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Resumo
Esse trabalho tem como objetivo analisar as narrativas da vida social através das
interações sensíveis na festa Baile Charme do Rio Antigo. Tendo como referência os
pressupostos teóricos de Maffesoli, Simmel e Santos acerca da construção de
referenciais de espaço e de tempo, interações estéticas e sensíveis na perspectiva da
cultura contemporânea, serão analisadas as possibilidades de reconfiguração de
territórios sociais, a apropriação do espaço e a ressiginificação da representação da rua a
partir da festa Charme Rio Antigo. Como estratégia metodológica utiliza-se um enfoque
múltiplo, articulando-se a investigação teórica e observação participante realizada entre
março de 2012 e novembro de 2013.
Introdução
Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias
como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito
vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um
perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos
flâneur e praticar o mais interessante dos esportes — a arte de flanar
(RIO,1908, p.2)
1
Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade de Estado do Rio de
Janeiro. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Comunicação, Arte e Cidade (CAC)
2
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense.
Membro do Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social
3
Fonte: http://www.multirio.rj.gov.br/
4
Conforme Alípio de Souza Filho (MAFFESOLI, 1995) o termo socialité (socialidade) é mais um
exemplo e, como explica o próprio autor em livros posterior, tratando-se mais de uma comodidade de
linguagem, procura exprimir a "solidariedade de base" em que se assenta o "estar-junto" humano e que
festa Baile Charme5 Rio Antigo. Em termos metodológicos, utiliza-se um enfoque
múltiplo, articulando-se a investigação teórica e observação participante realizada entre
março de 2012 e novembro de 2013. A hipótese central deste artigo é de que a festa, ao
invadir e ressignificar o território da rua pode romper muros culturais, promover a
interação e modificar a representação do sujeito em relação ao outro e à cidade a partir
da experiência sensível.
Local de efervescência e de infinitas expressões culturais, o bairro, antigo reduto
da boemia carioca, só não tem praia. Mas já teve. Em idos do sec. XVII o local era
denominado “Areias de Espanha” e englobava a região em torno da igreja de Nossa
Senhora da Lapa do Desterro, fundada em 1751. Alguns anos depois, a criação da Rua
do Riachuelo, antiga “Mata-Cavalos” e a do Lavradio acabaram de configurar a
geografia do bairro, cortado pelo antigo aqueduto carioca, que levava água do Morro do
Desterro (atual santa Teresa) ao de Santo Antônio, desaguando no chafariz da Rua da
Carioca (LUSTOSA, 2001). Nos anos 1930 viveu seu auge cultural e econômico,
abrigando personalidades como o pintor Cândido Portinari, Carmem Miranda e o poeta
Manuel Bandeira, morador por décadas, para quem o bairro era musa inspiradora.
Sofreu abandono por anos até que em 1984 projetos como o Corredor Cultural e a
Quadra da Cultura, iniciaram o processo de revitalização, culminando em 2005 com o
“Sou da Lapa”, que buscava resgatar o valor residencial da região. Um ano depois, um
lançamento imobiliário6 teve suas 688 unidades vendidas em algumas horas,
possibilitando uma transformação no bairro. De acordo com Herschmann, há dados da
década passada que contabilizam “mais de 120 estabelecimentos do setor do
entretenimento, que vêm atraindo em média 500 mil pessoas, gerando uma economia de
aproximadamente 17 milhões de reais, por mês" (HERSCHMANN ; FERNANDES,
2011, p.7).
convém distinguir de sociabilité (sociabilidade). Conforme ainda o autor, a própria experiência do "estar-
junto" está pouco representada no termo "social", de uso comum, porém mais apropriado a designar a
relação racional mecânica entre o indivíduo do que a "solidariedade" sobre a qual se apoia esse "estar-
junto"; razão pela qual, também nesse caso, o autor, voltando aos termos de Durkheim, prefere o uso do
termo sociétal (societal) que, ultrapassando o sentido da "solidariedade mecânica", "reenvia à
solidariedade orgânica". A socialidade seria a expressão cotidiana dessa solidariedade em ato, seria "o
societal em ato".
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O Charme é uma construção feita a partir da música negra estadunidense. Sua origem [...] tem como
ponto de referência o Rythm&blues - R&B - cuja dinâmica global foi possível graças à mundialização da
cultura estadunidense promovida pelo domínio e expansão dos seus meios de comunicação. Assim, a
dimensão global da Black music como produto expressa-se, no caso do Brasil e mais especificamente, do
Rio de Janeiro, através do caráter local que o Charme traduz, resultado que é de contaminadas
ressignificações próprias da cultura urbana carioca. (MARTINS, 2006 , p.1)
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Cf. http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u102295.shtml(acesso em 05/01/2014)
De fato, foi somente a partir da iniciativa de comerciantes locais, a chamada
sociedade civil, que teve início o processo de revitalização do bairro, atuando junto ao
poder público e promovendo iniciativas culturais que visavam à melhoria da imagem do
bairro, de modo a conseguir trazer de volta os investimentos de empresários e do
próprio Estado. Uma breve caminhada pelas ruas do bairro atualmente revela indícios
de investimentos os mais variados, que vão de centros culturais a lojas, passando por
bares e restaurantes cada vez mais sofisticados, que dialogam com estabelecimentos e
moradias centenários e ocupações artísticas.
Por outro lado, o local tem sido alvo constante de intervenções estatais. Seja pelo
bloqueio das ruas no entorno dos arcos da Lapa nos fins de semana, com o objetivo de
facilitar o controle dos agentes de trânsito e segurança, seja na instalação da operação
Lapa Presente7, do Governo do Estado do Rio de Janeiro, visando à segurança dos
empresários locais, o fato é que o bairro concatena a presença de forças de Estado e
mobilizações sociais, seja de integração ou de conflito, o que só acentua a mistura
cultural que toma as ruas do lugar.
Pela ruas e vielas ou nas escadarias do escultor chileno Selaron, (encontrado
morto no bairro em janeiro de 2013) obra prima de azulejos nas cores brasileiras e um
dos símbolos do lugar, é possível encontrar gente de todas as tribos, trabalhadores,
turistas, estudantes, artistas, moradores de rua e comerciantes que convivem
pacificamente e se juntam a quem vem da praia, no mesmo bar onde confraternizam
executivos.
É neste cenário onde se encontra a festa Baile Charme Rio Antigo, objeto da
presente análise. Iniciada a partir de uma comemoração de aniversário em outubro de
2011, hoje conta com um público aproximado de 600 pessoas a cada edição8 e é
consecutiva à Feira Rio9 Antigo, evento de moda, gastronomia e música que ocorre no
primeiro sábado de cada mês lotando a Rua do Lavradio e adjacências.
É importante ressaltar que o presente artigo não abordará as características
específicas do movimento charme, mas a festa como fenômeno social de possibilidades
desterritorializantes (DELEUZE, GUATTARI, 1995) em sua relação com a cidade, por
7
Fonte: www.rio.rj.gov.br
8
Fonte: www.facebook.com/pages/Charme-Rio-Antigo
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Na década de 90 um grupo de comerciantes locais,insatisfeitos com o abandono da região começaram a
debater possibilidades de solução para atrair mais visitantes para a rua e lucro para seus negócios. Desses
encontros, surgiu em outubro de 1996, a ideia de promover a Feira Rio Antigo de móveis, antiguidades
arte e cultura – hoje conhecida como Feira do Lavradio.(PINHEIRO, 2007, p.144)
entender as potencialidades da festa, num primeiro olhar, não sendo provenientes da
especificidade do movimento, mas das interações entre lugar e sujeitos.
Assim, na premissa do espaço da cidade como “representação de complexas
dimensões onde se misturam imagens e sensações” e mídia (FERRARA, 2008, p.3),
objeto estético (SIMMEL, 2011), fenômeno cultural (PESAVENTO, 2007) e reflexo de
“comunicabilidades em que os corpos em interação com os espaços [...] reinventam as
relações cotidianas” (FERNANDES, 2008, p.4), foi preciso percorrer as ruas próximas
ao baile em várias visitas, para tentar compreender os fluxos de sentidos e as
possibilidades de ressignificação do lugar nas interações sensíveis a partir da
experiência estética.
Sugere-se que há diálogos que se constituem entre a cidade e a rua, entre os
corpos e a música e entre as sensibilidades que emanam, apontando para vivências que
serão analisadas a partir da perspectiva da razão sensível, a qual reconhece que "assim
como a paixão está em ação na vida social, também tem seu lugar na análise que
pretende compreender esta última" (MAFFESOLI, 1998, p.277).
Considera-se portanto, que a rua segue sendo o espaço em que se pode
compreender a “alma” da cidade (Rio, 1908) a cidade imaginária, sentida e
compartilhada em que realizamos nossas experiências cotidianas, das mais banais às
mais complexas e que constroem os sentidos dos diferentes lugares. Estes
compreendidos em virtude de todos os seus possíveis movimentos contrastantes entre
distâncias e proximidades que “faz também redescobrir a corporeidade” aonde o corpo
transforma-se numa “certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de
apreender” e assim, os lugares “podem ser vistos como um intermédio entre o Mundo e
o Indivíduo” onde “cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo,
torna-se exponencialmente diferente dos demais (SANTOS, 2008, p. 313-314). Desse
modo, em acordo com Santos (2008), se faz necessário regressar aos lugares cotidianos
considerando todas as relações e práticas sensíveis e inteligíveis que o fazem ser, ou
seja: os objetos, as ações, a técnica e o tempo.
Desse modo entende-se que o espaço e o corpo comunicantes em interação
demandam a experimentação mútua para que o corpo apreenda o espaço pela ação in
loco.
Imaginário e experiência sensível no baile Charme Rio Antigo
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[...] "Tem a ver com uma intenção de intercambiar, de relacionar e acionar o outro, despertando ou
provocando [...] para a possibilidade de se reconhecer". (FERNANDES, 2009, p252)
ocupação pelos diferentes grupos"(MAIA, 2012, p.135), ignorando escrúpulos racionais
e preconceitos, rompendo a cotidianidade do espaço urbano.
Da mesma maneira, na ocupação da rua há uma extensão do uso do espaço pelas
pessoas que passam, além de um provável aumento no consumo do local, uma vez que a
Feira do Rio Antigo acaba às 19h e até o fim da festa Charme muitos vendedores e até
alguns bares permanecem abertos, atendendo ao público do evento e mantendo a
circulação nas ruas do bairro o que, em outros dias, diminui sensivelmente com o fim da
feira.
Retomando o conceito de Simmel (2011), as grades, impostas pelo poder
público, são como portas, delimitando o espaço das relações e interações sociais.
Entretanto, em todas as visitas feitas, as grades são muitas vezes retiradas, rompendo o
território delimitado pelo Estado e convidando à diluição dos limites entre a rua e o
baile. Ao apropriarem-se da rua, parece haver uma "transformação do espaço urbano em
lugar, a partir da percepção dos sujeitos" (FERRARA, 1993, p.38) e da interação com a
cidade com a arquitetura das casas, na ocupação de marquises e fachadas, nas portas e
janelas que se abrem para a festa, na continuidade do fluxo de carros que penetra o
centro da dança, dividindo os grupos, para reunir-se novamente após a passagem dos
veículos, sem que o movimento cesse jamais.
Tecendo uma teia entre corpos e sensibilidades, há afinal a música,
proporcionando a experiência da sintonia com outro, construindo o que Fernandes
define como musicabilidade: "é a partir, portanto da experiência sensível na cidade que
se pode compreender as musicabilidades, ou seja, as práticas socioculturais que tem
como élan a música" (FERNANDES, 2013, p.3) sendo território da comunicação não
verbal. Onde as palavras não são suficientes, a vivência sensível, dionisíaca
(MAFFESOLI, 2009) constroi os sentidos, define as imagens onde corpos e espaço
urbano se imbricam organicamente, convidando à experimentação e a criação de nexos
atrativos entre o sujeito e o outro. Estes, poderiam ser vinculativos na medida em que
proporiam um novo ethos, não na reconstrução do espaço arquitetônico da cidade, que
após a festa retorna seu fluxo circulatório urbano habitual, mas na construção do olhar
sensível em relação à cidade, que se constitui não só de materialidades objetivas, mas é
delineada pela emoção, como define Maffesoli :"e eu via o novo vínculo social (ethos)
surgindo a partir da emoção compartilhada ou do sentimento coletivo"(MAFFESOLI,
1987, p.1).
Da ressignificação das ruas: territórios sociais e culturais que se mesclam
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Sugere-se aqui uma aproximação com o conceito de Pierre Bourdieu acerca das estruturas culturais que
formam a sociedade (BOURDIEU, 2011)
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Astucia e esperteza no modo de utilizar ou de driblar os termos dos contratos sociais (CERTEAU,
2008, p.79)
delimitação do território da festa e a definição de quem está fora ou está dentro é feita
pelos próprios frequentadores, sem que se tenha observado em todas as visitas nenhuma
intervenção do poder público. Na aproximação com o conceito maffesoliano de
circulação, entende-se que "a circulação (...) não deixa nada nem ninguém
indene.Quebra os grilhões e os limites estabelecidos e quaisquer que sejam seus
domínios, político, ideológico, cultural ou cultural, as barreiras desmoronam."
(MAFFESOLI, 2001, p.27)
Cabe ressaltar que os moradores, de modo geral, parecem apreciar o evento, uma
vez que nos dias de observação não foram registradas reclamações, mesmo ficando os
apartamentos muito próximos ao equipamento de som. Ao contrário, reforça-se que os
moradores postam-se quase todos à janela, quando não descem até a rua para tomar
parte no evento, cujo fluxo de entrada e saída é incessante. Há indícios de que a própria
configuração do evento favorece a experiência fugidia, efêmera de alguns, que penetram
no local, constatam surpresos o que parece ser uma completa integração entre cidade e
sujeitos e , ou arriscam alguns passos, ou, o que é mais comum, postam-se por algum
tempo, observando a atmosfera do local. Alheios à lógica contratualista que fundamenta
indivíduos na sociedade, assegurando a cada um o papel distanciado do outro, sugere-se
que a festa charme reforça o caráter vinculativo e a ideia de lugar. Segundo Fernandes:
O importante é perceber que estes territórios ao mesmo tempo em que estão
demarcados por uma questão da lógica do espaço (...) interagem entre si
através de mediações que em processo contínuo rompem com o uso do
espaço demarcado pela rotina, pelo hábito (FERNANDES, 2009, p.12)
Sugere-se assim que a mediação ocorre pelo universo afetivo, sensível, que
aproxima corpos e subjetividades na urbe redescoberta coletivamente, não gerando
identidades e pertencimentos fixos, mas contribuindo para a re-territorialização do
espaço de modo dinâmico. Ao contrário do que pode ser percebido na construção
histórica do conceito de sociedade, o leviatã hobbesiano parece diminuir um pouco a
força de seu braço repressivo ante a celebração da festa, ao menos durante a duração do
evento, onde não há lugares fixos, somente sensibilidades afetadas pela experiência
estética, o que leva por vezes os próprios ambulantes a abandonarem momentaneamente
seu oficio e entregarem-se à dança.
Conclusão
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Crise da representação: momento em que um corpo social não tem mais consciência do que é , a partir
daí não tem mais confiança no que é (MAFFESOLI, 2007, p.186).
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Experiência geradora de consciência crítica (SODRE, 2009)
da sociedade, assim como Walter Benjamin (1985) já preconizara em seu texto Magia e
técnica, arte e Política, sobre os usos da arte para a política e dos exercícios do ver na
sociedade moderna.
Posicionamo-nos assim no pensamento de que as apropriações urbanas e as
ocupações culturais beneficiam os espaços onde se inserem, transformando as
perspectivas dos sujeitos em relação a si mesmos, ao outro e à cidade como construção
simbólica, sensível, dos sujeitos que nela vivem. Sendo a rua um fato da vida das
cidades (RIO, 1908), lugar ocupado constantemente em lutas políticas, apropriações do
Estado e conflitos simbólicos, cabe de fato perceber, por meio da experiência sensível, o
lugar do sujeito na percepção da cidade, tida aqui como meio onde as subjetividades se
constituem e essencial para pensar a contemporaneidade.Não se trata de traçar perfis
definitivos a priori, mas pretender o que Maffesoli (1998) já conceituara como
compreensão a posteriori, atendo-se à vivência para expor-se à dúvida, fomentando
uma percepção política do fruir estético. Através da experiência com a festa, sugere-se
uma identificação que faça emergir uma possibilidade de criar um olhar não só crítico
como compreensivo sobre si, e sobre o espaço da cidade, ou, como sugere o sociólogo
francês Edgar Morin:
Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação, o telefone à
Internet, traz por si mesmo a compreensão. A compreensão não pode ser
quantificada, (mas pode) ensinar a compreensão entre as pessoas como
condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade
(MORIN, 2000, p.93).