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6ª JORNADA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UFJF

GT Interseccionalidades entre Gênero, Sexualidade, Família e Geração

YOUTUBERS, CONTEÚDO DIGITAL E A CONSTRUÇÃO DE MASCULINIDADES


NA WEB

Diego Assis Gonçalves1


Júlia Pessôa Varges2

24 a 27 de setembro de 2019
Juiz de Fora- MG

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas da UFJF


2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF
Resumo: Youtubers, conteúdo digital e a construção de masculinidades na web

Embora nas várias esferas da vida social ainda se tenha uma noção estereotipada e binarista de
gênero e suas manifestações, o campo de pesquisa que aborda tais temáticas, hoje consolidado e
em franca expansão, compreende que estas categorias são construções sociais. O presente
trabalho busca fazer uma breve análise de como o Youtube afeta o processo de construção de
masculinidades de crianças e adolescentes. Para isso, analisamos vídeos de dois canais da rede,
produzidos por um menino e um adolescente, voltados também para o público
infantil/adolescente: “Isaac do Vine” (fundado em 2014) e “Felipe Calixto” (fundado em 2011).
Ao realizarmos tal análise, levamos em conta conceitos como o de “masculinidade hegemônica”,
“masculinidades periféricas” e “performance de gênero”. Outro enfoque importante é que
buscamos dar à pesquisa é o que tange às formas como se dá a construção de masculinidades
especificamente na infância, uma vez que é para os meninos que se ensina a ser homem. Assim,
utilizando a análise de discurso multimodal como ferramenta metodológica, acreditamos que os
vídeos protagonizados pelos youtubers analisados revelam indícios de como estes artefatos
contribuem para a construção de masculinidades na infância; como, em aspecto relacional,
ocorre a construção de feminilidades; e de que maneira estes processos se relacionam, num
sentido mais amplo, com a construção de gêneros, papéis relacionados a eles e demais esferas
ligadas à categoria.

Palavras-chave: Youtubers; masculinidades; infância; gêneros.

Abstract: Youtubers, Digital Content and Web Manhood Building

Although in the various spheres of social life there is still a stereotypical and binary notion of
gender and its manifestations, the scientific field that addresses such themes, now consolidated
and rapidly expanding, understands that these categories are social constructions. This paper
aims to make a brief analysis of how Youtube affects the process of building masculinities of
children and adolescents. To do such, we analyze videos of two channels of the video platform,
produced by a boy and a teenager, which also have children/adolescents ad target audience:
"Isaac do Vine" (founded in 2014) and "Felipe Calixto" (founded in 2011). In conducting such
analysis, we take into account concepts such as "hegemonic masculinity", "peripheral
masculinities" and "gender performance". Another important approach that we pursue in the
present research is one that concerns the ways in which masculinity is built specifically in
childhood, since it is for boys that it is taught to be a man. Thus, using multimodal discourse
analysis as a methodological tool, we believe that the videos starring the analyzed youtubers
reveal evidence of how these artifacts contribute to the construction of masculinities in
childhood; and how, in a relational aspect, the construction of femininity occurs; and how these
processes relate, in a broader sense, to the construction of genders, roles related to them and
other spheres linked to these categories.

Keywords: Youtubers; masculinities; childhood; genres.


1- Introdução

Embora nas várias esferas da vida social ainda se tenha uma noção estereotipada e
binarista de gênero e suas manifestações, o campo de pesquisa que aborda tais temáticas, hoje
consolidado e em franca expansão compreende que estas categorias são construções sociais.
Segundo Judith Butler, uma das principais referências nos estudos de gênero, o termo só pode ser
compreendido como um ato, uma performance repetida, que engloba, ao mesmo tempo, a
reencenação e a experiência de um conjunto de significados preestabelecidos socialmente, e é
também no contexto social que tal performance é legitimada. A autora propõe, ainda, que estes
atos são públicos e possuem dimensões temporais e coletivas, e justamente por seu caráter
público, eles não deixam de ter consequências para os indivíduos. “Na verdade, a performance é
realizada com o objetivo estratégico de manter o gênero em sua estrutura binária — um objetivo
que não pode ser atribuído a um sujeito, devendo, ao invés disso, ser compreendido como
fundador e consolidador do sujeito”, acrescenta a pesquisadora. (BUTLER, 2003, p. 200).
Também para Butler (2003), o próprio fato de a realidade do gênero ser criada a partir de
performances sociais contínuas implica na concepção de que as noções de masculinidade ou
feminilidade “verdadeiras” ou permanentes também são constituídas, segundo ela, “como parte
da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de
proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação
masculinista e da heterosscxualidade compulsória. (BUTLER, 2003, p.204).
Neste sentido, a noção de “ato performativo” no contexto dos gêneros e na visão de
Butler (2003), compreende que, tais atos, expressos de diversas maneiras e publicamente, não
performam signos de gênero correspondentes, necessariamente, à construção social do que
deveria ser a performance de gênero que se atribui ao corpo biológico de uma pessoa. Portanto,
as noções de “masculino” e “feminino” são essencialmente construções sociais. Neste sentido,
Butler (2003, pp. 194-195) argumenta, sobre os atos performativos, que

Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos,


no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem
expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e
outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo
performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos
que constituem sua realidade.
Destarte, é correto afirmar que, uma vez que tais atos performáticos se dão na esfera
social, eles se desenrolam em uma série de cenários, artefatos, instituições e envolvem diversos
sujeitos. Assim, tais fatores contribuem para a construção da noção social do que é ser homem e
ser mulher na vida em sociedade - ainda que muitas destas construções sejam estereótipos que
acabam aprisionando homens e mulheres em papéis sociais e em comportamentos e condutas
tidos como verdades absolutas. Um dos mecanismos desta construção é a mídia, sobretudo a
web, um dos principais meios de comunicação na contemporaneidade. Segundo a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad C), divulgada em fevereiro de 2018 pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil fechou 2016 com 116 milhões de
pessoas conectadas à internet, o equivalente a 64,7% da população com idade acima de 10 anos.
Assim, podemos afirmar que a internet tem um impacto extremamente relevante nas construções
de gênero, das masculinidades e feminilidades.
O presente trabalho busca fazer uma breve análise de como o Youtube (rede de
compartilhamento de vídeos on-line que, até o momento, possui quase dois bilhões de usuários
no mundo, segundo dados da própria empresa3) afeta o processo de construção de
masculinidades de crianças e adolescentes. Para isso, analisaremos vídeos de dois canais da rede,
produzidos por um menino e um adolescente, voltados também para o público
infantil/adolescente: “Isaac do Vine” (fundado em 2014) e “Felipe Calixto” (fundado em 2011).
Para tal análise, levaremos em conta, em primeiro lugar o conceito de “masculinidade
hegemônica” proposto por Raewyn Connel (2005), que corresponde a um conjunto de práticas
exercidas tanto por homens quanto mulheres que legitima a posição dominante dos homens na
sociedade e justifica a subordinação das mulheres e outras formas de ser homem, chamadas de
masculinidades alternativas ou periféricas. Segundo Connel, a masculinidade hegemônica ignora
o fato de não há um padrão de ser homem que seja encontrado em todas as culturas e em todos os
períodos da história, e afirma, ainda, sobre a masculinidade hegemônica, que

(...) certamente ela é normativa. Ela incorpora a forma mais


honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens
se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a
subordinação global das mulheres aos homens. Homens que
receberam os benefícios do patriarcado sem adotar uma versão
forte da dominação masculina podem ser vistos como aqueles

3
Disponíveis em https://www.youtube.com/intl/pt-BR/yt/about/press/
que adotaram uma cumplicidade masculina (CONNELL &
MESSERSCHMIDT, 2005).

Outro enfoque importante no trabalho é como se dá a construção de masculinidades


especificamente na infância, uma vez que, conforme afirma Zulmira Newlands Borges (2013), é
para os meninos que se ensina a ser homem. A autora afirma, em conformidade com o conceito
de masculinidade hegemônica de Connel que, muitas vezes, neste processo de construção de
masculinidade na infância, estamos diante de “crenças e representações sociais sobre o que é ser
homem ou ser mulher, em que meninos/homens são mais fortes, agitados, agressivos, racionais e
meninas/mulheres são mais delicadas, afetivas, meigas, passivas, sensíveis.” (BORGES, 2013).
Assim, acreditamos que a análise do discurso (re) produzido nos vídeos protagonizados
por Issac do Vine e Felipe Calixto poderá revelar indícios de como estes artefatos contribuem
para a construção de masculinidades na infância, e de que maneira estes processos se relacionam
com o conceito de masculinidade hegemônica e de masculinidades periféricas.

2- Objetivos

O objetivo geral deste trabalho é buscar indícios de como os canais do Youtube “Isaac do
Vine” e “Felipe Calixto” afetam a construção de masculinidades na infância, visto ambos são
voltados para o público infantil e adolescente. Segundo Zulmira Newland Borges, raramente nos
damos conta de que os comportamentos de gênero são cotidianamente construídos pelo contexto
social, cultural e histórico no qual estamos inseridos/as. Citando Souza (2006), ela aponta que
“A sociedade parece não perceber os inúmeros esforços produzidos através dos seus mais
variados discursos, instituições e práticas, para que os indivíduos se comportem desta ou daquela
forma, em função do seu sexo” (SOUZA, 2006, apud BORGES, 2013).
Assim, o trabalho busca desnaturalizar os discursos sobre masculinidades que os vídeos
dos canais analisados (re) produzem, e verificar de que forma eles se relacionam com a
masculinidade hegemônica, as periféricas, e com outros estereótipos de gênero.
Consequentemente, o trabalho também procura analisar de que forma esta construção de
masculinidades se relaciona com as feminilidades e apontar indícios do papel que a mídia,
representada aqui pelo discurso de dois jovens youtubers4 desempenha neste processo.

3- “Isaac do Vine” e “Felipe Calixto”:breve descrição dos artefatos

O canal “Isaac do Vine” é protagonizado pelo próprio Isaac de 9 anos de idade. O canal
possui quase 6 milhões de inscritos e um total de 500 milhões de visualizações. O conteúdo
produzido no canal é direcionado para crianças e se apresenta como vídeos de historinhas,
desafios, relatos da vida pessoal, entre outros. O vídeo escolhido para a análise foi “MENINO
VS MENINA!” publicado em agosto de 2018, que conta com 300 mil visualizações e avaliação
de 17 mil “gostei” e 850 “não gostei”, além de 1200 comentários. Em nove minutos de vídeo,
Isaac atua e representa um “menino” e uma “menina” em diversas situações do cotidiano, como
organizar o quarto, se arrumar para sair, comportamento dentro de uma sala de aula e tirar uma
foto.

Figura 1 - Imagem retirada do vídeo "MENINO VS MENINA!", no canal "Isaac do Vine" do Youtube

4
Pessoas que produzem conteúdo em vídeo na plataforma Youtube (grifo nosso)
No vídeo “Arrumando o quarto”, quando se trata do cômodo ocupao pela menina, o
cenário é um quarto que aparenta pouca desorganização, a cama está forrada com uma colcha de
flores cor de rosa, sob ela há um lençol e pente de mesma cor, além de algumas cobertas brancas
jogadas. Há também uma orquídea cor de rosa no criado mudo. A menina usando um vestido cor
de rosa e ouvindo música, começa a arrumação do quarto, pendura uma camisola no cabide e
depois dobra as roupas de cama. Ao final ela grita: “Já arrumei mãe!”, então se deita calmamente
na cama e sorrindo leve, com ar de dever cumprido começa a mexer no celular.
Já no quarto do menino, o que se vê é um cenário desorganizado, com roupas e tênis
espalhados pelo chão. A cama não está forrada e sob ela todas as roupas de cama estão
emboladas. Como extensão da cama existe um baú, ambos de cor madeira. O menino inicia a
arrumação abrindo o baú, que já está cheio de roupas emaranhadas, e começa a jogar
rapidamente todas as cobertas, tênis e roupas espalhadas no quarto para dentro dele. Ao final,
forçando para que o baú feche, o menino senta sobre ele e grita: “Já arrumei!”, logo após corre
para fora do quarto.
O canal “Felipe Calixto” é protagonizado pelo Felipe de 18 anos, possui 1.8 milhões de
inscritos e um total de 340 milhões de visualizações. Na descrição do canal, há a seguinte
informação: “SEJAM BEM-VINDOS AO MEU CANAL!!! Nele você vai encontrar muitas
novelinhas e historinhas, reviews de brinquedos, lançamentos, vlogs de viagens e passeios, tags
e até desafios!!! Se inscreva (sic) agora e faça parte da minha família aqui no YouTube”.
CANAL INFANTIL LIVRE PARA TODOS OS PÚBLICOS. O vídeo deste canal que iremos
analisar é intitulado “Baby Alive tomando suco colorido”, publicado em agosto de 2016 ele
conta com 3,9 milhões de visualizações, 21 mil “gostei”, 3,6 mil “não gostei” e 750 comentários.
Baby Alive, presente no título do vídeo, é o nome de uma linha de bonecas da marca Hasbro.
Essas bonecas, em diferentes versões, “falam” e fazem inúmeras atividades imitando um bebê de
verdade, assim estimulam a criança a brincar cuidando, como trocar fralda, dar comida, banho e
colocar pra dormir. Em cinco minutos e meio de vídeo, Felipe contracena com uma Baby Alive,
no qual prepara um suco e troca a fralda da boneca.
Figura 2- Imagem retirada do vídeo “Baby Alive tomando suco colorido” do canal Felipe Calixto no Youtube.

No vídeo “Baby Alive5 tomando suco colorido”, Felipe aparece segurando a boneca no
colo e explicando que vai fazer para ela um suco colorido. Felipe então coloca a boneca ao fundo
e começa a preparar o “suco”, ele pega bolinhas coloridas de açúcar, coloca numa panelinha de
brinquedo, mexe como se estivesse preparando e despeja na mamadeira de brinquedo. No
momento do preparo, podemos escutar a boneca ao fundo dizendo: “mamãe estou com fome! A
brincadeira já acabou?”. Na próxima cena, Felipe pega novamente a Baby Alive no colo e
começa a dar mamadeira na boca, dizendo: “Eu acho que você vai gostar”. Após alguns instantes
a boneca alerta e diz: “OU! OU! Será que que minha fralda está suja? Será que eu fiz
caquinha?”. Felipe então começa a troca a fralda da boneca e depois de limpá-la, complementa
dizendo que vai colocá-la para se deitar até a hora do almoço.

5
Baby Alive é uma marca de bonecas fabricada pela Hasbro que come, bebe, molha e tem uma boca
móvel (grifo nosso)
4- Análise do discurso multimodal dos vídeos selecionados

Como metodologia, usaremos a análise de discurso multimodal, partindo do pressuposto


de que, conforme aponta Pinheiro (2015)

O termo multimodalidade se constitui, portanto, a partir do


princípio de que toda significação é fruto da inter-relação entre
vários meios semióticos. Assim como na linguagem oral o
sentido é representado pelas palavras, gestos, entonação,
expressões faciais, ou mesmo o silêncio, em outros contextos de
significação é importante analisar a conjunção entre linguagem
verbal e imagem, disposição espacial, cores, áudios, vídeos, etc
(PINHEIRO, 2015, disponível em
https://veredas.ufjf.emnuvens.com.br/veredas/article/view/19)

Como utilizamos dois vídeos do Youtube como objetos de estudo, uma análise de
discurso que abarque outros elementos além do texto verbal parece ser uma ferramenta mais rica
para sua análise. Neste sentido, Pinheiro (2015) afirma que a análise crítica do discurso, que
foca nos elementos verbais, procura evidenciar como a linguagem é usada para transmitir poder e
status na interação social contemporânea e como os textos (linguísticos) puramente informativos,
aparentemente neutros, que aparecem em em textos diversos articulam e disseminam discursos
posicionamentos ideológicos tanto quanto o fazem os textos que fazem isso mais explicitamente,
como editoriais e textos publicitários, por exemplo.
Para compreendermos que discursos se escondem sob esta pretensa neutralidade textual,
segundo o autor “precisamos ser capazes de ‘ler nas entrelinhas’, a fim de obter um sentido de
qual posicionamento discursivo/ideológico, qual ‘interesse’, pode ter dado origem a um texto em
particular e talvez vislumbrar, pelo menos, a possibilidade de uma visão alternativa”
(PINHEIRO, 2015). A proposta da análise multimodal é ir além dos significados inerentes aos
textos escritos e verbais, englobando outros modos semióticos para perceber o significado dos
discursos.(KRESS & VAN LEEUWEN, 1996, apud PINHEIRO, 2015).
Assim, tendo como base as proposições de Kress e van Leeuwen (1996), Pinheiro aponta
que, os diversos elementos semióticos de um discurso apresentam-se em três metafunções que
articulam-se entre si para a construção de significado (s) deste : a metafunção textual, a
metafunção ideacional e a metafunção interpessoal. De acordo com Pinheiro (2015), a
metafunção textual aborda a construção das relações entre os elementos multimodais, de modo
que seja interpretável por sua estrutura (relações entre a parte e o todo) e, organização
informacional por meio de suas partes (imagens, ângulos, sons, textos etc.). Já a metafunção
ideacional é a função da linguagem usada para apresentar as conjunturas, para dizer o que de fato
está acontecendo, ao conteúdo representacional do discurso analisado. Por sua vez, a
metafunção interpessoal diz respeito à orientação do discurso apresentado a públicos presentes e
potenciais, no que diz tange às relações e avaliações sociais que podem ser construídas a partir
de um ponto de vista particular proposto, apresentado ou, em alguns casos , até impostos pelo
discurso. Nos próximos itens, avaliaremos os vídeos, a partir dos trechos descritos no item
anterior, de acordo com cada uma das metafunções.

4.1- Metafunção textual

Esta função analisa as relações entre os elementos multimodais em si, de modo que seja
interpretável por sua estrutura, então aqui analisaremos os recursos específicos dos vídeos. No
vídeo “Arrumando o quarto” do quadro “Menino vs Menina” do youtuber Isaac do Vine, há uma
clara intenção de se demarcar uma distinção entre o gênero masculino e feminino. O quarto
arrumado, com elementos de decoração, flores, e a postura “delicada” e “leve” da menina ao, de
fato organizar o que era necessário no cômodo apontam para uma construção de gênero em que
mulheres são mais aptas ou destinadas ao trabalho doméstico, à organização, estereótipo que é
amplamente difundido na sociedade patriarcal, construída em oposição (subjugação) à
masculinidade hegemônica.
Além disso, a própria caracterização de Isaac como menina, com vestimenta cor-de rosa
com estampas florais, peruca loira e com um timbre de voz caricaturalmente empostado e mais
agudo também contribuem para a construção de uma noção de que há apenas uma forma de
feminilidade possível, ligada aos aspectos que elencamos acima. Quando esta construção de
menina responde “Já arrumei, mãe”, o quarto de fato está organizado,e ela desempenha a tarefa
dançando, ouvindo música e se divertindo, reforçando a ideia de que meninas - e por
conseguinte, mulheres - têm uma construção de gênero que naturaliza tal papel social para elas- e
talvez até que naturalmente sintam prazer em desempenhá-lo. Além disso, a menina acaba de
organizar o cômodo e se deita na cama, certa de que cumpriu com a obrigação que lhe foi
solicitada.
Já no quarto do menino, muito mais desorganizado, praticamente não tem elementos
decorativos, ao contrário do da menina, que possui quadros, bibelôs e flores. Predominam tons
cinzas e os móveis são de madeira. Em poucos segundos de vídeo, o menino joga todas as
roupas, de cama e de vestuário, para dentro do baú acoplado à cama e se senta sobre este, sem
sequer dobrar as roupas, para fechá-lo. Ao terminar, e avisar (diferente da menina, ele não usa o
vocativo “mãe), ele sai correndo do quarto, como se soubesse que não cumpriu com o dever que
podia. O menino veste também apenas uma bermuda e aparece sem camisa, uma indexação da
liberdade masculina sobre seus corpos.
Além disso, ao contrário da menina, ele não parece satisfeito em qualquer momento da
ação de arrumar o quarto, diferente da menina, que desempenha a tarefa dançando e brincando
com acessórios que vai vestindo antes de guardar. Esta construção aponta para várias
características análogas à masculinidade hegemônica, afastando o menino da familiaridade com
tarefas domésticas, com a sensibilidade para ter itens de decoração no quarto e até no momento
de falar com a mãe. O fato de ele afirmar que o quarto está arrumado mesmo depois de só
amontoar as roupas no baú também pode ser associado à construção de uma masculinidade
hegemônica, que naturaliza o fato de homens e meninos serem naturalmente “bagunceiros”,
construção que é socialmente aceita, o que nos indica que alguém desempenhará esta tarefa não
cumprida por ele, certamente a mãe, uma mulher.
No vídeo exibido “Baby Alive tomando suco colorido”, Felipe Calixto aparece em
primeiro plano segurando a boneca, em um quarto decorado com quadros coloridos, papel de
parede e uma cortina de estampa floral. Ele segura a boneca em analogia a como se segura um
bebê e quando ela diz “eu te amo, mamãe”, ele diz que não é a mãe da boneca e que fará um suco
para ela. Tais elementos multimodais nos parecem desconstruir a masculinidade hegemônica.
Primeiro porque o rapaz desempenha tarefas que são socialmente atribuídas à mãe, às mulheres:
o cuidado, a sensibilidade, o afeto- sobretudo com as crianças. Em segundo lugar, porque o
menino, ao negar ser a “mãe” da Baby Alive, desnaturaliza a noção de que tais papéis sociais
sejam os da mãe, de uma mulher. O próprio ato de o menino preparar a refeição, dar a
mamadeira à boneca, trocar sua fralda e depois colocá-la para “dormir” ajuda a desconstruir que
estas funções sejam de responsabilidade da mãe e/ou da mulher. Em nenhum momento o
discurso verbal do menino, seu gestual ou suas vestimentas apontam para uma caricatura de
feminino, o que acreditamos contribuir para que o vídeo seja uma possível ferramenta de
construção de uma forma de masculinidade alternativa à hegemônica.

4.2- A metafunção ideacional

Conforme explicitamos acima, a metafunção ideacional diz respeito ao conteúdo


representacional apresentado pelos objetos, no caso, os vídeos. No primeiro vídeo, de Isaac do
Vine, fica claro está representada uma noção que corresponde ao senso comum, naturalizado, de
que homens e mulheres ocupam papéis sociais distintos na sociedade. A construção de gênero
apresentada aponta para a masculinidade hegemônica como algo dado na sociedade, que não
causa estranhamento, a tal ponto que o vídeo tenta representar tais construções em um tom de
humor. Não há qualquer questionamento sobre por que as meninas arrumam o quarto “melhor”
do que os meninos, o discurso é de que isto é algo que é intrínseco às construções de gênero. A
representação, é portanto a de uma masculinidade hegemônica naturalizada e socialmente aceita.
No vídeo de Felipe Calixto, por outro lado, há uma quebra desta naturalização. O
discurso parece tratar como natural o fato de que um rapaz possa assumir tarefas domésticas,
cuidar de crianças e ter sensibilidade sem que isso deixe de ser um traço de masculinidade. Isso é
reforçado pelas vezes em que Felipe repete à boneca: “não sou sua mãe”, sem que deixe de
expressar zelo ou cuidado pela boneca ou as tarefas domésticas envolvidas em seu cuidado.
Portanto, acreditamos que tal representação aponta para a possibilidade da existência e da
construção de masculinidades que não vejam a feminilidade como subalterna, que não determine
papéis sociais estratificados pelas construções de gênero, uma representação de masculinidades,
portanto, não hegemônicas.

4.3- Metafunção interpessoal

Em relação à metafunção interpessoal, ou seja, a atitude orientacional em relação aos


públicos, percebemos, novamente, muitas diferenças entre os dois vídeos analisados. O vídeo
“Arrumando o quarto” de Isaac do Vine, orienta o internauta a ver, sob tom jocoso as diferenças
entre os papéis sociais atribuídos a meninos e meninas. Se um menino amontoa seus pertences
em um baú e afirma que o quarto está arrumado, e a menina de fato o organiza antes de fazer tal
afirmação, o público é orientado a pensar que tal divisão social do trabalho doméstico é natural,
inerente ao que se concebe socialmente como “masculino e feminino”. Constroem-se desta
forma, estereótipos do que é ser menino e menina - e por consequência, do que é ser homem e
ser mulher -, dos atos performativos de gênero, sem que haja qualquer questionamento,
sobretudo se observarmos o alcance dos vídeos e o número superior de “gostei” aos “não gostei”.
Isto nos leva a crer que a masculinidade hegemônica construída não apenas é ausente de
questionamento relevante, mas é aceita e legitimada pelo público a que ela se destina.
No vídeo de Felipe Calixto com a Baby Alive, percebe-se outra orientação em relação ao
público, a de que outras formas de masculinidade que não as hegemônicas são possíveis. Ao não
se constituir com atos performativos de gênero em seu discurso que fortaleçam a masculinidade
hegemônica, Felipe constrói um discurso que conduz o público a crer que há outras formas de ser
menino/homem. Ao contrário do que acontece no vídeo protagonizado por Isaac, o protagonista
não se apresenta como um estereótipo de gênero, seja no discurso verbal, em seu gestual, em sua
caracterização, nas atividades que desempenha ou em quaisquer de seus atos performativos de
gênero. Assim, acreditamos que tal representação figure como uma orientação ao público em
direção a construções menos normativas de gênero e, sobretudo, como é o caso específico desta
análise, de masculinidades.

5- Considerações finais

Conforme mencionamos acima, a mídia tem um grande alcance e um papel pedagógico


na construção e consolidação das noções de gênero concebidas socialmente. Após analisarmos os
dois vídeos propostos nesta pesquisa, tendo em vista que, conforme afirma Borges (2013), é aos
meninos que se ensina a ser homem, se existe por um lado, a legitimação da masculinidade
hegemônica, percebida no vídeo protagonizado por Isaac do Vine, também no meio digital há
conteúdos que contestam essa lógica, como o conteúdo aqui analisado de Felipe Calixto e, além
de representarem outras masculinidades, ajudam a construí-las por meio da difusão do conteúdo.
Como consequência, é possível afirmar que ainda há, na web, discursos que legitimam a
subjugação de masculinidades não hegemônicas e feminilidades.
Por outro lado, conteúdos que mostram o youtuber Felipe Calixto exercendo funções
tidas como “maternais”, como cuidar de uma boneca (que representaria uma criança), é possível
afirmar que tamvém na web circulam conteúdos que quebram estereótipos de gênero seculares,
e podem contribuir para concepções menos normativas, excludentes e até mesmo aprisionantes
de gênero na sociedade, dado o caráter pedagógico (ELLSWORTH, 2011) que produções
audiovisuais como vídeos do Youtube podem ter nas discussões de gênero, sobretudo para
crianças, como nos lembra Borges (2013).
Assim, pensando na proposição de Bulter (2003), no que tange aos gêneros e sua
performatividade, a produção de youtubers ora reforça estereótipos e preconceitos amplamente
construídos e difundidos socialmente e ora permite enquadres que se aproximam do conceito de
performatividade de gênero proposto pela autora.
Acreditamos, assim, ter cumprido a proposta investigativa do presente artigo, destacando
também que, a produção de conteúdos como os dos canais analisados e os discursos que deles
são emanados, uma vez que são produções que emergem de nosso contexto social e nossa
sociedade, são um reflexo dela e das discussões vigentes em seu seio. Portanto, tal qual acontece
com a própria sociedade, estes e quaisquer artefatos são passíveis de erros, preconceitos e
reprodução de estereótipos, bem como a ruptura com todos estes padrões normativos -
exatamente como ocorre na vida cotidiana. Apesar disso, como nos lembra Foucault (1990), os
discursos são constitutivos de realidades, por isso ressaltamos a tamanha importância em buscar
a criação e a difusão produtos culturais e discursos que desconstruam estereótipos históricos
atribuídos à noção binária, biodeterminista e essencialmente discriminatória de gêneros.

6- Bibliografia

BABY ALIVE TOMANDO SUCO COLORIDO. Disponível em


<https://www.youtube.com/watch?v=2BkdUPk8YK0> Acesso em 27/11/2018.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2003.

CONNELL, Raewyn ; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando


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Acesso em: 27 nov. 2018.

ELLSWORTH, Elisabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de


educação também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Nunca fomos humanos: nos rastros do
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,


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KRESS, Gunther & VAN LEEUWEN, Theo. Reading Images: the grammar of visual design.
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contemporary communication. London: Arnold, 2001.

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(novos) multiletramentos para a escola. 2013. v.19, n. 2. Disponível em
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