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Alberto Caeiro

VI - Pensar em Deus
XI - Aquela Senhora tem um Piano
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos, Aquela senhora tem um piano
Por isso se nos não mostrou... Que é agradável mas não é o correr dos rios
Sejamos simples e calmos, Nem o murmúrio que as árvores fazem ...
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós Para que é preciso ter um piano?
Belos como as árvores e os regatos, o melhor é ter ouvidos
E dar-nos-á verdor na sua primavera, E amar a Natureza.
E um rio aonde ir ter quando acabemos! ...
XIII - Leve
VII - Da Minha Aldeia
Leve, leve, muito leve,
Da minha aldeia veio quanto da terra se pode ver no Um vento muito leve passa,
Universo... E vai-se, sempre muito leve.
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra E eu não sei o que penso
qualquer Nem procuro sabê-lo.
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura... XVI - Quem me Dera

Nas cidades a vida é mais pequena Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, E que para de onde veio volta depois
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe Quase à noitinha pela mesma estrada.
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas ...
olhos A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
nos podem dar, Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

II - Ao Entardecer XIX - O Luar

Ao entardecer, debruçado pela janela, O luar quando bate na relva


E sabendo de soslaio que há campos em frente, Não sei que cousa me lembra...
Leio até me arderem os olhos Lembra-me a voz da criada velha
O livro de Cesário Verde. Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês Andava à noite nas estradas
Que andava preso em liberdade pela cidade. Socorrendo as crianças maltratadas ...
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas, Se eu já não posso crer que isso é verdade,
E a maneira como dava pelas cousas, Para que bate o luar na relva?
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai XXI - Se Eu Pudesse
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ... Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe uma paladar,
Por isso ele tinha aquela grande tristeza Seria mais feliz um momento ...
Que ele nunca disse bem que tinha, Mas eu nem sempre quero ser feliz.
Mas andava na cidade como quem anda no campo É preciso ser de vez em quando infeliz
E triste como esmagar flores em livros Para se poder ser natural...
E pôr plantas em jarros...
Nem tudo é dias de sol,
IX - Sou um Guardador de Rebanhos E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Sou um guardador de rebanhos. Naturalmente, como quem não estranha
O rebanho é os meus pensamentos Que haja montanhas e planícies
E os meus pensamentos são todos sensações. E que haja rochedos e erva ...
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés O que é preciso é ser-se natural e calmo
E com o nariz e a boca. Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la Pensar como quem anda,
E comer um fruto é saber-lhe o sentido. E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Por isso quando num dia de calor Assim é e assim seja ...
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,


Sei a verdade e sou feliz.
XXIII - O meu Olhar Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia
O meu olhar azul como o céu que não vinha.
É calmo como a água ao sol. Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
É assim, azul e calmo, Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
Porque não interroga nem se espanta ... E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde
estaria à mesma hora,
Se eu interrogasse e me espantasse Deliberadamente à mesma hora...
Não nasciam flores novas nos prados Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar itálico.
mais belo... É tão engraçada esta parte assistente da vida!
(Mesmo se nascessem flores novas no prado Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um
E se o sol mudasse para mais belo, gesto,
Eu sentiria menos flores no prado Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que
E achava mais feio o sol ... é a vida.
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço, A Praça
Para não parecer que penso nisso...)
A praça da Figueira de manhã,
XXVII - Só a Natureza é Divina Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Só a natureza é divina, e ela não é divina... Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante
Se falo dela como de um ente Que aquele lugar lógico e plebeu,
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens Mas amo aquilo, mesmo aqui ... Sei eu
Que dá personalidade às cousas, Por que o amo? Não importa. Adiante ...
E impõe nome às cousas.
Isto de sensações só vale a pena
Mas as cousas não têm nome nem personalidade: Se a gente se não põe a olhar para elas.
Existem, e o céu é grande a terra larga, Nenhuma delas em mim serena...
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
De resto, nada em mim é certo e está
Bendito seja eu por tudo quanto sei. De acordo comigo próprio. As horas belas
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol São as dos outros ou as que não há.

XXIX - Nem Sempre Sou Igual


Ah, Onde Estou
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito. Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A cor das flores não é a mesma ao sol A banalidade devorante das caras de toda a gente!
De que quando uma nuvem passa Ah, a angústia insuportável de gente!
Ou quando entra a noite O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
E as flores são cor da sombra. (Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)

Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores. Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Por isso quando pareço não concordar comigo, Estômago da alma alvorotado de eu ser...

Reparem bem para mim: Às Vezes


Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda, Às vezes tenho idéias felizes,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés — Idéias subitamente felizes, em idéias
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra E nas palavras em que naturalmente se despegam...
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ... Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
XXXIII - Pobres das Flores Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares. Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Parecem ter medo da polícia... Com que alguém escreve a valer o que nós aqui
Mas tão boas que florescem do mesmo modo traçamos?...
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...

ALVARO DE CAMPOS

A Frescura

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!


Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos
encontros,
Dela Musique O Frio Especial

Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,


A figura dela emerge e eu deixo de pensar... O frio especial das manhãs de viagem,
Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo A angústia da partida, carnal no arrepanhar
emergindo... Que vai do coração à pele,
Que chora virtualmente embora alegre.
As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago....
No Fim
... As duas figuras sonhadas,
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha, No fim de tudo dormir.
E uma suposição de outra coisa, No fim de quê?
E o resultado de existir... No fim do que tudo parece ser...,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras Esta aldeola do espaço,
Na clareira ao pé do lago? E não só do espaço visível, mas até do espaço total.
( ... Mas se não existem?...)
... Na clareira ao pé do lago?... Mas Eu

Estou Cansado Mas eu, em cuja alma se refletem


As forças todas do universo,
Estou cansado, é claro, Em cuja reflexão emotiva e sacudida
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. Minuto a minuto, emoção a emoção,
De que estou cansado, não sei: Coisas antagônicas e absurdas se sucedem —
De nada me serviria sabê-lo, Eu o foco inútil de todas as realidades,
Pois o cansaço fica na mesma. Eu o fantasma nascido de todas as sensações,
A ferida dói como dói Eu o abstrato, eu o projetado no écran,
E não em função da causa que a produziu. Eu a mulher legítima e triste do Conjunto
Sim, estou cansado, Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser
E um pouco sorridente de água.
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma, RICARDO REIS
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo... A Flor que És
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo. A flor que és, não a que dás, eu quero.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, Porque me negas o que te não peço.
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá, Tempo há para negares
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa. Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
O Binômio de Newton A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo. Buscando o que não deste.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora.) Aos Deuses

Nunca, por Mais Aos deuses peço só que me concedam


O nada lhes pedir. A dita é um jugo
Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça E o ser feliz oprime
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou Porque é um certo estado.
desconhecido, Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une, Quero erguer alto acima de onde os homens
A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea — Têm prazer ou dores.
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo
tem a alma, Amo o que Vejo
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de
viagem — Amo o que vejo porque deixarei
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração. Qualquer dia de o ver.
Amo-o também porque é.
Quero Acabar
No plácido intervalo em que me sinto,
Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância. Do amar, mais que ser,
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio. Amo o haver tudo e a mim.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento. Melhor me não dariam, se voltassem,
O que quis? Tenho as mãos vazias, Os primitivos deuses,
Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua. Que também, nada sabem.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstrata.
O que vivi? Era tão bom dormir!
Estás Só

Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge. NÃO CANTO A NOITE


Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista, Não canto a noite porque no meu canto
Cada um consigo é triste. O sol que canto acabara em noite.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas, Não ignoro o que esqueço.
Sorte se a sorte é dada. Canto por esquecê-lo.
Pudesse eu suspender, inda que em sonho,
Tenho Mais Almas que Uma O Apolíneo curso, e conhecer-me,
Inda que louco, gémeo
Vivem em nós inúmeros; De uma hora imperecível!
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar DIA APÓS DIA
Onde se sente ou pensa.
Dia após dia a mesma vida é a mesma.
Tenho mais almas que uma. O que decorre, Lídia,
Há mais eus do que eu mesmo. No que nós somos como em que não somos
Existo todavia Igualmente decorre.
Indiferente a todos. Colhido, o fruto deperece; e cai
Faço-os calar: eu falo. Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
Os impulsos cruzados Quer o esperemos. Sorte
Do que sinto ou não sinto Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
Disputam em quem sou. Forma alheio e invencível
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo. TÃO CEDO PASSA TUDO QUANTO PASSA

AO LONGE Tão cedo passa tudo quanto passa!


Morre tão jovem ante os deuses quanto
Ao longe os montes têm neve ao sol, Morre! Tudo é tão pouco!
Mas é suave já o frio calmo Nada se sabe, tudo se imagina.
Que alisa e agudece Circunda-te de rosas, ama, bebe
Os dardos do sol alto. E cala. O mais é nada.
Hoje, Neera, não nos escondamos,
Nada nos falta, porque nada somos. NOS ALTOS RAMOS DE ÁRVORES
Não esperamos nada
E ternos frio ao sol. Nos altos ramos de árvores frondosas
Mas tal como é, gozemos o momento, O vento faz um rumor frio e alto,
Solenes na alegria levemente, Nesta floresta, em este som me perco
E aguardando a morte E sozinho medito.
Como quem a conhece.
Assim no mundo, acima do que sinto,
AS ROSAS Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido - nem a alma
As rosas amo dos jardins de Adónis, Com que penso sozinho.
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

O MAR JAZ
O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

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