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Edmundo Gomes Junior
Edmundo Gomes Junior
Edmundo Gomes Junior
São Paulo
2013
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São Paulo
2013
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CDD 401.41
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________
Profª Dra. Helena Bonito Couto Pereira – Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
______________________________________________________________
Profª Dra. Ana Lúcia Trevisan
Universidade Presbiteriana Mackenzie
______________________________________________________________
Profª Dra. Elisabeth Brait
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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AGRADECIMENTOS
(T. S. Eliot)
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar o filme Mais estranho que a ficção (2006), dirigido
por Marc Foster, no viés do conceito de intertextualidade, criado por Julia Kristeva. É
apresentada uma pesquisa sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na
narrativa fílmica, visando assim discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção
de sentido. Para essa análise foi levantada a origem desse conceito, confrontando o
dialogismo de Mikhail Bakhtin com os textos de Kristeva. A autora elaborou, além da
intertextualidade, os conceitos de ambivalência e transposição, termos que são empregados
posteriormente por outros autores. Durante a análise foi possível notar, através dos intertextos
presentes no filme, a natureza prometaica da criação ficcional, onde criadores enfrentam a
decadência, as semelhanças entre as representações dos mestres na ficção em relação à
jornada do herói épico, a utilização da écfrase como antecipação do desfecho da estória e a
formação da identidade das personagens da obra através do diálogo.
ABSTRACT
This essay aims to analyze the film Stranger Than Fiction (2006), directed by Marc Foster,
following of the concept of intertextuality, created by Julia Kristeva. It presents a survey of
the literary works mentioned in the film and their effects on film narrative, in order to discuss
how intertextuality enables the production of meaning. For this analysis the origin of this
concept is researched, confronting the dialogism of Mikhail Bakhtin with Kristeva's texts.
Kristeva also developed the concepts of ambivalence and transposition, terms that are used
later on by other authors. During the analysis it was possible to see through the intertexts in
the film the Prometheus theme repeated in the nature of fictional creation, where creator face
decay, the similarities between the representations of mentors in fiction in relation with the
epic hero's journey, as the use of ecphrasis as an anticipation of the outcome of the story and
the formation of the identity of the characters work through dialogue.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11
1.1. Sobre o Objeto de Estudo ........................................................................................ 14
2. INTERTEXTUALIDADE NA LITERATURA E NO CINEMA ........................ 18
3. CATEGORIAS NARRATIVAS EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO ....... 34
3.1. A construção do gênero narrativo por meio da mimesis e do diálogo ..................... 41
3.2. A écfrase em Mais estranho que a ficção: o intertexto interartes ............................ 46
3.3. Lentes e espelhos: metáforas de uma metaficção .................................................... 49
4. LUGARES E DISCURSOS DOS MESTRES NA FICÇÃO ................................ 55
4.1. A caverna do mestre ................................................................................................ 56
4.3. O discurso como formador da identidade do professor ........................................... 63
5. HOMENS SEM CARNE E A NATUREZA PROMETAICA DA CRIAÇÃO
FICCIONAL ................................................................................................................. 79
6. A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE EM MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO . 96
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 104
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 107
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1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo discutir o filme Mais estranho que a ficção, dirigido
por Marc Foster, no viés da intertextualidade, dentro da perspectiva da produção
cinematográfica como objeto artístico dentro de uma linguagem própria de seu suporte, mas
que se apropria de recursos de outras linguagens, como a Pintura e a Literatura. Para isso,
discutiremos o filme pelo à luz dos conceitos sistematizados por Julia Kristeva, pesquisando
sobre as obras literárias citadas na película e seus efeitos na narrativa fílmica, visando assim
discutir de que modo a intertextualidade propicia a produção de sentido.
A escolha deste filme foi feita devido à grande quantidade de referências à Literatura
nele presentes. Tomaremos o filme e sua narrativa como eixo central, tratando os principais
aspectos intertextuais conforme eles são apresentados na obra.
Este trabalho pode servir de suporte ao ensino de Língua e Literatura, embora não
esteja voltado para a educação, já que o estudo da intertextualidade faz parte do currículo do
Ensino Médio (SEE, 2009, p.25). A escassez de referencial prático e teórico para esse estudo,
entretanto, acaba dificultando que a intertextualidade e outros conceitos sejam trabalhados
pelos professores, que muitas vezes os desconhecem.
Além disso, nas aulas de Língua Estrangeira notamos que, apesar das inovações e
novas abordagens de ensino, boa parte do material pedagógico e, consequentemente, o plano
de aula, ainda focam o ensino da gramática e a leitura de textos cuja interpretação consiste em
questionários que visam a coleta de dados. Essa abordagem, por sua vez, gera um desinteresse
pela leitura que se reflete na busca por resumos de obras literárias e pela pouca busca em
bibliotecas. Deve ser suprida, portanto, uma lacuna de novas propostas da obra literária não só
como objeto de estudo, mas também como fonte de inspirações, o que pode aproximar o aluno
da obra literária, vendo o estudo da Literatura não como uma simples identificação categórica
de obras dentro de gêneros: é preciso ir além do pensar literário e despertar no estudante de
Literatura interesse no fazer literário. Para isso, faz-se necessário a utilização na sala de aula
de obras cujo cerne esteja na criação literária, na figura do narrador e seus dilemas e na
intertextualidade presente nas obras escolhidas.
Para Roland Barthes, um dos prazeres do texto está na intertextualidade, pois um texto
sempre remete a outro, num fenômeno que o autor descreve como “simplesmente uma
lembrança circular. E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora do texto infinito
quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro faz o sentido, o
sentido faz a vida.” (BARTHES, 1987, p. 49, grifos do autor.)
A utilização do cinema em sala de aula auxilia neste propósito, dentre muitas outras
possibilidades exploradas por autores como Marcos Napolitano, que dedicam seus estudos a
essa proposta de ensino-aprendizagem:
A atuação docente foi inspiradora para a elaboração desta pesquisa, porém não
buscaremos apresentar o trabalho da intertextualidade através de uma sequência didática,
visto que esse tipo de recurso não considera os diferentes contextos de ensino e idealiza
situações utópicas, tanto de recursos de sala de aula quanto de material humano. Ao invés
disso, priorizaremos a análise do filme e a pesquisa que ele provoca, demonstrando como a
intertextualidade não só desperta a memória de textos anteriores, mas também provoca novas
leituras.
Pressupomos aqui que as referências presentes em Mais estranho que a ficção não
foram escolhidas ao acaso, de modo que apresentam sua função dentro da temática do filme, e
o que pretendemos, portanto, é investigar a relação das obras citadas com os elementos
narrativos da obra cinematográfica.
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Mais estranho que a ficção, título original Stranger than Fiction, conta a estória de Harold
Crick (Will Ferrell), um solitário auditor da Receita Federal americana (e seu relógio, nas
palavras da narradora). Harold tinha vida e rotina controladas de modo quase obsessivo-
compulsivo, até que começa a ouvir uma voz descrevendo seus atos. Passa então a tentar
descobrir de quem é essa voz, busca a ajuda de uma analista, que lhe recomenda, mediante
sua recusa em tomar medicação, a procurar um especialista em Literatura. Harold se encontra
com o professor Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que recomenda descobrir se a vida de
Harold, caso seja uma obra literária, consiste em uma tragédia ou em uma comédia. Após o
levantamento das características destes dois gêneros narrativos definidos pelos tratados
aristotélicos, Harold retorna para conversar com o professor, e descobre que a voz que narra
sua vida pertence a Karen Eiffel (Emma Thompson), escritora famosa por matar os
protagonistas de suas obras.
O protagonista diz a Eiffel que entende a necessidade de sua morte para que a obra se
torne grandiosa. A tensão do filme passa então para o dilema das escolhas entre vida e morte
da narradora e do protagonista: se Karen decidirá matar o herói e se Harold aceitará essa
morte.
Na manhã da fatídica sexta-feira prevista para sua morte, diferentemente dos outros
dias, em que andava apressado, Harold caminha tranquilo para o ponto de ônibus. Quando a
condução se aproxima, um garoto guiando uma bicicleta entra em seu caminho, e Harold se
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Eiffel conversa com o professor Hilbert sobre o desfecho do livro e como ele não faz
sentido com o restante da obra. A autora diz que irá reescrevê-lo. O professor lhe pergunta por
que mudou o livro, ela explica que inicialmente era uma estória sobre um homem que não
sabia que morreria, e então morre, mas se o homem sabe que irá morrer e o faz por vontade
própria, mesmo sabendo que isso poderia ser evitado, não seria esse tipo de homem – ela
questiona - que se gostaria de manter vivo?
Tendo neste estudo a intertextualidade como visão de leitura, não ignoramos a gama
de possibilidades de análise que Mais estranho que a ficção permite, dada sua função como
produto ideológico, visto que toda produção humana pode se tornar símbolo e não apenas
existir como parte de uma realidade, mas também refletir e refratar uma outra, estando sujeito
aos critérios de avaliação ideológica e análises de questões filosóficas, psíquicas, históricas e
sociais sobre as manifestações da linguagem.
Dada essa gama de possibilidades, dentro do viés da ficção como produção textual e
estética, sem nos atermos em profundidade aos aspectos formais do filme, no que concerne à
escolha de ângulos de câmera e edição, por exemplo, elencaremos algumas propostas de
análise, das quais a última delas norteia os objetivos deste trabalho. A primeira dessas
propostas se atenta à metalinguagem presente na obra, pela indicação da ficção para si
mesma, de uma estória dentro da outra. Ligada a essa metalinguagem também é possível
16
analisar a presença do insólito gerado pela situação, o que leva a um questionamento quanto à
existência de Harold, da autora e da própria ficção em si. A esta reflexão sobre a ficção se
acresce, por sua vez, uma análise sobre a representação dos elementos da narrativa, da qual o
próprio filme, dentro do discurso do professor, traz uma reflexão didática sobre os gêneros da
narrativa e sua estrutura e serve, por exemplo, como fator de motivação para que alunos
produzam ficção, ao invés de apenas se prenderem à análise de gêneros.
trama, além das estratégias da linguagem cinematográfica pra metaforizar mudanças de foco
narrativo.
Em Considerações finais, faremos uma síntese das discussões levantadas por esta
dissertação e exporemos os resultados finais deste estudo, além de possíveis propostas de
continuidade e aplicação desse trabalho.
18
Desta forma, sob influência da ótica bakhtiniana, podemos afirmar que “toda evolução
dos gêneros literários é uma exteriorização inconsciente de estruturas linguísticas em seus
diferentes níveis”, e que o dialogismo se manifesta como formas de “intertextualidade e
interdiscursividade implícita” (KRISTEVA, 1974, p. 64), isto é, há um diálogo ao mesmo
tempo interno e externo à obra, e por isso a sua importância nos estudos da intertextualidade.
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Roland Barthes explica que apesar da origem da palavra texto vir do latim textum,
significando tecido, a trama dos fios que o formam se assemelha muito mais a uma teia de
aranha, em que o sujeito pode se enrolar qual uma aranha presa em sua própria construção
(BARTHES, 1987, p. 82). O tecido do texto, portanto, é formado por mais do que linhas
horizontais e verticais que se cruzam, mas por outros eixos que o trespassam em outros
sentidos.
criação literária toma forma. Sendo assim, a intertextualidade não se limita às referências que
um texto possa conter: ela se expande ao sistema ao qual o texto pertence e ao momento da
criação estética.
La photographie nous montre une réalité antérieure, et même si elle donne une
impression d’idealité, elle n’est jamais sentie comme purement illusoire : elle est le
document d’une « realité dont nous sommes à l’abri ».
Au contraire, le cinéma appelle la projection du sujet dans ce qu'il voit, et se présente
non pas comme l'évocation d'une réalité passée, mais comme une fiction que le sujet
est en train de vivre. On a pu voir la raison de cette impression de réalité imaginaire
que provoque le cinéma, dans la possibilité de représenter le mouvement, le temps le
récit, etc. (KRISTEVA, 1981, p.311)*.
O filme, portanto, assim como na narrativa literária, possui um narrador, que pode se
apresentar por forma explícita, falando ao mesmo tempo em que as imagens são mostradas,
ou através da câmera. A noção de tempo também é necessária dentro do filme, assim como
numa obra literária, visto que dois livros com o mesmo volume de páginas ou dois filmes com
o mesmo tempo de duração podem representar apenas um dia na vida de uma personagem ou
toda uma vida.
Le cinéma ne copie pas de façon « objective », naturaliste ou continue une réalité qui
lui est proposée : il découpe des séquences, isole des plans, et les recombine par un
nouveau montage. Le cinéma ne reproduit pas des choses : il les manipule, les
*
A fotografia nos mostra uma realidade pré-existente, e mesmo dando uma impressão de idealidade, ela nunca é
sentida como puramente ilusória: é o documento de uma “realidade da qual estamos seguros”. Por outro lado, o
filme recorre à projeção do sujeito naquilo em que ele vê, e isso é representado não é como a evocação de uma
realidade passada, mas como uma ficção que o sujeito está vivendo. Pode-se perceber a razão desta impressão de
realidade imaginária que o cinema provoca, na possibilidade de representar o movimento, o tempo da narrativa,
etc.
21
organise, les structure. Et c'est seulement dans la nouvelle structure obtenue par le
montage des éléments que ceux-ci prennent un sens. (KRISTEVA, 1981, p.312)*.
Kristeva afirma que devemos admitir o cinema como linguagem e não apenas o
considerar como uma, além de sê-lo também uma língua. A autora estabelece uma relação
entre o cinema e as histórias em quadrinhos, pela imitação da organização sequencial das
imagens estáticas para introduzir o tempo e o movimento na narrativa: a imagem isolada é um
enunciado, mas disposta em sequência de outra, forma uma narrativa, e o texto escrito e o
falado servem para seu suporte. A autora ressalta que o termo “linguagem” não deve ser
empregado apenas em seu senso linguístico, mas de modo analógico, pois o cinema é um
sistema de diferenças que transmitem uma mensagem (1981, p. 313).
A discussão entre língua e linguagem é vasta, porém, como afirma Christian Metz, o
termo linguagem cinematográfica já apresenta certa comodidade por já ter se imposto no
vocabulário especializado da teoria e da estética do cinema, enquanto “língua
cinematográfica”, não parece aceitável no atual estado das pesquisas (1977, p. 112). Metz
também afirma que o cinema não é uma língua por não ter um sistema de signos destinados
totalmente à intercomunicação, isto é, o filme é mais preso a um estatuto de arte por consistir
num objeto de arte, sendo muito mais um meio de expressão do que de comunicação (op. cit.,
p. 93). A interlocução entre cineasta e espectador não é imediata, apesar da polemização de
sua mensagem.
*
O filme não copia de forma “objetiva”, naturalista ou contínua uma realidade que se propõe: ele corta as
seqüências, isola os planos e os recombina com uma nova montagem. O filme não reproduz as coisas: ele as
manipula, organiza e as estrutura, e é somente na nova estrutura obtida pela montagem dos elementos que eles
produzem sentido.
22
[...] a maior parte dos filmes de qualidade são legíveis [sic] vários níveis, segundo o
grau de sensibilidade, de imaginação e de cultura do espectador. O mérito de tais
filmes é sugerir, para além da dependência imediata do dramatismo de uma ação, por
mais profunda e humanamente apaixonante que ela seja, sentimentos ou ideias em
geral. Na gênese desta significação, em segundo lugar, o símbolo desempenha um
papel importante. A utilização do símbolo no cinema consiste em recorrer a uma
imagem capaz de sugerir ao espectador mais qualquer coisa [sic] do que a simples
percepção do conteúdo aparente lhe poderia dar. A propósito da imagem fílmica
poder-se-ia falar, na realidade, de um conteúdo aparente e de um conteúdo latente (ou
ainda de um conteúdo explícito e de um conteúdo implícito), sendo o primeiro
diretamente legível e o segundo (eventual) constituído pelo sentido simbólico que o
realizador quis dar à imagem, ou o sentido que o espectador por si próprio vê nela
(MARTIN, 2005, p. 117).
Notamos, portanto, que as diferentes leituras que se pode fazer da narrativa fílmica
dependem muito do hábito que sua platéia ocasional tem de assistir a filmes com enredos mais
elaborados. Martin considera, portanto, a existência de um nível de leitura do espectador e se
faz necessário, portanto, uma alteridade entre autor e leitor através da obra, fundamental no
ato de enunciação, da qual o filme se torna um instrumento de sua materialidade. Estas duas
características do filme também o definem como um texto, pois, como afirma Marcuschi
(2008, p. 83), o texto é um “objeto concreto, material e empírico resultante de um ato de
enunciação”. José Luiz Fiorin também fornece uma definição de texto ligada ao ato da
enunciação e da materialidade:
[... ] como interação com um dado discurso, uma memória discursiva, que constitui
um contexto global que envolve e condiciona a atividade linguística.[...] Torna-se
impossível a apreensão do discurso sem a percepção das relações dialógicas, ou seja,
sem história (GUIMARAES, 2009, p. 134).
A preocupação bakhtiniana com o discurso orientado para e pelo outro traz à luz a
noção de diálogo e suas ramificações:
mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não
desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua
orientação dialógica do discurso para o objeto. Para o discurso humano, concreto e
histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode
dela se afastar (BAKHTIN, 1998, p. 88).
O discurso, portanto, nasce do diálogo, questão que Bakhtin ressalta e que tanto a
linguística quanto a filosofia da linguagem haviam desconsiderado até então. O conceito de
diálogo para Bakhtin/Voloshinov (2006), porém, é mais amplo do que a simples comunicação
entre dois indivíduos:
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é
verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a
palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo
que seja. O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de
diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a
fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem contar as reações
impressas, institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da
comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos
posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma de livro é sempre orientado em
função das intervenções anteriores na mesma esfera de atividade, tanto as do próprio
autor como as de outros autores: ele decorre, portanto, da situação particular de um
problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o discurso escrito é
de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele
responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais,
procura apoio, etc (Op. Cit., p.125, grifo nosso).
[...] a idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre
duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o
qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a idéia quer ser ouvida, entendida
e “respondida” por outras vozes e de outras posições (1981, p. 73).
O autor dialoga, portanto, não somente com suas vozes internas, mas também
pressupõe um leitor que dê sentido a sua obra:
A formulação desse conceito bakhtiniano serviu como base para que Kristeva criasse o
conceito de intertextualidade, a fim de solucionar a problemática das limitações do dialogismo
ao expandir a noção de texto aos interlocutores, considerando o sujeito autoral não só como
um ser biológico, mas um conjunto de formações discursivas, afirmando que
Essa visão da formação criativa como um outro texto, influenciada pelo pensamento
alheio anterior e posterior, serve-nos para o propósito da análise do objeto de estudo, não
somente pelo viés da intertextualidade e da interdiscursividade dentro da gênese textual, mas
também pelos efeitos que a leitura da obra produz através do diálogo externo que se manifesta
posteriormente à obra, quando essa é compreendida e polemizada pelos sujeitos-leitores, que
consistem em outro texto, expandindo, portanto, o conceito de intertextualidade à relação
entre obra e leitor. Tendo em vista que a noção de intertextualidade é posterior à de
dialogismo e se trata de um produto dos estudos de Kristeva sobre a obra de Bakhtin, pode-se
concluir que a intertextualidade incorpora em si os mecanismos do dialogismo, como pode ser
comprovado nos artigos “Le mot, le dialogue, le roman”, onde Kristeva explica, a partir dos
27
Ao afirmar que o texto não pode ser apreendido apenas pela linguística, Kristeva abre
a possibilidade de utilização de sua teoria para as diversas áreas da linguagem, razão pela qual
seu conceito de intertextualidade é utilizado pelas diversas correntes teóricas vigentes.
Kristeva ressalta que Bakhtin denomina diálogo e ambivalência como os dois eixos que
definem o estatuto da palavra, termo que diversas vezes Kristeva trata como sinônimo de
texto, visto que a noção de texto como o depositório de todas as virtudes e potencialidades da
língua, antes atribuído à palavra e posteriormente à frase, é recente em termos
epistemológicos em relação ao contexto de elaboração do conceito de intertextualidade.
Herdamos então o termo ‘banalizado’, e que nos cabe tornar tão pleno quanto
possível. [...] A intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de
influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado
por um texto centralizador, que detém o comando de sentido (1979, p. 15).
*
O termo “intertextualidade” designa essa transposição de um (ou vários) sistema(s) de signos noutro, mas
como este termo foi frequentemente tomado na acepção banal de “crítica das fontes” dum texto, nós preferimos-
lhe um outro: transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem dum a outro sistema significativo
exige uma nova articulação do tético – da posicionalidade enunciativa e denotativa. (Tradução de Laurent Jenny,
1979, p. 15)
29
O segundo tipo é constituído pela relação, geralmente menos explícita e mais distante,
que, no conjunto formado por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém
com o que se pode nomear simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos,
prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim
de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais
acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por
vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos
vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como
desejaria e pretende. Não quero aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir,
deste campo de relações que teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é
certamente um dos espaços privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da
sua ação sobre o leitor [...] (Ibid., p. 9)
Segundo Beth Brait, o termo intertextualidade pode ser utilizado no estudo das
relações dialógicas, porém “não dá conta, sozinho, das complexas relações que incluem,
necessariamente, os discursos sociais, culturais, estéticos motivados pelo diálogo estabelecido
entre textos e pelos posicionamentos assumidos, valores colocados em confronto, em tensão,
31
A memória opera, como elucida Kristeva (1974b), não só num sistema de linguístico,
mas também psicológico, seja na concepção freudiana, quanto na abordagem junguiana dos
32
O aspecto de memória, como já citado por Beth Brait, é explorado por David Lodge
(1993, p. 98-103), que afirma que dentre as maneiras que um texto pode se referir a outro
estão a paródia, o pastiche, o eco, a alusão, a citação direta e o paralelismo estrutural, e que os
autores [de ficção] podem estar cientes ou não de que estes mecanismos estão presentes em
suas obras, podendo inconscientemente utilizar arquétipos míticos ou fábulas, por exemplo.
Lodge também emprega o termo referência que, por sinal, é utilizado amplamente fora
do ambiente acadêmico e exprime fortemente o conceito de intertextualidade em contextos de
esclarecimento para leigos ou para iniciantes em seu estudo. O autor não diferencia a
referência como sendo uma forma sutil ou explícita, mas um processo de recordação do leitor,
que pode se manifestar através de ecos, alusões, provadas ou não em confronto com o autor,
visto que pode ser resultado de uma reprodução inconsciente, ou ainda um efeito subliminar
dessa alusão literária em leitores que leram a obra anterior e a esqueceram ou a conhecem
apenas por citação seletiva.
Tendo em vista essa atuação, e considerando que neste trabalho a análise intertextual
tomará um caminho inverso de uma crítica tradicional de classificação dos intertextos,
identificaremos os textos literários dentro de um objeto de outra mídia e não o contrário.
Seguiremos Clüver e Lodge e consideraremos como referência as diversas manifestações de
intertexto, afim de, como propõem Kristeva e Samoyault, atermo-nos à intertextualidade
como um exercício de acionamento de outros textos por seus leitores e não à sua
classificação.
34
Mais estranho que a ficção possui duas tramas maiores, principais e mais extensas, e
duas menores e secundárias, todas convergentes para o clímax do filme. A primeira,
inicialmente, conta a vida da personagem principal, através de uma narradora com sotaque
britânico (00h00min54s):
This is a story about a man named Harold Crick, and his wristwatch. Harold Crick was
a man of infinite numbers endless calculations and remarkably few words. And his
wristwatch said even less. Every weekday, for 12 years Harold would brush each of
his 32 teeth 76 times. Thirty-eight times back and forth. Thirty-eight times up and
down. Every weekday, for 12 years Harold would tie his tie in a single Windsor knot
instead of the double thereby saving up to 43 seconds. His wristwatch thought the
single Windsor made his neck look fat but said nothing. Every weekday, for 12 years
Harold would run at a rate of nearly 57 steps per block for six blocks barely catching
the 8:17 Kronecker bus. His wristwatch would delight in the feeling of the crisp wind
rushing over its face.*
Com a simultaneidade nessa cena entre narrador e imagem, há um tom irônico nas
tomadas que deveriam demonstrar a visão de Harold sobre o mundo, com o destaque na
primeira cena em que a câmera, como se tornasse forma de um narrador em primeira pessoa,
ao invés de focar o espelho como se fossem os olhos de Harold, parece localizada em sua
boca (00min 01s). Tanta importância dada a uma rotineira escovação de dentes contém três
funções: a primeira, de rebaixamento de um herói, cujos atributos não estão ligados a uma
força externa, cuja jornada não consiste em uma ida a uma terra distante, mas uma jornada
interna.
*
Esta é a história de um homem chamado Harold Crick, e seu relógio de pulso. Harold Crick
era um homem de infinitos números, intermináveis cálculos e notavelmente pouquíssimas
palavras, e seu relógio falava menos ainda. Todos os dias da semana, por 12 anos, Harold
escovava cada um dos trinta e dois dentes setenta e seis vezes: trinta e oito vezes para frente e
para trás, trinta e oito vezes para cima e para baixo. Todos os dias de semana, por 12 anos,
Harold amarrava sua gravata num nó Windsor simples, ao invés do duplo, economizando,
assim, 43 segundos. Seu relógio achava que o nó Windsor simples engordava seu pescoço, mas
não falava nada. Todos os dias da semana, por 12 anos, Harold corria uma marcha de cinquenta
passos por quadra, por seis quadras, para custosamente pegar o ônibus das oito e dezessete para
Kronecker. Seu relógio se deliciava com o vento fresco batendo contra o mostrador (tradução
nossa).
35
dos infográficos e dados que demonstravam este controle. Quando Harold atravessa a rua, não
mais contando os passos, há uma materialização destes gráficos e eles caem: “é a vida
deslocada do seu curso habitual” (Bakhtin, 1997, p. 126).
A segunda função da ênfase da escovação se dá por ser esse o momento em que a voz
de Eiffel se revelará a Harold. Essa mudança na posição da narradora causa uma reação em
cadeia que, como veremos, atingirá todas as personagens e afetará toda a realidade, tendo seu
ápice no enfrentamento de Harold com Eiffel.
And every weekday, for 12 years Harold would review 7134 tax files as a senior agent
for the Internal Revenue Service. […] Only taking a 45.7-minute lunch break and a
4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Only taking a 45. 7-minute
lunch break and a 4.3-minute coffee break timed precisely by his wristwatch. Beyond
that, Harold lived a life of solitude. He would walk home alone. He would eat alone.
And at precisely 11:13 every night Harold would go to bed alone placing his
wristwatch to rest on the nightstand beside him. That was, of course, before
Wednesday. On Wednesday, Harold's wristwatch changed everything. **
**
Além disso, Harold vivia uma vida de solidão: ele caminhava para casa sozinho, ele comia
sozinho. E precisamente às onze e treze, todas as noites, Harold ia dormir sozinho, deixando
seu relógio para descansar sobre o criado-mudo junto à cama. Isso foi, é claro, antes de quarta-
feira. Na quarta-feira, o relógio de Harold mudou tudo.
36
Mais uma vez o relógio é descrito como portador de sensações e vontades, pois
precisava descansar e causaria mudanças. Ele poderia ser equivocadamente considerado
apenas como parte do cenário ou da constituição de Harold, pois numa primeira leitura do
filme podem ser ignoradas as opiniões do relógio, que achava que o nó que Harold fazia na
gravata engordava seu pescoço, mas não falava nada (1min 40s); que amava o vento fresco
batendo contra seu mostrador (2min 03s) e que, como diz a narradora, mudou tudo na quarta-
feira (3min 35s). É uma lasca de metal do relógio que impede a morte de Harold, obstruindo
uma artéria, impedindo a hemorragia (1h 40min 24s). Caso não estivesse na estória desde seu
início, o salvamento do herói poderia ser confundido com um recurso de deus ex machina,
mas essa é a estória de Harold e seu relógio de pulso, como expõe a narradora na primeira
frase do filme. Também é possível neste momento especular a onisciência da narradora, visto
que ela demonstra saber o que acontecerá adiante, na quarta-feira.
Por sua vez, o narrador heterodiegético, o mais comum na Literatura, não é co-
referencial com nenhuma das personagens da diegese e não participa, por conseguinte, na
história narrada, apenas narra os acontecimentos. Também consiste na maioria das vezes num
narrador onisciente e observador. O narrador relata uma história à qual é estranho uma vez
que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão,
estabelecendo uma relação de alteridade e tentando adotar uma atitude demiúrgica em relação
a história que conta. Ele manipula o tempo do discurso de forma desenvolta, utilizando de
analepses, prolepses ou sumários, exprime-se normalmente na 3ª pessoa, o que não impede,
contudo de utilizar a 1ª pessoa, e por se situar muitas vezes num nível narrativo
extradiegético, isto é, não participar da história que conta, estando fora dos acontecimentos, e
pelo anonimato que quase sempre o atinge, favorece uma situação propícia para a confusão do
narrador com o autor. Ele pode ser apreendido principalmente nas obras realistas, naturalistas
38
e neo-realistas e projeta em suas obras códigos ideológicos e temas que se articulam com
esses códigos, como pode ser conferido nos romances de Eça de Queirós, Flaubert, Tolstoi e
grande parte dos narradores do século 19.
Tendo em vista essa terminologia, poderíamos (ou podemos, até este momento)
classificar a narração inicial do filme como heterodiegética, e consequentemente
extradiegética. Porém, na interação entre a narradora e o protagonista, essas categorias dão-se
por terra, por não terem previsto a desconstrução do mundo ficcional através da
metalinguagem e do fantástico, visto que a metalinguagem é muito mais explorada como uma
manifestação da crítica literária (BARTHES, 2007, p. 27) ou como uma reflexão sobre a
língua (CAMPOS, 2006, p. 17-29), e o fantástico, por outro lado, tem como característica
enriquecedora sua variedade temática.
Genette, entretanto, define como narrativa intercalada aquela onde vários atos
narrativos são intercalados entre eventos (1972, 229). O autor considera este o mais difícil e
complexo modo de narrar, dada a necessidade de emaranhar as estórias, e é possível notarmos
isso em Mais estranho que a ficção nos momentos em que, aparentemente sem nenhuma
relação com a trama principal, são mostrados um garoto ganhando uma bicicleta e uma
mulher procurando emprego (00h03min44s). Essas duas personagens, anônimas e não
narradas, conduzirão as duas tramas menores, quase imperceptíveis numa primeira leitura do
filme. A alternância dessas tramas é o princípio da montagem alternada paralela, onde, como
explica Marcel Martin (2005), “duas (e por vezes várias) ações são conduzidas pela
intercalação de fragmentos, pertencendo alternadamente a cada uma delas, com o objetivo de
fazer surgir um significado da sua confrontação” (MARTIN, 2005, p. 200).
Harold aparece logo em seguida, escovando seus dentes. A narradora continua: “Se
alguém perguntasse, Harold teria dito que esta quarta-feira em particular era exatamente igual
às quartas-feiras anteriores. E ele a começou do mesmo jeito.” (00h04min03s). Neste
momento Harold para de escovar os dentes, percebendo estar ouvindo uma voz. Primeiro ele
acha que o som vem de sua escova de dentes. Há um momento de silêncio. Ao retornar à
escovação, a narradora também continua descrevendo suas ações, e Harold grita perguntando
se que há alguém em seu apartamento. Sem resposta, ele decide continuar escovando e
ouvindo a narração: “Enquanto os outros fantasiavam sobre o dia que teriam ou tentavam se
39
lembrar das cenas finais do último sonho, Harold apenas contava as escovadas”. Harold fica
mais assustado, já que alguém sabe seus pensamentos.
A narradora continua descrevendo as ações de Harold, que perturbado pela voz, não
consegue desempenhar as ações do cotidiano, do simples ato de se vestir até a conversa com
colegas de trabalho, assim como em todas as vezes em que ele interrompia algo, a voz
também cessava a narração.
Harold conversa com um colega de trabalho, que não escuta a voz. Complacente com
sua situação, seu amigo sugere que Harold vá auditar uma padaria, achando que seria um
trabalho mais tranquilo. Harold, porém, é hostilizado pela dona da padaria, Ana Pascal, e
vaiado por sua clientela, sendo que um desses clientes chega a apontar uma faca em sua
direção. Após um diálogo com Ana sobre sua sonegação de impostos, Harold é mais uma vez
assombrado pela narradora:
*
Era difícil para Harold imaginar a Srta. Pascal como revolucionária. Seus braços finos
brandindo cartazes de protesto, suas formosas longas pernas fugindo do gás lacrimogêneo.
Harold não era dado a fantasias e fez um grande esforço para manter o profissionalismo. Mas,
obviamente, falhou. Ele não conseguia evitar imaginar Srta. Pascal acariciando seu rosto com a
parte lateral do dedo. Não conseguia evitar imaginá-la submersa em uma banheira depilando as
pernas. E não conseguia evitar imaginá-la nua estirada em sua cama (tradução nossa).
40
Ele se contradiz, porém, pois grita para o alto, como disse a narradora, não
necessariamente para os céus. O primeiro conflito dentro da narrativa para o protagonista é
estabelecido: Quem narra? Enquanto isso, para o espectador há um novo questionamento: O
que é real? Entretanto, mesmo que resolvido o conflito de que Harold é uma invenção de
Eiffel, ou vice-versa, ambos são construtos: tudo dentro da obra é ficção ou, no máximo,
representações.
**
[Narradora:] – Harold, de repente, viu-se sitiado e exasperado, fora da padaria...
[Harold]: - Cale a boca!
[Narradora:] - ... amaldiçoando os céus futilmente.
[Harold]: - Não, eu não estou, eu estou amaldiçoando você, sua voz estúpida! Então cale a boca
e me deixe em paz!
41
[...] É evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que
poderia ter acontecido, segundo, verossimilhança e a necessidade. O historiador e o poeta não
se distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso
[...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter
acontecido. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história,
porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular. O universal é o
que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil
ou o necessário. (ARISTÓTELES, 2004, p. 43)
Aristóteles também considera possível o poeta não apenas criar, mas também relatar
fatos históricos e fábulas, porém ao imitar a ação em seu conjunto, o poeta, diferentemente do
historiador, desperta terror e compaixão. Evidentemente, para Aristóteles o conceito de poeta
não é restrito ao autor de poesias, mas a todo autor de ficção, e é definido pela sua missão:
“[...] consiste mais em fabricar fábulas do que fazer versos, visto que ele é poeta pela
imitação, e porque imita as ações” (Idem, p. 45). Esse conceito em muito também se aproxima
da função do narrador:
Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples
narrativa ou pela introdução de um terceiro, como faz Homero, ou insinuando-se a
própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apresentando a
imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias
(ARISTÓTELES, 2004, p.28).
Epopéia e romance, ambas as objetivações da grande épica, não diferem pelas intenções
configuradoras, mas pelos dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração.
O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada
de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que
ainda assim tem por intenção a totalidade. (LUKÁCS, 2000, p. 55).
Também Tzvetan Todorov afirma que “um novo gênero é sempre a transformação de
um ou de vários gêneros antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação”
(TODOROV, 1980, p. 46). Também sobre os gêneros, Bakhtin/Voloshinov ressalta que “cada
43
época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-
ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de
discurso social, corresponde um grupo de temas” (2006, p. 42). Sendo assim, podemos
afirmar que a narrativa moderna é o resultado da transformação da epopéia, tendo como tema
principal nesta forma de criação estética o herói que ainda busca sua identidade.
Em seu estudo sobre a questão da identidade, Stuart Hall considera o homem como
detentor de uma identidade formada a partir do Iluminismo. Antes disso, segundo Hall,
acreditava-se que as tradições e estruturas eram “divinamente estabelecidas [...]. O status, a
classificação e a posição de uma pessoa na grande ‘cadeia do ser’ – a ordem secular e divina
das coisas – predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo
soberano” (HALL, 2003, p. 25).
Na maior parte dos casos, porém, e especialmente naquela área em que o discurso
indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço – a área da nova ficção em
prosa – a transmissão oral da interferência apreciativa seria impossível. Além disso, o
próprio desenvolvimento do discurso indireto livre está ligado à adoção, pelos grandes
gêneros literários em prosa, de um registro mudo, ou seja, para leitura silenciosa.
Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou possível a superposição dos
planos e a complexidade, intransmissível oralmente, das estruturas entoativas tão
características da literatura moderna (Bakhtin/Voloshinov, 2006, p. 197).
A grande forma épica (a grande epopéia), que abrange também o romance, deve
proporcionar uma imagem de conjunto do mundo e da vida, deve refletir o mundo e a
vida por inteiro. O romance deve apresentar a imagem global do mundo e da vida pelo
ângulo de uma época considerada em sua integridade. Os acontecimentos
representados no romance devem, de um modo ou de outro, substituir toda a vida de
uma época. (Bakhtin, 1997, p. 264, grifos do autor)
Bakhtin ressalta, porém, que não era possível representar um “mundo inteiro” no
romance até o Renascimento porque nem mesmo o mundo real era conhecido em sua
totalidade, além do que o fantástico não visava outros mundos, mas completar aquele em que
se vivia (Idem, p. 265). Em Estética da criação verbal, o filósofo traça um panorama histórico
do romance, assim como em Problemas da poética de Dostoiévski. Nessa obra, Bakhtin
define o romance polifônico: é aquele marcado pela existência de “um herói cuja voz se
estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum. (...)
É como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e
com as vozes plenivalentes de outros heróis.” (1981, p.5, grifos do autor).
Quando não são diretamente justificados por uma situação ligada à ação, os ângulos de
filmagem excepcionais podem adquirir um significado psicológico particular. [...] O
plano picado (filmagem de cima para baixo) tem tendência para tornar o indivíduo
ainda mais pequeno, esmagando-o moralmente ao colocá-lo no nível do solo, fazendo
dele um objecto levado por uma espécie de determinismo impossível de ultrapassar,
um brinquedo do destino (MARTIN, 2005, p. 51).
Quando Harold grita para cima, há uma resposta. A câmera se afasta dele em
movimento de ascensão, sem desfocá-lo. A próxima tomada dá continuidade a esse
movimento, com a câmera já em um ângulo alto, mostrando uma mulher na ponta de um
parapeito de um prédio, olhando para baixo, numa vetorização oposta à de Harold. Ela tem as
mãos estendidas e as move como se sentisse algo dentre os dedos ou como movesse algo. É
mostrada uma calçada sendo lavada por um homem, e a mulher anônima que procurava
emprego no começo do filme é molhada por ele por culpa do garoto que ganhou uma bicicleta
nos minutos iniciais.
A imagem do prédio é sobreposta pela imagem de uma mão estendida, e as linhas das
paredes do edifício parecem se ligar às pontas de seus dedos, que se movem como se
manipulassem uma marionete, produzindo efeitos ao mesmo tempo de metáfora fílmica e de
estado onírico. O efeito de metáfora no filme é atingido pelo confronto entre as imagens
através da sobreposição, “que exprime [...] uma compenetração perceptiva, permitiu belos
efeitos psicológicos (expressão do sonho, de alucinação) e simbólicos” (Martin, 2005, p.233).
A mulher é interrompida por uma voz que pede licença, e as linhas agora são a
moldura da janela. Uma mulher negra aparece em frente a essas linhas, com o foco sendo
46
ajustado se como a voz despertasse a primeira mulher, que ao invés de estar no topo de um
prédio, está sobre uma mesa. A mulher negra, interpretada por Queen Latifah pergunta se a
mulher sobre a mesa se chama Eiffel. Com a confirmação, a recém chegada se apresenta
como Penny Escher, enviada pela editora como assistente. Karen protesta, dizendo que Penny
foi enviada por acharem que ela está com bloqueio criativo.
Karen fala sobre uma fotografia que viu em um livro chamada The Leaper (traduzido
como “A Suicida” na legenda do filme, mas com o sentido de “saltadora” numa tradução mais
literal):
“It's old, but it's beautiful. From above the corpse of a woman who'd just leapt to her
death. There's blood around her head, like a halo and her leg's buckled underneath,
her arm's snapped like a twig, but her face is so serene, so at peace. And I think it's
because when she died she could feel the wind against her face.” (16min 13s) *
Apesar de essa fotografia não estar presente no filme nem ter seu autor definido, há
uma forte relação dialógica com a famosa fotografia da modelo (fig. 1) capturada por Richard
Wiles para a revista Life em 12 de Maio de 1947 e republicada na coletânea organizada por
David E. Scherman, The Best of Life (1973), que posteriormente foi utilizada por Andy
Waröl em sua obra Suicide (Fallen Body). A altivez do rosto de Evelyn também é ressaltada
por Dillenberger em Religious Art of Andy Warhol, na análise do quadro de Waröl: “The
model is serene and whole in death, her body cradled on the indented top of a car, her face
tranquil, her body relaxed, her white gloved hand touching her pearls.” (DILLENBERGER,
2001, p. 67) *
*
“É antiga, mas é linda. De alto [se vê] o cadáver de uma mulher que tinha acabado
de pular para a morte. Há sangue em volta da cabeça, como uma auréola e sua perna
está dobrada para baixo, seu braço está quebrado como um galho, mas seu rosto está
tão tranquilo, tão em paz. E eu acho que é porque quando ela morreu, ela podia sentir
o vento contra o rosto* (tradução nossa).
*
“A modelo está serena e completa na morte, seu corpo embalado [como num berço] no teto retorcido de um carro, seu rosto
tranquilo, seu corpo relaxado, com a mão em luva branca tocando suas pérolas” (tradução nossa) .
47
Fig 1: corpo de Evelyn McHale, (Robert C. Wiles, 1947) Fig. 2: Suicide (Fallen Body), Andy Waröl
Tão logo reconheçamos que poemas, pinturas ou sinfonias não sejam textos
autônomos ou auto-suficientes e que não sejam intrinsecamente ou essencialmente
românticos, impressionistas ou simbolistas; tão logo reconheçamos a importância do
“ler como” (reading as) e do papel do leitor no processo de estabelecer o status e o
sentido dos textos; tão logo nos apercebamos da importância das intertextualidades no
processo de leitura e tão logo readmitamos o poeta/artista/compositor/produtor de
textos aos contextos em que percebemos o texto – a partir de então incluiremos em
nossas investigações históricas a tarefa de reconstrução das preocupações e programas
estéticos, dos modos de representação, das convenções estilísticas estruturais
48
Assim como Todorov desenvolve que as alusões possuem um outro sentido dentro do
fantástico, Clüver afirma que
Ekphraseis literárias não operam com tais restrições, mesmo sendo baseadas em obras
reais; a maioria delas tendem a atingir autonomia em relação ao texto-fonte, o qual
transformam de acordo com as necessidades do texto literário onde funcionam. (Ibid.,
p.42)
Nesse caso, além de inferir que a criação provém de uma fonte externa de inspiração, o
quadro causa uma convergência de discursos sobre a morte, tratada como uma casualidade
poética e libertadora, que se concretizará na autotextualidade de Karen na concepção da morte
de Harold. As citações do quadro da suicida, partindo do pressuposto de Fiorin que se pode
alterar ou confirmar o sentido do texto citado ou fazer uma citação por outra semiótica (2003,
p. 30-31), aparecem de forma verbal, como já citamos, e plástica, no atropelamento de Harold
(fig. 3 e 4): as pernas de Harold também se emborcam para baixo do corpo, assim como seu
braço parece um galho quebrado, além da tomada aérea que confere com a descrição do
quadro da suicida descrito por Karen.
Nesse momento, porém, mais importante do que identificar esses elementos de coesão
do filme, é perceber que além da incorporação da voz de outro na materialidade dessa cena e
da confrontação (no sentido de resposta) de um discurso anterior, há um conceito ideológico
que foi polemizado pelo filme: a função da morte não só sob uma perspectiva de sacrifício,
numa discursividade de um ideal romântico, mas também, como Bakhtin também defende
(1997a, p. 35), uma forma de acabamento do herói e da obra em que ele está inserido.
Após falar sobre uma fotografia, Karen diz que não sabe como matar Harold Crick.
Penny descreve suas aptidões profissionais e diz que irá ajudá-la nessa empreitada
(16min52s). O filme se volta novamente para Harold, que é convocado a falar com Dr. Cayly,
num tom estranhamente informal, no departamento de recursos humanos da empresa. A
narradora retorna, voltando o pensamento de Harold novamente para Pascal. As nuvens
pintadas na parede atrás de Harold começam a se mover, sugestionando um elemento onírico
ao espectador. Ao fechar os olhos, Harold é interrompido pelo médico, que lhe sugere tirar
férias.
A lente do mostrador do relógio faz, portanto, que o espectador veja o mundo pela
perspectiva do relógio, um objeto que não tem olhos tampouco tem qualquer função
relacionada à visão. Seus pensamentos continuam a ser descritos pela narradora:
50
Harold supôs que seu relógio estava simplesmente com defeito e nem sequer
considerou que ele poderia estar tentando lhe dizer algo. De fato, Harold nunca
prestara muita atenção nele, exceto para ver as horas, o que, na verdade, deixava o
relógio maluco.
E assim, neste particular começo de noite, enquanto Harold esperava o ônibus, seu
relógio, de repente, parou.
Harold pergunta as horas às outras pessoas que esperam o ônibus, e ajusta seu relógio
para as seis horas e dezoito minutos. Após isso, a narradora continua: “Thus Harold's watch
thrust him into the immitigable path of fate. Little did he know that this simple, seemingly
innocuous act would result in his imminent death.”* (21 min 00s).
Ao narrar seus próprios atos, Harold usa palavras que não usaria no dia a dia,
revelando traços de polifonia presentes no filme, pelas diferentes vozes conflitantes. Há
também nessa cena um confronto com o espelho. Este objeto, muito caro ao cinema pela sua
utilização, é considerado uma temática à parte, como ressalta Martin:
*
“E assim o relógio de Harold o empurrou ao imitigável caminho do destino. Mal sabia ele que esse simples e
aparentemente inócuo ato resultaria na sua morte iminente” (tradução nossa).
*
[Harold:] - Ok, onde você está?
“Harold escovava os 32 dentes 72 vezes.”
Por que não fala nada? Eu ouvi você.
“Aquilo resultaria em sua morte iminente.”
Eu ouvi você! Ande, voz idiota!
“Harold freneticamente agarrou seu abajur. Harold, indignado, chacoalhou-o como o inferno,
sem razão aparente. E o esmagou no chão, chutando-o repetidamente! Ele pegou a caixa de
[lenços de papel] Kleenex, e jogou pelo quarto... e então invadiu o armário!”
Vamos. Diga alguma coisa. Algo. Diga alguma coisa! Diga alguma coisa!
“Harold, perturbado...” Deus!
“Harold, perturbado...Harold ...” (tradução nossa)
51
[...]o [tema] do espelho, janela aberta sobre um mundo misterioso e angustiante (ver o
espelho de “Der Student von Prag” - O Estudante de Praga, onde se vê o duplo do
protagonista, ou aquele que, num dos episódios de “Dead of Night” - A Dança da
Morte, restitui um passado que antigamente fazia parte das suas funções), ou então
testemunho impassível e cruel das tragédias humanas (ver aquele espelho onde se
multiplica o desespero de “Cidadão Kane” (2005, p. 82, observação do autor).
O mesmo acontece com o espelho (em francês, miroir), esse objeto cujo parentesco
com “maravilha” [etimologicamente se origina] por uma parte, e olhar (“olhar-se”) por
outra [...] A verdadeira riqueza, a verdadeira felicidade (e estas se encontram no
mundo do maravilhoso) só são acessíveis aos que conseguem se olhar no espelho [...]
A “razão”, que rechaça o maravilhoso e também renega ao espelho, sabe bem. A
“razão” se declara contra o espelho, que não oferece o mundo, a não ser uma imagem
do mundo, uma matéria desmaterializada em uma palavra, uma contradição frente à lei
de não-contradição. [...] Olhar através de lentes permite descobrir outro mundo e
falseia a visão normal; o transtorno é semelhante ao produzido pelo espelho. A visão
pura e simples nos descobre um mundo plano, sem mistérios. A visão indireta é a
única via para o maravilhoso. Mas esta superação da visão, esta transgressão do olhar,
não são por acaso seu símbolo mesmo e algo assim como seu maior elogio? As lentes
e o espelho se convertem na imagem de um olhar que já não é um simples meio de
unir o olho com um ponto do espaço, que já não é puramente funcional, transparente,
transitiva. Estes objetos são, em certa medida, olhar materializado ou opaco, uma
quintessência do olhar. Por outra parte, a palavra “visionário” contém a mesma
ambiguidade fecunda: é aquele que vê e não vê, e é de uma vez grau superior e
negação da visão. (1981, p. 64, grifos do autor)
Nesse sentido, Mais estranho que a ficção possui os tipos menos convencionais de
lentes: na cena inicial, em que Harold escova os dentes, a câmera é mostrada como se
estivesse dentro de sua boca. Ao entrar correndo em casa, procurando pela voz, Harold é
mostrado pelos furos de vazão do chuveiro. Após isso, Harold olha para o espelho,
procurando algo além de si mesmo. A câmera o mostra de frente, como se o espectador o
visse através do objeto, mas o olhar da personagem vagueia, ele se olha, mas não se vê.
Impossibilitado de trabalhar, Harold consulta uma analista, ainda não acreditando
totalmente estar louco, numa possibilidade de racionalização do elemento fantástico. Essa
dúvida, tanto para Harold quanto para o espectador, consiste, segundo Todorov, em uma forte
característica do fantástico, visto que, para o autor, este gênero ocupa o tempo desta incerteza
(TODOROV, 1981, p. 15). Harold recebe, então, seu diagnóstico:
52
(22 min 56 s): [Dra. Mittag-Leffler:] – I'm afraid what you're describing is
schizophrenia.
[Harold:] – No. No. It's not schizophrenia. It's just a voice in my head. I mean, the
voice isn't telling me to do anything. It's telling me what I've already done. Accurately
and with a better vocabulary.
- Mr. Crick, you have a voice speaking to you.
- No, not to me, about me. I'm somehow involved in some sort of story. Like I'm a
character in my own life. But the problem is that the voice comes and goes. Like there
are other parts of the story not being told to me and I need to find out what those other
parts are before it's too late.
- Before the story concludes with your death.
- Yes.
- Mr. Crick, I hate to sound like a broken record but that's schizophrenia.
- You don't sound like a broken record, but it's just not schizophrenia. What if what I
said was true? Hypothetically speaking, if I was part of a story, a narrative even if it
was only in my mind what would you suggest that I do?
- I would suggest you take prescribed medication.
- Other than that.
- I don't know. I suppose I would send you to see someone who knows about
literature.
- Okay. Yeah. That's a good idea. Thank you.*
*
[Dra. Mittag-Leffler:] – Temo que o você está descrevendo é esquizofrenia.
[Harold:] – Não, Não é esquizofrenia. É só uma voz na minha cabeça. Quer dizer, a
voz não está me dizendo para fazer nada, está me dizendo o que já fiz. Com precisão e
com um vocabulário melhor.
– Sr. Crick, você tem uma voz falando com você.
– Não, não comigo. Sobre mim. Estou de alguma forma envolvido em algum tipo de
estória. Como se eu fosse Uma personagem na minha própria vida. Mas o problema é
que a voz vem e vai. Mas há outras partes da estória não contadas a mim e preciso
saber o que essas outras partes são antes que seja tarde demais.
– Antes que a história conclua com a sua morte.
– Sim.
– Sr. Crick, detesto soar como um disco furado, mas isso é esquizofrenia.
– Você não soa como um disco furado, mas só não é esquizofrenia. E se o que eu disse
fosse verdade? Hipoteticamente falando, se eu fosse parte de uma estória, uma
narrativa mesmo que fosse só na minha mente, o que você sugeriria que eu fizesse?
– Sugeriria que tomasse medicação prescrita.
– Além disso.
– Não sei. Suponho que o enviaria para alguém que conhece literatura.
– Ok. Essa é uma boa ideia. Obrigado.
53
Quando Karen revela que está em crise criativa por não conseguir terminar sua obra.
Um espectador mais atento entenderá que Karen é uma escritora e Harold é uma personagem
de seu livro. Consequentemente, essa elucidação gera mais dúvidas: trata-se de uma narrativa
paralela ou de um recurso de mise en abyme (ou nested narrative) isto é, uma história dentro
da outra? O aparecimento de Eiffel como personagem coloca em xeque a “existência” de
Harold: a materialidade de um traz o questionamento da materialidade do outro, assim como
da própria ficção, que reflete sobre si própria, criando uma metaficção.
Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da Jornada do Herói
se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que
fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele
está prestes a deparar-se. (CAMPBELL, 2007, p.74)
O mestre é o responsável, portanto, pela iniciação, que enviará o herói à segunda parte
desta jornada. Campbell compara a jornada do herói clássico a Luke Skywalker, protagonista
dos episódios 4 a 6 da saga fílmica Star Wars.
O mestre, assim como o centauro Quirón, professor e tutor de muitos heróis no mito
grego, revela no primeiro impacto muito mais o grotesco do que o conhecimento que
compartilhará com o herói, muitas vezes para testá-lo, já que “alguns mestres decidem não
ensinar nada, com receio do mau uso que a sociedade fará do que eles descobriram”
(CAMPBELL, 1991, p. 154). Também no texto bíblico os mestres descritos representando
extrema humildade em contraste à sua importância, como por exemplo João Bastista, que
56
“[...] tinha as suas vestes de pelos de camelo, e um cinto de couro em torno de seus lombos; e
alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre.” (Mateus 3:4), e mesmo Jesus Cristo, que
chega em Jerusalém montado em um jumentinho (Lucas 19:28-44), e após Sua ressurreição é
confundido com um jardineiro por Maria Madalena (João 20:15). Cabe ao discípulo, portanto,
conseguir identificar a grandiosidade do mestre sem se ater a sua aparência física.
Harold conversa com um aluno da universidade que lhe diz que o professor não está
no prédio, mas próximo da árvore segurando seus óculos. Notamos aqui uma tendência, tanto
no cinema quanto na literatura, de descrever o professor como um sujeito exótico, excêntrico.
Temos, como exemplo em obras literárias, em Dois Irmãos, de Milton Hatoum, “o mestre de
francês, ele mesmo um excêntrico, um dândi deslocado na província, recitador de simbolistas,
palhaço da sua própria excentricidade.” (Hatoum, 2006, p. 34.); em Os Desastres de Sofia,
conto de Clarice Lispector, a aparência do professor também causa inquietação:
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de
profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos
dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó
na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com
um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. [...] E bem devagar vi o professor
todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele
era o homem de minha vida. O novo e grande medo. (LISPECTOR, 1999, p. 11-19)
Tanto na apresentação das personagens quanto no espaço em que elas são encontradas
percebemos a presença do grotesco, contrastando com suas virtudes. Bakhtin (1987, p. 268)
desenvolve as concepções sobre o grotesco, considerando as origens folclóricas e
ambivalentes deste conceito, não somente a carga do ridículo, da aberração, “do que vem das
grutas”, mas também da renovação. Isso se dá pelo processo de carnavalização, onde as
máscaras são um dos elementos essenciais:
[...] É preciso um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do
espírito e das ideias. A sua [a da festa] sanção deve emanar não do mundo dos meios e
condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto
é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa. [...] Essa
visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de
imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar-se através de formas de expressão
dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas. Por isso, todas as formas e
símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da
renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder.
(BAKHTIN, 1987, p. 8-10.)
haver uma relação harmoniosa, sua autoridade é exercida pelo conhecimento de mundo e pela
contribuição que ele dará ao seu interlocutor, caso contrário, isto é, se o professor tentar impor
sua autoridade por outros meios, como através da hierarquia, por exemplo, a relação
professor-aluno torna-se conflitante ou desastrosa, como para Lino, professor de música de
Hércules, que tendo repreendido seu discípulo com aspereza demais, despertou a ira do filho
de Zeus que o matou com uma pancada; ou o professor de matemática em Dois Irmãos, que
humilhando seu aluno Omar despertou-lhe um desejo de vingança que resultou em agressão
física (HATOUM, 2006, p. 33); ou a primeira professora de Joana em Perto do Coração
Selvagem, que não sabendo responder à pergunta da aluna foi constrangida perante toda a
turma (LISPECTOR, 1998, p. 30); ou o professor em Os Desastres de Sofia, que,
demonstrando impaciência, é desafiado.
Tanto em Mais estranho que a ficção quanto em Dois Irmãos e Perto do Coração
Selvagem, o reconhecimento da autoridade se dá pela busca do aluno pelo professor em seu
espaço. Nota-se que o tipo de interação muda à medida que as personagens são retiradas do
contexto da sala de aula, assim como os temas a serem debatidos, sem estarem presos a um
programa imposto pela instituição. Para Georg Lukács, “o cenário possui uma significação
autônoma, enquanto elemento destinado a completar o ambiente.” Ele possui um conteúdo
simbólico que revela traços das relações sociais e elementos dramáticos que revelam os
aspectos das personagens (LUKÁCS, 2000, p. 49). A sala de aula, neste sentido, chega quase
a um não-lugar, isto é, um local de passagem (AUGÉ, 1994, p. 36), enquanto o cenário que
realmente representa o professor aproxima-se do recluso, do isolamento, da gruta.
Dois cenários parecidos são descritos em Dois Irmãos, ambos habitados pelo professor
Laval, e que o narrador descreve como cavernas:
59
Pensava em Laval, nas conversas noturnas em sua caverna, como ele chamava o porão
onde morava sozinho. (...) Eu via a silhueta de Laval através do óculo redondo do
porão. A luz solar pouco aclarava a caverna, e uma lâmpada que pendia do teto
iluminava a cabeça do mestre. (HATOUM, 2006, p. 190)
O que se sabe é que, desde então, Laval internou-se no subsolo de uma casa à margem
do Igarapé de Manaus. Várias vezes foi encontrado no canto da caverna, quieto e
emudecido, o rosto, cadavérico, a barba espessa que ele conservaria até a imolação.
(Op. cit., p. 193)
Também em Perto do Coração Selvagem, Joana faz sua última visita a seu professor:
Sabia que o professor adoecera, que fora abandonado. [...] naquela mesma sala
estranha e sonsa onde agora a poeira vencera o brilho. Ela olhava ao redor e a meia
escuridão era úmida e ofegante. O professor parecia um grande gato castrado reinando
num porão. (LISPECTOR, 1998, P. 114)
vários sítios por si só incompatíveis, e utiliza como exemplo a biblioteca e o museu, espaços
cuja composição depende de objetos que representam outros tempos e espaços, podendo ir do
espaço íntimo até o espaço sideral.
Sendo assim, a presença dos livros na sala faz com que o leitor infira sua leitura pelo
professor. Além de outras narrativas, que representam outros tempos e espaços, os livros
também são depositários dos discursos que compõem a fala de Jules Hilbert. Como veremos,
dentre personagens do filme, o professor projeta o maior número de vozes ecoando em seu
discurso, ou seja, sua fala é a que mais tem propriedades dialógicas na obra e mais citações
intertextuais.
A interação entre o professor e o novo aluno molda o discurso de Hilbert à medida que
novas situações e informações sobre o problema de Harold vão surgindo. O primeiro diálogo
entre Harold e o professor no filme acontece enquanto ambos sobem uma escada e em
seguida, entram em um banheiro (24min 41s):
[Prof. Jules Hilbert:] - So you're the gentleman who called me about the narrator.
[Harold:] - Yes.
- This narrator says you're gonna die.
- Yes.
- How long has it given you to live?
- I don't know.
- Dramatic irony. It'll fuck you every time. *
*
[Prof. Jules Hilbert:] – Então você é o jovem cavalheiro que me ligou sobre o
narrador.
[Harold:] – Sim.
– E esse narrador diz que você vai morrer.
– Sim.
– Quanto tempo lhe foi dado para viver?
– Não sei.
– Ironia dramática. Vai te ferrar sempre. (tradução nossa)
61
fala também revela a formação discursiva do roteirista do filme: o termo ironia dramática é
encontrado muito mais em guias para elaboração de roteiros para teatro, cinema e televisão,
do que em teoria literária, que por outro lado trata essa ferramenta muitas vezes como a sátira,
que na Literatura, por sua vez, possui um número considerável de vertentes, o que permite
considerá-la um gênero à parte. Neste ponto de vista, ela engloba muito outros aspectos
históricos e políticos do que o viés que privilegiamos neste estudo, e por isso a distinção entre
sátira e ironia dramática.
Assim como em Mais Estranho que Ficção, em Édipo Rei também há uma
personagem que sabe do destino do protagonista, porém não o revela: quando é chamado para
testemunhar, o cego Tirésias se lamenta: “Como é terrível a sapiência, quando quem sabe não
consegue aproveitá-la!” (SÓFOCLES, 2002, p. 34.) Ele inicialmente se recusa a dizer o que
sabe, porém não deixa de lançar uma maldição em tom profético antes de sair de cena:
Sentir-te-ás um dia tão aniquilado como jamais homem algum foi neste mundo! [...] o
homem que vens procurando entre ameaças e discursos incessantes sobre o crime
contra o rei Laio, esse homem, Édipo, está aqui em Tebas e se faz passar por
estrangeiro, mas todos verão bem cedo que ele nasceu aqui e essa revelação não há de
lhe proporcionar prazer algum; ele, que agora vê demais, ficará cego; ele, que agora é
rico, pedirá esmolas e arrastará seus passos em terras de exílio, tateando o chão à sua
frente com um bordão. Dentro de pouco tempo saberão que ele ao mesmo tempo é
irmão e pai dos muitos filhos com quem vive, filho e consorte da mulher de quem
nasceu; e que ele fecundou a esposa do próprio pai depois de havê-lo assassinado! Vai
e reflete sobre isso em teu palácio e se me convenceres de que agora minto, então terás
direito de dizer bem alto que não há sapiência em minhas profecias! (Ibid., p. 40-41.)
William Shakespeare (1564–1616), também se inicia com um coro que revela o destino dos
amantes:
Chorus.Two households, both alike in dignity, In fair Verona, where we lay our scene.
From ancient grudge break to new mutiny, where civil blood makes civil hands
unclean. From forth the fatal loins of these two foes a pair of star-cross'd lovers take
their life; whose misadventur'd piteous overthrows doth with their death bury their
parents' strife. The fearful passage of their death-mark'd love, And the continuance of
their parents' rage, which, but their children's end, naught could remove, is now the
two hours' traffic of our stage; the which if you with patient ears attend, what here
shall miss, our toil shall strive to mend. (SHAKESPEARE, 1993, p. 2)*
Além do coro revelando o final, a peça tem seu personagem profético: antes de sua
morte, Mercúcio, amigo de Romeu: “Que uma praga caia sobre suas casas”
(SHAKESPEARE, 1993, p.68, tradução nossa). Também é possível identificar a ironia
dramática em contraste com outra figura profética, presente na Literatura Portuguesa: o velho
do Restelo, no Canto IV de Os Lusíadas¸ de Luís Vaz de Camões, representa o pessimismo e
sua voz destoa do narrador:
Não se deve correr o risco, portanto, de considerar toda profecia uma ironia dramática.
A ironia pode ser considerada no fato de que a personagem que representa o conservadorismo
português se encontra justamente no Restelo, local de onde partem os barcos para a Índia,
além do contraste de uma única voz em poucos versos dentro de um grandioso poema que
exalta o povo português. A fala do velho, articulada em forma de perguntas, configura muito
mais uma crítica à expansão marítima do que uma ironia dramática, visto que e as mortes das
*
Coro. Duas casas, iguais em dignidade, na formosa Verona, onde preparamos nossa cena.
Antigos ressentimentos explodem em novo motim, onde o sangue civil torna mãos civis
imundas. Diante dos corpos fatais desses dois inimigos, um par de cruzadas estrelas amantes
toma suas vidas; cuja desafortunada queda porventura com sua comovente morte enterra a luta
de seus pais. A temerosa passagem de seu amor marcado com a morte, e a continuidade do
ódio de seus pais que nada poderia extinguir além do fim de seus filhos, é agora a
movimentação de duas horas em nosso palco, o qual, se vocês com orelhas pacientes
assistirem, o que aqui se perder, nosso trabalho deve se esforçar para consertar (tradução
nossa).
63
quais ele fala não acontecem no poema depois de sua fala, mas dentro das histórias contadas
pelos diferentes narradores dos cantos posteriores. A ironia dramática, muito mais que as
outras formas de ironia, requer uma vítima; ela pode se manifestar em um tom cômico e em
um tom trágico. Na modalidade cômica ela desperta o riso pela situação de ridículo a que
expõe o protagonista, enquanto no viés dramático desperta na platéia a compaixão pelo herói,
que apesar dos esforços, está fadado ao trágico.
Na continuação do diálogo entre Hilbert e Harold (24 min 56s) podemos não só
observar traços identitários de ambos, mas também contextualizar a ação pedagógica do
64
professor. Esta técnica permite, como já vimos, que novas facetas sejam reveladas das
personagens:
[Prof. Hilbert:] - So you crazy or what?
[Harold:] - Well…
- Are you allowed to say that to crazy people?
- I don't know.
- Oh, well. How many stairs - in the hallway out there?
- What? You were counting them as we walked, weren't you?
- No.
- Of course. What bank do you work at?
- No bank. IRS agent.
- Married? […] Ever?
- Engaged to an auditor. She left me for an actuary.
- How heartbreaking. Live alone?
- Yes.
- Any pets? […] Friends?
- No. Well, Dave at work.
- I see. The narrator, exactly what does he sound like?
- It's a woman.
- Is it a familiar woman? […] Someone you know? […]Did you have enough
time to count the tiles in the bathroom?
- I wasn't counting the tiles.
- […] So this woman, the voice, told you you're gonna die?
- She didn't tell me. She doesn't know I can hear her.
- But she said it.
- Yes.
- And you believed her.
- She's been right about a few other things.
- Such as?
- How I felt about work.
- You dislike your work?
- Yes.
- Well, not the most insightful voice in the world, is it? First thing on a list of
what Americans hate: work. Second, traffic. Third, missing socks. See what
I'm saying?
- Sort of.
- I told you you were gonna die, you believe me?
- No.
- Why? I don't know you.
- But you don't know this narrator.
- Well…
- Okay, Mr. Crick, I can't help you.
- Why? Well, I'm not an expert in crazy, I'm an expert in literature theory. And
I gotta tell you, thus far there doesn't seem to be a single literary thing about
you. I don't doubt you hear a voice, but it couldn't possibly be a narrator
because, frankly, there doesn't seem to be much to narrate. Beside that, this
semester I'm teaching five courses. I'm mentoring two doctoral candidates and
I'm the faculty lifeguard at the pool. *
*
- Você é doido ou o quê? Posso perguntar isso a um doido?
- Eu não sei.
- Quantos degraus - tinha o vestíbulo?
- O quê?
- Você contava enquanto subíamos, não é?
- Não.
65
Após perguntar sobre a vida de Harold e deparar-se com tantas negativas e a falta de
aspectos interessantes, Hilbert o menospreza, dizendo que não há nada de literário na
personagem, demonstrando o juízo de valor que tem de sua especialidade. Para o professor, a
Literatura se encontra ideologicamente num patamar mais elevado do que a simples leitura,
ela é portadora de características de elaboração que a destaca na ordem do discurso. No
mesmo sentido, afirma Nicolau Sevcenko:
Harold, porém, não parece inconformado socialmente, até mesmo porque ele trabalha
para o governo dos Estados Unidos e é visto pelas outras personagens como um arauto da
opressão, e em nenhum momento ele considera abalar estas estruturas sociais. O professor
também não identifica nenhum componente artístico, estético ou temático que classifique a
rotina do auditor como Literatura. O mestre se situa numa relação de poder, remetendo-nos às
reflexões de Foucault sobre A ordem do discurso:
Creio que existe um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controle dos
discursos. Desta vez, não se trata de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar
os acasos de sua aparição; trata-se de determinar as condições de seu funcionamento,
de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim não
permitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefação, talvez, dos sujeitos que
falam. Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou
se não for qualificado” (FOUCAULT, 1999, p.37).
Por não identificar Harold como portador de um discurso literário, pelo não
cumprimento dessas exigências que o professor acredita serem necessárias, Hilbert priva
Harold de sua ajuda. Em seguida, como complemento à sua negativa, descreve seus afazeres,
o que já fornece pistas para sua titulação, provavelmente de livre docência, até que cita uma
atividade que destoa com as restantes: salva-vidas de piscina.
Hall afirma que o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e
estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. O próprio processo de identificação, através
do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e
problemático. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades
que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente (Hall, 2003, p. 11-13).
67
Não é mais possível, portanto, definir a identidade do professor apenas pela sua
profissão, acreditando, quase numa concepção marxista, que a subjetividade é construída
unicamente por meio do trabalho, até porque o professor, sobretudo universitário,
constantemente está envolvido com atividades que não necessariamente envolvem a sala de
aula, no que concerne a interação entre professor e aluno, tais como publicações e pesquisa.
As diversas atividades de um professor limitam seu tempo, impondo-lhe fazer escolhas,
inclusive no âmbito pessoal de sua vida. Apesar de exercer um trabalho voltado para a
interação, frequentemente o professor é retratado como um solitário, às vezes, quase como um
eremita em sua caverna, como já ilustramos.
- Perhaps you should keep a journal. Write down what she said or something. That's
all I can suggest.
- I can barely remember it all. I just remember: “Little did he know that this simple,
seemingly innocuous act would lead to his imminent death.”
- What?
- “Little did he know that this…”
- Did you say, “little did he know”?
- Yes. I've written papers on “little did he know”. I used to teach a class based on
“little did he know.” I mean, I once gave an entire seminar on “little did he know”.
Son of a bitch, Harold. “Little did he know” means there's something he doesn't know
that means there's something you don't know. Did you know that?
- I want you to come back Friday. Okay. No, “imminent”, you could be dead by
Friday. Come back tomorrow at 9:45.
- Ten seconds ago you said you wouldn't help me.
- It's been a very revealing 10 seconds, Harold. *
*
- Talvez você devesse manter um diário. Anote o que ela disser, ou algo do tipo. É tudo que
eu posso sugerir.
- Eu quase não me lembro de nada. Só lembro de: "Mal sabia ele que esse aparentemente
inócuo ato resultaria na sua morte iminente."
- O quê?
- “Mal sabia ele que...”
- Disse, “mal sabia ele”? [...] Já escrevi ensaios sobre “mal sabia ele”. Eu ministrei um curso
baseado em “mal sabia ele”. Já apresentei um seminário inteiro sobre “mal sabia ele”. Filho da
mãe, Harold! “Mal sabia ele” significa que há algo que ele não sabe. Isso significa que há algo
que você não sabe, sabia?
- Quero que volte na terça. Não! Você pode estar morto até terça. Volte amanhã. Às 1h30.
*- Dez segundos atrás você disse que não me ajudaria.
- Foram dez segundos muito reveladores, Harold. (tradução nossa).
68
A busca pelo sentido do texto narrado para Harold motiva o segundo encontro das
personagens. Hilbert assiste ao “Canal do Livro”, que entrevista o autor do livro “You ain’t
got nothing on me”, Emmett Cole, ambos fictícios. O título, “Você não tem nada sobre mim”,
apresenta duas negativas e uma estrutura deveras informal para um livro, revelando
regionalismos presentes na obra (se ela existisse) e o resultado da série de perguntas que o
professor fará a Harold logo em seguida.
**
“Não, eu não sabia. E também não sei o que “inócuo” quer dizer.” (tradução nossa)
69
Quando Harold abre a porta na segunda visita ao professor, dois livros destacam-se na
estante ao seu lado: The Assassins de Elia Kazan e Fire in the Belly, de Sam Keen, traduzido
como O Homem Na Sua Plenitude. O título do primeiro livro condiz com a preocupação de
Harold de não ser morto, como se houvesse um assassino a sua espreita, como acontece no
enredo do romance, porém, além deste, fato o livro não complementa muito à cena. O
segundo, porém, trata de um estudo sobre os gêneros masculino em contraste ao feminino,
trata sobre a identidade masculina e tem um capítulo intitulado “A mulher, deusa e criadora”.
Eis o trecho anterior a esse capítulo:
É a Mulher na nossa cabeça, mais do que as mulheres na nossa cama ou na nossa sala
da diretoria, a causa da maioria dos nossos problemas. E essas criaturas arquetípicas –
deusas, prostitutas, anjos, Madonas, castradoras, bruxas, feiticeiras, mães-terra –
precisam ser exorcizadas da nossa mente e do nosso coração antes de podermos amar
as mulheres. Enquanto a nossa casa estiver assombrada pelo fantasma da Mulher,
nunca poderemos viver bem com mulher alguma. Se continuarmos a negar que ela
existe nas sombras, a Mulher continuará a ter poder sobre nós.
A jornada do homem com relação à Mulher envolve três fases. No princípio, ele está
profundamente mergulhado numa relação inconsciente com uma figura mistificada,
composta de opostos irreais: virgem-puta, mãe alimentadora-devoradora, deusa-
demônio. A fim de passar de criança a homem, na segunda fase, ele precisa despedir-
se da Mulher e errar por muito tempo pelo mundo selvagem e doce dos homens.
Finalmente, depois de ter aprendido a amar a própria masculinidade, ele pode voltar ao
mundo cotidiano para amar uma mulher comum. (KEEN, 1998, p. 26)
Por boa parte do livro o autor desenvolve a inquietação sobre “o que é ser um
homem”, repetindo a pergunta por diversas vezes por toda a obra. Evidentemente a intenção
do autor era abordar o tema no sentido de gênero, quase numa questão Freudiana, mas para
Harold, ser um homem remonta o sentido da própria humanidade colocada em xeque. Harold
literalmente tem uma mulher falando em sua cabeça, que também se revelará sua criadora, e
uma outra mulher, Ana Pascal, a qual não consegue amar enquanto a primeira não se calar. O
professor saúda Harold (31 min 45 s):
[ Prof. Jules Hilbert:] - Come in. Mr. Crick. […] Please. How are you?
[ Harold Crick: ] - I'm fine, actually.
- […] Looks like our narrator hasn't killed you quite yet. […] Count the stairs outside?
- No. Course not. I've devised a test - How exciting is that? - of 23 questions which I
think might help uncover more truths about this narrator.
- Now, Howard
- Harold.
70
- Harold. These may seem silly, but your candor is paramount. Okay. So. We know it's
a woman's voice, the story involves your death it's modern, it's in English. I'm
assuming the author has a cursory knowledge of the city. […]Question one: “Has
anyone recently left any gifts outside your home?” Anything? Gum? Money?
- A large wooden horse?
- I'm sorry?
- Just answer the question.
- No.*
It was the day before Frances's little sister Gloria's birthday. Mother and Gloria were
sitting at the kitchen table, making place cards for the party. Frances was in the broom
closet singing:
*
[ Prof. Jules Hilbert:] - Sr. Crick, entre, por favor. Como vai?
[ Harold Crick: ] - Bem, na verdade.
- [...] Parece que a nossa narradora ainda não o matou. [...] Contou os degraus lá fora?
- Não.
- Claro que não. Eu providenciei um teste - emocionante, não? - com 23 perguntas, que eu acho
que poderão ajudar a revelar mais coisas acerca dessa narradora. Agora, Howard...
- Harold.
- Harold. Elas podem parecer tolas, mas sua sinceridade é fundamental. Então, sabemos que a
voz é de mulher, a estória envolve a sua morte, é atual, em inglês e presumo que a autora tenha
um conhecimento superficial da cidade. [...] Primeira pergunta: Alguém deixou algum presente
à sua porta recentemente? Chicletes? Dinheiro? Um cavalo gigante de madeira?
- Como é?
- Apenas responda à pergunta.
- Não.
71
“Alice is somebody that nobody can see,” said Frances. “And that is why
she does not have a birthday. So I am singing Happy Thursday to her.”
“Today it is Friday”, said Mother.
“It is Thursday for Alice”, said Frances. (HOBAN, 1995, p. 5)*
Assim como Harold, Francis tem alguém com quem fala e que mais ninguém pode ver
ou se comunicar. No status de amigo fictício, Alice também se encontra no não-lugar, no não-
tempo, assim como a narradora de Harold encontra, como afirma Bakhtin (1998), no
cronotropo de criação, visto que aquele que cria está fora do tempo da narrativa e do espaço
onde ela acontece. A marcação do tempo também acontece em Mais estranho que a ficção:
[Narradora:] - And though this was an extraordinary day a day to be remembered for
the rest of Harold's life Harold just thought it was a Wednesday.
[Harold:] - I'm sorry, did you hear that? The voice. Did you hear it? "Harold thought it
was a Wednesday"?
[Mulher:] - Don't worry, it is Wednesday.
[Harold: ] - No, no, did you hear it? "Harold just thought it was a Wednesday"?
[Mulher:] - Who's Harold?
[Harold: ] - I'm Harold.
[Mulher:] - Harold, it's okay, it's Wednesday.
[Harold: ] - No, no, I Never mind. (5 min 50 s) **
Dessa forma, é possível saber qual o nível de deslocamento que as personagens terão
em suas estórias, assim como a duração do enredo, através da limitação do tempo em que ele
se desenvolverá.
*
Era um dia antes do aniversário de Gloria, irmã de Frances. Mamãe e Glória estavam sentadas à mesa da
cozinha, fazendo cartões para a festa. Frances estava no armário de vassouras cantando: “ [Parabéns para
você], Feliz quinta-feira para você, parabéns Alice, Feliz quinta-feira para você.”
“Quem é Alice?” perguntou a mãe.
"Alice é alguém que ninguém pode ver", disse Frances. “E é por isso que ela não tem um aniversário.
Então, eu estou cantando feliz quinta-feira para ela.”
“Hoje é sexta-feira”, disse a mãe.
“É quinta-feira para Alice”, disse Frances.
**
[ Narradora: ] - E embora este fosse um dia extraordinário, para ser lembrado para o resto de sua vida,
Harold apenas achava que fosse quarta-feira.
[ Harold: ] - Com licença. Ouviu isso? A voz. Ouviu: “Harold apenas achava que era uma quarta-feira”?
[ Mulher no ponto de ônibus ] - Não se preocupe, é quarta-feira.
[ Harold: ] - Não, não ouviu? “Harold apenas achava que era uma quarta-feira”?
[ Mulher:] - Quem é Harold?
[ Harold: ] - Eu sou Harold.
[ Mulher:] - Harold, tudo bem, É quarta-feira.
[ Harold: ] - Não, não, eu... Deixa pra lá
72
Em O poder do mito (1990, p. 104-136), Joseph Campbell faz uma análise sobre o
sacrifício de herói clássicos e modernos, afirmando que é por meio dele que há a bem-
aventurança, porém o sujeito contemporâneo, influenciado pelo Cristianismo e por novas
posturas filosóficas, não mais vê a morte biológica como a única solução:
O indivíduo é a realidade única. Quanto mais nos afastamos dele para nos
aproximarmos de idéias abstratas sobre o homo sapiens mais probabilidades temos de
erro. Nesta época de convulsões sociais e mudanças drásticas é impor-tante sabermos
mais a respeito do ser humano, pois muito depende das suas qualidades mentais e
morais. Para observarmos as coisas na sua justa perspectiva precisamos, porém,
entender tanto o passado do homem quanto o seu presente. Daí a importância essencial
de compreendermos mitos e símbolos. (JUNG, 2008 , p. 58)
73
Dentre esses mitos e símbolos, encontra-se a terceira referência a obras literárias feita
pelo professor, mais absurda para Harold, porém mais reconhecível para o espectador: o
cavalo de Tróia, presente na Ilíada. O poema épico grego relata a visão de Homero (ou
creditada a ele) do último ano da Guerra de Troia, cujo tema central é a cólera de Aquiles.
Quem recebe o cavalo de presente, porém, é Páris, descrito pelo próprio irmão como
“denodado, mas tíbio e inerte e mole” (HOMERO, 2009, p. 163), ao contrário dos outros
heróis são referidos por toda a epopéia pelos mais valorosos epítetos: Aquiles era chamado
“de pés velozes”, “brilhante”, “semelhante aos deuses”; Ulisses, “o ardiloso”, “a glória dos
aqueus”, “comparável a Zeus em Prudência”, “paciente e divino”; Heitor, nobre e “dos mil
artifícios”; enquanto isso, Páris é “formoso”, “divo”. Tanto Paris como Harold, portanto, não
possuem atributos físicos e intelectuais aplicáveis na guerra, não se enquadrando no conceito
de herói épico.
Continuando a entrevista, Professor Hilbert faz a próxima questão: “Do you find
yourself inclined to solve murder mysteries in large, luxurious homes to which - Let me
finish. - To which you may or may not have been invited?”* (33min 00s.) Com essa pergunta
Hilbert não trata de uma obra específica, mas de todo um gênero literário: o romance policial,
cujo precursor foi Edgar Allan Poe (1809-1849), com o conto Os Assassinatos da Rua
Morgue, publicado em 1841. O conto deu origem a mais duas estórias com a personagem
principal, o detetive Dupin, e é considerado como uma influência para a criação de Sherlock
Holmes, personagem de Arthur Conan Doyle, (1859-1930) pertencente ao mesmo gênero,
assim como o detetive Hercule Poirot criado por Agatha Christie (1890-1976). A investigação
criminal, porém, é um tema que remonta bem antes de Poe: mesmo Édipo Rei pode ser
considerado uma estória de investigação, pelo clima mistério na estruturação da peça: há
interrogatórios, testemunhas, um plot twist, isto é, uma mudança abrupta no enredo que volta
a narrativa para um aspecto ou personagem específico. Também em As Mil e uma Noites há
um conto intitulado As Três Maçãs em que é encontrada uma urna com um corpo de uma
jovem em pedaços em seu interior e suas personagens tentam descobrir o autor do assassinato.
Sendo assim, o gênero de investigação, não necessariamente policial, possui um corpus
textual imenso. Porém, como todo bom acadêmico, o professor delimita o tema e define um
subgênero, o chamado, em inglês, de locked room mystery ( que pode ser traduzido como
*
“Sente-se tentado a solucionar assassinatos em grandes mansões luxuosas- deixe-me terminar - às quais pode
não ter sido convidado?” (tradução nosssa)
74
Na base do romance de enigma encontramos uma dualidade, e é ela que nos vai guiar
para descrevê-lo. Esse romance não contém uma, mas duas histórias: a história do
crime e a história do inquérito. Em sua forma mais pura, essas duas histórias não têm
nenhum ponto comum. (TODOROV, 2006, p. 96)
Assim como no romance policial, há em Mais estranho que a ficção duas histórias
iniciais, a do planejamento da morte da personagem pela escritora, e a investigação de Harold
buscando sua assassina. Todorov também trata do posicionamento dessas tramas dentro da
obra:
Trata-se pois, no romance de enigma, de duas histórias das quais uma está ausente mas
é real, a outra presente mas insignificante. Essa presença e essa ausência explicam a
existência das duas na continuidade da narrativa. A primeira comporta tantas
convenções e processos literários (que não são outra coisa senão a “trama” da
narrativa) que o autor não pode deixá-los sem explicação. Esses processos são,
notemo-lo, essencialmente de dois tipos: inversões temporais e “visões” particulares: o
teor de cada informação é determinado pela pessoa daquele que a transmite, não existe
observação sem observador; o autor não pode, por definição, ser onisciente, como era
no romance clássico. A segunda história aparece, pois, como um lugar onde se
justificam e se “naturalizam” todos esses processos: para dar-lhe um ar “natural”, o
autor deve explicar que está escrevendo um livro! E é temendo que essa segunda
história se torne opaca ela própria que ele joga uma sombra inútil sobre a primeira,
que tanto se recomendou o estilo neutro e simples, tornado imperceptível (Ibid., p. 98).
[ Professor Hilbert: ] - On a scale of one to 10 what would you consider the likelihood
you might be assassinated?
[ Harold: ] - Assassinated?
- One being very unlikely, 10 being expecting it around every corner.
- I have no idea
- Okay. Let me rephrase. Are you the king of anything?
- Like what?
- Anything. King of the lanes at the local bowling alley.
- “King of the lanes”?
75
*
[ Professor Hilbert: ] - Numa escala de 1 a 10 qual a probabilidade de você ser assassinado?
[ Harold: ] - Assassinado?
- Um sendo muito improvável e 10, esperando a cada esquina.
- Não faço idéia...
- Ok, deixe-me reformular. Você é rei de alguma coisa?
- Tipo o quê?
- Qualquer coisa.
- Rei das pistas no boliche local.
- Rei das pistas?
- Rei das pistas, rei dos trolls.
- “Rei dos trolls”?
- É, de uma terra clandestina sob as ripas do seu assoalho. Qualquer coisa?
- Não. Não. Isso é ridículo.
- Concordo, mas comecemos nas mais ridículas e retrocedemos.
76
fora atribuída a William Shakespeare, mas que posteriormente foi creditada a Thomas
Middleton: A Yorkshire Tragedy. Nessa sangrenta peça, um homem mata sua mulher e
dois filhos e é executado no desfecho final.
O professor pergunta a Harold se ele é rei dos trolls. Essas criaturas estão
presentes na mitologia nórdica, no folclore escandinavo, aparecem também nas obras
de John Ronald Reuel Tolkien, autor de O Hobbit, da trilogia O Senhor dos Anéis e de
O Silmarillion; nos autores modernos, como J. K. Rowling, criadora da série Harry
Potter; e Neil Gaiman, premiado autor de contos fantásticos. No cinema, além de
presentes nas adaptações das obras de Tolkien, os mitos por trás desses monstros
foram recentemente explorados no documentário fictício norueguês O Caçador de
Trolls, dirigido por André Øvredal (2010). Em todas essas versões, os gigantes de
pedra saem à caça à noite, podendo se alimentar de carne humana, e se transformam
em pedra durante o dia, o que coloca sua materialidade à prova, pois aqueles que
acreditavam ter visto trolls à noite, cujas vozes em muito se assemelham a um vento
forte, apenas encontravam uma pilha de pedras no dia seguinte. O trolls míticos vivem
nas montanhas, enquanto os urbanos, como no conto de Neil Gaiman (2002), moram
embaixo de uma ponte.
*
“Foi Suzy que fez piada sobre essa ser uma estória de detetive, e como acontece e toda boa estórias de
detetives, agora era hora de fuçar a casa de viúva para ver o que podia acontecer.” (tradução nossa)
77
Aconteceu certa vez que o martelo de Thor caiu em poder do gigante Thryn,
que o enterrou sob as rochas de Jotunheim numa profundidade de oito braças.
Tor mandou Loki negociar com Thryn, mas Loki somente conseguiu obter
uma promessa do gigante de restituir a arma se Freia consentisse em casar-se
com ele. Loki voltou para informar o resultado de sua missão, mas a deusa do
amor ficou horrorizada à idéia de oferecer os seus encantos ao rei dos gigantes
do Gelo. Nessa emergência, Loki persuadiu Thor a meter-se nas vestes de
Freia e acompanhá-lo ao Jotunheim. Thryn recebeu sua noiva, que estava com
o rosto coberto por um véu, com a devida cortesia, mas ficou muito surpreso,
ao vê-la devorar oito salmões e um boi inteiro, além de outros petiscos, e
bebendo, por cima, três toneis de hidromel. Loki, porém, afirmou-lhe que ela
não comia há oito noites, tão grande era seu desejo de ver o amante, o famoso
rei de Jotunheim. Afinal, Thryn teve curiosidade de olhar sob o véu de sua
noiva, mas recuou, espantado, e perguntou por que os olhos de Freia
brilhavam como fogo. Loki deu a mesma desculpa e o gigante se satisfez. Deu
ordem para que fosse trazido o martelo, e colocou-o no regaço da donzela.
Thor, então, livrando-se do disfarce, agarrou sua terrível arma e matou Thryn
e todos os seus sequazes.
O rei dos trolls aparece da mesma forma na peça teatral Peer Gynt, do também
norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), dramaturgo fortemente influenciado pela mitologia
nórdica. A personagem principal, Peer, é filho de uma viúva que tem nele a esperança de
recuperar a fortuna gasta pelo falecido marido. Abandonando a mãe e vagando para as
montanhas, o protagonista recebe a proposta de se transformar em troll para se casar com a
filha do rei, e assim herdar o reino. Peer inicialmente parece disposto a aceitar, mas acaba
recusando, tendo em vista o tanto que teria de abrir mão, dentre outras coisas, de sua
humanidade, sua cristandade e de seu olho esquerdo. O rei não quer permitir que ele parta,
dizendo que sua filha, mesmo não tendo mantido relações com Peer, está grávida. Peer
consegue fugir, e passa muitos anos longe. Quando volta para casa, velho e rabugento,
78
encontra com o rei dos trolls, que conta que foi deposto pelo neto e seus descendentes: “Ah,
— it’s precisely for such that one looks. But my grandson’s offspring, as I said before, have
so mightily come in this land to the fore; and they say that I only exist in books.” (IBSEN,
2007, p. 111)*. Vemos, portanto, que a existência do rei dos trolls é coloca em xeque, assim
como acontece com Harold.
*
“Ah, é exatamente o que parece. Mas descendentes de meu neto, como eu disse antes, chegaram à tona e
de modo tão poderoso nesta terra, e eles dizem que eu só existo em livros *” (tradução nossa)
79
Hilbert pergunta se alguma parte de Harold já foi parte de mais alguém (34min 09s):
Ao perguntar se Harold fora feito de pedra, Hilbert mais uma vez especula se Harold é
um troll e também abre possibilidade para investigar outras criaturas místicas. Os seres de
pedra estão dentre as primeiras criações mitológicas, como a Galateia, estátua esculpida por
Pigmaleão, cuja origem Ovídio conta no Canto X de Metamorfoses (1983, p. 189) em que a
deusa Vênus se comove pelo quanto Pigmaleão se afeiçoa pela estátua, e lhe dá vida.
*
[Harold:] - Como, se tenho o braço de alguém?
**
[Prof. Hilbert:] - É possível que alguma vez você tenha sido feito de pedra, madeira, detergente, partes
de cadáveres ou de terra abençoada por rabinos anciões?
80
A barriga é o lugar escuro onde acontece a digestão e uma nova energia é criada. A
história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente
universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois, transformado. [...] É uma
descida às trevas. Psicologicamente, a baleia representa o poder de vida contido no
inconsciente. Metaforicamente, a água é o inconsciente, e a criatura na água é a vida
ou energia do inconsciente, que dominou a personalidade consciente e precisa ser
desempossada, superada e controlada.
No primeiro estágio dessa espécie de aventura, o herói abandona o ambiente familiar,
sobre o qual tem algum controle, e chega a um limiar, a margem de um lago, ou do
mar, digamos, onde um monstro do abismo vem ao seu encontro. Aí há duas
possibilidades. Numa história do tipo daquela de Jonas, o herói é engolido e levado ao
abismo, para depois ressuscitar; é uma variante do tema da morte e ressurreição. A
personalidade consciente entra em contato com uma carga de energia inconsciente que
ela não é capaz de controlar, precisando então passar por toda uma série de provações
e revelações de uma jornada de terror no mar noturno, enquanto aprende a lidar com
esse poder sombrio, para finalmente emergir, rumo a uma nova vida. (CAMPBELL,
1991, P. 160)
Entonces dijeron la cosa recta: “Que así sean, así, vuestros maniquíes, los [muñecos]
construidos de madera, hablando, charlando en la superficie de la tierra”. —”Que así
sea”, se respondió a sus palabras. Al instante fueron hechos los maniquíes, los
[muñecos] construidos de madera; los hombres se produjeron, los hombres hablaron;
existió la humanidad en la superficie de la tierra. Vivieron, engendraron, hicieron
hijas, hicieron hijos, aquellos maniquíes, aquellos [muñecos] construidos de madera.
No tenían ni ingenio ni sabiduría, ningún recuerdo de sus Constructores, de sus
Formadores; andaban, caminaban sin objeto. No se acordaban de los Espíritus del
Cielo; por eso decayeron. Solamente un ensayo, solamente una tentativa de
humanidad. Al principio hablaron, pero sus rostros se desecaron; sus pies, sus manos,
[eran] sin consistencia; ni sangre, ni humores, ni humedad, ni grasa; mejillas
desecadas [eran] sus rostros; secos sus pies, sus manos; comprimida su carne. Por
tanto [no había] ninguna sabiduría en sus cabezas, ante sus Constructores, sus
Formadores, sus Procreadores, sus Animadores. Éstos fueron los primeros hombres
que existieron en la superficie de la tierra. * (1977, p. 5)
Em seguida, disseram a coisa certa: “Que sejam assim, os seus manequins, os bonecos
construídos de madeira, falando, conversando sobre a superfície da terra”. – “Que assim seja”,
ele respondeu às suas palavras. Instantaneamente os manequins foram feitos, os boneco
construídos de madeira, os homens produzidos, os homens conversavam, a humanidade existiu
na superfície da terra. Eles viveram, geraram, fizeram filhos e filhas, aqueles manequins,
aqueles bonecos construídos de madeira. Eles não tinham nem inteligência, nem sabedoria,
nem memória de seus Construtores, seus Formadores; andavam, caminhavam sem rumo. Não
se lembraram dos Espíritos do Céu; e por isso decaíram. Apenas um estudo, apenas uma
tentativa de humanidade. No princípio falaram, mas seus rostos eram drenados, seus pés, suas
mãos, eram sem consistência, sem sangue, sem líquidos, sem umidade, nem gordura, as
bochechas de seus rostos eram secas, assim como seus pés e suas mãos; sua carne, esmagada.
Não havia, portanto, nenhuma sabedoria em suas cabeças, ante a seus Construtores, seus
Formadores, seus Procriadores, seus Animadores. Esses foram os primeiros homens que
existiam na superfície da terra. (tradução nossa)
82
Diz a lenda que o mito do Golem nasceu da mística hebraica do séc. XIII. O Golem –
matéria informe – ter-se-ia tornado num homúnculo a partir da invocação mágica de
um nome. Terá sido Elijah de Chelm quem criou o Golem a partir do barro, ao
escrever na sua fronte o “Shemhamforash” – nome secreto de Deus. Assim lhe foi
concedido o poder da vida, mas não o poder da palavra. Quando o Golem atingiu um
tamanho e força sobre-humanos, o criador, temendo as suas potencialidades
destrutivas, apagou-Lhe o nome da testa e ele transformou-se em pó.
Rezam algumas versões da lenda que não foi o nome de Deus mas a palavra “emet”–
“verdade” – que foi inscrita na sua testa. A destruição do Golem verificou-se quando
se apagou a primeira letra, tendo restado a palavra “met” que significa morte.
O motivo central deste mito é o ato da criação, tal como vem descrito no Livro do
Gênesis – criar um homem a partir da terra, dar vida à matéria, desafiar e copiar Deus
–, pelo que na perspectiva cristã esta é uma temática considerada absolutamente
prometaica.
O mito de Prometeu é mais uma vez evocado com a citação a Frankenstein, monstro
criado com partes de cadáveres. Curiosamente, o título original do romance, possui um aposto
em seu idioma original: Frankenstein: or the Modern Prometheus. Sua autora, Mary Shelley
(1797-1851), já possuía noções de intertextualidade, como explica na introdução do romance:
Parodiando Sancho Pança, tudo deve ter um início; e esse início deve estar ligado a
algo que já existiu antes. Para os hindus o mundo é sustentado por um elefante, mas o
elefante se acha apoiado em cima de uma tartaruga. Inventar, deve-se admitir
humildemente, não consiste em criar algo do nada, mas sim do caos; em primeiro
lugar, deve-se dispor dos materiais; pode-se dar forma à substância negra e informe,
mas não se pode fazer aparecer a própria substância. Em tudo o que se refere às
descobertas e às invenções, mesmo aquelas que pertencem à imaginação, lembramo-
nos continuamente da história do ovo de Colombo. A invenção consiste na capacidade
de julgar um objeto e no poder de moldar e arrumar as idéias sugeridas por ele.
(SHELLEY, 2001, p. 6)
poema do inglês Samuel Taylor Coleridge; cita também de livros de cunho científico, como
Cornélio Agripa, Paracelso e Alberto Magno. (Ibid., p. 31); cita livros cujos títulos insinuam
o desfecho da obra, como As Ruínas ou Meditações sobre as Revoluções dos Impérios, de
Volney (Ibid., p. 97), além de obras em que a tragédia e a decadência são uma constante
temática, como Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther (Ibid., p.
104), que servem como parâmetros para o monstro da natureza humana, como ele descreve a
seu criador:
Uma noite, [...], encontrei no chão uma pequena mala de couro que continha várias
peças de roupa e alguns livros. [...] Eram exemplares do Paraíso Perdido, um volume
das Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther. Foi para mim
como encontrar um tesouro. Agora eu estudava continuamente e exercitava o cérebro
com essas histórias, enquanto meus amigos se ocupavam de seus afazeres.
"Mal posso descrever-lhe, Frankenstein, o efeito de tais livros. Apresentavam-me uma
infinidade de novas imagens e sentimentos que, por vezes, me elevavam ao êxtase,
porém, com mais frequência, me lançavam na mais profunda depressão. Em Os
sofrimentos do jovem Werther, além do interesse intrínseco de sua história singela e
tocante, tantas opiniões são esboçadas e tantas luzes se lançam sobre assuntos até
então totalmente obscuros para mim, que o considero uma fonte perene de
constatações e maravilhoso espanto. (Ibid., p. 104)
como criatura perfeita e feliz, sob a proteção de seu Criador; tinha a faculdade de
comunicar-se com seres de natureza superior e beber-lhes o conhecimento, mas eu era
desgraçado, desamparado e só. (Ibid, p. 105)
O segundo tipo, geralmente menos explícita e mais distante, que, no conjunto formado
por uma obra literária, o texto propriamente dito mantém com o que se pode nomear
simplesmente seu paratexto: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios,
advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes;
ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos
ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário,
oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição
externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende. Não quero
aqui empreender ou banalizar o estudo, talvez por vir, deste campo de relações que
teremos, aliás, muitas ocasiões de encontrar, e que é certamente um dos espaços
privilegiados da dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor [...]
(Genette, 2010, p. 9)
Assim como grande parte das obras literárias, acadêmicas ou qualquer outro meio que
se utiliza do paratexto estabelece com o leitor um índice contratual que permite antecipar o
conteúdo da leitura, e o mesmo acontece no universo fílmico. O título de Mais estranho que a
ficção pode remeter ao aforismo de Mark Twain: “Truth is stranger than fiction, but it is
because Fiction is obliged to stick to possibilities; Truth isn't.”*, e a busca pela verdade sobre
si mesmo, que remonta ao mito de Telêmaco, herói que busca suas origens (e que também no
final de sua jornada recebe um ferimento no pulso), constituem as jornadas de Harold e o
monstro de Frankenstein.
Pode-se também inferir que a realidade é mais estranha que a ficção e também
interpretar diferentes desfechos para as obras em que há a relação entre criadores e criaturas:
quando se dá forma à criatura, ela se torna em certo ponto material e mais próxima ao real.
Frankenstein foi capaz de destruir a noiva que construía para seu monstro, justamente por
ainda não ter lhe dado vida, apenas forma, assim como Rodrigo S.M. mata Macabéa por esta
não estar na mesma dimensão de realidade do narrador. Entretando, um final diferente se dá
*
“A verdade é mais estranha que a ficção porque a ficção é obrigada a se ater às possibilidades e a verdade não.”
85
no filme de A Hora de Estrela. O trágico da morte de Macabéa é apaziguado pela última cena,
em que a protagonista corre sorrindo, aproximando a um final feliz, se não fosse sua morte. O
espectador vislumbra uma Macabéa de carne e osso e não apenas de palavras. Não há
confronto com o criador, até mesmo porque o narrador não se encontra na obra
cinematográfica.
Segundo Joseph Campbell, por diversas vezes a revisitação de um mito serve como
caminho para explicar dramas humanos:
Desta forma podemos identificar como a criação é um processo doloroso também para
aquele que gera. Tanto Frankenstein quando Mais estranho que a ficção mostram os criadores
pela primeira vez como seres angustiados, exóticos, próximos ao grotesco. Karen é mostrada
como uma mulher transtornada, fumante compulsiva, trêmula. Em sua primeira aparição,
Victor também é descrito pelo capitão como um homem problemático:
86
Deus do céu! Margaret, se você visse o estado do homem, que ainda impunha
condições para ser salvo, sua surpresa não teria limites. Seus membros estavam quase
congelados, o corpo terrivelmente enfraquecido pela fadiga e pelo sofrimento. Jamais
vi alguém em tão lastimável estado. [...] Criatura alguma jamais me despertou
tamanha curiosidade: seus olhos tinham uma expressão de fúria, e mesmo de loucura;
mas havia momentos em que, diante de qualquer obséquio ou do mais simples serviço
que alguém lhe prestasse, o semblante se iluminava todo e adquiria uma expressão de
doçura que nunca vi igual. Mas geralmente se mostrava melancólico e desalentado;
por vezes rangia os dentes, como se acometido de fortes dores. (SHELLEY, 2001, p.
19)
Meu entusiasmo, porém, era refreado pela ansiedade. Em vez do êxtase de um artista
ao ver sua obra adquirir forma e vida, eu sentia a angústia de um indivíduo condenado
a um trabalho escravo de um obscuro trabalhador das minas condenado às trevas das
entranhas da terra (Op. Cit., p. 45).
Existe uma cadeia de experiência divina, que vai desde o entusiasmo (ou seja, ser
visitado por um deus), passa pela apoteose (tornar-se um deus), e chega à epifania, que
é ser reconhecido como deus.
James Joyce explorou e expandiu o sentido da palavra epifania, usando-a para
designar uma súbita percepção da essência profunda de algo, a compreensão do que
está no âmago de uma pessoa, de uma idéia ou situação. Às vezes, os heróis
experimentam um entendimento repentino da natureza das coisas, depois de terem
passado por uma Provação. Sobreviver à morte dá sentido à vida e aguça as
percepções. (2006, p. 171)
Nessas obras, porém, a epifania não acontece apenas para as criaturas, mas também
para seus criadores, e também se manifestam evocando intertextualidades, através de imagens
que revelam o futuro das personagens, ou que podem funcionar como ironia dramática, caso
estejam, como em Frankenstein, situados num futuro em que já se sabe da ruína das
personagens.
87
Como estivesse à porta, vi, de súbito, uma enorme língua de fogo expelida do antigo e
belo carvalho que se erguia a cerca de vinte metros da nossa casa; tão logo se
desvaneceu aquela luz ofuscante, a árvore desaparecera, não restando dela mais do que
um cepo esfrangalhado. (SHELLEY, 2001, p. 33)
Além do fogo dos deuses, fonte de criação e ruína para o Prometeu mítico, a árvore em
chamas remete ao primeiro estágio da epifania, a visita de um deus, visto que na narrativa
bíblica, Deus se manifesta pela primeira vez a Moisés numa sarça em chamas (Êxodo, 3:02).
Os acontecimentos relatados por um texto literário, segundo Todorov , “são ‘acontecimentos’
literários, assim como as personagens são interiores ao texto” (1981, p. 33). A árvore posta
em chamas pelo raio assume o caráter de alegoria, que é definida por Todorov como “uma
proposição de duplo sentido, mas cujo sentido próprio (ou literal) apagou-se por completo.”
(Ibid., p. 34), representando a decadência: Quando assume que não tinha mais forças Victor
afirma: “Eu era uma árvore abatida pelo raio”. (SHELLEY, 2001, p. 131); quando ameaça seu
criador, o monstro diz em tom profético: “Suas horas hão de passar-se em terror e infortúnio,
e não tardará em despenhar-se o raio que destruirá para sempre sua felicidade” (Ibid., p. 137);
e quando conta os planos de sua morte, a criatura também cita o fogo:
Erguerei uma pira e consumirei até as cinzas este arcabouço miserável, de modo a que
não possa restar de seus despojos o mínimo indício da minha imagem que possa
orientar algum outro desavisado na tentativa de percorrer a senda maldita do meu
criador, procurando refazer a sua obra, (Ibid., p. 180)
Como Émile Durkheim (2000) poderia classificar, o suicídio de Evelyn foi um ato egoísta,
pela ausência de laços que a mantivessem viva, e auto-entrega de Harold à morte deveria ser
um ato altruísta, o que realmente sucedeu, tanto pela aceitação da fatalidade como para um
bem maior, a obra literária, quanto para salvar o garoto da bicicleta de ser atropelado. Antes
ignorado por todos os outros frequentadores do ponto de ônibus, mesmo quando revolta-se
contra a voz aos gritos, Harold se coloca como figura principal e tem sua “hora da estrela”
perante essas outras personagens; ele aceita seu destino e age com altruísmo, mesmo sabendo
levaria à sua morte.
Dessa mesma forma, o monstro de Frankenstein estabelece uma relação entre o
conhecimento e a morte:
Victor estabelece uma relação semelhante, dizendo: “a maçã já fora mordida, e o braço
implacável do anjo apontara-me o caminho da desesperança e da amargura” (p. 154). A
alusão à maçã se refere ao livro de Genesis “Mas da árvore do conhecimento do bem e do
mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gên
2:17). Em Mais estranho que a ficção, a maçã também aparece: ao ver uma maçã rolando e
parando na sarjeta da rua, tem a idéia de como matar Harold (1h 12min 10s). Uma maçã
idêntica é escolhida por Harold, que lhe dá uma mordida a caminho do ponto de ônibus. Após
ser atropelado, também essa maçã rola para a sarjeta, porém já mordida e de posição inversa
em relação à primeira.
Outras intertextualidades podem ser identificadas pela escolha da maçã além da alusão
ao fruto do conhecimento que leva à morte: ela também está na estampa do DVD do filme,
lembrando os rótulos dos discos de vinil dos Beatles nos anos 60, e em muito se assemelha à
que está na frente do rosto do Filho do Homem (Fig. 5), quadro do pintor surrealista belga
René Magritte.
mesmo nome. A dualidade da obra aponta para si mesma, numa metalinguagem que
representa, nega e gera dúvida ao mesmo tempo. O mesmo pode ser dito de Harold, cuja
existência é questionada.
Fig. 5: Le Fils de l'homme - René Magritte Fig. 6 : Ceci n’est pas une pomme - René Magritte
Fonte: http://www.rene-magritte.org/images/paintings/ Fonte: http://www.rene-magritte.org/rene-magritte-
Son-of-Man.JPG paintings.jsp
Tando Rodrigo S.M. quanto Victor e Karen têm um modus operandi que beira o
sadismo: dão-lhes vida privados de atributos que lhes permitam atingir a felicidade, vivendo
entre o medíocre e o grotesco, negam-lhe amores, elaboram suas mortes. Nessas relações do
duplo, há também uma alternância entre papéis: Harold se sente perseguido por Karen, e a
procura, da mesma forma que Victor persegue o monstro, que também o observa à distância -
Frankenstein é, sobretudo, o monstro de si mesmo, sua criação é sua destruição. Após a morte
da protagonista de A Hora da Estrela, Rodrigo declara: “Macabéa me matou” (Ibid., 106). O
monstro também causa a ruína a Frankenstein, e a morte de Harold também desola Karen.
Quando Harold Crick se encontra com Karen Eiffel, o assombro maior não é da
personagem que encontra sua criadora, pelo contrário, ela é quem se espanta mais exclama:
“Seu cabelo! Seus olhos! Seus dedos! Seus sapatos!” (1h 20min 19s). Podemos perceber o
quanto os olhos têm papel importante nos confrontos dentro dos temas do fantástico e do
estranho: quando o rei dos trolls se encontra com Thor, são os olhos do deus do trovão que
causam estranhamento; os olhos de Pinóquio perturbando Gepeto; na fábula de Chapeuzinho
Vermelho, são os grandes olhos do lobo; os olhos aquosos e amarelos do monstro são a
primeira coisa em que Frankenstein repara; torna-se difícil também não lembrar dos olhos de
cigana oblíqua e dissimulada de Capitu, descrita pelo narrador de Dom Casmurro, de
Machado de Assis; em Clarice Lispector, cuja obra tem forte presença do duplo e do estranho,
a personagem principal do conto O Búfalo percorre todo o zoológico olhando nos olhos de
cada animal, até encontrar o grande bovino que a olha de volta. Freud define esse
estranhamento por heimlich: “esse estranho não é nada novo ou alheio, porém algo que é
familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo
da repressão” (FREUD, 2009, p. 258).
Fig. 9
[...] os elementos que asseguram o acabamento estético do herói são valores que lhe
são transcendentes, [...] esses elementos são inorgânicos na autoconsciência do herói e
não participam do mundo da sua vida que procede de seu interior, que não participam,
em outras palavras, do mundo que é o do herói vivo fora do autor — que esses
elementos não são vivenciados como valores estéticos pelo herói — e, para terminar,
de estabelecer a relação existente entre esses constituintes e os constituintes formais
externos: a imagem e o ritmo.
Um único e mesmo participante não pode ocasionar o acontecimento estético; uma
consciência absoluta que não conta com nada que lhe seja transcendente, que esteja
situada fora dela mesma e a delimite por fora, não se presta a um processo estético, só
é possível participar dela, mas não vê-la como um todo acabado. O acontecimento
estético, para realizar-se, necessita de dois participantes, pressupõe duas consciências
que não coincidem. Quando o herói e o autor coincidem ou então se situam lado a
lado, compartilhando um valor comum, ou ainda se opõem como adversários, o
acontecimento estético termina e é o acontecimento ético que o substitui (panfleto,
manifesto, requisitório, panegírico e elogio, injúria, confissão, etc.); quando não há
herói, ainda que potencial, teremos o acontecimento cognitivo (tratado, lição); quando
a outra consciência é a de um deus onipotente, teremos o acontecimento religioso
(oração, culto, ritual).
Em Mais estranho que a ficção, quando Karen se senta após ver sua criação, o
confronto com Harold se agrava tanto nas palavras - pela coação de Harold a fim de saber de
seu destino enquanto Karen não encontra palavras para se justificar - quanto visualmente - na
constituição da cena (Fig. 9), com Harold projetando-se sobre Karen, que tem suas mãos em
expressão de súplica. Torna-se, portanto, uma relação carnavalizada: não se espera de um
Criador, deus ou não, que se justifique ante sua criação, que ele pode destruir com um estalar
de dedos ou, no caso que Eiffel, com a datilografia de algumas teclas. Ocorre justamente
nessa cena um acontecimento que transita do religioso, pelo encontro com a Criadora, para o
estético, onde há duas consciências que não coincidem, e finalmente para o ético, no caráter
requisitório de Harold, e gradativamente os estranhos tornam-se aceitos um pelo outro.
Todorov considera essa aceitação do elemento insólito como característica do fantástico
maravilhoso (TODOROV, 1981, p. 24), visto que não há mais uma preocupação em explicar
as origens dos elementos insólitos.
obedecer-me” (SHELLEY, 2001, p. 137). Diferentemente de Harold, ele não implora por sua
vida, mas demanda uma companheira (Ibid, p. 120).
Harold já tinha uma companheira, Ana Pascal, personagem que é poupada da dúvida
se também se trata de um construto de Karen Eiffel. Mais uma vez a questão do outro é
problematizada:
Criador e criatura são solitários, assim como o narrador durante o processo de criação,
mesmo quando idealiza um interlocutor. A busca pelo outro se dá também pela constatação de
que seu duplo não é seu igual, a relação de criador e criatura ainda não se dá por completo, é
preciso que depois de criado o homem, para ele seja criada uma Eva, ou uma Ana Pascal para
Harold, ou um Olímpico para Macabéa, ou uma noiva de Frankenstein. É revisitado também o
mito de andrógino, contado por Platão em O Banquete: seres que, ao se revoltarem contra os
deuses do Olimpo, foram divididos em dois, e passam o resto de suas existências procurando
por sua metade. (2003, p. 20)
Além dos temas do outro e do conflito, a ironia dramática, abordada pelo professor e
presente no julgamento em Édipo Rei, também acontece no Capítulo VIII de Frankenstein,
durante o julgamento de Justine, acusada de matar o irmão mais novo de Victor. Tanto o leitor
quanto Frankenstein, que nesse momento narra o episódio, sabem que foi o monstro que o
matou. (p. 66-70).
95
O romance também possui fortes traços de metalinguagem pela maneira com que foi
escrito: Mary Shelley cria o narrador, o capitão do navio, Robert Walton, que na primeira
parte do romance relata, por meio de cartas enviadas à irmã, os acontecimentos que Victor
Frankenstein lhe contara após ser resgatado no mar. Uma estória dentro de outra, que não
deixa leitor esquecer as camadas de narrativa, pela constante evocação à irmã. Em alguns
momentos existe mais uma camada de narração: quando o monstro conta ao seu criador o que
lhe aconteceu, durante o ano que viveu na floresta, numa casa em que ouvia seus vizinhos
contarem a história de suas vidas; nas cartas, dentro da narração de Frankenstein, de sua prima
Elisabeth e seu pai Alphonse.
Tanto Harold quanto o monstro de Frankenstein têm acesso a suas origens pelos
manuscritos de seus criadores. Harold lê o romance, o monstro lê as anotações de Victor, e é
por essa leitura que cada um aceita seu destino. Harold diz a Karen que só há uma maneira
que o livro pode terminar (1h 31min 38s), enquanto o monstro diz que a aquisição de
sabedoria reforçou a noção do pária que ele sempre será (SHELLEY, 2001, p. 106). Ambos
aceitam seus fins.
96
*[ Harold:] - Olhe, o que essas perguntas têm a ver com qualquer coisa?
[Prof. Hilbert:] - A única maneira de saber em qual história você está é determinando em quais
não está. Por mais estranho que pareça, já eliminei da lista metade da literatura grega, sete
contos de fadas, 10 fábulas chinesas e sabemos que não é o Rei Hamlet, Scout Finch, nem Miss
Marple, o monstro Frankenstein, nem um golem. Hum? Não está aliviado de não ser um
golem?
- Sim, estou aliviado em saber que não sou um golem.
- Bom. Você tem poderes mágicos? (tradução nossa)
[ Prof. Hilbert:] – Qual sua palavra favorita?
[Harold: ] – “Inteiro”.
- Bom, bom, bom.
- Você aspira a alguma coisa? [...] Conquistar a Rússia? Vencer um torneio de assobios?
Harold, deve ter alguma ambição.
- Acho que não.
- Algum sonho subjacente. Pense. (tradução nossa)
97
Sendo assim, a criação ficcional opta entre fazer uma releitura de uma obra anterior ou
tentar quebrar esses moldes, entre resgatar o passado, retratar o contemporâneo ou vislumbrar
o futuro, entre descrever o espaço reconhecível ou criar novos universos. Porém, quanto mais
próximo do real, contemporâneo e do espaço reconhecível, mais forte é para o criador a
tendência a explorar os dramas humanos na obra ficcional (o que não impede esses dramas de
serem explorados em obras de contexto totalmente fantástico, como a ficção científica). Ao
criar um herói cotidiano e um narrador para contar seus atos, criam-se também dilemas passa
para o narrador, que em certo momento se perguntará: “O que farei com esse livro?”. Ele
pode optar por buscar poesia nas cenas do cotidiano, como muito se vê na poesia parnasiana,
porém o poeta busca o objeto ideal, e comparado com o real, esse objeto mais se assemelha à
natureza morta. O cotidiano é devastador e beira o grotesco. A solidão se torna um tema
recorrente para o herói moderno, que mesmo tendo com quem interagir, vê o no outro o
estranho, e o único que realmente o conhece é o narrador de sua estória, porém este também
sente estranhamento por essa criatura, e é forçado a decidir seu destino: um final feliz ou uma
morte trágica. Obviamente na Literatura há também autores que optam pelo anti-clímax ou
98
por uma obra estática, sem conflitos maiores em que nada muda em relação a humores -
porém o fato de interromper a estória antes de seu desfecho, recurso muito utilizado por José
Saramago, por exemplo, desperta no leitor a interpretação do final da estória, se feliz ou triste.
A obra estática, por sua vez, retoma em seu desfecho o estado anterior de humores, também
limitado a essas duas realidades.
Hilbert demonstra nessa citação sua formação dialógica por uma intertextualidade
explícita, visto que, segundo Bakhtin, “[o] discurso citado é visto pelo falante como a
enunciação de outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma
construção completa, e situada fora do contexto narrativo” (Bakhtin 1997, p.144). Mesmo
numa manifestação oral, o texto do professor infere as aspas delimitando sua citação, assim
como foram utilizadas na elaboração do roteiro. Também sobre a citação Maingueneau
afirma que
As aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado por um
destinatário. O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que disto não esteja
consciente, a realizar uma certa representação de seu leitor e, simetricamente, oferecer
a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de locutor que
assume através destas aspas. Colocará aspas, por exemplo, para proteger-se
antecipadamente de uma crítica do leitor, que, supostamente, esperará um
distanciamento frente a determinada palavra, mas poderá, igualmente, não colocar as
aspas para frustrar esta expectativa, provocando um choque semântico [...]
(MAINGUENEAU, 1989, p. 91).
Como vimos, Bakhtin ressalta que o “discurso de outrem” afeta não só o texto
científico - que vê as citações como necessidade primordial e leva o acadêmico a se preocupar
muito mais com o que foi dito sobre um assunto do que elaborar suas proposições – mas
também toda atividade verbal, incluindo a ficção. A citação de Hilbert possui uma segunda
intertextualidade, presente no discurso de Italo Calvino: comédia e tragédia são dois dos
gêneros tratados por Aristóteles em A Arte Poética, datada de IV a.C..
O autor não encontra uma visão do herói que se assinale de imediato por um princípio
criador e escape ao aleatório, uma reação que se assinale de imediato por um princípio
produtivo; e não é a partir de uma relação de valores, de imediato unificada, que o
herói se organizará em um todo: o herói revelará muitos disfarces, máscaras aleatórias,
gestos falsos, atos inesperados que dependem das reações emotivo-volitivas do autor;
este terá de abrir um caminho através do caos dessas reações para desembocar em sua
autêntica postura de valores e para que o rosto da personagem se estabilize, por fim,
em um todo necessário. ( BAKHTIN, p. 26)
100
Como podemos ver, Mais estranho que a ficção também nos permite refletir sobre a
historicidade da análise literária, pois além de abordar temas do teatro épico grego, passando
pelo Romantismo e chegando ao herói moderno, existe um debate de vozes que diferem da
voz do autor: quando Harold descobre a identidade da narradora e entrega o romance
inacabado nas mãos de Hilbert, o professor tenta convencer o protagonista de que a morte é
necessária, enquanto Harold, obviamente, deseja viver, e Karen, a escritora, entra em conflito
sobre o que fazer. Esse dilema sumariza a tensão principal do filme e demonstra a essência da
polifonia, que, para Bakhtin, “consiste no fato de que as vozes permanecem independentes, e
como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à homofonia.” (Bakhtin, 2010, p.
21). Diferente de uma leitura maniqueísta das personagens, que os consideraria protagonistas
ou antagonistas, a obra ficcional tem em suas personagens “vozes diferentes, cantando
diversamente o mesmo tema. Isso constitui precisamente a ‘polifonia’, que desvenda o
multifacetado da existência e complexidade dos sofrimentos humanos” (Idem, p. 49).
(47min 56s) - Professor Hilbert, I've totally failed at the comedy-tragedy thing. In
fact, I think she likes me even less.
- I know, it's great.
- What do you mean? You've proved something else entirely. The voice seems to be
dependent on actions you take. You reset your watch, it says you reset your watch.
You ride a bus, it says you ride the bus. You brush your teeth, it says you brush your
teeth. It may be that you yourself are perpetuating the story. So I suggest we try
something else.
101
- Like what?
- Try nothing. Nothing.*
*
- Professor Hilbert, eu falhei totalmente nesta coisa de comédia-tragédia. Ela gosta menos
ainda de mim. Eu sei, é ótimo.
- Como assim?
- Você provou outro ponto. A voz parece condicionada às suas ações. Você acerta o relógio,
ela diz que você acerta o relógio. Você pega o ônibus, ela diz que você pega o ônibus. Você
escova os dentes, ela diz que você escova os dentes. Pode ser que você mesmo esteja dando
continuidade à trama. Então, sugiro tentarmos outra coisa.
- O quê?
- Não tentar nada. Nada.
102
vendo ou por onde está passando, pois essas informações externas são mostradas. Por outro
lado, na Literatura, “nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma
consciência de si mesma, a nossa visão artística já não se acha diante da realidade da
personagem, mas diante da função pura de tomada de consciência dessa personagem por ela
mesma.” (BAKHTIN, 1997, p.47). O texto escrito, portanto, traz a possibilidade de optar por
relatar o mundo interno da personagem antes do externo, o que requer técnicas mais
sofisticadas de elaboração quando se tenta fazer o mesmo no cinema, que visa trazer uma
ilusão de materialidade.
A materialização de Harold serve para que Karen adote uma nova postura perante a
morte, ante a descoberta de que a morte de Harold deixaria de ser fictícia, simbólica, para ser
real. Ela não consegue digitar as últimas letras da frase “Harold Crick está morto”, suas mãos
sujas de sangue não permitem que acenda seu cigarro. Ela se agarra à máquina de escrever, a
câmera volta-se para a janela e ao invés da transição de uma cena para outra por meio de um
escurecimento da imagem ou um corte abrupto, a câmera transita para a janela, cuja luz faz
com que o branco inunde a tela, como num momento de sublimação ou epifania.
Karen, que antes criava formas de sofrimentos para Harold, passa a sofrer por sua
causa. Essa inversão de papéis, característica da carnavalização, consequentemente envolve a
todos neste processo. Até mesmo Penny, a assistente, cujo papel na narrativa consistiu apenas
em servir como interlocutora de Karen até que houvesse outros sujeitos de interação, precisou
modificar sua postura de, como ressalta ser um de seus principais atributos quando se
apresenta, nunca ter atrasado nenhum trabalho, precisou ser revisto; o professor Jules Hilbert,
nos momentos finais do filme, que aparentemente foi o último a ceder de sua posição de
mestre, despe-se e atira-se em uma piscina, quase num ritual de renovação; o deus ex machina
da obra também foi rebaixado: Harold foi salvo por uma lasca do relógio; e finalmente o
conceito de morte heróica também foi desestruturado.
A narrativa cumpre, portanto, sua função modificadora sobre o protagonista, que adota
uma renovação de postura filosófica perante a vida. Vive a tragédia moderna, que são as
tragédias de todos os dias, a social e a pessoal, para que assim seja cumprida a jornada do
herói.
103
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão que o próprio filme provoca dentro de sua estória, citando exemplos de
personagens, narradores, conflitos de narrativas, gênese textual e gêneros literários permite
também uma reflexão sobre esses temas e contendo, inclusive, o questionamento da própria
ficção, dada a impossibilidade da reprodução do real.
105
O diálogo no texto cinematográfico, assim como no teatral, serve para revelar aspectos
das personagens que dificilmente poderiam ter sido notadas ou ter recebido a devida atenção,
além do que, dependendo do gênero da obra, é o que a sustenta. Ao analisar as falas do
professor, não pelo aspecto formal, mas pelos seus significados, foi possível identificar uma
gama de referências que justificam a escolha da personagem para ajudar o protagonista, pois o
conhecimento do mundo ficcional lhe permitia antecipar os desdobramentos da narrativa.
Mesmo se tratando de uma obra moderna, a estrutura da jornada do herói clássico foi mantida.
Em Mais estranho que a ficção essa jornada, própria do gênero épico, também transita
para o romance policial, a tragédia, a comédia, os mitos, e finalmente para as obras em que a
relação entre criador e criatura é evidenciada. Para nossa surpresa, na leitura dessas obras
citadas, sobretudo em Frankestein e Pinóquio, foi possível perceber que a intertextualidade se
manifestou além da simples referência, trazendo toda uma estrutura temática em comum, que
inclui as questões do abandono pelo criador, do confronto entre criador e criatura, da
decadência do criador, da citação como antecipação do desfecho e da obrigatoriedade da
morte do herói como conclusão da estória.
Pela grande variedade de objetos aos quais a análise sobre o filme remete,
contrastando com as delimitação necessária para o trabalho acadêmico, esta pesquisa abre
possibilidade para futuros desdobramentos, dentre eles o aprofundamento da análise no viés
da metalinguagem, a assimilação de outras obras não citadas neste trabalho, e sua aplicação
na sala de aula.
106
O viés da educação, que serviu de elemento motivador para esta pesquisa, já tem sido
trabalho há três anos na Escola Estadual Major Arcy, e o filme Mais estranho que a ficção
tem sido utilizado tanto como ferramenta pedagógica para o ensino da intertextualidade, em
que os alunos realizam o que por nós é chamado de uma quest, buscando encontrar
referências como as trabalhadas nesta pesquisa, e após essa atividade o filme serve como
inspiração para um projeto de criação de personagens. Este trabalho prático, da mesma
maneira como aconteceu nesta pesquisa, comprovou que a intertextualidade e seu estudo
podem ser utilizados como formas de incentivo à leitura, visto que alunos e professor sentiram
a necessidade de conhecer obras citadas no filme das quais ainda não eram familiarizados.
Esta análise também traz luz sobre o problema da falta de leitura entre os jovens:
como Barthes afirma, um dos prazeres no texto está na intertextualidade, quando o leitor
reconhece, mesmo inconscientemente, algo já visto. O aluno em idade escolar não tem ainda
um repertório vasto o suficiente para tal reconhecimento e, portanto, sua leitura é menos
prazerosa. Ao trazer para sala de aula textos, filmes, músicas e outros recursos em que a
intertextualidade esteja presente, ou até mesmo possibilitando que os alunos o façam, é
possível formar leitores que busquem a Literatura como forma de prazer, e não uma simples
obrigação escolar, pois como afirma Robert Zajonc (2001), quanto mais se vê, mais se gosta.
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