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O financiamento do combate a pobreza no Brasil na era Lula

ARTIGO

O financiamento do combate a pobreza no Brasil na era Lula

Financing of poverty alleviation in Brazil under Lula

Ana Paula Ornellas MAURIEL1

Resumo: O presente artigo visa apresentar reflexões preliminares de uma pesquisa


sobre o financiamento do combate à pobreza no Brasil nos governos Lula, o que será
realizado a partir do acompanhamento dos recursos gastos com programas federais
de transferência de renda, inclusão produtiva e microcrédito e sua relação com o
orçamento de Seguridade Social. O artigo está organizado em três partes. A primeira
se concentra na apresentação das principais tendências históricas das políticas sociais
brasileiras no Brasil e as inovações conquistadas na Constituição de 1988. Em
seguida, são expostas algumas das principais distorções da relação entre gasto
público e o financiamento das políticas sociais nos anos 1990 e 2000. E, por fim,
apresenta o cofinanciamento, estratégia de governança recomendada pelo Banco
Mundial, como forma eficiente de gestão da pobreza.
Palavras-chave: Financiamento do combate à pobreza. Gasto social. Seguridade So-
cial. Política Social.

Abstract: This paper aims to present preliminary reflections of a research about pov-
erty alleviation finance in Brazil under Lula’s governments, which will be held from
the monitoring spending with conditional cash transfer programs, produtive inclu-
sion actions and microcredit and its relations with Social Security buget. This article
is organized into three parts. The first focuses on the presentation of the main histori-
cal trends of the financing of Brazilian social policies in Brazil and the innovations
achieved in the 1988 Constitution. Then are exposed some of the major distortions in
relationship between social spending and social policy financing in the years 1990
and 2000. Finally, it presents co-financing, governance strategy recommended by the
World Bank, as a eficient form of poverty management.
Keywords: Finance of poverty alleviation. Social spending. Social Security. Social
Policy.

Submetido: 21/7/2011 Aceito: 02/09/2011

1Doutora em Ciências Sociais (Unicamp), professora do Departamento de Serviço Social da Universi-


dade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do Grupo de Pesquisa de Economia Política da Po-
breza e da Desiguadade (GPODE). E-mail: <apmauriel@gmail.com>.
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Ana Paula Ornellas Mauriel

Introdução
A principal contribuição da pesquisa ora

O
presente texto busca apresentar apresentada está na desmistificação de
reflexões preliminares da que a ampliação do número de
pesquisa sobre as formas de atendimentos dos programas de combate
financiamento das ações de combate à à pobreza significa necessariamente mais
pobreza no Brasil no governo Lula2. O investimentos na área social,
objetivo é demonstrar que a centralidade demonstrando que o perfil das políticas
no combate à pobreza conduziu a uma sociais contemporâneas centradas no
mudança de prioridades na alocação dos alívio da pobreza contribui para um
recursos da Seguridade Social brasileira, redirecionamento do gasto social para o
particularmente em relação à Política de setor privado (lucrativo e não lucrativo),
Assistência Social, considerando a conforme orientações dos organismos
implementação do Sistema Único de econômicos internacionais, reiterando a
Assistência Social (Suas). tendência histórica regressiva da base de
financimento das políticas sociais
Parte-se da hipótese de um movimento brasileiras, mas sob novas formas de
de reconcentração das decisões sobre a organização e gerenciamento do gasto
elaboração dos programas sociais no público, que vem priorizando a
governo federal, com priorização dos estabilização econômica por meio da
investimentos nas ações de transferência desvinculação de receitas próprias da
de renda para redução da pobreza Seguridade Social para a formação de
absoluta e da fome, o que contribui para superávits primários para honrar os
inibir as iniciativas locais ou municipais juros das dívidas públicas (interna e
de criação de programas e a externa) junto aos organismos
institucionalização do Suas conforme econômicos multilaterais.
previsto na Política Nacional de
Assistência Social. A pesquisa que subsidia a argumentação
desse artigo tem como objetivos
2 O projeto de pesquisa intitulado identificar as fontes e mapear os recursos
“Financiamento do combate à pobreza no Brasil”, gastos com os programas federais de
cujo início ocorreu em abril de 2011, é um transferência de renda, de inclusão
desdobramento de projeto de pesquisa sobre o produtiva (geração de trabalho e renda)
perfil das ações de combate à pobreza no estado
e microcrédito durante os dois mandatos
do Rio de Janeiro, que ocorreu no período de
março de 2010 a julho de 2011 e cujas do governo Lula e sua relação com o
observações durante a coleta de dados orçamento da Seguridade Social,
demonstraram necessidade de maior especialmente com o Fundo Nacional de
detalhamento e mapeamento das fontes que Assistência Social, procurando
fiananciam as ações de combate à pobreza no
evidenciar os principais impactos dos
país, que se apresentam diversificadas e
distribuídas nas pastas de diferentes ministérios. gastos com ações de combate à pobreza
O projeto em andamento tem previsão de para a institucionalização do Sistema
duração de 24 meses.
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Único de Assistência Social. A partir daí, Internamericano de Desenvolvimento


projeta-se uma análise comparada dos (BID) e Programa das Nações Unidas
gastos com esses programas com o total para o Desenvolvimento (PNUD).
de gasto social, com o total de gasto
público, com o PIB nacional e com as Notas acerca das tendências históricas
metas de superávit primário. do financiamento das políticas sociais
A primeira fase da pesquisa é brasileiras
bibliográfica, com levantamento de Desde o início do governo Collor, em
referências recentes sobre o tema e temas estreita ligação com os debates sobre
correlatos. A etapa seguinte da pesquisa orçamento público conduzidos e
envolverá a coleta de dados sobre o publicados pelos organismos
gasto social no governo Lula, atentando internacionais, o combate ao déficit
para os recursos envolvidos com o público ganhou destaque na agenda
combate à pobreza (essencialmente as governamental brasileira. Isso foi o
ações de transferência de renda, inclusão pontapé inicial para dar início ao
produtiva e microcrédito) e sua relação adensamento da preocupação com os
direta com as políticas de Seguridade gastos públicos, em particular os gastos
Social, particularmente a Assistência sociais. O debate sobre financiamento e
Social. orçamento das políticas sociais ganhou
fôlego renovado a partir dos debates
A busca de dados será documental e sobre a reforma da previdência na
realizada nos sites governamentais segunda metade dos anos 1990 e seguiu
difusores de informações sobre o ganhando adeptos nos anos 2000.
orçamento e gasto social no Brasil e no
Instituto de Pesquisa Econômica Os críticos das propostas
Aplicada (IPEA). Após a composição governamentais se esforçaram para
desse banco de dados, a etapa seguinte desmontar que o principal argumento
será analisar as tendências e prioridades alardeado pelos advogados do
dos gastos, a partir da comparação entre neoliberalismo, que servia de
o montante de recursos utilizados nas justificativa para tal empreitada – o
diferentes políticas setoriais e os déficit da previdência – era não só uma
programas de combate à pobreza. falácia, como também feria os princípios
constitucionais no que se refere ao
A análise qualitativa dos dados também financiamento da proteção social.
impõe conhecer as recomendações dos
organismos multilaterais para ajuste Há que se lembrar, antes de
fiscal, políticas de desenvolvimento e apresentarmos o debate contemporâneo,
combate à pobreza, o que será visto que as tendências históricas do padrão
através de documentos e relatórios de financiamento das políticas sociais
oficiais do Banco Mundial, Organização brasileiras possuem algumas
Mundial do Comércio (OMC), Fundo características peculiares que merecem
Monetário Internacional (FMI), Banco destaque.

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No caso específico do sistema


A política social brasileira nunca se previdenciário brasileiro, até a
constituiu em objetivo em si mesmo, mas promulgação da Constituição de 1988, o
em instrumento visando desempenhar fundo específico que financiava as ações
um duplo objetivo: atenuar os conflitos públicas no campo dos direitos
sociais e consolidar as estruturas de previdenciários, da assistência à saúde e
poder existentes na sociedade. Por isso, da assistência social, era o Fundo de
sempre esteve vinculada de forma Previdência e Assistência Social (FPAS),
subordinada à política econômica e aos formado basicamente pelas contribuições
projetos de desenvolvimento (quando de empregados e empregadores sobre
houve), jamais ocorrendo integração folha de salários. Por essa razão, as
entre desenvolvimento econômico e receitas previdenciárias sempre foram
desenvolvimento social (MAURIEL, extremamente sensíveis às variações do
2000). nível de atividades econômicas – no
capitalismo, como nas novelas policiais,
Outro ponto essencial diz respeito à o culpado é sempre o trabalhador;
participação do Tesouro, com base em sempre que enfrentam dificuldades nos
recursos fiscais, no financiamento da seus negócios, os empresários “se
política social, que sempre foi não justam” demitindo os trabalhadores, o
apenas baixa como pró-cíclica – ou seja, que leva, nas crises, à queda da receita.
aumenta nas fases de crescimento Por outro lado, nesse momento, em geral
econômico, quando é menos necessária, e as políticas econômicas se tornam
reduz-se nas fases recessivas, quando é restritivas, e os cortes de gasto público
mais necessária. fazem com que não haja uma
compensação para a perda de receita
Vale lembar que a base do financiamento com maiores aportes de recursos do
das políticas sociais no Brasil, a partir do Tesouro.
final dos anos 1960, passou a ser feita
através dos chamados fundos sociais, Constata-se, portanto, um problema
alimentados por contribuições sociais. A estrutural que está na base do nosso
natureza dessas contribuições é para- aparato de proteção social: a natureza
fiscal, não sendo, portanto, consideradas extremamente regressiva do
tributos (conceito que, do ponto de vista financiamento do gasto social e da
técnico, inclui somente os impostos, as tributação no país. Behring (2008),
taxas e as contribuições de melhoria); é observando as tendências de alocação do
isso que lhes permite escapar às regras fundo público brasileiro, demonstra que
típicas dos impostos, tais como princípio a carga tributária incide
da anualidade, princípio da não majoritariamente sobre os trabalhadores,
vinculação, bem como às regras de seja como tributação da renda na fonte,
partilha tributária com os níveis ou quando são remetidos ao consumo
subnacionais de governo.

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(impostos indiretos)3. A autora constata empresas são operados, em geral, como


que 72% dos impostos e contribuições se fossem impostos indiretos, sendo
incidem sobre os trabalhadores, pois 63% repassados aos preços dos produtos,
da carga tributária recai sobre o pagos pelos consumidores (ANDRADE,
consumo, 29% incide sobre a renda e 1999). Ou seja, também não possuem
apenas 4% sobre o patrimônio potencial redistributivo.
(BEHRING, 2008, p. 50).
A crise econômica que se abateu sobre a
O caráter residual do gasto social sociedade brasileira no início dos anos
financiado com recursos fiscais (ou seja, 1980 – e suas sequelas, em termos de
o Estado gasta uma parte relativamente recessão, aceleração inflacionária e
pequena do que arrecada com impostos desemprego – teve um impacto brutal
com a área social) torna o gasto social sobre as contas da previdência, que
uma fração pequena no conjunto do passou a acumular déficits significativos.
dispêndio público. Logo, não Ainda que esse quadro negativo tenha
desempenha papel redistributivo; ao sido superado, com a retomada do
contrário, acirra a desigualdade4. crescimento econômico a partir de 1984,
a lembrança de seus efeitos perversos
No que tange aos recursos de ainda estava muito viva quando a
contribuições e fundos sociais5, estes são Assembleia Nacional Constituinte
definidos, em geral, como uma relação iniciou seus trabalhos em 1987.
direta entre salário (ou folha salarial) e
contribuição, com peso maior para os Não por outra razão, os constituintes
trabalhadores de renda mais baixa. empenharam-se em definir, de modo
Ademais, os fundos formados por inovador, tudo que se referia às
demandas e expressões da questão
3 Os impostos diretos são os que incidem sobre a social6.
renda ou o patrimônio, e os impostos indiretos
são aqueles que recaem sobre as transações com Pois bem, é no capítulo sobre a
mercadorias e serviços. No que se refere aos
Seguridade Social que estão
recursos fiscais, observa que há uma baixa carga
fiscal sobre o patrimônio e a propriedade da estabelecidas algumas das principais
terra, alto grau de sonegação fiscal, injustiças do
imposto de renda, predomínio dos impostos 6 Entre essas novidades, pode-se listar: 1º) Um
indiretos (REIS et al, 2010). capítulo exclusivo sobre direitos sociais (Capítulo
4 O caráter regressivo se encontra na II), cujo artigo 6º aponta como campo desses
predominância dos impostos indiretos, que direitos a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a
retiram dos trabalhadores mais pobres maior segurança, a previdência social, a proteção à
percentagem de recursos do que dos ricos, já que maternidade e à infância e a assistência aos
os artigos de alimentação e vestuário absorvem a desamparados; 2º) Ainda nesse capítulo, o artigo
quase totalidade dos salários e apenas pequenas 7º estabelece alguns direitos concretos: o seguro
partes dos rendimentos das classes mais desemprego, o fundo de garantia por tempo de
abastadas (REIS et al, 2010, p. 18). serviço e a aposentadoria; 3º) Um Título inteiro
5 Fundos de tipo patrimonial dos trabalhadores – (ou seja, um conjunto de capítulos afins) sobre a
FGTS – ou constituídos com contribuição de ordem social, onde estão incluídos os capítulos
empresas – Finsocial, salário educação etc. sobre a seguridade social e a educação.
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conquistas da Constituição de 1988. A de administração direta ou indireta, bem


começar pelo próprio conceito de como os fundos e fundações instituídos e
seguridade social. Neologismo, tirado da mantidos pelo Poder Público”
security, dos ingleses, da sécurité, dos (Constituição Federal, Art. 165, § 5º,
franceses, e da seguridad, dos espanhóis, inciso III)7.
seu significado preciso é proteção social. Finalmente, na questão do
Ela foi assim concebida, por um lado, financiamento, a Constituição ampliou-
como um instrumento necessário ao lhe as bases, ao estabelecer, em seu
processo de reprodução da força de Artigo 195, que “[...] a seguridade social
trabalho (e, portanto, das condições de será financiada por toda a sociedade, de
reprodução do próprio capital) e, por forma direta e indireta, nos termos da lei,
outro, como porta de acesso à cidadania. mediante recursos provenientes dos
Tratava-se de dar um salto em direção à orçamentos da União, dos Estados, do
modernização das relações entre capital e Distrito Federal e dos Municípios, e das
trabalho no país, criando-se um sistema seguintes contribuições sociais: I – dos
de proteção para os trabalhadores em
caso de perda ou esgotamento, parcial ou 7 No mais, a Constituição limitou-se a registrar
total, temporário ou definitivo, de sua conquistas sociais mínimas, tais como:
força de trabalho ou das condições de recomposição do valor dos benefícios pelo “[...]
número de salários mínimos que tinham na data
exercê-la, por velhice, por doença, por
de sua concessão, obedecendo-se a esse critério
acidente, pela existência de condições de atualização até a implantação do plano de
sociais adversas, conjunturais ou custeio e benefícios” (Ato das Disposições
estruturais. Constitucionais Transitórias, Art. 58); piso de um
salário mínimo para todos os benefícios de
prestação continuada (Art. 201, § 5º); garantia de
Daí seu caráter abrangente, incluindo as
um salário mínimo de benefício mensal a
áreas de previdência social, saúde e deficientes e idosos carentes (Art. 203, inciso v);
assistência social. Daí a definição contida gratificação natalina para aposentados e
no Artigo 194 da Constituição Federal: pensionistas equivalente aos proventos do mês
“A seguridade social compreende um de dezembro (Art. 201, § 6º); cálculo dos
benefícios com “base da média dos 36 últimos
conjunto integrado de ações de iniciativa
salários de contribuição, corrigidos
dos Poderes Públicos e da sociedade, monetariamente mês a mês” (Art. 202);
destinadas a assegurar os direitos antecipação da idade para a aposentadoria por
relativos à saúde, à previdência e à velhice para o trabalhador rural, que passou a ser
assistência social”. de 55 anos para a mulher e de 60 anos para o
homem (Art. 202, inciso I); “[...] uniformização e
equivalência dos benefícios e serviços às
A principal materialização desse conceito populações urbana e rural” (Art. 194);
expressou-se na obrigatoriedade de determinação para que se adotem novos critérios
elaboração do orçamento da seguridade de reajuste do valor dos benefícios de modo a
social, integrando a lei orçamentária preservar-lhes o valor real (Art. 194, inciso IV, e
Art. 201, § 2º); destinação de no mínimo 30% dos
anual, mas independente do orçamento
recursos do orçamento da seguridade social,
fiscal da União, “[...] abrangendo todas excluído o seguro-desemprego, para o setor de
as entidades e órgãos a ela vinculados, saúde (Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, Art. 55) (MAURIEL, 2000).
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empregadores, incidentes sobre a folha tornou-se meramente retórica


de salários, o faturamento e o lucro; II – (WERNECK VIANNA, 2001), tendo sido
dos trabalhadores; III – sobre a receita de destituído de qualquer função política ou
concursos de prognósticos”. financeira, pois os compromissos
estabelecidos na Constituição de 1988
Diante das afirmações anteriores, duas não vêm sendo cumpridos no que se
observações preliminares podem ser refere ao repasse de recursos próprios da
feitas: primeiro, que os benefícios Seguridade Social (BEHRING, 2008;
estabelecidos pela Constituição de 1988 GENTIL, 2006).
em hipótese alguma podem ser
considerados como exagerados; Gasto público e financiamento das
significavam tão somente um políticas sociais no Brasil nos anos 1990
compromisso mínimo que a sociedade e 2000
brasileira assumia em saldar uma dívida
social histórica no combate à Estudos da Anfip (2002) mostram que,
desigualdade e pobreza; em segundo no orçamento da previdência social,
lugar, o mecanismo de financiamento apenas as contribuições sobre folha de
adotado previa uma parcela de recursos salários (de empregados e
próprios da seguridade – entre os quais empregadores) vêm aparecendo como
as contribuições dos trabalhadores e dos recursos próprios; as demais
empregadores, incidentes essas últimas contribuições (CLL e Cofins) são apenas
sobre a folha de salários, o faturamento e parcialmente repassadas, na rubrica de
o lucro – e uma parcela composta por transferências da União. Tais estudos
“[...] recursos provenientes dos demonstram que ocorre uma
orçamentos da União, dos Estados, do apropriação indébita, pelo Tesouro, de
Distrito Federal e dos Municípios [...]”, recursos que são constitucionalmente
ou seja, uma complementação de (CLL e Confins) ou legalmente (como era
natureza fiscal8. o caso da CPMF) da seguridade, para
Pois bem, vários autores têm repassá-los posteriormente não como
demonstrado que, se olharmos para os recursos próprios da seguridade, mas
dados da execução financeira do Tesouro como transferências do Tesouro
Nacional, podemos perceber que a figura (contrapartidas fiscais). E o que é pior,
do orçamento da seguridade social repassá-los apenas parcialmente e ainda
afirmando um suposto “déficit” da
previdência.
8 Apenas para lembrar, na regulamentação do
artigo 195, foi criada a Contribuição sobre o
Lucro Líquido (CLL) e a Contribuição para a Tais feitos vêm sendo realizados “dentro
Previdência Social (Cofins), esta última sobre a da Lei”, com a criação de um mecanismo
base faturamento. E, posteriormente, foi criada a de desvinculação entre receitas e
Contribuição Provisória sobre Movimentação
despesas que passou a vigorar em 1994,
Financeira (CPMF), cujo início do recolhimento
ocorreu em 1997, com destinação exclusiva para a no âmbito do Plano Real, permitindo que
área de saúde, prorrograda até 2007 quando foi os sucessivos governos desde então
extinta (SALVADOR, 2010, p. 216).
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fizessem uso de 20% do total de deveria agora incluir as metas de


impostos e contribuições federais de superávit primário para os anos
acordo com suas conveniências políticas seguintes, “[...] o controle do
(DRUCK; FILGUEIRAS, 2007)9. endividamento passou a exigir que uma
parcela da receita seja reservada, desde o
Para Behring (2008), um dos grandes início do processo orçamentário, para o
vilões do Orçamento da Seguridade e do pagamento do serviço da dívida” (REIS
gasto social em geral tem sido o et al, 2010, p. 29). Isso fez com que as
superávit primário. Instituído após o oscilações da conjuntura econômica se
acordo com o FMI em 1999, é formado refletissem de forma mais direta na
pelos recursos desvinculados para dar elaboração e execução do orçamento.
garantias ao capital financeiro
internacional da capacidade de Para Granemann e Silva (2008), os
pagamento das dívidas e manter o Risco desvios (legais e ilícitos) do orçamento
Brasil sob controle. da Seguridade são para favorecer uma
política econômica facilitadora do capital
A crise de 1998/1999 serviu de motivo portador de juros, mobilizando grandes
para um acirramento no ajuste fiscal que montantes de recursos produzidos pelo
seguiu como prioridade desde o início da trabalho para impulsionar a acumulação
década. A Lei de Responsabilidade predominantemente financeira.
Fiscal10, reeditada em 2000, serviu para Naqueles setores em que os recursos
acirrar a disciplina fiscal, matida pelo ainda não são transferidos pela
governo Lula no mandato seguinte. Com privatização do fundo público para o
a restrição fiscal agravada, a meta de capital, estes passam a ser operados
superávit primário chegou a 4,25% do como serviços mercantis.
PIB em 2003, mantendo-se nesse patamar Como demonstam Druck e Filgueiras
até 2006. (2007), de 1999 a julho de 2006, mais de
um trilhão de reais foram direcionados
Vale ressaltar que, com as diretrizes da para o serviço da dívida pública,
Lei de Responsabilidade Fiscal sobre a pagando R$ 468,5 bilhões com os
Lei de Diretrizes Orçamentárias, a qual superávits primários (o que corresponde
a cerca de 8% do PIB). A dívida pública,
9 Esse mecanismo era chamado, inicialmente, de contudo, foi acrescida em mais R$ 817
Fundo Social de Emergência (1994), mais tarde bilhões entre 1995 e julho de 2006
batizado como Fundo de Estabilização Fiscal
(DRUCK; FILGUEIRAS, 2007, p. 28).
(1997) e hoje é nomeado Desvinculação de
Receitas da União (DRU) (DRUCK;
FILGUEIRAS, 2007, p. 29). Tais processos vêm condicionando
10 Lei complementar no 101, de 2000. A Lei de
diretamente os gastos sociais. Behring
Responsabilidade Fiscal criou também um dispo- (2008, p. 52) sinaliza que, só em 2004,
sitivo que determina que a Lei de Diretrizes Or-
85% do superávit primário foi obtido por
çamentárias deve incluir não apenas as metas do
resultado primário do Governo Central para o meio de aportes da Seguridade Social, o
Orçamento Geral da União (OGU), mas para o que corresponde a R$ 42,5 bilhões. Se
segundo e o terceiro anos seguintes.
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observarmos a percentagem de gastos diferenciações institucionais e


sociais por área sobre o total do conceituais devem ser sinalizadas no
orçamento, no período de 1996 a 2006, sentido de garantir o caráter
percebe-se a discrepância de valores em contraditório da política social, evitando
relação aos superávits primários: as áreas análises maniqueístas que advogam por
de habitação, urbanismo, saneamento e um único ângulo, positivo ou negativo,
cultura somam juntas menos que 05% do processos complexos que congregam
orçamento total; a Assistência Social não múltiplas clivagens presentes tanto na
ultrapassou 1% do orçamento da União Política Nacional de Assistência, como
até 2003, apresentando um aumento para nas ações de combate à pobreza.
1,53, em 2004, chegando a 1,83, em 2006,
em função do Programa Bolsa Família Os programas emergenciais para
(REIS et al, 2010, p. 30). enfrentamento de carências e situações de
vulnerabilidade social de segmentos
O quadro institucional da política social populacionais específicos incluem uma
que se apresenta no Brasil, no final da gama variada de programas focalizados
primeira década dos anos 2000, na linha de pobreza, que possuem
demonstra uma estranha aproximação caráter transitório e sua continuidade
entre combate à pobreza e assistência fica à mercê das opções de governos,
social. Tal fenômeno se deve, em grande atendendo a uma demanda difusa e não
medida, à tardia institucionalização da estruturada no aparelho do Estado
política de Assistência11 acontecer num enquanto política pública.
ambiente onde o tratamento da questão
social centrado no combate à pobreza Esse conjunto de ações, por sua vez,
focalizada só fez aprofundar o processo pode ser classificado em duas grandes
de desconstrução simbólica e ideológica tendências: o novo assistencialismo
da Seguridade enquanto base para condicionado, que se caracteriza pela
pensar e construir as políticas sociais transferência de renda com
(MAURIEL; RAIS; MACEDO, 2010). condicionalidades, cuja principal
iniciativa é o Programa Bolsa Família, e o
Cabe, contudo, esclarecer que a empreendedorismo, que corresponde ao
Assistência Social e combate à pobreza estímulo à atividade empresarial
no Brasil não devem ser confundidos empreendedora como instrumento de
como um conjunto único de ações. As inclusão social, ou aos programas de
inclusão produtiva associados ao
11 Após dez anos de aprovação da Lei Orgânica microcrédito, aos quais se tem atribuído
de Assistência Social, entre 7 e 10 de dezembro o papel de porta de saída das famílias que
de 2003, ocorreu a IV Conferência Nacional de dependem da transferência de renda.
Assistência Social, em caráter extraordinário, que
finalmente indicou a construção do Sistema Úni-
Cofinanciamento como forma de
co de Assistência Social. Só em outubro de 2004,
o Conselho nacional de Assistência Social apro- governança eficiente da pobreza
vou a Política Nacional de Assistência atual-
mente em vigor.
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Santos Junior (2010), observando o ao padrão lançado nos anos 199012, está
movimento do Banco Mundial nas duas na inclusão dos benefícios não
últimas décadas, mostra uma mudança contributivos e dos programas de
no tom do discurso e nas prioridades das transferência de renda no pacote de
ações no que se refere ao papel do sugestões, indicando um reconhecimento
Estado, concluindo que há, nos explícito de que o combate à pobreza
principais relatórios publicados, um deve estar incluído nos sistemas formais
resgate do Estado no fomento ao de proteção, mostrando uma
mercado, mas sob novos patamares de aproximação entre políticas de
atuação. previdência e políticas voltadas para a
pobreza.
Merrien (2007) alude a essa tendência
sinalizando um possível consenso pós- Observando as experiências latino-
Washington, cujo ideário se afasta do americanas, Werneck Vianna (2010)
neoliberalismo puro e abre novas vias sinaliza outra mudança substantiva: na
para a extensão da proteção social. A forma de atuação do Banco Mundial,
ilustração desse novo consenso encontra que, no documento Reducción de la
sua expressão mais visível nas pobreza y crecimiento: circulos virtuosos y
estratégias de combate à pobreza, que circulos viciosos, não trata apenas de
apresenta um novo quadro de prescrever as reformas, mas passa a
referências marcadas pela ideia de indicar as “[...] condições sob as quais a
governança. ajuda do Banco se materializa”
(WERNECK VIANNA, 2010, p. 37).
Em relação à experiência latino-
americana, Merrien (2007) assevera que, O Estado, nessa nova fase, aparece como
desde o início dos anos 2000, a mudança um parceiro e funcionaria como
de perspectiva na proteção social facilitador do processo de
acompanha as alterações nos organismos desenvolvimento econômico e social,
internacionais, particularmente o Banco como um complemento do mercado.
Mundial, em dois sentidos: no campo Com isso, espera-se que ocorra um
dos fundos de pensões e no que tange às processo de sinergia em que os
políticas de assistência e combate à indivíduos, as comunidades locais, as
pobreza. organizações não governamentais, os
empresários e as empresas
Em relação aos fundos de pensão, multinacionais e locais construiriam
Werneck Vianna (2010) assinala que, relações em parceria com o Estado
embora mantenha-se a prioridade de (SANTOS JUNIOR, 2010, p. 218).
sustentabilidade financeira, a
originalidade da proposta de reforma
12A autora faz referência à conhecida proposta de
dos sistemas previdenciários, em relação
Reforma dos Três Pilares do Banco Mundial, tal
como consta no documento Adverting the Old Age
Crisis: Policies to Protect the Old and to promote
Growth, lançado pelo Banco em 1994.
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O financiamento do combate a pobreza no Brasil na era Lula

Nesse Estado renovado, certas funções, A incorporação do conceito de pobreza


mesmo públicas, não são exclusivas da enquanto ausência de capacidades (SEN,
atividade estatal, podendo e devendo ser 2000) por institutos de pesquisa e
executadas por entidades privadas ou do acadêmicos de vários Estados latino-
terceiro setor, seguindo o sistema legal de americanos, a partir dos anos 2000, e sua
cada realidade nacional. Um novo aplicação em práticas sociais inovadoras,
instituto jurídico-administrativo impulsionou o aumento de recursos
instaurou a figura das parcerias público- direcionados para o combate à pobreza,
privadas. Isso implicava a participação não mais apenas pela via da
direta dos atores da sociedade civil no transferência de renda com
processo político, levando o Banco a condicionalidades e ações de capacitação
estimular, em suas linhas de para geração de renda, mas ampliando
financiamento, “[...] o fortalecimento dos investimentos em ações que possibilitam
mecanismos de empoderamento o empoderamento e o ganho de
(empowerment) social, aqui definido como titularidades (habilitações individuais e
aumento das capacidades materiais e coletivas)13.
simbólicas dos grupos da sociedade civil
[...]”, particularmente nas políticas O formato predominante das políticas
sociais de redução da pobreza (SANTOS sociais na América Latina nos anos 1990
JUNIOR, 2010, p. 222). teve uma forte influência dos organismos
internacionais, que insistiram na
Esse tipo de solução envolvia o fomento indicação de um padrão unívoco para as
de um novo tipo de mercado, em que o reformas na proteção social para os
principal negócio comercializado seria diversos países da região. Os princípios
bens e serviços públicos, num ambiente orientadores centrais foram a
onde as ONGs concorreriam entre si e focalização, a descentralização e a
com empresas autorizadas a prestarem privatização, que, apesar de não terem
serviços (BANCO MUNDIAL apud conduzido a formatos idênticos dos
SANTOS JUNIOR, 2010). sistemas de proteção em todos os países,
tiveram como preocupação central a
Os princípios do Banco Mundial para as focalização das ações no combate à
décadas de 1990 e 2000 definiram como pobreza (CORLETTO, 2010).
prioridade o acesso dos pobres a
atividades que pudessem gerar renda e o Assim, ao lado das reformas nos
financiamento da assistência social. A sistemas de seguridade social, tendendo
preocupação central era desenvolver
mecanismos que contemplassem o 13 “O Relatório sobre o Desenvolvimento Mun-
atendimento das necessidades básicas dial (2000/2001) desloca a estratégia de redução
da pobreza das políticas de geração de renda
dos pobres, mas sem comprometer o
stricto senso e financiamento social para o inves-
equilíbrio fiscal e orçamentário timento em recursos que possibilitam o empode-
(SANTOS JUNIOR, 2010, p. 226). ramento e o intitulamento individual” (SANTOS
JUNIOR, 2010, p.231).
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Argumentum, Vitória (ES), v. 3, n.2,p. 267-283, jul./dez. 2011
Ana Paula Ornellas Mauriel

a fortalecer o pilar privado de contemporâneas, centradas no alívio da


capitalização dos esquemas pobreza via empoderamento e fomento
previdenciários (WERNECK VIANNA, ao capital social, contribuem para um
2010), foram colocados em prática um redirecionamento do gasto social para o
conjunto de programas fragmentados, setor privado (lucrativo e não lucrativo),
compensatórios, emergenciais, de alívio cujo principal objetivo era alterar a lógica
das manifestações mais graves e de financiamento da proteção social em
urgentes da pobreza e situações sua totalidade.
classificadas como de exclusão e
vulnerabilidades, realizados por uma Santos Junior (2010) indica que:
peculiar parceria entre Estado (em seus
níveis subnacionais) e sociedade civil. [...] a responsabilidade e o
financiamento dos programas sociais
Outro importante foco de ação dos anos deveriam ser compartilhados entre as
1990 e que se mantém, nos anos 2000, várias instâncias de governos e com a
própria comunidade, que assumiriam
como pilar central das ações de combate
juntos parte dos custos e da prestação
à pobreza é a transferência de renda
dos serviços. Sendo esses preceitos
condicionada. Pereira e Stein (2010) ordenantes, a idéia de autogestão
mostram que 19 países da América ganha força (SANTOS JUNIOR, 2010,
Latina e Caribe desenvolvem esse tipo de p.238).
programa, cobrindo 22 milhões de
famílias, das quais 12 milhões estão no Os Fundos Sociais de emergência e
Brasil (atendidas pelo Programa Bolsa Ambientais (safety nets) criados no final
Família) e 5 milhões no México dos anos 1980 e ampliados nos anos 2000
(incluídas no Programa Oportunidades), são um dos exemplos dessa reengenharia
representando respectivamente 83% e do financiamento da área social, pois
71% da população pobre residentes concebidos como formas de proteção
nesses dois países (PEREIRA; STEIN, temporária e anticíclica, que deveriam
2010, p. 121). proporcionar renda e emprego adicionais
às vítimas de crise, acabaram se
Cabe ressaltar que o volume de recursos convertendo em instituições
investidos em tais programas é ínfimo se permanentes, atendendo às necessidades
observarmos o percentual que das comunidades mais pobres
representam no PIB desses países, que (PEREIRA; STEIN, 2010, p. 118).
não chega a 1% nos casos mencionados,
Brasil (0,41%) e México (0,43%) Para o Banco Mundial, tornar a
(PEREIRA; STEIN, 2010, p. 121). participação popular um instrumento
capaz de melhorar o desempenho dos
Nos anos 2000, alguns elementos novos projetos sociais implica em envolver
são acoplados nesse estratagema iniciado diretamente os beneficiários, aligeirando
na década anterior, demonstrando que o o consenso e arregimentando a
perfil das políticas sociais contribuição financeira e pessoal dos

278
O financiamento do combate a pobreza no Brasil na era Lula

participantes, constituindo uma solução a relevância e a lógica dos programas por


de baixo custo e com flexibilidade ele recomendados, pois entende o
necessária para qualquer mudança no aumento do capital social como uma
planejamento e operacionalidade ferramenta do “desenvolvimento e da
(SANTOS JUNIOR, 2010, p.242). emancipação dos pobres porque
facilitaria a coordenação e a cooperação,
Cabe relembrar que, como as gerando benefícios comuns para os que
capacidades dos indivíduos podem se fazem parte de uma determinada
alterar sistematicamente, o tipo de ação associação” (SANTOS JUNIOR, 2010, p.
social também deve ter maleabilidade 245) que funciona com base na
para suportar tais mudanças frequentes. confiança15.

Com essas recomendações, o Banco Essa via teórico-estratégica inverte,


visava não só limitar as políticas sociais categoricamente, os princípios que
aos mais pobres, mas buscava legitimar norteavam o financiamento das ações de
essa solução restritiva junto aos próprios desenvolvimento social, recomendados e
pobres, que estariam envolvidos praticados até a década de 1980,
diretamente no processo. fortemente canalizados para a execução
de serviços via rede pública estatal ou
Por isso, o Banco vem utilizando o incentivo aos setores privados lucrativos
conceito de capital social14 para justificar provedores de serviços (de saúde e
educação, por exemplo).
14 Quanto à utilização do conceito de “capital
social” na abordagem da questão da pobreza, o O reconhecimento, por parte do Banco,
Banco Mundial segue a mesma linha de
de que os fatores institucionais e sociais
orientação dos argumentos de Coleman (2000,
apud UGÁ, 2008), que aponta que o “capital locais influenciam diretamente a
social”, ao contrário das outras formas de economia, tornou o financiamento das
“capital”, não está alojado nem nos próprios políticas sociais mais diversificado, com
atores nem nos instrumentos físicos de produção, incentivos crescentes para a própria
ao contrário, é inerente à estrutura das relações
comunidade, flexibilizando o papel do
entre os atores e dentre os atores. Nesse sentido,
para o Banco, o “capital social” é um tipo de
“recurso”, particularmente “recursos sociais”: Mundial presume duas evidências empíricas: 1)
“embora o termo “capital social” objetive abarcar as redes e normas sociais estão intrinsecamente
as relações sociais – as relações informais, as associadas e 2) elas têm consequências
relações de parentesco, organizações locais, as econômicas importantes (WORLD BANK apud
redes sociais –, elas apenas são importantes na SANTOS JUNIOR, 2010, p. 245).
medida em que podem atuar como “recursos” de 15 A categoria confiança, apresentada nos
capital para os indivíduos – e só assim podem ser documentos do Banco Mundial, privilegia a
consideradas “capital social”. O modo como este complementaridade que, segundo essa
termo é abordado no relatório (enquanto compreensão, deveria haver entre as ações
“recursos”) está essencialmente relacionado a públicas e as demandas, aspirações e valores das
questões de produtividade e de comunidades locais. Com isso, o Banco apoiaria
instrumentalidade para o indivíduo” (UGÁ, iniciativas como as de microcrédito, com base na
2008, p.143). Por isso, a concepção de capital solidariedade e normas comunitárias (SANTOS
social incorporada aos programas do Banco JUNIOR, 2010, p. 247).
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Ana Paula Ornellas Mauriel

Estado, que passaria a funcionar cada centrais para uma suposta retomada do
vez mais como um agente indutor de desenvolvimento nos países periféricos.
políticas sociais, fortemente centradas no
alívio da pobreza, por meio do fomento Sob esse ponto de vista, a política social
ao “intitulamento” e ao do governo Lula segue a mesma lógica
“empoderamento” de agentes sociais, os do governo anterior, tendo o alívio direto
quais figurariam como executores dos da pobreza focalizado como estratégia
serviços sociais. central. Desse modo, liberam-se recursos
financeiros para serem direcionados para
Isso ajudaria, segundo o Banco, a o capital financeiro e os rentistas,
fortalecer um mercado de serviços configurando uma “[...] brutal
sociais não lucrativos, justificado pelo transferência de renda do conjunto da
discurso do aumento do capital social, sociedade para o capital” (DRUCK;
por meio da instrumentalização de FILGUEIRAS, 2007, p. 29).
comunidades ou grupos sociais para
realização de ações que permitam a Outras evidências poderiam ser
superação da pobreza pela autogestão buscadas nas áreas de saúde, educação,
(SANTOS JUNIOR, 2010, p. 248-51). nutrição, habitação, saneamento etc., que
confirmariam exaustivamente a hipótese
Conclusões de que a política social brasileira está
sendo dualizada, com mercantilização e
Oliveira (2009) salienta que a privatização para os “incluídos” e
vampirização dos orçamentos públicos é focalização para os “excluídos”.
contrabalançada com a transformação
dos direitos em carências, a serem Desresponsabilização e desoneração do
supridas por iniciativas focalizadas e de Estado implicam baixa prioridade das
baixo custo. A mesma correlação entre políticas sociais em geral e dos
ajuste fiscal, gasto social e política social programas universais em particular.
focalizada tem sido enfatizada por Com isso, conforma-se um quadro de
diversos autores. pura “esquizofrenia”: de um lado,
anuncia-se o combate à pobreza através
Granemann e Silva (2008), a partir de da mobilização da sociedade civil; de
estudos sobre documentos oficiais do outro, implementam-se políticas públicas
Fundo Monetário Internacional (FMI), do (tanto econômicas como sociais), que são
Banco Internamericano de criadoras contínuas de pobreza,
Desenvolvimento (BID) e do Banco desigualdade e exclusão. E,
Mundial que tratam do orçamento particularmente em relação à área social,
público e ajuste fiscal, demonstram que a a prioridade do governo é não fazer
eficiência na administração do gasto política social, mas anunciar uma política
público e a focalização das políticas de combate à pobreza, que não consegue
sociais são princípios definidos pelos
organismos internacionais como peças

280
O financiamento do combate a pobreza no Brasil na era Lula

sequer servir de paliativo do ponto de CORLETTO, Alejandra Pastorini. Ele-


vista redistributivo16. mentos orientadores das reformas da
Diante desse perfil institucional e das proteção social na América Latina. Re-
questões mencionadas é que se vista Argumentum, Vitória, v. 2, n. 1, p.
reconhece a relevância de investigar o 133-149, jan./jun., 2010. Disponível em :
financiamento do combate à pobreza no http://periodicos.ufes.br/argumentum/art
Brasil no governo Lula, que, apesar de icle/view/337.
concluído, deixou raízes para
continuidade desse padrão pobre de DRUCK, Graça, FILGUEIRAS, Luiz.
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PIB brasileiro na época isso significava menos de Dissertação (Mestrado em Serviço Social)
0,1%; já comparados ao gasto público social do
país, tem-se menos de 0,2% (MAURIEL, 2000a).
281
Argumentum, Vitória (ES), v. 3, n.2,p. 267-283, jul./dez. 2011
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