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ENSAIO: TONS DA ETNOMUSICOLOGIA COMO PESQUISA NO BRASIL

AUTORA: KEILA MICHELLE SILVA MONTEIRO

INTRODUÇÃO
Ao ingressar no curso de Mestrado em Artes, interessei-me pela etnomusicologia
e, na época, a frase principal que me tomou foi: ‘entender a música que o homem faz
para entender o homem’. Isso foi em 2009 e hoje se vê que o termo ‘homem’ caiu em
desuso diante de conquistas e atuações feministas, inclusive já há pesquisadoras na área
que assumem contornos feministas. Iniciava-se aí uma complexidade e maior interesse
de minha parte até chegar ao curso de Doutorado para, agora, tentar entender melhor a
etnomusicologia num Brasil pós colonial.
Essa área de conhecimento chega ao Brasil e xs pesquisadorxs têm de atuar, a
meu ver, de forma peculiar, visto que encontram campos riquíssimos de pesquisa num
território muito visado por estrangeiros, com culturas que ora se veem numa unidade,
ora fragmentadas, e que enfrenta mudanças e muitos problemas sociais, políticos e
econômicos. Atualmente o corte de verbas, principalmente para a área das Artes, faz da
pesquisa para os que são brasileiros um grande desafio.
Partindo da visão de autores como Lühning, Tugny, Bastos e Pinto, vejo a
etnomusicologia como algo que vai muito além de um campo de conhecimento e uma
disciplina, visto que assume peculiaridades no Brasil por conta das características
observadas e expostas no parágrafo anterior.
Busco, portanto, esclarecer principalmente para alunos de graduação em música
e/ou pesquisadores iniciantes, alguns ‘tons’, ou seja, algumas peculiaridades da
etnomusicologia no território brasileiro a partir de alguns conceitos que vêm ganhando
forma em escritos acadêmicos e/ou literários por pesquisadorxs que adotaram esse país
como seu objeto de pesquisa, sem é claro, a pretensão de esgotar o tema.

A ETNOMUSICOLOGIA POR BRASILEIRXS


Conforme Menezes Bastos, a Etnomusicologia (que ,a princípio, era musicologia
comparada) como disciplina deve ser pensada desde as suas origens até agora mesmo e
resulta do encontro da Antropologia com a Música (ou Musicologia), ou seja, o círculo
artístico-musical inclusivo da música ocidental, evidenciando-se a dicotomia
Ocidente/“Outros”, em que o papel do etnógrafo é o de compreender o outro (sendo este
ocidental ou não); e afirma:
“os estudos etnomusicológicos no Brasil (mas não só aqui)
subdividem-se naqueles feitos de dentro da antropologia e naqueles
outros feitos a partir da etnomusicologia, tudo apontando para o fato
de que o que chamamos de etnomusicologia no país tem duas formas
de cultivo institucional, uma nos programas de pós-graduação em
música, outra nos de antropoligia” (BASTOS, 2014, p.48)

Ele afirma haver as etnomusicologias musical e antropológica revelando o


aspecto institucional da disciplina e os campos intelectuais envolvidos nela.
Segundo Pinto, a etnomusicologia pode ser entendida, a grosso modo, como o
“estudo do ser humano que faz música”, do seu fazer musical, da sua criação; isso a
distingue da musicologia histórica, a qual é mais dedicada a fontes escritas, por isso se
aproxima muito da antropologia. Ele enfatiza que há muitas formas de se fazer música
diferenciada dos cânones ocidentais e que estudar e entender manifestações musicais e
civilizações de outros continentes nos permite uma emancipação das normas ao nosso
redor, relativizando-as para enxergarmos nossa própria cultura com outros olhos, ouvi-
la com outros ouvidos.
Eis a dificuldade que tive ao pesquisar um grupo de música que eu observava em
Belém-PA, cujos sujeitos de pesquisa eram meus amigos e tinham como um elemento
principal de suas composições a ‘guitarrada’, gênero musical criado no Pará, o qual
ouvimos desde criança nas rádios da capital e do interior. Pesquisar um gênero muito
próximo, da mesma localidade exige um ‘olhar estrangeiro’ que se torna muito mais
otimizado quando se não se pesquisa a respeito, lê-se sobre outras culturas musicais
bem distantes, conforme relata Blacking no seu livro How Musical is Man?.
Sobre a era da globalização, relata o pesquisador:
“A etnomusicologia acompanhou esse desenvolvimento, quase que
como uma disciplina irmão da antropologia cultural, sem abandonar
por completo a musicologia histórica, embora liberta do imperativo do
pensamento musical ocidental oitocentista, que perdura, largamente,
nas grades curriculares dos conservatórios de música até
hoje”(PINTO, 2008, p.7).

Percebo a etnomusicologia como uma interseção entre a(s) musicologia(s) e a(s)


antropologia(s), e portanto quem pretende estudá-la deve conhecer não apenas as
musicologias, a antropologia da música e a trajetória da etnomusicologia até chegar ao
nosso país, mas os cânones da antropologia e as referências de antropólogos mais atuais
e que pesquisam (n)o Brasil.
PESQUISAS NO BRASIL
Segundo Pinto, os primeiros registros musicais no Brasil foram feitos por
pesquisadores alemães da área da antropologia, em campo entre 1907 e 1911, com
povos indígenas da Amazônia. Tais arquivos ficavam em museus onde eram transcritos
para partituras por musicólogos. Estes perceberam que só a partitura não era necessária
e que era necessário pesquisar a cultura onde soavam as músicas. Então, a
etnomusicologia distanciava-se da pesquisa histórica para adotar perspectivas
antropológicas. Redefinir metodologia, abandonar códigos estabelecidos e romper com
verdades instituídas foram elementos que originaram a disciplina Etnomusicologia,
firmada nos anos 1950 nos EUA com a fundação da Society for Etnomusicology.
No Brasil, suas atividades iniciaram na década de 1990 com a inclusão da
disciplina nos currículos das áreas de música e antropologia, inaugurando-se inclusive
programas de pós graduação na área e, em 2001 a Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET), surgindo uma nova geração engajada de etnomusicólogos.
Porém já havia grandes nomes de pesquisadores por aqui ao final do século XX, como
Mário de Andrade. Da atualidade, Pinto cita nomes como Rafael José de Menezes
Bastos, Anthony Seeger, Acácio Tadeu Piedade e Deisy Lucy Montardo para se tomar
conhecimento.
A etnomusicologia da música indígena no Brasil e o estudo da presença das
culturas africanas no Brasil, a percepção de suas estruturas performáticas, sua escuta
constituem, sem dúvida, um campo vasto e peculiar de pesquisa para etnomusicólogos,
os quais buscam ampliar teorias da cultura e da miscigenação, com base não
necessariamente em critérios raciais: “A etnomusicologia confere às manifestações afro-
brasileiras um lugar muito mais amplo do que aquele que comumente ainda se apega à
ideia de resistência, de um lado, ou de mera contribuição cultural, ou seja, folclórica, de
outro”(PINTO, 2008, p.9-10).
O autor esclarece ainda que a etnomusicologia brasileira se aplica junto a
comunidades cujas práticas musicais são documentadas e estudadas, ao mesmo tempo
que difundidas in loco. As pesquisas no Brasil levam ao grupo pesquisado um
autoconhecimento, a uma forma de “autopesquisa”. Pesquisas de etnomusicólogos no
Brasil também vêm contribuindo com o fato de algumas manifestações culturais se
tornarem patrimônio imaterial.
Essas questões são bem exploradas ao se ler “Etnomusicologia no Brasil” de
Lühning e Tugny, em que são percebidas como interesses da etnomusicologia no Brasil
a diversidade sociocultural e política de pessoas e grupos minoritários frente às
hegemonias geopolíticas em processos contínuos de expropriação territorial, patrimonial
ou simbólica, estatal ou privada. No país, um tema preocupante é a ‘expropriação’ em
que a etnomusicologia assume naturalmente vínculo com: políticas públicas;
mobilização social; proteção de territórios e saberes; o cotidiano da violência urbana
e/ou simbólica e com a urgência que marca a sobrevivência de alguns dos povos com os
quais ela trabalha e se solidariza.
Portanto, a etnomusicologia assume contornos específicos em território
brasileiro, visto que o etnomusicólogo, por vezes, não apenas pesquisa mas provoca
transformações na sociedade do local pesquisado.
CONCLUSÃO
A etnomusicologia constitui um campo vasto, inter e transdisciplinar e vem se
reafirmando ao longo de décadas, inclusive com autores/pesquisadores brasileiros desde
o século passado até os dias atuais. No Pará, por exemplo, temos dois grandes nomes
como Sônia Chada e Líliam Cohen. Porém, é necessário que se reconheça nos seus
continentes de origens autores brasileirxs e se quebre a hierarquia de importância de
autores como a etnomusicologia vem quebrando no Brasil colonialismos e racismos.
A pesquisa em etnomusicologia no Brasil se afasta, portanto, de hierarquias
racistas e colonialistas, aproximando-se mais das periferias, caminhando mais lado a
lado com seus sujeitos de pesquisa, em que suas vozes aparecem, e assumindo, de certa
forma, funções políticas, com salvaguardas que interferem diretamente na vida da
comunidade pesquisada.
As publicações de autores brasileiros, e mesmo os estrangeiros, sobre os
caminhos da etnomusicologia no Brasil, como campo de pesquisa, como disciplina etc.
são de suma importância para compreendermos onde estamos inseridos e assim
assumirmos os rumos de nossas pesquisas de modo a alimentarmos mais nosso interesse
pela música produzida no Brasil para ampliarmos as bibliografias até então presentes.
BIBLIOGRAFIA
MENEZES BASTOS, R. J. de. Música nas sociedades indígenas das terras baixas da
América do Sul: reflexões sobre deslocamentos e mudanças de rumo na
etnomusicologia. In: DOMINGUEZ, M. E.; MONTARDO, D. L. (org.). Arte e
Sociabilidades em Perspectiva Antropológica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014
PINTO, T. O. Etnomusicologia: da música brasileira à música mundial. In:
Etnomusicologia. Revista USP. Coordenadoria de Comunicação Social, Universidade
de São Paulo. N.77 (mar./mai. 2008). São Paulo: USP CCS, 2008.
LÜHNING & TUGNY, Angela, Rosângela Pereira (org.). Etnomusicologia no Brasil.
Salvador: EDUFBA, 2016

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