baixa do açúcar. Felizmente
ocorrera a submissão de um grande chefe, o tuxaua ou principal dos
Jaguaribaras, graças à intervenção de um tal João Paes Florião,
que entre os janduins vivia, tendo como mulher uma filha de
Nhongugê, cunhado de Canindé, o mais prestigioso morubixaba
inimigo, a quem chamavam rei dos Janduins. Até hoje não foi
identificado êste Florião, ignorando-se se seria baiano ou paulista
(este apelido Florião nunca existiu em São Paulo). Assinou então um
ajuste de paz, pelo qual os selvagens se submetiam, interessantíssimo
documento, único no seu gênero, no Brasil: um tratado de paz entre
duas majestades: a do Sr. D. Pedro lI, rei de Portugal e a de Canindé,
rei dos Janduins!

Às tribos que não se resignaram a depor as armas, continuou Matias


Cardoso a combater e desbaratar. A 22 de maio de 1694 sucedeu D.
João de Lencastre ao Câmara Coutinho, no Gôverno-Geral do Brasil.
Apressou-se em dar a Matias Cardoso arras de estima e confiança em
seus serviços. Assim no Rio Grande do Norte, colocou como capitão-
mor a Agostinho César de Andrade, seu grande partidário e publicou
os mais rasgados elogios ao valor dos paulistas e à capacidade do seu
grande mestre de campo, a quem secundava Manuel Álvares de
Morais Navarro. Aconselhou-o a que acima de tudo intentasse a
pacificação geral dos índios. Curiosíssima carta de Morais Navarro a
D. João de Lencastre, datada de 26 de julho de 1694 apresenta-se
cheia dos conselhos de sua experiência daquele tipo de guerra e
daquelas paragens nordestinas. E ao mesmo tempo acha-se referta de
curiosos pormenores. Informava que os fortins projetados nas
Piranhas, Açu e Jaguaribe só poderiam receber provisões das
afastadas bases, dada a esterilidade das terras circunvizinhas.

Em cada qual era necessário haver pelo menos cento e cinquenta


homens de guarnição. Adversários temíveis eram os índios
nordestinos, unindo a extraordinária ferocidade à diabólica astúcia.
Mostravam-se irredutíveis. Para tão difícil comissão como a de os
reduzir, o mais indicado cabo de tropa vinha a ser Matias Cardoso de
Almeida. Lembrou-lhe os seus serviços como lugar-tenente de
Fernão Dias Paes a quem acompanhara à testa de cento e vinte
servos seus; travando numerosos combates com o gentio e, certa vez,
verdadeira batalha da qual fôra o triunfador. A D. Rodrigo de Castelo
Branco (assassinado nas minas) dera a mais eficiente assistência
"com particular desvêlo em tôdas as obrigações". Tal a sua reputação
que Antônio de Sousa Meneses, o Governador Geral do Brasil de 1682
a 1684 lhe outorgara faculdades para administrar tôdas as aldeias que
reduzisse desde Pôrto Seguro até o Rio de S. Francisco. Trouxera
Matias Cardoso de S. Paulo, dois lugares-tenentes de alta capacidade,
um já muito afamado pelos serviços de guerra na Bahia, Capitão
João Amaro Maciel Parente e outro que la dentro em breve iria
adquirir fama, Manuel Álvares de Morais Navarro. Passara-lhes
o Arcebispo as patentes de capitão-mor e sargento-mor
respectivamente, "para a conquista dos Bárbaros do Rio Grande",
assim como a de Coronel de tôda a gente de armas, comandada por
Domingos Jorge Velho, a Antônio Cubas, seu irmão, que de S.
Paulo viera reforçar-lhe a tropa à testa de cem homens brancos.
Declarara o Tenente-General serem absolutamente insuficientes, para
a emprêsa a que pretendiam abalançar-se as fôrças reunidas a fim de
expugnar o grande quilombo dos Palmares. "Quer em poder de
brancos, quer no de índios". Ofereceu-se ao Arcebispo para levar a
cabo a extinção da Tróia Negra mas fôra-lhe a proposta repelida pelo
Prelado em têrmos categóricos e tom irritado. O Govêrno-Geral do
Brasil, assegurou-lhe, manteria o seu cordo firmado com Domingos
Jorge Velho:
"Seria coisa mui injusta que, havendo êle vindo por terra com
tanto trabalho e tendo depois o de assistência àquelas
fronteiras, se lhe tirasse agora com menos crédito seu, a
ocasião para a qual viera a usá-lo e a utilidade que o trouxera
das suas terras longínquas do Piauí, ao litoral
pernambucano".

Concitou o Arcebispo a Matias Cardoso que ao seu êmulo se unisse “a


bem do serviço de Sua Majestade, soberano de ambos”. Eram ambos
paulistas, tinham patentes equivalentes. Tudo os levava a uma
cooperação a mais proveitosa. Logo que liquidassem o poderio dos
bárbaros emigrariam fôrças para a destruição de Palmares. Assim, a
um e outro …. maior bem e alívio das capitanias oprimidas pelas
violências dos trogloditas tapuias. A 10 de novembro de 1690
alcançava Domingos Jorge Velho a grande vitória na qual saliente
parte tomara um de seus melhores loco-tenentes, Cristóvão de
Mendonça. E contemporaneamente sofreu Matias Cardoso grave
revés. A sua coluna, num efetivo de quinhentos homens, foi por duas
vêzes atacada e batida. Numa destas refregas correu o risco de total
desbaratamento, por força do esgotamento das munições. Precisara
apressadamente retirar-se para o Ceará-Grande. Apesar de tão mal
provido de recursos, tivera de acudir em socorro de Natal,
gravemente ameaçada de cair em poder dos tapuias que acabavam de
destroçar a coluna de Antônio de Albuquerque, aliás ferido em
combate.

A Domingos Jorge Velho, aquartelado em Açu, pediam Albuquerque e


o capitão-mor (governador) paraibano, Constantino de Oliveira Ledo
(também militante), instantes socorros. Péssima era a sua situação,
declaravam-lhe. Ao Governo-geral opinou Morais Navarro,
contemporaneamente, que ao seu ver só havia um recurso: a guerra a
todo o transe aos tapuias "tiranos alevantados", até o seu extermínio
que deveria abranger também os traidores pregoeiros “da impossível
pacificação dos índios” (regionais invejosos inferiorizados e
ressentidos). Se eles acaso conseguissem o que viviam a apregoar,
comprometer-se-ia ele, Navarro, a entregar o pescoço ao cutelo de um
algoz! Tornara-se péssima pois a situação militar dos brancos. Viviam
os intrigantes e malévolos (ressentidos?) a espalhar que a retirada de
Matias Cardoso para o Ceará se devera ao “temor que tivera dos
tapuias”, quando na realidade, a isto o forçava a absoluta penúria de
recursos após cinco anos de privações sofridas por êle e sua gente, a
quem nada se pagara de soldos. Ardilosos se mostravam os selvagens.
Em certa ocasião, grande magote seu na iminência de ser envolvido
por Domingos Jorge, procurara abrigo na aldeia de Guararaí
administrada pelos jesuítas. Cercara-a o mestre de campo e os padres
tiveram de entregar os refugiados. Forçara o Governo-geral porém ao
caudilho a restituição da presa ante as reclamações dos jesuítas a
invocarem o direito de asilo. Pois bem, relatava Morais Navarro ao
Governo-geral, a paga que aos inacianos haviam dado os seus
homiziados, fora uma série de assassinatos, tropelias e atrocidades de
tôda espécie, praticadas em detrimento de seus catecúmenos.

Depois de incendiarem Guararaí, haviam marchado sobre o Ceará


Mirim, tais malefícios obrando, que os jesuítas espavoridos haviam
implorado socorro a Matias Cardoso, lancinantemente. Acudira este a
toda pressa a tempo de impedir maiores males. Desbaratara os
ingratos tapuias matando-lhes seiscentos homens. Ao mesmo tempo
haviam eles sofrido de Cristóvão de Mendonça o castigo não menor.
Como poderiam os brancos ter contemplação com semelhante
(aterradores) inimigos?, indagava o cabo paulista! Eram temíveis e ao
mesmo tempo sagazes, astuciosos e velhacos! Numerosos como folhas
de árvores, saudosos de seus “amigos holandeses”, a quem tanto
haviam servido contra os portugueses. Sua única inferioridade
provinha da deficiência do armamento de fogo. Só havia um meio de
debelar semelhante e poderoso inimigo, afirmava Morais Navarro,
peremptoriamente. Teria o Governo-geral de manter em campanha
uma coluna de pelo menos quatrocentos paulistas, perfeitamente
armados e profusamente municiados, a quem comandasse um cabo
(chefe) prático da guerra dos sertões. Também era indispensável que
à testa do gentio fiel ribeirinho do rio de S. Francisco, do Ceará
Grande, Paraíba - Rio Grande fosse posto um chefe valoroso e capaz,
em condições de mobilizar a sua gente com a maior rapidez. Tomadas
tais providências estaria o Nordeste em condições de se defender.

Depois de alegar que fizera uma jornada de 220 léguas para acertar
medidas com o Governo-geral, declarava Morais Navarro que até
aquele dia, 26 de julho de 1694, a Real Fazenda não lhe dera um ceitil
daquilo que lhe prometera mas, que tal impontualidade não o fazia
esmorecer no serviço de Sua Majestade. Divulgara-se entrementes
que Matias Cardoso sofrera grave revés no Ceará, sendo batida uma
coluna sua, composta de cento e oitenta homens. Na refrega
morrera-lhe um filho e êle próprio recebera ferimentos.

CAPITULO XXVI
A longa duração da Guerra dos Bárbaros.
A Retirada de Matias Cardoso.
A campanha de Morais Navarro.
Processo movido a este cabo de tropa.

Durante os anos da guerra entre Bandeirantes Paulistas e tapuias do


Nordeste (cariris), a dura situação dos colonos do Rio Grande do
Norte foi provocando grande êxodo dos moradores. Havia
insegurança, não só por parte do gentio como por motivo de tropelias
das tropas que o continham, quando então representou a Câmara de
Natal a D. Pedro lI (de Portugal). Mandou este ao Governador-geral
que responsabilizasse Matias Cardoso pelas violências de sua gente. E
este, indignado com a repreensão do soberano, que o deixava à
míngua de recursos, resolveu retirar-se para suas terras dos Currais da
Bahia. Os destacamentos vindos de Pernambuco reduziram-se pela deserção
e momento houve em que até a Fortaleza dos Três Reis Magos, baluarte de
Natal, ficou quase sem guarnição. Não existe, por assim dizer, concatenação
alguma, cronológica, dos papéis referentes à luta com os bárbaros. Alguns
pormenores preciosos mas indeterminados, encontram-se numa petição de
recompensa de serviços apresentada a D. Pedro II por Morais Navarro a 15
de Dezembro de 1696. Refere ele que o centro das operações do seu mestre
de campo, Matias Cardoso, encontrava-se a 220 léguas da cidade do
Salvador. De uma feita viera a Bahia buscar reforços e recursos voltando
com 200 homens entre brancos e índios. Pusera-se a campo então à testa de
mais de 400 homens e caminhara 237 léguas até o teatro da luta. À sua
vanguarda comandava êle, Navarro, e constava de um corpo de cavalarianos.

A primeira refrega contra os tapuias durara onze dias de fogo vivo, acabando
pela derrota dos canibais. Durante a marcha a coluna padeceu fome e sede.
Em outra ocasião depois de quinze dias de caminhada conseguira
surpreender grandes alojamentos inimigos fazendo ali muitos prisioneiros.
Na volta vira-se atacado por grande grupo de adversários, repelido depois de
vivíssimo combate que durara da madrugada às 3 da tarde. Um segundo
entrevero ouve pouco depois. Sabedor de que os tapuias vinham em grande
multidão, resolvera Matias antecipar-se, atacando-os. Depois de várias horas
de combate, os índios tomados de pânico fugiram deixando muitos
prisioneiros. Ele próprio Navarro, tivera uma coxa ferida por seta. Em certo
momento ficara o arraial de Matias Cardoso em péssima situação cheio de
enfermos; resolvera então o mestre de campo mudar de base estabelecendo-
se a trinta léguas do Ceará Grande (Fortaleza). Amotinavam-se os soldados
reclamando a paga atrasadíssima devida pela real fazenda. Estavam seminus
e não desertavam todos porque os chefes lhes asseguravam pagamento breve
e novas roupas. Mandara então Matias que êle, Navarro, conduzisse três mil
bois do sertão cearense a Pernambuco onde havia enorme falta de carne. E
êle se desempenhara de tal comissão. Três encontros renhidos sustentara
com os bárbaros que pretendiam tresmalhar aquêle gado. Num dêles tivera o
cavalo morto e precisara travar combate singular com um índio. Ao regressar
havia chegado a Matias a notícia do perigo iminente que ameaçava Natal.
Marchava sobre a cidade verdadeiro exército tapuia.

Dividira a sua gente em duas colunas; a segunda, a que comandava, êle


Navarro, batera grande troço inimigo no Ceará-Mirim. Depois desta vitória
marchara sôbre o Açu onde havia grossa emboscada de índios. Após cinco
dias de caminhada, diurna e noturna, com padecimento de fome e sêde,
surpreendera os bárbaros, a muitos matando e a muitos mais aprisionando.
Tal foi o seu triunfo que os vencidos haviam pedido paz por Matias
concedida. Dois mil e quinhentos ainda eram os janduins em armas. Neste
momento chegara o instante socorro solicitado por Domingos Jorge.
Mandara-o Matias a desafogar o mestre de campo e êle rompera por cento e
trinta léguas em direção a Palmares, com duas companhias. Encontrara a
Domingos Jorge entrincheirado tendo apenas consigo cinco homens brancos
pois o resto debandara. Logo depois repelia assalto dos palmarenses
ignorantes da chegada do refôrço. Nesta investida haviam os quilombolas
sofrido "grandes estragos". Continuando o relato afirmou Navarro que
assegurara aos comboios de abastecimento virem sem estorvo do São
Francisco ao Arraial de Domingos Jorge graças aos seus encontros vitoriosos
com os palmarenses, alguns deles vivíssimos. No primeiro cerco dado pelo
mestre de campo ao grande quilombo, tomara importante posto. Levantado
o assédio, permanecera seis meses a governar o arraial e isto lhe valera
travar duras refregas com os quilombolas. Mas como adoecesse gravemente
precisara ausentar-se. Gabou-se de que sem ele não se teria mantido o
arraial. Restabelecido, fora à Bahia e, convencido de que as guerras do
Nordeste não se podiam fazer sem paulistas oferecera-se para ir a São Paulo
levantar um terço. Neste momento soubera que o Governo-geral mandara
dissolver a tropa de Matias Cardoso e isto sem que se pagassem os soldos a
ela devidos!

Mas afinal o governador D. João de Lencastre lhe dera o comando do futuro


"Têrço de Lencastre" que se comporia de 100 brancos e 400 índios, todos de
São Paulo. Representando a D. Pedro II, solicitou Navarro uma comenda de
Cristo do lote de duzentos mil reis. Obteve os mais elogiosos pareceres do
Conselho Ultramarino que em todo caso reduziu a tença a 150$000 anuais.
Na mesma ocasião pediu João Amaro igualmente recompensa de serviços
como lugar-tenente do pai e como um dos principais auxiliares de Matias
Cardoso. Muito despendera da fortuna própria para fardar a infantaria que
organizara. Navegara duzentas léguas no São Francisco e fôra ter ao arraial
de Matias a quem assistira longamente em campos entrincheirados e durante
duas expedições. Teve Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho agitado
período de governo precisando ocupar-se de duas campanhas muito sérias a
dos Tapuias e a dos Palmares. Tudo isso numa fase de extraordinários
apertos financeiros e quando o Rei ainda queria que o Brasil socorresse, e
com o maior empenho, a Colônia do Sacramento. Em 1694 triunfava
Domingos Jorge por completo, dos Palmarenses mas já no ano seguinte
agravou-se a situação do Nordeste. A 19 de outubro de 1697 oficiava o novo
Governador-Geral D. João de Lencastre à Câmara de São Paulo e as das
demais vilas paulistas sôbre o levantamento do terço de Morais Navarro que
devia ter o seu nome. Lembrou às Municipalidades que o "sossêgo da
Bahia se devia, unicamente, ao valor dos sujeitos de São Paulo". Fazia de
Navarro como bravura e capacidade o mais alto conceito:

"Só o valor e a muita experiência da guerra dos sertões com que os paulistas se
acham podem destruir e conquistar os bárbaros cujo sossego depende das
armas dos paulistas sempre vitoriosas dos bárbaros do Brasil",

afirmou o fidalgo, patrono do futuro regimento. Apesar da crise financeira


conseguiu o Governador-Geral recursos para prover às despesas da
expedição que saída de Santos, chegou à Bahia em Agosto de 1698. Era
desde 1695 capitão-mor do Rio Grande do Norte o famoso Bernardo Vieira
de Melo que em 1710 tanto se notabilizaria por sua atitude nacionalista. Em
fins de 1698 surgiram em terras rio-grandenses Morais Navarro e seu terço.
Contra êle representaram logo a Câmara de Natal e o Capitão-Mor alegando
violências suas e de sua tropa contra os inermes índios do Apodi já
pacificados e a quem escravizavam.

Depositava Lencastre a maior confiança no êxito da campanha que Navarro


ia encetar à testa de "gente muito luzida e tôda capacíssima de pelejar em
qualquer ocasião". Assim terminantemente ordenara aos governadores de
Pernambuco, Paraíba e Ceará que lhe dessem todo o auxílio. Seu lugar-
tenente João Pires de Brito, sertanista de grande prestígio, era "sujeito de
tôda suposição cujo valor e experiência inspirava tôda a confiança". A
Navarro fôsse concedida a faculdade de recrutar os índios aldeados. Deveria
a Provedoria régia de Pernambuco fornecer-lhe dez mil cruzados, além de
todo o armamento e munição de que precisasse. Deveria formar um campo
entrincheirado no Açu como base de futuras operações destinadas a de vez,
arrasar os janduins. Fez Bernardo Vieira ver ao Governador-Geral que a
existência de tal campo iria inquietar extraordinariamente os índios já
pacificados provocando possivelmente o levante geral das tribos. Mas
Lencastre fê-lo calar-se a lhe dizer

"bem sabe V. Mercê que êstes brutos (fingidos macunaímas)


não guardam paz, senão enquanto lhes convém".

A 4 de agôsto de 1699 obteve Navarro, à testa de 130 brancos e mais de 200


índios, estrondosa vitória. Para alcançar tal triunfo empregara ardil de guerra
referto de perfídia. A Lencastre explicou:

… "como esses bárbaros não fazem dano, senão debaixo de


traição, mandei dizer-Ihes que os ia buscar debaixo de toda
amizade e juntamente pedir-lhes socorro para dar nas outras
nações, por ser limitado o meu poder".

Na aldeia do chefe Jenipapoaçu aonde a sua gente fôra recebida sem


desconfiança subitamente agredira o tuxaua e sua tribo. Assassinado o
morubixaba. sofrera a sua gente morticínio. Mais de 250 paiacus
perderam então a vida sendo nesta ocasião escravizados mais 235. A volta à
base do Açu exigira contudo muitos sacrifícios da tropa vencedora.
Comentando o relatório do bandeirante, escreve Studart, revelador de tal
documento:

"a linguagem desta carta iniciada por expressões


piedosas revela um homem senhor das situações difíceis,
feroz mas consciente de seus atos, não fugindo às
responsabilidades, certo da necessidade e justiça da
empresa por êle preparada e realizada, embora à custa do
mais terrível morticínio. Segundo os seus dizeres, sua
situação “era rivalizar-se em astucia com o traiçoeiro
Jenipapoaçu, opondo estratagema a estratagema, traição
a traição, matava para não ser morto". (em resumo,
“Com hipócrita, hipócrita e meio!”)

A terrível vida da Selva criava especial mentalidade a êsses homens


obedientes à suprema lei, a cada momento mais imperativa, do salus vitae.
Entendeu Studart que o dissídio entre Bernardo Vieira e Navarro
representava, além do ciúme, o interesse pecuniário. O soldado em
campanha era um competidor e mais um concorrente importuno na partilha
dos índios prisioneiros de guerra. Enorme impressão causou a terrível
chacina. Agitaram-se os meios eclesiásticos; verberaram os missionários, do
modo mais veemente, a conduta de Navarro apontando-o ao bispo de
Pernambuco, como merecedor do mais grave castigo. Este depois de
condenar o procedimento do cabo de tropa do modo mais severo, intimou-o
a conceder a liberdade a quantos índios houvesse aprisionado, sob pena de
excomunhão maior. Assustado, delegou Navarro poderes a um dos seus
oficiais, Bento de Siqueira para que o defendesse perante o prelado. Abriu-
se inquérito em que depuseram diversos missionários, oficiais régios e
personagens qualificados a quem Navarro convocara. Declararam todos
que o mestre de campo apenas fizera o que as circunstâncias da guerra
lhe impunham:

“Todo o tapuia (ou cariris) não tinha outro estratagema mais que
executar suas tiranias e traições da paz."

Jenipapoaçu contava atrair o chefe branco a uma cilada em que o


exterminaria, e aos seus, "se o mestre de campo se não antecipara em dar
nêle". Continuou o bispo D. Frei Francisco de Lima a pendência e Navarro
invocou em sua defesa o depoimento de missionário jesuíta Padre João
Guinzel, alemão. Afirmou êste. achar-se convencido da justiça da dura
necessidade que levara o chefe paulista a proceder como fizera. O sargento-
mor Pedro Lelou, o belga capitão-mor do Ceará, este fez tremenda carga a
Bernardo Vieira indivíduo a seu ver despeitado, invejoso de Navarro ao
ponto de fornecer aos tapuias, clandestinamente, armas de fogo! Pelo mesmo
tom afinaram-se outros oficiais. Um dêles, Barbosa Leal, avançou que ao
Bispo instigava Bernardo Vieira inconformado de não ter obtido a
chefia das operações e a quem enfurecia o fato do mestre de campo paulista
não dar importância alguma aos seus alvitres, aliás ineptíssimos. Já de
todos os modos atrapalhara a atuação de Domingos Jorge Velho e Matias
Cardoso com enorme prejuízo dos vassalos de sua Majestade. Na questão
interveio o Governador-Geral do Brasil, que a 7 de janeiro de 1700,
oficiava a D. Pedro II (de Portugal) exaltando os serviços de Navarro e
reprovando as manobras de Bernardo Vieira!!! Nesta ocasião escreveu
Lencastre ao chefe paulista aplaudindo calorosamente "pelo bem com que
obrara e o zêlo pelo qual servia a Sua Majestade sendo tudo isso levado à
real presença". Rudemente atacado, como fôra, entendeu Navarro dirigir-se
diretamente ao soberano. Queixara-se das manobras dos adversários.
Desobedientes das ordens régias tinham conseguido que a provedoria de
Pernambuco bloqueasse os recursos ordenados por Sua Majestade. A luta
contra os tapuias ainda estava longe de terminar e ele prometia prossegui-la
com ardor igual ao já demonstrado. Inesperada decisão veio de Lisboa.
Impressionado com as denúncias sobretudo com a do Bispo, mandou o
monarca encarcerar ao cabo de tropa (o despeitado Bernardo Vieira, aliás,
mineiro). Foi êle preso, conduzido ao Recife, onde esteve retido uns dois
anos. Em agosto de 1702 já se achava de novo à testa do seu terço voltando
ao Açu. Em 1705 pediu para voltar à sua vila natal de onde se ausentara
desde 1690. Foi ter às então recém-descobertas Minas Gerais, no apogeu do
rush aurífero. Deteve-se algum tempo no Serro do Frio e depois voltou ao
Açu de onde ainda saiu em campanha contra os Tapuias do Ceará (os
cariris). Envelhecendo, retirou-se para as vizinhanças do Recife, onde viveu
em seu engenho de Paratiba, por sua causa chamado Engenho do “Paulista”
e onde em avançada idade faleceu, depois de 1745.

Enquanto Navarro se fixava em Pernambuco permanecia um dos seus mais


ilustres êmulos João Amaro Maciel Parente (nosso tio-avô colateral) em
terras da Bahia, no Paraguaçu, onde tanto se batera contra os guerens (e
anaiós) e onde viveu como fronteiro contra os tapuias, durante muitos anos
tendo como base a vila que lhe conservou o nome: JOÃO AMARO, BA
(fundada por seu pai Gov. Estevão Ribeiro Bayão Parente, batizada
originalmente de Sto. Antonio de Peroaçú e doada ao seu filho mediante
lavra de escritura). Operou nas matas de Ilhéus (hoje, Bahia), nos vales do
Rio Pardo, Jequitinhonha e São Francisco. Quando ocorreram os grandes
achados auríferos dos primeiros anos do século XVIII que tamanhos
deslocamentos de populações provocaram, incumbiu-o em 1705 o
Governador-Geral Luís César de Meneses de impedir a migração da gente da
Bahia para as terras do ouro (Minas), pelas vias do Sertão. No desempenho
desta comissão mereceu elogios mas, ao cabo de algum tempo, contaminado
pela febre da sacra fames deixou as paragens ribeirinhas do Paraguaçu,
trocando-as pelas dos jazigos auríferos das Minas Gerais. Assim em 1721
falecia em sua fazenda próxima do arraial de Guarapiranga, no distrito do
Ribeirão do Carmo (1).
(I) As referências documentais a destes capítulos XXV e XXVI encontram-se no
tomo sexto da História Geral das Bandeiras Paulistas, nos últimos capítulos e nos
primeiros do tomo sétimo da mesma obra.

Acrescentamos a seguir um sugestivo artigo escrito por antiga


e excelente acadêmica da USP, de uma era ainda não
ideologizada, que confirmam e referenciam estas narrações.

A ação dos bandeirantes paulistas no Nordeste - algumas achegas para o seu


estudo in Revista de história 14(30):313 . June 1957 with 14 Reads
DOI: 10.11606/issn.2316-9141.rh.1957.105319

Antonia Fernanda de Almeida Coulter


Abstract
(1. parágrafo do texto) O estudo do bandeirismo paulista no Nordeste não constitui,
como é sabido, assunto inédito. Das andanças dos sertanistas paulistas pelo Nordeste
estão crivados os trabalhos de Taunay, de Borges de Barros, de Basílio Magalhães,
Inácio Accioli, Capistrano e tantos outros. A documentação apresentada por Borges
de Barros nos Anais do Arquivo Histórico e Museu do Estado da Bahia nos volumes
1 a 5 é particularmente sugestiva.
ARTIGO
A AÇÃO DOS BANDEIRANTES PAULISTAS NO NORDESTE - ALGUMAS
ACHEGAS PARA O SEU ESTUDO.

"E se os Paulistas são tão costumados a penetrar os sertões para cativar Indios
contra as provisões de Sua, Majestade que o prohibem, tenho por certo que
agora que o podem fazer a serviço de seu Rei (") como leaes vassalos seus, e em
tão publico beneficio daquellas Capitanias o farão com maior vontade não só
pelo credito, da sua fama, e esperança da remuneração que ha de ter o que
obrarem; mas tambem pela utilidade dos barbaros que presionarem, que
justamente são captivos na forma das leis Del-Rei meu Sr. e resolução tomada
na Junta Geral dos theologos, e Canonistas, que sobre esta guerra se fez para
se declararem por taes". (1)

O estudo do bandeirismo paulista no Nordeste não constitui, como é sabido, assunto


inédito. Das andanças dos sertanistas paulistas pelo Nordeste estão crivados os trabalhos
de Taunay, de Borges de Barros, de Basílio Magalhães, Inácio Accioli, Capistrano e
tantos outros. A documentação apresentada por Borges de Barros nos Anais do Arquivo
Histórico e Museu do Estado da Bahia nos volumes 1 a 5 é particularmente sugestiva (2) .
Tanto assim que o historiador baiano tendo em 1917 iniciado esta preciosa publicação,
lançou a público 3 anos mais tarde trabalho sôbre os "Bandeirantes e sertanistas baianos"
no qual usou a documentação por êle selecionada nos arquivos baianos. Outros autores,
posteriormente, se serviram dêste trabalho rico em documentação e especialmente
sugestivo. O fenômeno do bandeirismo paulista no Nordeste apresenta, porém, tamanha
multiplicidade de aspectos que é capaz de prestar-se a interessantes e sugestivas
interpretações. Homens da Capitania de São Vicente, no nordeste e norte do Brasil, se
destacaram no combate aos bárbaros, por solicitação das autoridades coloniais ou
diretamente do Rei. O período mais sugestivo para a observação do fato é aquele
compreendido pelo governo do "Bom Governador" D. João I de Lencastro (3) que
governou entre 1694 e 1702.

1-Documento Público datado da Bahia, de 16 de junho de 1690 e pertencente a


Alberto Lamego. Assinado por Dom Frei Manuel da Ressurreição — Arcebispo da
Bahia e Governador Geral do Brasil. Apud História Geral das Bandeiras Paulistas
de A. E.Taunay, tomo VII, pg. 4. São Paulo, 1936.
2-Existem, seguidos, na Biblioteca Municipal de São Paulo os Anais do Arquivo:
Público e Museu da Bahia, volumes de I a XV. Há mais o volume XXVII -
Começaram a ser publicados em 1917 e são anotados por F. Borges de Barros.

Nessa época a ida de cabos paulistas para o Nordeste tomou grande incremento.
Documentos da 2ª metade do século XVII mencionam com eloquência e destaque os
cabos paulistas acreditados e respeitados pelo seu valor militar, e cuja fama percorreu
léguas, transcendeu os limites da Colônia e chegou até os régios ouvidos. Convenceu-se S.
Majestade da veracidade daquilo que aconselhava a experiência dos dirigentes do Brasil.

Para liquidar os bárbaros hostis, ou as veleidades de "Mocambos" insurretos,


imprescindível se fazia o auxílio dos homens de São Paulo. Inteiraram-se disso, e
convenceram o rei, vários governadores-gerais, principalmente depois da restauração do
Nordeste. Antes, os problemas lá estavam; os mesmos, as mesmas necessidades de
expandir para o interior a dentro a penetração colonizadora e as fazendas de gado. Mas
havia a necessidade de primeiro expulsar o invasor holandês e regularizar a situação da
Colônia. Regularizá-la sob todos os aspectos. Foi o de que cuidou, muito especialmente
do ponto de vista do comércio de peças de África (esvravos negros), assim que pôde,
Salvador Correia de Sá. Com sua gente, em 1649 retomou Angola (4) Valeram-se muito
os reis portuguêses da gente paulista nesse período, obedecendo a imperativos de ordem
política e econômica em especial. Tal era a premência da situação metropolitana, que não
hesitava S. Majestade em prometer as maiores honras, as melhores compensações,
passando por cima da tradicional política de proteção ao índio e ao povoamento. Agora,
aparentemente abdicava o rei dessa diretriz pois incitava os paulistas à "guerra justa",
embora procurasse hàbilmente enquadrar a ação dos mesmos, antes considerada
criminosa, dentro de fórmula maleável, como reclamavam os interesses dos colonos que
passaram a ser os da Corôa. Senão, vejamos o que diz a Carta Régia dirigida ao Conde
Alvor, D. João de Lencastro, Governador Geral do Estado do Brasil em 1695, por D.
Pedro II de Portugal. Esse rei, no dizer de Capistrano (5) "depois de ver frustradas ou
mal correspondidas tôdas as esperanças concentradas nas minas, resolveu dar um
grande passo: 'dirigiu as mais lisongeiras cartas à gente principal de São Paulo,
confiando-lhe por assim dizer, a questão".

3 — Ligado por vínculos de família aos reis da Inglaterra e Portugal, passou do


govêrno de Angola ao do Brasil. No seu govêrno foi extinto o quilombo dos
Palmares. Cogitou do estabelecimento de fábrica do salitre descoberto no interior de
Jacobina. Mandou edificar a casa da moeda que segundo dados existentes em I.
Accioli, cunhou, entre 1694 e 1697 quando foi fechada, moedas correspondentes a
um total de 1.357:835$400.
4— C. R. Boxer, Salvador Correia de Sá and the struggle for Brazil and Angola.
(1602-1686) . Oxford, 1956.
(5). — Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, pg. 231. Sociedade
Capistrano de Abreu, 1954. 4a. edição.

Eis o que diz a carta de 1695 a propósito da guerra contra os bárbaros do Rio Grande:

"Para o Governador Geral do Estado do Brazil O Conde de Alvor (6) Dom João de
Lencastro Amigo. Eu El Rey vos envio muito saudar. Mandando em papel que aqui se
me representou por parte dos moradores do Rio Gradde e a Carta que o Secretario
desse Estado escreveo ao Conde de Alvor, Presidente do seu Concelho Ultramarino
sobre o miseravel estado em que aquela Capitania se acha com a destruição que nella
tem feito os indios, e meyos que se aponta para sua defença que tudo com esta se vos
envia: Me pareceo ordenar vos que com os mais que se vos tem remetido sobre a
mesma materia os mandeis ponderar e se ajuste o que se entender he mais do meu
serviço e em maior beneficio de meus vassallos, no caso que se resolva o encarregar-se
esta guerra aos paulistas lhe façais certos e infalliveis os soldos que se lhe prometerem
e os resgates favõres e as terras que aponta o dito Secretario desse Estado, por não ser
justo que expondo se aos riscos e sacrificando a vida na defença de meu serviço não
tenhão com que se possão sustentar e que os indios que aprisionarem sejão captivos,
observando-se nesta parte a ley de 611 em que se dispoem fiquem captivos todos os que
moverem guerra aos Portugueses; com declaração que os ditos Paulistas se devem
mandar vir (no caso que assim se resolva) sem que se devirtão os que estão nos
Palmares e se lhes dará lambem Polvora, baila e munições, as quaes se obrigarão a
fazerem esta guerra assistindo nos Arraiaes que parecerem convenientes, deitando
bandeiras pelas partes por onde costumão fazer a guerra aos indios bravos, não se
fazendo damno aos Curraes de Rio Grande e Campos do Assú e porque se entende que
os Indios perseguidos das nossas armas se atirarão para a serra de Goapaba da
jurisdição do Estado do Maranhão, mando avisar ao Governador delle tenha previnida
a gente que for necessario porque ao mesmo tempo que se fizer a guerra pello Rio
Grande subam alguas tropas de moradores daquelle Estado e dos nossos indios
guerreiros pela mesma serra a fazerlhes toda a hostilidade. Escrita em Lisboa a 10 de
Março de 1695. Rey, Para o Governador Geral do Brasil Conde de Alvor".
Pelo teor desta interessante Carta Régia, verificamos que ela obedece, de certo modo, ao
mesmo princípio das "Cartas Autografadas". Pensa utilizar-se o rei da grande prática dos
sertanistas paulistas, ideia registrada por Capistrano (7), sem no entanto se referir ao
documento em questão.

(6). — Anais do Arquivo da Bahia, vol. I e II, pg. 15. 1917. Imprensa Oficial.
(7) . — Op. cit., pág. 156 e segs. -- 316 --

Convém notar aqui a expressão "deitar bandeiras" usada pelo rei para designar a então
futura ação bélica dos paulistas contra os "bárbaros" do Rio Grande. O rei, ao mesmo
tempo, previne o Governador do Estado do Maranhão do perigo em que poderiam
incorrer seus habitantes porque fugiriam para aquêle Estado os índios batidos; sugere por
isso uma ação conjunta de paulistas e moradores do Maranhão em outra ordem régia de
19 de março do mesmo ano (8), onde se encontra a notícia de que, efetivamente, os índios
batidos no Rio Grande e Campos de Assú, giraram para o Maranhão e se uniram aos do
Mearin, os piocolegés. Mais interessante é a recomendação do Rei para que se mandem à
guerra os moradores do Maranhão e os "nossos índios guerreiros". Quantos seriam êles?
E' impossível responder. Entretanto, outros documentos apresentados mais adiante, nos
levam a admitir que o grosso, o número maior de mortes em todos êsses tipos de guerras
e conflitos feridos na Colônia e especialmente nessa época, era constituído pelo índio.
Bárbaro ou adestrado no uso de armas de fogo e então hostil e armado por "estrangeiros",
ou por maus portuguêses (9).

A idéia de que os holandeses contaram com a colaboração dos "línguas-travadas", ou seja


dos "bárbaros", durante a permanência de Maurício de Nassau e mesmo depois dela,
encontra-se documen-tada em Barlaeus-Naber (10) e expendida em Boxer (11) que
afirma o seguinte:

"The Cannibals would never consent to Le educated or civilized by the Dutch; but they
were perfectly willing to co-operate with them against the Portuguese; and prove
themselves valuable if at times embarassing allies. The Tapuyas treated the Dutch, and
were treated by them, on a footing of perfect equality"... ..."A party of Tapuyas
voluntarily accompanied him on bis return to Hol-land in 1644, and for years
afterwards he continued to send gifts and letters to their chiefs in Brazil".

De um lado ou de outro da contenda foi sempre o índio dizi-


mado em maior proporção . Vítima das pestes trazidas pelos bran-
cos,
das rivalidades entre
portuguêses e outros estrangeiros sequio-
sos de fincar pé ou explorar o Brasil através da pirataria que prà-
ticamente nunca cessou na Colônia; vítima finalmente das lutas
rixentas provocadas por violentas questões d
.
e terras. Estas ques-
— In
Anais do Arquivo Histórico da Bahia, vol.
V, pg. 131. Imprensa Oficial
da Bahia.
— Apud I. Accioli. Documento transcrito, In
Memórias Históricas da Bahia,
vol.
II. Referências também em Taunay, op.
cit.,
vol. VII. São Paulo, 1936.
-(10). — Barlaëus-Naber,
Nederlandsh Brasil.
Apud C. R. Boxer,
The Dutch in
— Boxer (C. R.),
The Dutch in Brasil
(1624-1654), pg. 135. Oxford, 1957.

317 —
tões foram geradas porque muitas das doações de terras nordesti-
nas, feitas aos vencedores dos Palmares ou dos bárbaros dos sertões
baianos, riograndenses do norte, cearenses, piauienses e pernam-
bucanos, suscitaram acirradas polêmicas, por motivos fàcilmente
compreensíveis. Na ocasião do perigo eram regiões fechadas, aban-
donadas ou desconhecidas. Passada a luta vinham os pseudo-do-
nos, ou donos legítimos, reclamar direitos. Viam-se êstes poster-
gados pelo sagrado direito de conquista, sacramentado mais ainda
pela real palavra dada aos paulistas e pelas doações com que ace-
nara sempre em tais casos o monarca, para que na dura emprêsa
melhor se empenhasse o paulista. Esse paulista objetivo e para
o qual o rei recomenda "promessas concretas" é aquêle mesmo ho-
mem que através do bandeirismo mostrou-se capaz de uma gran-
de epopéia realizada por imperativos de ordem imediata.
Não há dúvida de que o chamamento aos brios influira para
que se internassem no sertão à cata de metais preciosos. Da mes-
ma forma o apêlo ao combate incerto e árduo encontrou no pau-
lista do fim do seiscentismo o material humano ideal. Para isso
houve motivos — os quais não se pode deixar de ponderar —
muito ligados ao fato econômico apontado, entre outros, por Si-
monsen (12) e Ellis Jr. (13) . Ao lado do reconhecimento do
valor militar, vemos honras prometidas e dadas. Algumas estão
bem próximas do estilo das descritas no "Regimento dos Capitães
Mores, & mais Capitães & Officiaes das cõpanhias da gente de
cavallo e de pee & da ordem que teram em se exercitarem" ainda
do tempo do Cardeal Infante, como aparece em documento que
foi exposto na "Exposição do Ibirapuera" e cuja cópia autêntica per-
tence ao Prof. Ramon Blanco. Diz no artigo 45:
"e pera que oz capitaõs das Companhias •& os Alferez •&
Sargentos déllas folguem mais de servir os dittos cargos,
& por lhe fazer merecer. Ey por bem, que cada hum del-
les goze •& use do privilegio de cavaleiro, posto que o
nam seja".
Isso está contido no documento (14) que é muitíssimo ante-
rior ao fenômeno das bandeiras. Curioso é nele encontrarmos ain-
da referência ao fato de cada companhia possuir o seu estandarte,
o seu tambor, e seu capelão, coisa bastante sugestiva se pensarmos
na organização das bandeiras paulistas, realizadas muito posterior-
mente. Em relação ao assunto tratado no presente trabalho, é su-
.
— História Econômica do Brasil.
São Paulo, 1939.
. — A. Ellis Jr., Meio
século de Bandeirismo — Raça de Gigantes.
São Paulo,
1926.
. — Regimento dos Capitães Mores, etc., mencionando lei feita por El Rey o
Cardeal Infante em dezembro de 1579. Fotocópia do documento de proprie-
dade do Prof. Ricardo Ramon Blanco, da Faculdade e Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade de São Paulo.

--- 318 ---


gestivo lembrar que muitas honras foram exigidas e até cobradas
pessoalmente ao rei em alguns casos, por sertanistas paulistas.
Houve um dêstes que solicitou, aparentemente de maneira desca-
bida, senhorio de terras, tenças e até o hábito da Ordem de Cristo,
além de cargo público para o filho (15) . E' evidente que as hon-
ras obtidas e os privilégios acompanhavam, pelo visto, de há mui-
to, o 'exercício da profissão e situação de militar.. Esta idéia de so-
licitar privilégio não é infundada sobretudo no caso de um Moraes
Navarro (16) pois, passando êle a exercer o militarismo em ca-
ráter regular chegou ao pôsto de Mestre de Campo do "Terço Lan-
castro". Tais concessões de privilégios seriam perfeitamente ad-
missíveis especialmente no caso dos que com êle, engajaram-se às
tropas regulares. Parece haver preocupado fundamentalmente es
cabos paulistas — e o rei sabia disso — a concessão de terras no
Nordeste, e o pagamento de soldos (ainda que recebidos depois das
despesas realizadas, e com grande atraso na maioria dos casos).
Eram atraídos ainda pela possibilidade de apresamento nos têrmos
da cédula de 611, ou seja dentro dos ditames da "guerra justa".
Declinara, porém, por ocasião dos combates do Nordeste, o ban-
deirismo exclusivamente apresador feito muitas décadas antes, em
larga escala, nas paragens do extremo sul. Portanto o paulista
adestrado na guerra e na caça ao índio, encontra novamente cam-
po para exercer a sua aptidão natural: a abertura de novos cami-
nhos e o combate na zona infestada pelos bárbaros irredutíveis. O
seu modo de vida irrequieta e instável, seria, por certo, um forte
motivo para atendessem ao apêlo real. Nada autoriza supô-los
postos na vida, donos de riqueza ponderável mesmo para a época,
e levados pelo simples gôsto da aventura e dá guerra, ou atraídos
pelas possíveis honrarias, capazes de se atirarem às longas cami-
nhadas pelo sertão, à locomoção até o Nordeste, feita até às pró-
prias expensas em alguns casos. E' mais lógico admitir que ca-
recessem de forma mais lucrativa de ganhar a vida. Tanto isso
parece mais verdadeiro, quanto mais nos lembramos de que muitos
dêsses paulistas, como mostram os documentos aditados ao presen-
te trabalho e como asseveram Capistrano (17), Taunay (18) e
Borges de Barros (19), jamais regressaram à sua terra, transmu-
dando-se em grandes proprietários, especialmente de fazendas de
. — Taunay, op.
cit.,
vol. VII, pgs. 121-124.
. — Notar Carta Patente dada a Moraes Navarro reproduzida no Apêndice dêste
trabalho. Cf. Taunay,
op. cit., vol.
VII, pgs. 121-124.
L.o de Patentes de 1686. Arch. Publico, in
Anais do Arquivo Histórico
e Museu da Bahia, vol.
6.
0
, pg. 154.
.—
Op. cit.,
pgs. 217 e segs.
.—
História Geral das Bandeiras,
Taunay. Tomo VIL
. — Borges de Barros,
Bandeirantes e Sertanistas Baianos.

— 319 —
gado. Tal foi o caso de Domingos Jorge Velho, de Matias Cardoso
de Almeida, Maciel Parente e tantos outros. Moraes Navarro,
mais engajado à vida militar própriamente dita, é que voltou à
São Paulo onde deixara a mulher, pedindo para isso licença 'régia .
Regressando mais tarde ao Nordeste, casou-se outras vêzes, fixan-
do-se afinal em Pernambuco.
De despovoadores, originàriamente, pela intenção .e pela ação,
depois passaram êsses homens em conseqüência de suas vitórias e
das vantagens obtidas através delas, a povoadores ou "colonizado-
res" como os chama em seu "Panoramas Históricos" o Prof. A.
Ellis
-
Jr. (29), englobando sob a designação de "bandeirismo colo-
nizador" o total das bandeiras que foram para o nordeste e para
o sul em conseqüência da diminuição do apresamento no extremo
sul. A idéia de que êsses paulistas levavam família, parece justi-
ficável apenas no caso de um ou outro bandeirante, mas tal fato
não ocorreu na totalidade dos casos; pelo menos quanto aos que
marcharam para o nordeste contra os "bárbaros". Esse movimento
foi de caráter nitidamente militar, durante um período de cêrca de
10 anos, no final do século XVII. Não pesquisamos o fenômeno
em Santa Catarina, Paraná, observando a forma pela qual se de-
senvolveu o bandeirismo paulista nessas regiões, na mesma época.
Entretanto, a título de curiosidade apenas, citamos o caso de Jorge
de Macedo, cuja entrada se realizou por volta de 1680 e que, par-
tindo para a viagem, pede licença à Câmara para levar a mulher,
do que discordaram os membros da Câmara de São Paulo tendo
em vista os perigos e as dificuldades da viagem mata a dentro
(21) . Isso não nos autoriza a tirar conclusões apressadas e ex-
pender opiniões a propósito do caráter inicialmente colonizador
ou não do movimento sulino. Porém, no caso do movimento diri-
gido para o Nordeste, não temos a menor dúvida em acentuar com
destaque o caráter bélico apresentado pelo empreendimento, não
negando, outrossim, a posterior transformação sofrida pela região
que foi o teatro da guerra e pela gente que dela participou, fato
normal em tôda conquista . Paralelamente ao interêsse régio houve
o apêlo dos colonos do Nordeste que chamavam pelos serviços
militares dos capitães paulistas, fato de certo precipitado pela re-
tirada dos holandeses em 1654. Libertados os senhores de enge-
nho da zona litorânea da opressão, cresceu o incentivo para que
também os criadores de gado tentassem expurgar os índios bravos
. — A. Ellis Jr.,
Boletim
n.o 6
da Cadeira de História da Civilização Brasileira,
pg. 24. São Paulo, 1946.
. — Nuto Santana in
A entrada do Tenente General Jorge de Macedo.
Trabalho
inédito a ser publicado brevemente.

---- 320 —
-
dos
sertões do "agreste". Fêz-se, a partir de então, o apêlo direto
aos "cabos" de guerra paulistas.
Os terríveis "pimenteiras" (22) e "acroás" da área meridio-
nal do Piauí foram exterminados com o auxílio decisivo do paulis-
ta Domingos Jorge Velho, o mesmo que mais tarde iria ter papel
preponderante na conquista dos Palmares.
Segundo João Ribeiro, estariam completamente exploradas
e utilizadas (23) até fins do século
XVII
a zona limitada pelo
Paraguassú (Bahia) — São Francisco (Xique-Xique) — Serra
-dos Dois Irmãos — Piauí e o Oceano Atlântico até a Bahia de
Todos os Santos, isto é, a zona do gado.
E
foram os criadores de
gado, justamente, auxiliados pelos bandeirantes paulistas, os au-
tores da larga expansão geográfica operada no Nordeste no século
XVII, chegando esta ao seu ponto mais setentrional no último
quartel daquele século (24). Apesar das vitórias obtidas, obsta-
vam os passos dos colonos as hostilidades dos índios, impedindo
-que os agentes dessa expansão se "fixassem com sossêgo e provei-
to no solo conquistado". Realizou-se então a última leva conquis-
tada dos paulistas naquele rumo, que foi a de Matias Cardoso de
Almeida (25), especialmente destinada a jugular os bárbaros do
'Ceará e do Rio Grande do Norte. Antônio Figueira, um dos seus
ajudantes, iria mais tarde desbravar a fronteira de Minas onde
se
fixou como criador de gado, conforme observa Capistrano (26) .
Já ao tempo de D. Afonso Furtado de Mendonça Castro do
Rio e Menezes, Visconde de Barbacena, aparecem notícias relati-
vas à presença de paulistas integrados nessa conquista ao índio
bravio, o que constata Inácio Accioli (27) . Diz êle:
"Por êste mesmo tempo se descobriu o Continente
que hoje forma a provincia 'do Piauhy, nome que lhe deu
o pequeno Rio, que só durante a estação pluviosa corre
para o Parnahiba. Domingos Affonso Sertão, appelido
que tomou de suas continuadas entradas ao interior, e
pellas quaes passara do estado de indigente na cidade ao
de opulencia, possuindo já na margem do rio São Fran-
cisco a fazenda denominada Sobrado, mandou d'alli ex-
plorar aquelle territorio, onde ainda não constava haver
alguem entrado, e pelas boas informações que teve de
seus exploradores, tornou com várias pessoas a prosse-
guir na descoberta, penetrando a despeito das repetidas
oposições dos indigenas, em uma das quaes foi gravemen-
. — F. Borges de Barros, op.
cit.,
pg. 134.
. — J. Ribeiro,
História do Brasil.
. — F. Borges de Barros, op.
cit.,
pgs. 135 e segs.
. — Ve Carta Patente em Matias C. de Almeida. Documento transcrito no Apên-
dice L.o de Patentes n.o 5
de
1688 a 1696. Archivo Publico — Apud
Anais
do Arquivo Público e Museu da Bahia,
pg. 145.
. — Capistrano de Abreu, op.
cit.,
pg. 235.
. — In I. Accioli,
Memórias Históricas da Bahia,
pg. 131, vol. II.

— 321 —
te ferido, pello mesmo continente,
onde já encontrou
o'
paulista Domingos Jorge,
que havia sahido de S. Paulo
a descobertas, \
com grande sequito de indios e outros do-
mesticas
e, reunidos ambos, continuarão na conquista,
seguindo-se pouco depois o estabelecimento de muitas
fazendas de gado por sesmarias, a diversas pessoas par-
ticulares pelos governadores 'de Pernambuco concessão
esta que produziu alguns choques entre aquelles gover-
nadores e os do Maranhão e Bahia ( (28) . Em o mesmo
anno de 1671 chegarão de S. Paulo os cabos de Alexan-
dre de Souza Freire havia exigido para a •guerra dos, in-
dios de Cayrú, e João Amaro, Paulista de nascimento,
era o chefe d'aquelles Cabos a quem acompanhavam
muitos indios habituados ao exercicio 'das armas".
A propósito da antiga decisão de chamar os paulistas, já to-
mada por Alexandre de Souza Freyre — o qual sucedeu ao Conde
de Obidos em 13 de junho de 1667 — expõe Accioli (29) no texto
e na documentação que exibe à pg. 30, na nota n.° 34, que quando
do assalto dos "bárbaros" à vila de Cayrú, resolveu o governador
— de acôrdo com a Câmara — mandar pedir à província de São
Paulo cabos de guerra experimentados (30). Quando êstes che-
garam, já Alexandre Souza Freyre havia deixado o govêrno. E'
interessante transcrever aqui
passagem do assento tomado nessa
ocasião e que consta da referida nota n.° 34:
"...E
succedendo no Governo Francisco Barreto,
no anno de 657, querendo com mais cuidado remediar o
clamor dos moradores e o damno de irem-se despovoan-
do todos aquelles districtos, invadidos do innimigo, man-
dou fazer outra entrada pelo rio Paraguassú acima, e jun-
to à Serra do Orobó uma casa forte, que presidiou com
infantaria e Cabos, para dalli com mais facilidade fazer
guerra ao gentio, cujãs aldêas ficavam por aquellas partes;
e vendo que se não podia conservar, por ser o sitio mui
doentio e morrerem muitos soldados, se resolveo a mandar
vir da Capitania de S. Vicente e S. Paulo a gente e cabo
mais experimentados que alli havia nas jornadas do Ser-
tão, em que preferem a todos os do Brazil; e conduzidos
por mar a esta Praça, lhe nomeou por Capitão-mor a Do-
mingos Barboza Calheyros", (etc., etc.) .
Dos dois depoimentos aqui transcritos, depreende-se quão ar-
raigado estava no Nordeste o hábito de chamar os paulistas às
guerras de defesa contra o bárbaro hostil. Sente-se a extensão e a
intensidade da ação não esporádica, mas constante e objetiva, dês-
. — A propósito dêste problema de terras e sesmarias causado principalmente pelas
doações feitas aos paulistas, é interessante lembrar a disputa entre o Cel.
Aragão e o paulista João Amaro que causou intervenção régia, conforme se
vê da correspondência régia citada pelo Autor, pg. 133, nota 38.
. — Op.
cit.,
vol. II, pgs. 29 e 30.
. — Capistrano refere-se ao fato nos
Capítulos de História Colonial, à
pg. 186.
Revista de História N.o 30

— 322 —
ses "cabos de guerra" treinados no trilhar do sertão e adextrados na
combate ao índio. Vê-se também que variava a forma pela qual
os cabos de São Paulo e sua gente chegava à Bahia. Por mar, vez
:
por outra, ou por terra, palmilhando 500 léguas de sertão bruto,
lá iam os famosos "cabos" para quem a guerra parece haver cons-
tituído desde cêdo um estado bastante familiar, possuindo mesmo
técnica especial para a guerra no sertão. Outro não foi o motivo
do auxílio paulista à debelação dos Palmares.
A
vocação bélica
dos paulistas era de tal forma apreciada e famosa naqueles tempos,
que a propósito das qualidades dos mesmos, se faz minunciosa de-
monstração no documento que não traz assin4
-
ura, escrito em
.
1695 por pessoa, ao que parece, perfeitamente inteirada do feitio
de combate paulista (31):
Senhor — Para se conseguir a empreza dos Palma-
res que o Senhor Caetano de Mello Castro me encarregou
trazendo a ella hum terço de gente de Armas de S. Paulo
pello
,
sertão,
proponho a V. Sa. com toda submissão as.
condiçõens que possam mover aos moradores daquella.
Capitanya a me acompanharem com o numero de que se
ha de faíer o terço. Primeiramente hdde constar o terço
400 homens de armas no qual hade haver... dez... com-•
panhias com nove capitaens e trinta ahé trinta e quatro.
soldados e hum Alferes de Mestre de Campo. Estas dez
.
Companhia e trinta e dois homens fazem trezentos e•
vinte... que hé estylo na guerra que fazem... dos.
Barbaros trazerem Cabos Mayores para as ocasiõens que
se oferecem e forma de pellejar com elles. Os quaés se-
jam de valor e Cabedal para o Capitão mor trazer qua-
renta e cinco homens de armas, Sargento mor, ao menos
trinta e cinco com que se faz o numero de 400. Para es-
tes homens se aballarem hão de ver as patentes com que
V. S. os honra e animão a virem fazer aquelle serviço a
.
S. Majestade as quaes hão de ir feitas com os nomes em
branco e na ordem que V. S. se servir a passar-me se ha,
declara que entregue... patente ao Capm. mor depois de
ter alistados na Camara da Villa de S. Paulo quarenta e
cinco homens de armas e do mesmo modo o sargento
mayor trinta e cinco e aos capitaes trinta e dois. E estas,
patentes levarão todos os nomes em branco e constando
na dita Camara que a tal gente tem o tal numero efectivo.
ajustado lhe porey eu o nome em cada hua delias, e todos.
hão de fazer esta leva marchar commigo athé os Palma-
res a sua custa. E depois de chegado o ditto terço com
os ditos cabos e officiais mayores capitaens e os mais in-
feriores, darei conta a V. S. para me fazer mercê da pa--
tente... na qual se declare que hey de ser independente
naquella guerra do mestre de Campo Domingos Jorge Ve--
(31). — Livro de Portarias e Patentes (1694 a 1696) — Arq. Publico in
Anais do,
Arquivo Histórico e Museu da Bahia, vol.
V, pg. 135.

— 323 —
lho por se evitar a `duvida que pode por ser o mais an-
tigo. Que toda a presa dos negros será livremente dos
taes •conquistadores dos Palmares com declaração que os,
que lá se acharem cativos dos moradores da Capitanya
de Pernambuco os restituirão a seus donos pagando de
cada huma os dez mil reis que há de estillo nesta Capita-
nya pagarem dos negros que se acham nos mocambos e
do mesmo modo serão obrigados os donos de todos 'aquel-
les escravos pagarem os mesmos dez mil reis...
Todas quantas crias se acharem nos Palmares se en-
tregarão ao Governador de Pernambuco, os quaes perten-
cem a V. Majestade e estas se entendem que... e não maio-
res como se usa nesta Capitanya.
Tambem se hade conceder aos conquistadores dos
Palmares o que se concedeu aos conquistadores dos Bar-
baros (...estragado) .
De todas estas cláusulas hade constar a ordem que
V. S. me hade fazer... que se os moradores de S. Paulo
não tiverem a honra das patentes de nenhuma maneyra
poderão empenhar-se nem quererão vir cansar-se pelo
sertam, passando fomes, sedes e desamparos que se tem
experimentado em 500 leguas de caminho para tal con-
quista sendo ella de tanta importancia, a conservação de
Pernambuco, na sendo a custa da Fazenda Real nem com
mais despesa que as folhas de papel em que se passa-
rem as patentes. E porque não hey de ter posto de Mes-
tre de Campo senão depois de chegar ao Palmares, e ne-
cessariamente hão de me obedecer o capm. mor, sargen-
to mayor e os capitaens e forçosamente hey de ir occupar
algum posto e poder prender na jornada os que faltarem
a obrigação e não parecer que vou a este negocio e fazer
esta leva com o posto de Sargento-mor parece posso ter
o nome de superintendente dessa empreza com os pode-
res convenientes athé chegar aos Palmares, donde em co-
meçando a guerra uzarey em me chegando a patente de
V. S. o titulo de Mestre de Campo.
Bahia 5, Outubro 1695.
(Não traz assinatura).
No documento, há evidente preocupação ' do missivista em ob-
ter situação de destaque e privilégios baseados nos moldes dos.
concedidos para a "guerra dos bárbaros". Mostra ainda que a con-
quista estava profundamente vinculada à ação dos paulistas e de
seus índios de guerra, tal como sucedera nas guerras contra o
gerlic,
bárbaro. O que essas guerras representariam no plano geral da
política portuguêsa em relação ao Brasil coisa sàmente compre-
ensível se pensarmos nas condições especiais do momento históri-
co vivido por Portugal naquele final do século XVII.
Cinqüenta e poucos anos havia que se fizera a Restauração
Portuguêsa . Em todos os atos dos primeiros monarcas braganti-
nos nota-se influência da necessidade absoluta de procederem êles

— 324 —
a restauração também financeira do Reino na impossibilidade to-
tal de atingirem a econômica . Nesse plano é bem destacado o pa-
pei representado pelo Brasil, fulcro das esperanças da Metrópole.
A experiência recente da presença dos holandeses no Nordeste
mostrara bem claro o perigo representado pela enormidade terri-
torial do Brasil como Colônia . Outra experiência muito mais re-
mota ensinara à Metrópole portuguêsa a dura lição do fracasso
da aventura indiana, baseada quase totalmente na ocupação de
litorais e no despendioso e absurdo "policiamento" do tnclko.
Via-se no fracasso daquela emprêsa o melancólico fim de um vasto
empreendimento capitalista ao qual prematuramente faltaram ca-
pitais.
A atitude dos monarcas da casa de Bragança representa urna
retomada da tendência política interrompida pela dominação es-
panhola. Essa retomada de posição atenta para problemas que fo-
ram postergados pelos Habsburgos de Espanha . Assim, Portugal
voltado para o Brasil no século
XVII,
é Portugal que vê nesta rica
colônia a sua última esperança se não a única. Em relação ao
Brasil essa diretriz se ressentiu, no entanto, dos efeitos de uma
política administrativa de inspiração espanhola que se traduziu na
tendência para o dirigismo governamental. Passados os anos, e
passada a dominação estrangeira, o monarca tomará posição mais
marcada nos negócios coloniais, sem dúvida influenciado pelos mé-
todos espanhóis. Nesse plano é sugestivo o govêrno de
D.
João
V (32) . Entretanto, Pedro
II
de Portugal, que reina durante o
período referido pela maioria dos documentos aqui apresentados,
dá, de certa forma exemplos de estímulo à iniciativa individual.
Pede a colaboração dos súditos e confia-lhes, por vêzes, como foi
o caso dos paulistas, o destino das mais fundamentais aspirações
do Reino. Obedecem ao mesmo princípio as medidas tomadas pe-
lo rei, a fim de convocar e interessar os Cabos da Capitania Vi-
centina para as guerras de combate aos chamados "bárbaros". Es-
tavam êles no Rio Grande do Norte, sertão da Bahia, Pernambu-
co, Maranhão, Ceará, Piauí e Sergipe e por vêzes formavam con-
federações. Essas lutas são realizadas em diferentes circunstâncias,
mas dentro do mesmo ímpeto de dar impulso à penetração pelo
interior a dentro. Lá, segundo tudo indicava, estariam novas ri-
quezas capazes de aliviar do estado de extrema penúria a Real
Fazenda, como já ocorrera com as Minas; Tudo isso pode ser ob-
servado no zêlo que o Rei deixa transparecer nos documentos já
apresentados. Há uma preocupação essencial em forçar a ocupa-
(32). — J. Lúcio de Azevedo,
Épocas de Portugal Econômico.
Lisboa, 1947.

325
ção do "sertão interior", e isso não foi tanto devido ao cuidado
régio pelos interêsses dos criadores de gado, cujo destino e atua-
ção não interessavam diretamente à Corôa . O gado era produto
aqui mesmo consumido e que independia da intervenção metropo-
litana (33), não lhe dava grandes lucros e nem lhe possibilitava
medidas de contrôle mais eficientes. Entretanto, a penetração por
êle possibilitada, esta sim poderia ter interêsse ponderável. Que
os colonos estabelecessem imensos currais em terras para cuja aqui-
sição não gastava o dono mais que tinta e papel. Que antes, po-
rém, êsses proprietários desbravassem, ajudassem a vencer o des-
conhecido dos sertões fechados e infestados de índios. Interessa-
vam os novos caminhos, as novas trilhas. O rei estava interessado
nisso. E' o que prova o documento abaixo, onde destacamos o
extremo cuidado com que o Rei cuida do problema das ligações
terrestres com o "Estado do Maranhão" (34) .
Pelo documento anterior vemos mais um aspecto da ação dos
"Cabos Paulistas" no Norte. Ação desbravadora na qual é essen-
cial um típico aparato militar . Isso porém não ocorreu apenas no
Maranhão. ,Encontraremos paulistas, nesse momento, agindo da
mesma forma nos mais diversos pontos da Colônia. Individual-
mente, em alguns casos. Por determinações régias na maioria das
Dom Joam de Lescastro. Am.o El Rey vos envia mui-
to saudar. Viosse a sua carta de 9 de Julho deste anno
sobre a chegada a este Estado do Sargento mor por quem
o governador do Maranhão mandou descobrir estrada pa-
ra esse Estado e de como mandastes voltar com um
ca-
pitão
paulista, seis soldados, e indios que vos parecerem
bastantes para se dar principio a se frequentar este no-
vo caminho e para nos trazer um roteiro delle, repetin-
do esta diligencia poucos dias depois de partidos estes
com outros que tinham ido com o mesmo Sargento mor
por ser intelligente no tomar do sol; acompanhado de
soldados baqueanos, para se ter entendido o rumo que
se segue, e os extremos em que ambos os Estados confi-
não. E pareceu-me dizer-vos que obrastes bem, em tor-
nhão para explorar a passagem de hum Estado para o
nar a mandar este Sargento mor para o Estado
do Mara-
outro, e se facilitar as communicações por terra dessas
partes, e espero que das noticias que trouxerem, e infor-
maçoens que acharem do que descobrirem nessas jor-
nadas me deis de tudo conta para se obrar neste parti-
cular o que parecer mais
conveniente a meu real serviço
e em beneficio dos meus vassallos. — Rey Escripta em
Lxo. a 16 de nov. de 1695.
(Lo. 4 de Ordens Regias, pgs. 102) .
. — Caio Prado
Jr., Evolução Política do Brasil,
pg. 28.
. — Lo. 4 de Ordem Régias. Arquivo Público da Bahia, os. 102. Apud
Anais
do Arquivo Histórico é Museu da Bahia, vol.
V, pg.
132.,

— 326 —
vêzes.
O
que mais chama a atenção é o cunho ineqüivocamente
militar assumido pela ação da gente de São Vicente nessas ativi-
dades do Nordeste e Norte. Na realidade êstes soldados da for-
tuna, valorosos e destemidos eram cruéis por vêzes e conhecedores
das tramas indígenas na guerra, empregavam os mesmos métodos
desleais de que acusavam os "bárbaros". Tal sucedeu com Moraes
Navarro (35) que teve depois, de prestar contas ao rei, acusado
-de "barbaridades" inauditas contra o inimigo vencido.
As patentes mandadas dar a alguns paulistas incluindo-os as-
sim às tropas regulares, falam repetidamente com as cartas régias
atrás transcritas, na sua experiência "na guerra do Gentio" (36) ,
Contam, nas fôlhas de serviços, as missões bem cumpridas nesta
luta desumana. Curiosas recomendações para impressionar um rei
-que criava, ao mesmo tempo, cargos de justiça e insistia em co-
piosa legislação baseada na necessidade de proteção ao índio. Estra-
nha política que em despachos régios transparecia a deliberação de
incrementar os aldeamentos indígenas e de estimular o povoamento
da Colônia. Aceitava êsse mesmo rei como relevante na fôlha de
serviços de um homem a sua maior eficiência no extermínio ao
gentio! Não é de admirar o tremendo desgaste do natural da ter-
ra, operado nos últimos 50 anos do século
XVII.
O
paulista em marcha pelo sertão do Nordeste, a chamado do
rei, perseguindo os seus inimigos até o Maranhão, Ceará e indo
ao São Francisco combater, realiza importante tarefa para os in-
teresses da Corôa. Não podemos destacar a ação desta gente pau-
lista do fenômeno geral do bandeirismo. Será um aspecto, um mo-
mento à parte do bandeirismo. Êste, que é múltiplo, apresenta po-
rém variantes, no tempo e no espaço. As divisões, por vários his-
toriadores emprestadas ao bandeirismo, seriam, nesse caso, mais
o fruto da observação minuciosa das suas tendências e de seus re-
sultados, em determinado momento em dada região.
O
fenômeno,
na realidade, é um só. As condições em que se realiza, estas sim,
variam. Portanto, desde que se admita um bandeirismo "apresa-
dor", outro "minerador" e ainda outro "colonizador" como quer o
Prof. Alfredo Ellis Júnior (37) e que segundo êste historiador
ocorreu também no Nordeste, poder-se-ia, seguindo o mesmo racio-
cínio, dizer que houve no Nordeste, nos fins do século
XVII,
um
"bandeirismo guerreiro". Pelo menos, lá existiram "bandeiras de
guerra" que foram para aquêle destino, especificamente com o en-
cargo de guerrear.
— A.
E. Taunay,
op. cit., vol.
VII pg. 224 e segs.
Documentos microfilmados expostos no fim do trabalho.
— A. Ellis, Jr.,
op. cit.,
pg. 24.
— 327 —
Viu-se, ainda, que na carta régia de 1695 fôlhas atrás ana-
lisada, o próprio soberano usara a expressão "deitar bandeiras" pa-
ra a guerra do gentio "bárbaro", referindo-se à ação que deveriam
executar os paulistas.
Não entraremos aqui em conjecturas sôbre a propriedade ou
não de uma divisão em capítulos destacados do fenômeno bandei-
rismo. Chamamos apenas a atenção para a atividade militar dos
paulistas integrados como parte essencial do bandeirismo, mas no
momento e na época por nós estudados especificamente, em que
realizam êles o papel de "cabos de guerra". Procuramos alinhar
'alguns, dentre os muitos documentos que nos pareceram mais su-
gestivos no sentido de esclarecer o problema por nós tratado. E'
clara a ação do paulista que deixa de ser apresador de índios con-
tra as ordens régias, torna-se pesquisador de minerais por delega-
ção real ou soldado do rei na guerra contra os "bárbaros" do Nor-
deste.
Agora uma observação a propósito da importância do fato.
Paulistas deixando a Capitania vicentina por vários motivos, prin-
cipalmente para tentar a sorte nas descobertas auríferas ou nas
guerras. Espalhados pelas •mais diversas regiões da Colônia.
Pesquisando embora o que lhes sucedeu após ou durante as
guerras do Nordeste, na luta contra os Palmares ou contra os "bár-
baros", pudemos sentir sentir a grande significação dêsse exôdo
formidável para a época e para a Captiania vicentina.
Paulistas nas Minas. Em Goiás. Na Amazônia fazendo mais
tarde comércio de drogas do sertão a trôco de sal; paulistas no Pa-
raná, em Santa Catarina, fundando cidades; no Maranhão guer-
reando e abrindo rotas; no Nordeste lutando primeiro e mais tar-
de disputando terras para criação de gado! Quanta importância nos
resultados dêste abandôno da Capitania de origem, tanto mais se
pensarmos que entre as causas determinantes desta atitude estava
o desêjo de tentar uma sorte melhor. Quantos partiram ao todo
nessa epopéia de coragem, ainda que motivada pelo imediatismo
econômico? Quantos regressaram e permaneceram em São Paulo?
Não podemos dizer precisamente. Mas no caso das guerras do
Nordeste podemos afirmar que a grande maioria dos paulistas lá
empenhados, trataram, no mais breve espaço de tempo possível,
de cobrar as promessas régias, de reinvidicar seu quinhão nas ter-
ras conquistadas e trocaram, em grande número a vida incerta de
"soldado da fortuna", pela cômoda posição de estancieiros. Para
chegar a tanto, o paulista viveu da guerra, dependeu do número
de "índios mansos de guerra" que possuia antes ou adquiriu de-
pois. Media-se seu poderio pelo seu número de "arcos de guerra".
• -- 328 —
Empregou o índio na luta contra o índio. Viveu do índio apresado,
usando-o como combatente, principalmente aquêle anteriormente
adextrado no uso de armas antes voltadas contra o próprio paulis-
ta. Para tanto encontrou no índio o colaborador ideal, porque não
era na agricultura, tarefa relegada às mulheres entre o gentio, que
o mesmo encontrava a sua verdadeira vocação. Muito menos difí-
cil seria transformá-lo em guerreiro ou em desbravador de sertões
e derrubador de matas nas regiões a serem povoadas e nos cami-
nhos por abrir (38). No "sertão interior" (39), o índio de guerra
conduzido pelos paulistas prestou inestimáveis serviços. Tudo, até
na composição das bandeiras em que o paulista ocupava os postos-
chave, deixando ao índio as tarefas subalternas, demonstra com
clareza esta afirmação. A maior adaptação do paulista aos costu-
mes indígenas, como a sua preferência pelo milho na alimentação
durante as jornadas sertão a dentro, é sintomática. Tudo vem em
abôno da idéia do índio ligado ao paulista, decidindo o destino de
suas armas e portanto o seu próprio futuro. A palavra guerra está,
então, quase sempre ligada a paulista e índio. E os paulistas em
marcha para o nordeste ou os que chegam lá; os que partem de
São Paulo e não regressam, carregam sempre, segundo os documen-
tos, grande número de índios. Não queremos demonstrar, porém,
que só o paulista usa o índio para tal fim. Muito ao contrário, en-
contramos a mesma prática no Nordeste, na zona da expansão do
gado principalmente. Que outro soldado usaria o colono nordesti-
no na defesa de sua propriedade naqueles tempos de incerteza e
perigo? Cada fazenda de gado ou plantação de fumo tinha de ser,
forçosamente, uma pequena praça armada capaz de resistir ao ata-
que do gentio "bárbaro" a qualquer momento. Mesmo os engenhos
do recôncavo corriam êste risco. Grande era o número de "índios
mansos de guerra" empregados na defésa da famosa "Casa da -Tór-
re" visando exatamente o mesmo perigo. Não temos portanto, dú-
vida em afirmar que no Nordeste, um dos principais destinos dado
ao índio apresado ou domesticado era exatamente o de transformá-
lo naquilo para que êle mais se prestava: guerreiro. A êste fato
e ao motivo de o negro contribuir em escala muito mais diminuta
para fins de defesa, deve-se, ao lado de outros motivos, a maior
preservação do negro em face do quase total extermínio do índio.
Isso é importante acentuar porquanto a escravidão vermelha foi
. — C. R. Boxer
em The Dutch in Brazil à
pg. 107 afirmla que os "Tapuyas" do
Noideste foram usados pelos holandeses no ataque a Angola. Diz êle: "A
sfrung expedition for the conquest of Angola". . . "It was Commanded by
admira, Jol and Colonel Hendenson who had under their orders a force of
twenty-one ships carrying
some 3,000
men including
240
Brazilian Indiana". . .
. — Expressão usada por Capistrano, in
Capítulos de História Geral para dife-
renciar
êste, da parte mais próxima do litoral.

• -- 329
-
----
ponderável também no Nordeste. O destino do escravo negro da-
das as suas aptidões, foi mais favorável, e pela sua maior resistên-
cia física às doenças, sofreu desgaste quase nulo; através dessas
guerras êle sobreviveu em proporção assustadora em relação ao ín-
dio. Com
o paulista, em relação ao homem das Capitanias nordes-
tinas irá suceder fato semelhante. Os homens válidos foram na
sua maioria empenhados em longas lutas ou em
,
jornadas perigo-
sas durante período considerável. Não é de estranhar-se a cifra
reduzida da população da Capitania no século XVII.
A cidade de São Paulo e arredores contava, então, com cêrca
de 5 mil habitantes (40). Será fácil fazer uma idéia, partindo dês-
te número do total de habitantes da Capitania tôda. Não deveria
ser número elevado mesmo para a época. Vemos, pela desproporção
entre o pequeno número de habitantes e ação continuada de paulistas
rias lides guerreiras, a confirmação absoluta do gigantesco exôdo
de homens válidos de São Paulo, baseando• para isso os nossos
cálculos na população da vila de São Paulo, forçosamente o centro
mais populoso da Capitania de São Vicente.
.
Pelos dados apresentados podemos então avaliar a import-
tância e a repercussão das guerras do Nordeste e da ação nelas de-
sempenhada pelos paulistas no final do século XVII. O grande
número de "cabos de guerra" em ação, cresce em significação se
pensarmos naquilo que representou o fato para a época, dentro
dos moldes da vida da capitania. Essa busca do Norte que signifi-
ca riqueza, e da riqueza em si em outras regiões, êsse contingente
ponderável de paulistas que deixa sua terra, retrata exatamente
o inverso do que acontece na atualidade com a gente nordestina,
naturalmente por outros motivos e em outras condições. E' inte-
ressante a observação daquele movimento de homens do Sul em
direção ao Norte do país. Tanto mais se lembrarmos que o fim
do século XVII, representa o início da éra aurífera, cujo cenário,
como é sabido, foi o sul da Colônia. Iniciava-se, precisamente• na-
quele momento, a era em que as atenções da metrópole se iriam
concentrar no Sul, exatamente nas chamadas "minas de São Pau-
lo". O justo e lógico seria que o mesmo ocorresse no Brasil in-
teiro. Mas na mesma ocasião em que chega a têrmos de coisa con-
creta a pesquisa aurífera, toma extraordinário impulso a saída de
paulistas engajados em guerras do Nordeste e Norte e em outras
(40). —
Metrópole, vol.
III. Publicação do Aquivo Municipal dirigida por Nuto San-
tana (Cálculo baseado nos dados fornecidos por essa publicação). Idéia con-
firmada por uma passagem mencionada nas
Efemérides em
volume que pre-
para para publicação próxima o Sr. Nuto Santana. Certo documento por êle
compulsado, fala na saída de 400 homens para acompanhar o tenente-general
Jorge de Macedo, dizendo possuir a cidade de São Paulo e arredores, na ocasião,
cêrca de 3.000 homens, fora índios e escravos.

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4
330, --
atividades diversas da pesquisa aurífera. O fato de servirem os
paulistas naquele momento, ou daquele momento até os primeiros
anos do século XVIII, como homens de armas por vocação, como
guerreiros profissionais, é muito sugestivo.
O que causa certa estranheza é que tomando como base esta
profunda vocação guerreira do passado, tão pouco haja restado de-
la no paulista, não apenas na atualidade, como ainda nos próprios
séculos XVIII e XIX. Paradoxalmente, será aquêle mesmo Nordes-
te outrora tão ávido do auxílio dos afamados guerreiros paulistas,
o futuro foco de agitações sempre disposto a explodir em numero-
sas lutas e revoluções. Antes, até nas guerras flamengas não ha-
viam prescindido os homens do Norte do apôio dos paulistas. Bem
que o solicitaram e insistentemente.
Essa tradição guerreira dos paulistas, que os levou também
aos Palmares que induziu o rei a pagar-lhe soldos e dar-lhes mer-
cês, dir-se-ia que foi esquecida ou diluiu-se em muito pouco tempo!
Perdeu-se em São Paulo, ao que podemos aquilatar pela lem-
brança dos fatos históricos, muito ràpidamente, essa marcada e
marcante vocação guerreira que tanta fama dera aos paulistas nos
600.
Estaria, então, muito intimamente ligada ao apôio ou à guerra
ao índio, esta atividade bélica dos paulistas. Seriam êles, paulis-
tas, por vocação, mais "chefes de guerra" que própriamente guer-
reiros. Com
o extermínio ponderável dos aborígenes, cujo combate
seria o "clima" do paulista, declinaria, sensivelmente, entre os ho-
mens de São Paulo, o gôsto ou a oportunidade da guerra. Muito
brevemente êles estariam transformados em grandes proprietários
de terras, muitos dêles fora de São Paulo, em colonizadores, em
comerciantes na sua terra, para abastecer de gêneros alimentícios
as populações das Minas ou em proprietários de terras de pouca
valia em São Paulo. Plantando cereais, ou conduzindo tropas do
sul para as Minas; comerciando com o extremo Sul e até com o
Prata. Enfim, mudando por completo o gênero de vida, em muito
pouco tempo, e conseqüentemente a própria mentalidade. As cir-
cunstâncias que deslocaram para o Sul o fiel da balança da econo-
mia brasileira, o café, e mais tarde a emigração, completaram de
maneira definitiva esta transformação.
ANTONIA FERNANDA DE ALMEIDA COULTER •
Assistente Extranumerária da Cadeira de História da Civilização Americana
da Faculdade de Filosofia, Ciências é Letras da Universidade de São Paulo.

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