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24 a 27 de setembro de 2019
Juiz de Fora- MG
Embora nas várias esferas da vida social ainda se tenha uma noção estereotipada e binarista de
gênero e suas manifestações, o campo de pesquisa que aborda tais temáticas, hoje consolidado e
em franca expansão, compreende que estas categorias são construções sociais. O presente
trabalho busca fazer uma breve análise de como o Youtube afeta o processo de construção de
masculinidades de crianças e adolescentes. Para isso, analisamos vídeos de dois canais da rede,
produzidos por um menino e um adolescente, voltados também para o público
infantil/adolescente: “Isaac do Vine” (fundado em 2014) e “Felipe Calixto” (fundado em 2011).
Ao realizarmos tal análise, levamos em conta conceitos como o de “masculinidade hegemônica”,
“masculinidades periféricas” e “performance de gênero”. Outro enfoque importante é que
buscamos dar à pesquisa é o que tange às formas como se dá a construção de masculinidades
especificamente na infância, uma vez que é para os meninos que se ensina a ser homem. Assim,
utilizando a análise de discurso multimodal como ferramenta metodológica, acreditamos que os
vídeos protagonizados pelos youtubers analisados revelam indícios de como estes artefatos
contribuem para a construção de masculinidades na infância; como, em aspecto relacional,
ocorre a construção de feminilidades; e de que maneira estes processos se relacionam, num
sentido mais amplo, com a construção de gêneros, papéis relacionados a eles e demais esferas
ligadas à categoria.
Although in the various spheres of social life there is still a stereotypical and binary notion of
gender and its manifestations, the scientific field that addresses such themes, now consolidated
and rapidly expanding, understands that these categories are social constructions. This paper
aims to make a brief analysis of how Youtube affects the process of building masculinities of
children and adolescents. To do such, we analyze videos of two channels of the video platform,
produced by a boy and a teenager, which also have children/adolescents ad target audience:
"Isaac do Vine" (founded in 2014) and "Felipe Calixto" (founded in 2011). In conducting such
analysis, we take into account concepts such as "hegemonic masculinity", "peripheral
masculinities" and "gender performance". Another important approach that we pursue in the
present research is one that concerns the ways in which masculinity is built specifically in
childhood, since it is for boys that it is taught to be a man. Thus, using multimodal discourse
analysis as a methodological tool, we believe that the videos starring the analyzed youtubers
reveal evidence of how these artifacts contribute to the construction of masculinities in
childhood; and how, in a relational aspect, the construction of femininity occurs; and how these
processes relate, in a broader sense, to the construction of genders, roles related to them and
other spheres linked to these categories.
Embora nas várias esferas da vida social ainda se tenha uma noção estereotipada e
binarista de gênero e suas manifestações, o campo de pesquisa que aborda tais temáticas, hoje
consolidado e em franca expansão compreende que estas categorias são construções sociais.
Segundo Judith Butler, uma das principais referências nos estudos de gênero, o termo só pode ser
compreendido como um ato, uma performance repetida, que engloba, ao mesmo tempo, a
reencenação e a experiência de um conjunto de significados preestabelecidos socialmente, e é
também no contexto social que tal performance é legitimada. A autora propõe, ainda, que estes
atos são públicos e possuem dimensões temporais e coletivas, e justamente por seu caráter
público, eles não deixam de ter consequências para os indivíduos. “Na verdade, a performance é
realizada com o objetivo estratégico de manter o gênero em sua estrutura binária — um objetivo
que não pode ser atribuído a um sujeito, devendo, ao invés disso, ser compreendido como
fundador e consolidador do sujeito”, acrescenta a pesquisadora. (BUTLER, 2003, p. 200).
Também para Butler (2003), o próprio fato de a realidade do gênero ser criada a partir de
performances sociais contínuas implica na concepção de que as noções de masculinidade ou
feminilidade “verdadeiras” ou permanentes também são constituídas, segundo ela, “como parte
da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de
proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação
masculinista e da heterosscxualidade compulsória. (BUTLER, 2003, p.204).
Neste sentido, a noção de “ato performativo” no contexto dos gêneros e na visão de
Butler (2003), compreende que, tais atos, expressos de diversas maneiras e publicamente, não
performam signos de gênero correspondentes, necessariamente, à construção social do que
deveria ser a performance de gênero que se atribui ao corpo biológico de uma pessoa. Portanto,
as noções de “masculino” e “feminino” são essencialmente construções sociais. Neste sentido,
Butler (2003, pp. 194-195) argumenta, sobre os atos performativos, que
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Disponíveis em https://www.youtube.com/intl/pt-BR/yt/about/press/
que adotaram uma cumplicidade masculina (CONNELL &
MESSERSCHMIDT, 2005).
2- Objetivos
O objetivo geral deste trabalho é buscar indícios de como os canais do Youtube “Isaac do
Vine” e “Felipe Calixto” afetam a construção de masculinidades na infância, visto ambos são
voltados para o público infantil e adolescente. Segundo Zulmira Newland Borges, raramente nos
damos conta de que os comportamentos de gênero são cotidianamente construídos pelo contexto
social, cultural e histórico no qual estamos inseridos/as. Citando Souza (2006), ela aponta que
“A sociedade parece não perceber os inúmeros esforços produzidos através dos seus mais
variados discursos, instituições e práticas, para que os indivíduos se comportem desta ou daquela
forma, em função do seu sexo” (SOUZA, 2006, apud BORGES, 2013).
Assim, o trabalho busca desnaturalizar os discursos sobre masculinidades que os vídeos
dos canais analisados (re) produzem, e verificar de que forma eles se relacionam com a
masculinidade hegemônica, as periféricas, e com outros estereótipos de gênero.
Consequentemente, o trabalho também procura analisar de que forma esta construção de
masculinidades se relaciona com as feminilidades e apontar indícios do papel que a mídia,
representada aqui pelo discurso de dois jovens youtubers4 desempenha neste processo.
O canal “Isaac do Vine” é protagonizado pelo próprio Isaac de 9 anos de idade. O canal
possui quase 6 milhões de inscritos e um total de 500 milhões de visualizações. O conteúdo
produzido no canal é direcionado para crianças e se apresenta como vídeos de historinhas,
desafios, relatos da vida pessoal, entre outros. O vídeo escolhido para a análise foi “MENINO
VS MENINA!” publicado em agosto de 2018, que conta com 300 mil visualizações e avaliação
de 17 mil “gostei” e 850 “não gostei”, além de 1200 comentários. Em nove minutos de vídeo,
Isaac atua e representa um “menino” e uma “menina” em diversas situações do cotidiano, como
organizar o quarto, se arrumar para sair, comportamento dentro de uma sala de aula e tirar uma
foto.
Figura 1 - Imagem retirada do vídeo "MENINO VS MENINA!", no canal "Isaac do Vine" do Youtube
4
Pessoas que produzem conteúdo em vídeo na plataforma Youtube (grifo nosso)
No vídeo “Arrumando o quarto”, quando se trata do cômodo ocupao pela menina, o
cenário é um quarto que aparenta pouca desorganização, a cama está forrada com uma colcha de
flores cor de rosa, sob ela há um lençol e pente de mesma cor, além de algumas cobertas brancas
jogadas. Há também uma orquídea cor de rosa no criado mudo. A menina usando um vestido cor
de rosa e ouvindo música, começa a arrumação do quarto, pendura uma camisola no cabide e
depois dobra as roupas de cama. Ao final ela grita: “Já arrumei mãe!”, então se deita calmamente
na cama e sorrindo leve, com ar de dever cumprido começa a mexer no celular.
Já no quarto do menino, o que se vê é um cenário desorganizado, com roupas e tênis
espalhados pelo chão. A cama não está forrada e sob ela todas as roupas de cama estão
emboladas. Como extensão da cama existe um baú, ambos de cor madeira. O menino inicia a
arrumação abrindo o baú, que já está cheio de roupas emaranhadas, e começa a jogar
rapidamente todas as cobertas, tênis e roupas espalhadas no quarto para dentro dele. Ao final,
forçando para que o baú feche, o menino senta sobre ele e grita: “Já arrumei!”, logo após corre
para fora do quarto.
O canal “Felipe Calixto” é protagonizado pelo Felipe de 18 anos, possui 1.8 milhões de
inscritos e um total de 340 milhões de visualizações. Na descrição do canal, há a seguinte
informação: “SEJAM BEM-VINDOS AO MEU CANAL!!! Nele você vai encontrar muitas
novelinhas e historinhas, reviews de brinquedos, lançamentos, vlogs de viagens e passeios, tags
e até desafios!!! Se inscreva (sic) agora e faça parte da minha família aqui no YouTube”.
CANAL INFANTIL LIVRE PARA TODOS OS PÚBLICOS. O vídeo deste canal que iremos
analisar é intitulado “Baby Alive tomando suco colorido”, publicado em agosto de 2016 ele
conta com 3,9 milhões de visualizações, 21 mil “gostei”, 3,6 mil “não gostei” e 750 comentários.
Baby Alive, presente no título do vídeo, é o nome de uma linha de bonecas da marca Hasbro.
Essas bonecas, em diferentes versões, “falam” e fazem inúmeras atividades imitando um bebê de
verdade, assim estimulam a criança a brincar cuidando, como trocar fralda, dar comida, banho e
colocar pra dormir. Em cinco minutos e meio de vídeo, Felipe contracena com uma Baby Alive,
no qual prepara um suco e troca a fralda da boneca.
Figura 2- Imagem retirada do vídeo “Baby Alive tomando suco colorido” do canal Felipe Calixto no Youtube.
No vídeo “Baby Alive5 tomando suco colorido”, Felipe aparece segurando a boneca no
colo e explicando que vai fazer para ela um suco colorido. Felipe então coloca a boneca ao fundo
e começa a preparar o “suco”, ele pega bolinhas coloridas de açúcar, coloca numa panelinha de
brinquedo, mexe como se estivesse preparando e despeja na mamadeira de brinquedo. No
momento do preparo, podemos escutar a boneca ao fundo dizendo: “mamãe estou com fome! A
brincadeira já acabou?”. Na próxima cena, Felipe pega novamente a Baby Alive no colo e
começa a dar mamadeira na boca, dizendo: “Eu acho que você vai gostar”. Após alguns instantes
a boneca alerta e diz: “OU! OU! Será que que minha fralda está suja? Será que eu fiz
caquinha?”. Felipe então começa a troca a fralda da boneca e depois de limpá-la, complementa
dizendo que vai colocá-la para se deitar até a hora do almoço.
5
Baby Alive é uma marca de bonecas fabricada pela Hasbro que come, bebe, molha e tem uma boca
móvel (grifo nosso)
4- Análise do discurso multimodal dos vídeos selecionados
Como utilizamos dois vídeos do Youtube como objetos de estudo, uma análise de
discurso que abarque outros elementos além do texto verbal parece ser uma ferramenta mais rica
para sua análise. Neste sentido, Pinheiro (2015) afirma que a análise crítica do discurso, que
foca nos elementos verbais, procura evidenciar como a linguagem é usada para transmitir poder e
status na interação social contemporânea e como os textos (linguísticos) puramente informativos,
aparentemente neutros, que aparecem em em textos diversos articulam e disseminam discursos
posicionamentos ideológicos tanto quanto o fazem os textos que fazem isso mais explicitamente,
como editoriais e textos publicitários, por exemplo.
Para compreendermos que discursos se escondem sob esta pretensa neutralidade textual,
segundo o autor “precisamos ser capazes de ‘ler nas entrelinhas’, a fim de obter um sentido de
qual posicionamento discursivo/ideológico, qual ‘interesse’, pode ter dado origem a um texto em
particular e talvez vislumbrar, pelo menos, a possibilidade de uma visão alternativa”
(PINHEIRO, 2015). A proposta da análise multimodal é ir além dos significados inerentes aos
textos escritos e verbais, englobando outros modos semióticos para perceber o significado dos
discursos.(KRESS & VAN LEEUWEN, 1996, apud PINHEIRO, 2015).
Assim, tendo como base as proposições de Kress e van Leeuwen (1996), Pinheiro aponta
que, os diversos elementos semióticos de um discurso apresentam-se em três metafunções que
articulam-se entre si para a construção de significado (s) deste : a metafunção textual, a
metafunção ideacional e a metafunção interpessoal. De acordo com Pinheiro (2015), a
metafunção textual aborda a construção das relações entre os elementos multimodais, de modo
que seja interpretável por sua estrutura (relações entre a parte e o todo) e, organização
informacional por meio de suas partes (imagens, ângulos, sons, textos etc.). Já a metafunção
ideacional é a função da linguagem usada para apresentar as conjunturas, para dizer o que de fato
está acontecendo, ao conteúdo representacional do discurso analisado. Por sua vez, a
metafunção interpessoal diz respeito à orientação do discurso apresentado a públicos presentes e
potenciais, no que diz tange às relações e avaliações sociais que podem ser construídas a partir
de um ponto de vista particular proposto, apresentado ou, em alguns casos , até impostos pelo
discurso. Nos próximos itens, avaliaremos os vídeos, a partir dos trechos descritos no item
anterior, de acordo com cada uma das metafunções.
Esta função analisa as relações entre os elementos multimodais em si, de modo que seja
interpretável por sua estrutura, então aqui analisaremos os recursos específicos dos vídeos. No
vídeo “Arrumando o quarto” do quadro “Menino vs Menina” do youtuber Isaac do Vine, há uma
clara intenção de se demarcar uma distinção entre o gênero masculino e feminino. O quarto
arrumado, com elementos de decoração, flores, e a postura “delicada” e “leve” da menina ao, de
fato organizar o que era necessário no cômodo apontam para uma construção de gênero em que
mulheres são mais aptas ou destinadas ao trabalho doméstico, à organização, estereótipo que é
amplamente difundido na sociedade patriarcal, construída em oposição (subjugação) à
masculinidade hegemônica.
Além disso, a própria caracterização de Isaac como menina, com vestimenta cor-de rosa
com estampas florais, peruca loira e com um timbre de voz caricaturalmente empostado e mais
agudo também contribuem para a construção de uma noção de que há apenas uma forma de
feminilidade possível, ligada aos aspectos que elencamos acima. Quando esta construção de
menina responde “Já arrumei, mãe”, o quarto de fato está organizado,e ela desempenha a tarefa
dançando, ouvindo música e se divertindo, reforçando a ideia de que meninas - e por
conseguinte, mulheres - têm uma construção de gênero que naturaliza tal papel social para elas- e
talvez até que naturalmente sintam prazer em desempenhá-lo. Além disso, a menina acaba de
organizar o cômodo e se deita na cama, certa de que cumpriu com a obrigação que lhe foi
solicitada.
Já no quarto do menino, muito mais desorganizado, praticamente não tem elementos
decorativos, ao contrário do da menina, que possui quadros, bibelôs e flores. Predominam tons
cinzas e os móveis são de madeira. Em poucos segundos de vídeo, o menino joga todas as
roupas, de cama e de vestuário, para dentro do baú acoplado à cama e se senta sobre este, sem
sequer dobrar as roupas, para fechá-lo. Ao terminar, e avisar (diferente da menina, ele não usa o
vocativo “mãe), ele sai correndo do quarto, como se soubesse que não cumpriu com o dever que
podia. O menino veste também apenas uma bermuda e aparece sem camisa, uma indexação da
liberdade masculina sobre seus corpos.
Além disso, ao contrário da menina, ele não parece satisfeito em qualquer momento da
ação de arrumar o quarto, diferente da menina, que desempenha a tarefa dançando e brincando
com acessórios que vai vestindo antes de guardar. Esta construção aponta para várias
características análogas à masculinidade hegemônica, afastando o menino da familiaridade com
tarefas domésticas, com a sensibilidade para ter itens de decoração no quarto e até no momento
de falar com a mãe. O fato de ele afirmar que o quarto está arrumado mesmo depois de só
amontoar as roupas no baú também pode ser associado à construção de uma masculinidade
hegemônica, que naturaliza o fato de homens e meninos serem naturalmente “bagunceiros”,
construção que é socialmente aceita, o que nos indica que alguém desempenhará esta tarefa não
cumprida por ele, certamente a mãe, uma mulher.
No vídeo exibido “Baby Alive tomando suco colorido”, Felipe Calixto aparece em
primeiro plano segurando a boneca, em um quarto decorado com quadros coloridos, papel de
parede e uma cortina de estampa floral. Ele segura a boneca em analogia a como se segura um
bebê e quando ela diz “eu te amo, mamãe”, ele diz que não é a mãe da boneca e que fará um suco
para ela. Tais elementos multimodais nos parecem desconstruir a masculinidade hegemônica.
Primeiro porque o rapaz desempenha tarefas que são socialmente atribuídas à mãe, às mulheres:
o cuidado, a sensibilidade, o afeto- sobretudo com as crianças. Em segundo lugar, porque o
menino, ao negar ser a “mãe” da Baby Alive, desnaturaliza a noção de que tais papéis sociais
sejam os da mãe, de uma mulher. O próprio ato de o menino preparar a refeição, dar a
mamadeira à boneca, trocar sua fralda e depois colocá-la para “dormir” ajuda a desconstruir que
estas funções sejam de responsabilidade da mãe e/ou da mulher. Em nenhum momento o
discurso verbal do menino, seu gestual ou suas vestimentas apontam para uma caricatura de
feminino, o que acreditamos contribuir para que o vídeo seja uma possível ferramenta de
construção de uma forma de masculinidade alternativa à hegemônica.
5- Considerações finais
6- Bibliografia
KRESS, Gunther & VAN LEEUWEN, Theo. Reading Images: the grammar of visual design.
London & New York: Routledge, 1996.